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Publicado em EL FAR, Alessandra, BARBOSA, Andrea e AMADEO, Javier. Ciências


Sociais em Diálogo. 2 – Sociedade e suas imagens. São Paulo: Editora Fap-Unifesp,
2014, p. 77-100.

Sociologia da música gravada: o trabalho do produtor musical


Marcia Tosta Dias

Apresentação
O presente texto apresenta enfoque específico de pesquisa mais ampla que busca
colaborar com o desenvolvimento de uma sociologia da música gravada no Brasil.
Propõe uma reflexão sobre elementos do trabalho de um dos agentes que tem posição
central nessa arena: o produtor musical. Atuando na fronteira entre arte e economia,
entre música e business, sua atividade atual se transforma substancialmente dadas as
radicais mudanças vividas no âmbito dos registros fonográficos a partir do advento das
tecnologias digitais. Quando sua atividade estava restrita aos quadros das grandes
empresas do setor, o produtor musical administrava e acompanhava tecnicamente todas
as etapas da feitura dos discos (dispostas nas áreas artística, técnica, comercial e
industrial1), participando das decisões sobre os discos que seriam realizados, da escolha
do repertório, das transformações estéticas a serem estrategicamente propostas ao perfil
de determinados artistas, sempre com a responsabilidade de realizar os projetos
cumprindo rigorosamente o orçamento previsto. Assim, além da dimensão propriamente
empresarial, pela via da proposição de conteúdos, o produtor musical atuava de forma
intensa e decisiva no processo de formação do gosto e das referências musicais,
efetivados a partir dos processos e mecanismos próprios à grande mídia. Um conjunto
denso de contradições sempre fundamentou, portanto, o trabalho do produtor musical,
contradições estas que traduziam várias dimensões de todo o processo. O acesso
irrestrito às tecnologias digitais de produção e difusão tem agregado novos elementos ao
trabalho do produtor, transformando-o. Expandida para além dos quadros formais das
grandes gravadoras, sua atividade atual pode tanto tomar a forma tradicional acima
apontada, como pode mesclar-se à atuação do artista/ músico, ora de posse da condução
das formas de registro de seu trabalho, ou pode ainda permitir ao produtor tornar-se ele
mesmo o artista. A análise busca explorar alguns pontos de vista de produtores que
atuaram em grandes companhias fonográficas sobre seu processo de trabalho e sobre


1
De acordo com a classificação proposta por O. Jambeiro, Canção de Massa: as Condições de Produção,
2

tais mudanças que o afetam. Trata-se de considerar tais trajetórias como emblemáticas e
reveladoras do panorama atual de um dos setores mais dinâmicos de nossa vida cultural.

1. Por uma sociologia da música gravada


A sociologia da música gravada que se busca incrementar aqui procura identificar,
na sociedade contemporânea, os agentes sociais envolvidos e suas formas de atuação na
produção de registros musicais dirigidos ao consumo, à difusão pelos grandes meios
instituídos, à audição e à fruição, simplesmente. Trata-se, portanto, de compreender o
panorama e a dinâmica do que é produzido e de como é produzida a música gravada em
seus vários suportes em determinados espaços e tempos, bem como suas formas
recepção2.
A razão que orienta a mirada sociológica para tal objeto de pesquisa considera a
música como componente cultural distinto de nossas sociedades. Ao mesmo tempo que
partilha elementos de uma linguagem que é, de certa forma, universal, sua lógica e
consequentemente suas formas estéticas são circunscritas a espaços culturais, sociais e
políticos definidos. Dos ritos dionisíacos à “marginalidade” medieval, de artigo de luxo
da realeza a elemento subversor condenável, de recurso terapêutico e muitas vezes
mágico, à expressão rara da produção intelectual do homem, a música foi tomando para
si várias formas e significados3. Essa cadência que conjuga particularidade e
universalidade tem atuado como elemento facilitador da capacidade que tem a música
de transpor fronteiras e circular, de maneira fluida e transcendente pelo mundo.
O advento dos registros fonográficos, no final do século XIX, marcou a emergência
de maneiras diferenciadas de produção, difusão e fruição musical e, das múltiplas
dimensões que tomam o estudo da música nas sociedades contemporâneas, passou-se a
analisar a sua presença no mercado de bens culturais. Como música gravada, produzida
por empresas a partir de esquemas originalmente alheios à lógica artístico-cultural, a
música se aproximou da forma mercadoria, compondo um produto cultural de

2
Para esta reflexão, recupero argumentos já apresentados, sobretudo em M.T. Dias, Indústria fonográfica
Brasileira e Mundialização da Cultura, 2ª ed., pp. 19-54. A apresentação de um panorama geral da
sociologia da música gravada, por mais que se apoie na bibliografia existente, inspira-se, sobretudo, em
minha experiência de pesquisa. Trata-se de área científica em formação que demanda maiores
desenvolvimentos. A análise do trabalho do produtor musical surge, assim, como um exemplo de objeto
dessa área de estudos.
3
Para Jacques Attali, por meio da história da música pode-se chegar à história das civilizações, tal é sua
capacidade de refletir as formas de organização social nas quais existe. J. Attali, Bruits: Essai sur
l’Économie Politique de la Musique, pp.11-38. Finos desenvolvimentos dessas relações encontramos
também em J. M. Wisnik, O Som e o Sentido, especialmente pp. 32-58.
3

características muito especiais. As relações produzidas no encontro dessas duas


dimensões têm sido o alvo principal dessa Sociologia específica.

