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artigo de revisão / review article / discusión crítica

A reabilitação do sujeito afásico: uma visão sociointeracionista


Aphasic subjects rehabilitation: a social-interactionist perspective
El sujeto afásico y la rehabilitación: una perspectiva sociointeraccionista

Cecília Farah da Silva*


Leticia Guedes Cintra**

Resumo: A afasia encontra-se entre as diversas patologias que afetam a linguagem e pode acarretar alterações na vida social, profissio-
nal, emocional e pessoal de indivíduos que a possuem. Faz-se necessário pesquisar sobre o impacto gerado pela privação da linguagem
na vida desses indivíduos, o que possibilitará ao terapeuta elaborações de estratégias de reabilitação, para que esses sujeitos consigam
significar e contextualizar a linguagem participando novamente de diferentes situações interacionais. O presente trabalho teve como
objetivo abordar as contribuições da teoria sociointeracionista de aquisição da linguagem na terapia de sujeitos afásicos, pesquisando as
implicações das alterações de linguagem no processo interacional e nos aspectos sociais e emocionais desses indivíduos. Para a realização
do estudo, foram utilizadas pesquisas em livros didáticos, artigos científicos e leitura on-line.
Palavras-chave: Afasia. Linguagem. Interação social.
Abstract: Aphasia is among the different pathologies that affect language and may cause alterations in social, professional, emo-
tional and personal life of individuals affected by it. It is necessary to investigate the impact generated by language privation in the
life of these individuals, something which will allow the therapist to propose rehabilitation strategies, so that these subjects regain the
ability for meaning making and to contextualize language, participating on different interaction situations. The present work aimed at
approaching the contributions of the social-interactionist theory of language acquisition in the therapy of aphasic subjects, looking for
the implications of language alterations in the interactional process and the social and emotional aspects of these individuals. For the
accomplishment of the study, we did on-line searches in manuals, scientific articles and reading.
Keywords: Aphasia. Language. Social interaction.
Resumen: La afasia está entre las diversas patologías que afectan al lenguaje y pueden causar alteraciones en la vida social, profesional,
emocional y personal de los individuos afectados. Es necesario investigar el impacto generado por la privación del lenguaje en la vida de
estos individuos, algo que permitirá que el terapeuta proponga estrategias de la rehabilitación, de modo que estos temas recuperen la
capacidad para el significado y la contextualización del uso del lenguaje, participando en diversas situaciones de interacción. El trabajo
tuvo como objetivo acercar las contribuciones de la teoría sociointeraccionista de la adquisición del lenguaje en la terapia de sujetos
afásicos, buscando las implicaciones de las alteraciones del lenguaje en el proceso interaccional y los aspectos sociales y emocionales de
estos individuos. Para la realización del estudio, hicimos búsquedas en línea en manuales, artículos científicos y lecturas.
Palabras-llave: Afasia. Lenguaje. Interacción social.

Introdução Entende-se por afasia alterações Os pressupostos da teoria so-


ocasionadas por lesões neuroló- ciointeracionista de aquisição da
A linguagem possibilita a co-
gicas, resultantes de acidente vas- linguagem contribuem de forma
municação e a interação de forma
cular cerebral, tumor cerebral ou significativa para a reabilitação de
ilimitada entre os indivíduos, per-
mitindo ação sobre o meio (pela traumatismo craniano, que podem indivíduos afásicos, uma vez que
atividade cognitiva) e sobre o outro gerar inúmeras alterações na lin- pensa e entende o sujeito como
(pela atividade comunicativa). So- guagem, afetar as interações sociais parte de um processo sociocultu-
mente a partir dessas ações os indi- e a vida profissional dos indivíduos ral e considera a linguagem uma
víduos podem exercer ativamente por ela acometidos, acarretando, habilidade adquirida nas situações
seu papel na sociedade1,2. também, problemas emocionais1,3. do cotidiano, a partir do seu uso.

* Fonoaudióloga pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). E-mail: cissa_farah@yahoo.com.br
** Fonoaudióloga pela Universidade Católica de Petropólis (UCP). Professora do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF).
E-mail: leticiagcintra@yahoo.com.br

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Sendo assim, desconsidera a pato- anatomofuncional geneticamente Sob o olhar de uma nova con-
logia e lança seu olhar para o sujei- determinada, mas, também, a uma cepção da linguagem – a Biologia
to, ressignificando suas produções estimulação verbal dependente do do Conhecer, nome dado pelo bió-
e levando-o a participar ativamente ambiente. Por esse motivo, descre- logo chileno Humberto Maturana
do processo interacional1,2,4. vem que o uso da linguagem visa (1970), – acredita-se que o surgi-
Portanto, caracterizar as im- à comunicação, constituindo um mento da linguagem entre os hu-
plicações da afasia na linguagem e instrumento social utilizado em in- manos tenha ocorrido a partir de
nas interações sociais, detectar as terações sociais. interações recorrentes constantes,
dificuldades vivenciadas por indi- Costa 8 descreve linguagem no momento de convivência entre
víduos afásicos quando se deparam como uma característica do com- os interlocutores. Noutras palavras,
com uma privação de linguagem, portamento humano que possibi- a base da linguagem surge no ins-
e conhecer o impacto dessas alte- lita aos indivíduos aprender e usar tante em que uma ação gera outra
rações em qualquer aspecto de sua a língua. A língua, por sua vez, ação nesse espaço de convivência.
vida, seja pessoal, social ou profis- refere-se ao ato de falar, propria- Assim, para que haja entendimento
sional, fornecem subsídios para ao mente dito, sendo um sistema abs- entre os interlocutores, é necessário
terapeuta na elaboração de estra- trato usado coletivamente por uma estabelecer de forma consensual a
tégias de reabilitação que poderão comunidade. linguagem a ser utilizada. Para tal,
proporcionar a esses indivíduos A língua, considerada como um é preciso considerar as interações
uma melhor interação social em dos diversos meios de comunicação recorrentes. Partindo do princípio
situações de seu cotidiano1. existentes, é definida por Goldfeld9 de que a linguagem é fruto de coor-
como um sistema abstrato de regras denações consensuais, entende-se
Linguagem e interação que ela não se limita apenas à ex-
gramaticais. Assim, deve ser vista
social pressão de fala ou escrita. Sua defi-
como uma forma de linguagem,
nição vai mais além: a linguagem se
podendo apresentar-se de forma
A linguagem representa uma define a qualquer comportamento
oral-auditiva ou espaço-visual. A
das razões da singularidade cog- existente a partir de coordenação
linguagem difere-se da língua por
nitiva humana, possibilitando ou consensual de ação10.
apresentar um conceito muito mais
facilitando interações cognitivas e De acordo com Borges e Salo-
amplo, não sendo, portanto, consi-
sociais, permitindo ao sujeito expe- mão11, em meados dos anos 1970,
derada um tipo de língua.
rimentar o mundo e compartilhar acrescentou-se aos estudos da lin-
De acordo com Tomasello5, to-
seus conhecimentos. É, portanto, guagem a abordagem pragmática,
uma das mais importantes funções das as línguas, no geral, apresen- relacionando a linguagem com o
cognitivas do homem5. tam características comuns. Porém, contexto da fala. Villa (1995) apud
Vieira, et al6 ressaltam que a lin- cada uma dessas diversas línguas Borges, Salomão11, menciona, ain-
guagem deve ser entendida como existentes mundialmente apresen- da, sobre a possibilidade do indiví-
um conjunto de símbolos linguís- ta suas particularidades e seus sím- duo se fazer entender, mesmo sem
ticos, a fim de proporcionar a co- bolos linguísticos específicos. Essas verbalizar sua intenção, por meio
municação inter e intrapessoal. Por peculiaridades são decorrentes da do conhecimento do contexto e
meio do ato comunicativo, o ho- diversidade dos povos do mundo, identificação dos diferentes usos
mem se expressa, mostra-se, desco- que selecionam os tipos de coisas da linguagem.
bre-se, elabora suas ideias. Diante sobre o que acham importante
dessa definição, pode-se enfatizar falar, bem como as maneiras que
consideram útil falar e dos “aciden-
A Afasia e o sujeito afásico
o aspecto social da linguagem, uma
vez que se verifica a existência da tes” históricos que marcam essas Coudry1 caracteriza um sujeito
comunicação interpessoal. diferenças. Devido a essa diversi- afásico em relação à linguagem,
Shirmer, Fontoura, Nunes7 de- dade, a troca de conhecimentos ou quando sua funcionalidade se afas-
finem linguagem como um sistema experiências entre seus usuários ta de alguns meios de produção ou
de símbolos arbitrários, combina- torna-se possível. Vale considerar interpretação. Para a autora, a afa-
dos sistematicamente e capacitados que os símbolos e construções lin- sia se deve às alterações linguísticas
para armazenar e trocar informa- guísticas não foram inventados de em decorrência a uma lesão focal
ções. Relatam, ainda, que o de- uma só vez e nem permanecem ocorrida em regiões responsáveis
senvolvimento da linguagem se sempre idênticos, podendo sofrer pela linguagem localizadas no
deve não somente a uma estrutura modificações ao longo do tempo. cérebro, podendo ou não apresen-