Gravada e difundida pelos meios de comunicação, a música alcança cada vez maior
proximidade com os indivíduos (ouvintes, receptores, consumidores). Nenhuma outra
mercadoria cultural tem demonstrado tamanha capacidade de interação com os demais
media. Seus suportes e reprodutores praticamente eliminam as fronteiras para a sua
difusão, como acontece atualmente por meio da miniaturização, da “comunicação
móvel” e da portabilidade, trazidas pelas tecnologias digitais4. Os registros fonográficos
estão no rádio, na televisão, no cinema, no teatro, na publicidade, nos computadores,
nos “ambientes” (supermercados, consultórios, aeroportos, rodoviárias...) nas ruas, nas
rodas de amigos, no cantarolar, no assoviar, na alma das pessoas. Deles, ficou
praticamente impossível isolar sua dimensão de produto que tem no mercado seu locus
privilegiado de circulação e difusão. O consumo musical, no entanto, transcendeu desde
logo a relação física de compra e venda de um suporte; pode mesmo apresentar-se na
forma de consumo aleatório e, muitas vezes compulsório a que o cidadão do mundo está
exposto, mesmo que como simples transeunte.
Considerando a vereda aberta por pesquisas realizadas no Brasil e no exterior a
partir dos anos 19705, sobre a configuração do mercado fonográfico, o funcionamento e
organização das empresas produtoras de discos e as condições técnicas e artísticas de
produção, realizei um estudo sobre a produção de discos nas grandes empresas
produtoras no Brasil, me dedicando ao período compreendido entre os anos 70 e 90.


4
Patrice Flichy, Une histoire de la communication moderne, pp. 234-236, fala no advento da
“comunicação nômade” promovida pelas tecnologias digitais.
5
No Brasil, refiro-me a O. Jambeiro, Canção de Massa: as Condições de Produção; W. Caldas, Acordes
na Aurora: Música Sertaneja e Indústria Cultural; R. Morelli, Indústria Fonográfica: Um Estudo
Antropológico, E. Paiano, Berimbau e Som Universal: Lutas Culturais e Indústria Fonográfica nos anos
60; E. Vicente, A Música Popular e as Novas Tecnologias de Produção Musical e J. R. Zan, Do fundo do
quintal à vanguarda. No exterior, R. A. Peterson e D. G. Berger, “Cycles in simbol production: the case
of popular music”. American Sociological Review, vol. 40, abril,1975, e A. Hennion, Les Professionnels
du Disque - Une sociologie des variétés, citando aqui somente os estudos pioneiros. Neles encontramos
análises que, de algum modo, operam procedimentos de pesquisa próprios às Ciências Sociais. R. Morelli
em “O campo da MPB e mercado moderno de música no Brasil: do nacional-popular à segmentação
contemporânea”, ArtCultura, nº16, jan-jun, 2008, faz importante revisão de temas e problemas presentes
na porção brasileira da bibliografia, revelando dimensões sociológicas e antropológicas dos estudos.
4

Inspirada em proposições encontradas e na obra de T.W. Adorno e em seu trabalho


com M. Horkheimer6, parti de uma constatação empírica fundamental - a contínua e
persistente existência do hit, do sucesso musical, das ondas e booms de canções e estilos
musicais diversos e muitas vezes mundializados, convertidos e expressos em milhões,
tanto de unidades vendidas, quanto de dólares de faturamento para sua indústria,
envolvendo não menos que milhares de ouvintes. Era necessário entender o caminho
que a música faz, nesse contexto, para chegar até o seu ouvinte; compreender a
configuração que o mercado fonográfico vai tomando no decorrer do tempo;
compreender as estratégias que elegem determinados artistas e canções para comporem
o fluxo mundial de bens culturais; conhecer os agentes sociais que orientam a decisão
sobre os tipos de canções que irão integrar o grande mercado (o público, os empresários
ou os artistas?).
A estratégia para o tratamento de tais questões estava na investigação do processo
de produção na grande indústria fonográfica, a partir da análise das etapas que
conduzem à produção de discos e a de seus respectivos artistas, como numa linha de
montagem (essencialmente: concepção do produto, preparação do artista e do repertório,
gravação em estúdio, mixagem, preparação da fita master, prensagem/fabricação,
controle de qualidade, capa/embalagem, distribuição, marketing/divulgação). Dessa
forma procedi no estudo que originou o livro Os donos da voz, já citado7.
A pesquisa, no entanto, não pôde constatar empiricamente a dinâmica da “linha de
montagem” uma vez que ela estava em pleno processo de fragmentação, a partir da
inserção das tecnologias digitais ao processo. Foi possível, no entanto, registrar a
origem de toda a reestruturação que esse âmbito da produção cultural (e sua dimensão
econômica material) viveu a partir de então.
A transformação que se deu, e que em seus primeiros sinais foi apreendida, não tem
precedentes na história da indústria fonográfica e se realizou em escala mundial,
estreitamente sintonizada com o rearranjo estrutural pelo qual toda a produção
capitalista passou, com maior intensidade, desde o final dos anos 1970. Seu epicentro