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tar déficits em outros processos gravidade da lesão, idade, nível es- maior preocupação com a localiza-
cognitivos. colar estejam congruentes com o ção da lesão cerebral para, só então,
Concordando, Santos, Ortiz12 contexto social, familiar, terapêu- pensar na relação lesão – sintoma.
definem afasia como distúrbios de tico, sendo essas as variações do Os profissionais que assumem
linguagem devido à lesão no Sis- ambiente10. essa forma de pensamento lidam
tema Nervoso Central, podendo com sujeitos portadores de afasia
apresentar ampla gama de altera- assumindo-os como rótulo, como
A Reabilitação do sujeito
ções possíveis. Ressaltam, ainda, a marca. Ao agirem dessa forma,
importância de considerar fatores afásico: uma visão acabam levando ao reducionismo
socioculturais, acreditando que Sociointeracionista desses indivíduos, que recebem um
possam ajudar no entendimento título comum, genérico e perdem
A visão sociointeracionista de
de habilidades linguísticas prelimi- sua identidade, sua subjetividade e
aquisição de linguagem preconiza
nares à lesão cerebral. singularidade. Tudo porque muitos
que a própria linguagem propicia-
Ferreira, et al13 relatam que os terapeutas preocupam-se mais com
rá a linguagem do outro – sujeito
sujeitos afásicos mantêm compe- a história da patologia do que com
da terapia fonoaudiológica. O te-
tência comunicativa, porém apre- o sujeito em si16.
rapeuta não é alguém com o ob-
sentam determinadas regras de Barros, Guerra17 acreditam que
jetivo de “ensinar” a língua, assim
interação alteradas. Entre essas os fonoaudiólogos sofreram certa
como o cliente não “aprenderá”
regras, pode-se citar turnos dema- influência do pensamento médico
determinada língua. O binômio
siado extensos ou anormalmente no que diz respeito ao tratamen-
ensinar-aprender afasta-se da visão
encurtados, de acordo com o tipo to da afasia. Dessa forma, acabam
construtivista2.
de afasia; dificuldade para mudan- por focar seu olhar na tentativa de
ças de turnos comunicativos, assim A abordagem interacionista curar a lesão cerebral e se preocu-
como para manter o assunto em acredita que a aquisição de lingua- pam muito mais em compreender o
questão, entre outros. gem se deve às práticas discursivas, cérebro do que a própria linguagem
Passos14 reanalisa a questão da às interações sociais que dão senti- ou o próprio sujeito acometido pela
manutenção da competência co- do ao comportamento e à própria patologia. Fica evidenciado, portan-
municativa por parte desses sujei- linguagem dos indivíduos14. to, que esses profissionais apresen-
tos, acreditando que o indivíduo O objetivo do terapeuta é pro- tam certo predomínio da formação
afásico apresenta uma alteração na porcionar o acesso à linguagem biológica sobre a humanística.
função da linguagem. Assim, sua para seu parceiro de atendimento, De acordo com Capra4, a con-
posição enquanto falante passa a que, devido a uma patologia, ficou cepção mecanicista da vida domi-
ser afetada, tornando-se, portanto, excluído desse sistema simbólico. nou as atitudes dos médicos em
ineficaz em sua comunicação, fi- Para isso, faz-se necessário estar relação à saúde e à doença, gerando
cando à mercê de seu intérprete. dentro da linguagem, nos seus o chamado modelo biomédico. Sob
Ferreira, et al13 ressaltam, ain- usos, na sua questão social e inte- essa visão, o corpo humano é vis-
da, que o grau de escolaridade e racional2. to como uma máquina, em partes
letramento do indivíduo pode, em Coudry1 complementa, dizendo cada vez menores, deixando de la-
alguns casos, justificar as dificulda- que um dos objetivos na terapia de do a visão holística, de totalidade.
des encontradas na comunicação do sujeitos afásicos é visar à recons- Nesse caso, a doença é considera-
idoso, seja no envelhecimento “nor- trução da linguagem daquele indi- da um mau funcionamento dessas
mal” ou no caso de uma afasia. víduo, enquanto atividade social, “peças”, ou seja, dos mecanismos
Como já visto, a alteração de ignorando o fato de esses sujeitos biológicos que necessitarão da in-
linguagem acarreta, para o indiví- não conseguirem sucesso em situ- tervenção médica, seja ela física ou
duo, alterações no seu meio social, ações artificiais de teste. Portanto, química, para consertar o “defeito”
pessoal e profissional. Por isso, é faz-se necessária a utilização do dis- nesse funcionamento.
necessária intensa adaptação para curso, da troca dialógica. Na concepção holística de
que consiga se posicionar diante da Dentro dessa perspectiva, Lier- doença, a enfermidade física é
nova situação. Dessa forma, a adap- De-Vitto, Arantes 15 ques­tionam apenas um tipo de manifestação de
tação depende do equilíbrio entre sobre as implicações linguísticas e uma alteração do organismo, exis-
duas variáveis – do organismo e do os efeitos subjetivos gerados pela tindo, ainda, patologias psicológicas
ambiente –, ou seja, é preciso que afasia, uma vez que, a partir da pró- e sociais, que não eram considera-
os fatores lado, tamanho, etiologia, pria definição de afasia, percebe-se das na visão reducionista4.

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Dessa forma, diante dos estudos nar um deles, deve estar ciente de emite a palavra que lhe foi pergun-
realizados com clientes afásicos, que sua intenção não pode ser a de tada anteriormente de forma corre-
Coudry1 demonstra a necessidade confirmar uma dificuldade para o ta. Isso se justifica pela existência
de se preocupar com o sujeito afá- próprio cliente, mas a de utilizá-lo da interação por parte dos interlo-
sico, considerando-o um indivíduo para melhor elaborar um planeja- cutores, possibilitando a troca de
que não é totalmente pleno frente mento terapêutico. Dessa forma, papéis discursivos, tratando, assim,
à linguagem, não se limitando, as- cada um desses métodos terá o de situações contextualizadas de
sim, à lesão cerebral, ou seja, a afa- seu valor. linguagem.
sia. Os sujeitos afásicos reconhecem São muitas as opções de testes O momento da avaliação já é
suas dificuldades, seus sofrimentos, formais de avaliação, considera- o início da terapia, considerando
portanto é de extrema necessidade dos testes com procedimentos fe- que a fala do indivíduo com afasia
a modificação do olhar profissio- chados, tais como álbum fonético, fala sobre ele, mesmo que pareçam
nal na afasia. Esse novo olhar deve tarefas descontextualizadas, re- “palavras mortas”. Faz-se necessá-
se direcionar ao indivíduo afásico, petição de palavras, entre outros. rio entender que o fato de deixar
deixando de pensar apenas na le- Porém todos apresentam a mesma de falar não significa ausência de
são cerebral. É essencial averiguar “base”, ou seja, nenhum dos testes linguagem. Outras manifestações
a importância da linguagem para valoriza o social, não se aplicam às além da fala, como o choro, o sinal,
essas pessoas, quais as consequên- situações do cotidiano do indiví- a compreensão, estão presentes no
cias das dificuldades linguísticas em duo, não contextualizam suas ativi- indivíduo, devendo ser, portanto,
suas vidas, priorizando a relação dades. Dessa forma, desvalorizam o contempladas16.
sujeito-linguagem15. sujeito por não apresentar o direito Porém, apesar de todo o cuida-
Por muito tempo, a preocupa- de formular seu próprio discurso, do utilizado para estabelecer um
ção da avaliação do cliente afásico “obrigando-se” a responder con- diálogo efetivo e natural, repro-
baseou-se mais em se falar do cé- forme o avaliador espera, não sen- duzindo situações de vida diária,
rebro do que da linguagem ou do do permitida nova interpretação, não se pode negar a eventual exis-
tência de certa artificialidade no
próprio sujeito. Isso se confirma, já não reconhecendo determinadas
acompanhamento clínico, como a
que a própria classificação das afa- atividades apresentadas durante o
utilização de agenda, o álbum de
sias em “sensorial” e “motora” está teste. Nesses casos, o olhar se dire-
retratos, interação com a família,
relacionada exclusivamente à loca- ciona apenas para os erros come-
entre outros, que ocorrem em fun-
lização cerebral da área lesada16. tidos pelo cliente, não observando
ção do espaço físico utilizado para
Santana18 critica diversos profis- nem nos erros a funcionalidade da
as sessões de reabilitação. Entretan-
sionais existentes ainda hoje, que linguagem18.
to, todos esses procedimentos arti-
optam pela abordagem formal da Lier-De-Vitto, Arantes15 descre-
ficiais apresentam a finalidade de
linguagem, preocupando-se ape- vem a importância da existência do
conhecer cada vez mais o sujeito,
nas com seus aspectos fonológicos, diálogo com o cliente, acreditando para, assim, poder construir trocas
sintáticos e semânticos. Ou seja, que o profissional não deve ignorar dialógicas mais espontâneas1.
baseiam-se apenas nos aspectos as palavras, a queixa daquele sujei- Pastorello, Rocha19 defendem
formais da linguagem, excluindo to pelo fato de apresentar um déficit que a clínica fonoaudiológica com
seu aspecto discursivo. Acrescenta, linguístico. Pelo contrário, a pala- sujeitos afásicos deve pensar o su-
ainda, que muitos profissionais de- vra/queixa do doente deve estar, jeito de/na linguagem, possibilitan-
senvolvem suas práticas clínicas em em primeiro lugar, sob o olhar pro- do-lhes diferentes práticas sociais
linguagem focando-se apenas nos fissional, ajudando, dessa forma, o e comunicacionais, a fim de que
sintomas decorrentes da alteração cliente a expor suas angústias, para consigam participar das diversas
dessa função, ignorando, assim, sua superar suas dificuldades. situações interacionais existentes
concepção, fazendo com que fique Coudry1 demonstra que, muitas externamente e buscar a significa-
marginalizada. vezes, quando o indivíduo é sub- ção e a comunicação, contextuali-
Sob o ponto de vista de César, metido às questões propostas nos zando os usos de linguagem.
Maksud10, pode-se utilizar métodos testes-padrão, as respostas não são
diversificados para avaliar um in- satisfatórias, já que foram elabora- A Família e o Processo de
divíduo com comprometimento de das numa situação descontextua-
Reabilitação
linguagem. Dentre eles, destacam- lizada, como se fosse um jogo de
se os questionários, testes formais e perguntas e respostas. Já durante a Em nossa sociedade, a palavra
funcionais. O terapeuta, ao selecio- conversa informal, o sujeito afásico família apresenta vários significa-

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dos. Os historiadores por exemplo, que um indivíduo apresenta-se afá- sem a intenção de substituí-lo, au-
a definem como sendo seres de sico, com alterações linguísticas e xiliando nos momentos de dificul-
mesmo sangue; os sociólogos por consequentes modificações na sua dades, reinserindo-o no discurso.
sua vez, caracterizam o conjunto comunicação, as pessoas que com Em relação ao que se encontra
de pessoas que vivem sob o mesmo ele convivem necessitam se adap- atualmente no trabalho conjunto
teto20. tar à nova forma de comunicação entre terapeuta-família, Passos14
Garbar, Theodore20 chegam a existente. É necessário, ainda, que alerta sobre cuidados no momen-
afirmar que cada família é regida o meio em que está inserido tam- to da orientação aos familiares.
por leis e regras impostas por seus bém se adapte às novas maneiras Ressalta que, quando o terapeuta
próprios membros, sendo dentro de todos esses sujeitos se comuni- assume o papel de dominador e
desse contexto familiar que o in- carem. Conclui-se, assim, a neces- controlador da situação, os familia-
divíduo constrói sua história, se sidade de mudança, de adaptação res tornam-se meros acolhedores
identifica, desenvolve enquanto do meio em que o sistema vivo se da informação, sem possibilidades
sujeito. insere, para que as interações per- de expor suas angústias e participar
Concordando, Coudry1 relata maneçam efetivas e satisfatórias10. ativamente da reabilitação. Desta-
que o ambiente familiar é o princi- O trabalho de acolhimento da ca, ainda, a necessidade de se es-
pal local para que o sujeito afásico família e do cliente torna-se essen- cutar os familiares, possibilitando
se reconstrua como sujeito, estabe- cial no que diz respeito à inclusão o conhecimento de novas infor-
lecendo sua linguagem. Para isso, a ou reinserção nos processos de con- mações, que, muitas vezes, não são
família deve estar disposta a com- vivência social. Ao impacto causado oferecidas pelo sujeito focado pela
preender e a aceitar as dificuldades pelo diagnóstico, acrescentam-se ação terapêutica.
sofridas pelo indivíduo, possibili- as dúvidas, os questionamentos, a
tando que seja ativo durante a con- desinformação a respeito do pro-
versa. Afirma, ainda, que a família blema vivenciado, além das difi- Considerações finais
não apresenta importância apenas culdades para relacionar-se com o
na reestruturação da linguagem indivíduo portador de determinada A afasia é uma patologia que
do sujeito afásico, mas também no patologia22. acomete a linguagem devido a um
restabelecimento de suas relações Portanto, deve-se realizar tra- dano cerebral e que acarreta alte-
sociais e afetivas. balhos cujo objetivo seja a recu- rações de âmbito social, pessoal e
Passos14 menciona que, quando peração da saúde e/ou alcance de profissional nos indivíduos que a
se insere a família na terapia, é in- melhores patamares de qualidade possuem.
dispensável compreender a relação de vida, envolvendo os processos Partindo dos pressupostos teó-
cliente-família, buscando perceber de acolhimento, informação, orien- ricos da teoria sociointeracionista,
a representação de um para o outro, tação, incentivo, apoio tanto ao pa- esse trabalho demonstrou a ne-
sendo, às vezes, necessária uma in- ciente quanto à família envolvida cessidade de um novo olhar para
tervenção mediadora entre cliente diretamente no processo13. o sujeito afásico, possibilitado pelo
e a própria família. Minuchin21 diz, Coudry1 demonstra a importân- entendimento dos efeitos subjetivos
ainda, que, muitas vezes, o papel do cia da família na terapia do sujeito gerados pela afasia em cada um.
terapeuta junto ao ambiente fami- afásico, uma vez que ela dá conti- Portanto, faz-se necessário que
liar deve ser de restaurar ou modifi- nuidade ao que foi realizado du- os profissionais responsáveis pela
car o próprio funcionamento, uma rante o atendimento, aprendendo reabilitação de linguagem, como os
vez que define família como uma a lidar e agir com esses indivíduos cuidadores e familiares do sujeito
unidade social que enfrenta diver- no dia a dia. Além disso, funciona afásico, possibilitem diferentes prá-
sas exigências de mudança. como tranquilizadora para o indi- ticas interacionais a esses sujeitos,
Voltando-se para o sujeito afá- víduo que, por já partilhar com ele para que a linguagem possa ser re-
sico, entende-se que, no momento conhecimento de sua vida, ajuda-o construída a partir do seu uso.

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Recebido em 9 de fevereiro de 2010


Aprovado em 17 de março de 2010

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