6
Fundamentalmente T. W. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento; T. W. Adorno,
“Ideias para a sociologia da música”, Os Pensadores, pp. 259-268; “O fetichismo na música e a regressão
da audição”, idem, pp. 165-191 e “Sobre Música Popular”. Theodor W. Adorno, Col. Grandes Cientistas
Sociais, pp.115-146.
7
Ofereceu base ao livro minha dissertação de mestrado, Sobre mundialização da indústria fonográfica,
IFCH/ UNICAMP, 1997.
5

estava na grande transnacional produtora de discos, mas foi envolvendo um largo


circuito que com ela se relacionava.
A busca de racionalização da produção que sempre pôde ser observada na forma de
sucessivas ondas de inovação tecnológica (das gravações mecânicas às elétricas; dos
discos de 78 para os de 45 e 33 rotações; dos compactos aos LPs de vinil; dos CDs ao
MP3) foram sendo propostas ao longo do tempo, definindo a existência de uma relação
primordial entre desenvolvimento técnico e produção fonográfica e entre suportes
fonográficos e a dimensão estética dos respectivos conteúdos. Nesse sentido, as
mudanças no âmbito das tecnologias de gravação (estúdio e fábrica) trazidas pela
inserção da tecnologia digital, ao permitirem a autonomização das tais etapas da
produção, concentraram o sistema ruptor do circuito fechado até então operado pelas
grandes empresas.
Esse intenso movimento de fragmentação do processo produtivo na grande indústria
fonográfica transformou as grandes empresas em escritórios de marketing e
gerenciamento de produtos, restringindo seu trabalho às áreas de A & R - Artistas e
Repertório e marketing, tendo sido terceirizadas as etapas de gravação, fabricação e
distribuição física dos produtos. Essa transformação, que anos mais tarde veio mostrar
toda a sua radicalidade, trouxe para a cena novos atores sociais, sobretudo uma massa
de artistas que até então estava orbitando o sistema em busca de oportunidades e
trabalho.
A partir de então, instaura-se um debate dos mais profícuos para a reflexão sobre a
produção cultural nos dias atuais, uma vez que o que seria apenas mais um
desenvolvimento técnico dentre uma sequência, adquire o poder de transformar quase
que radicalmente o cenário. As grandes empresas do disco declinaram de seu posto de
únicas propositoras de conteúdo musical gravado, perderam radicalmente seus
patamares de acumulação e disputam o mercado de música gravada com diversos tipos
de concorrência, a legal e a ilegal. Por outro lado, o processo jogou luz em suas formas
de trabalho, suas relações com os artistas, seus processos de divulgação dos produtos e
sobre a maneira como sempre praticaram o pagamento subfaturado de direitos autorais.
Do ponto de vista do material existente para a pesquisa e de seus interlocutores
fundamentais, nos anos 90 quando realizei a pesquisa, da mesma forma que os outros
pesquisadores citados, contávamos com sérias dificuldades, para além daquela de
enfrentar um objeto mutante. À forte presença da música no repertório cultural
brasileiro contrapunha-se um número reduzido de obras que enfrentaram a questão dos
6

registros fonográficos e que tinham produzido fontes de pesquisa. O fato de estarmos no


final de um século que trazia pelo menos 80 anos de supremacia do disco como formato
privilegiado pelo qual a música chegou ao seu público, ao contrário de minimizar o
problema, radicalizava-o. Se restringirmos a busca em torno das análises essencialmente
sociológicas sobre o tema, ficaríamos com pouquíssimas opções, mesmo no estrangeiro.
Antoine Hennion, em seu Les Professionnels du Disque. Une sociologie des variétés, de
1981, foi um dos únicos (a ser identificado pela pesquisa num universo certamente
maior) a operar explicitamente a análise sociológica da produção dos registros musicais,
juntamente R. Peterson e D. Berger, S. Frith, P. Lopes, D. Hesmondhalgh e, sobretudo,
P. Flichy, que contribuíam com enfoques diversificados8.
No Brasil, o florescer da área da Sociologia da Comunicação trouxe, nos anos 1970,
os primeiros estudos sobre música gravada com os trabalhos pioneiros já citados de O.
Jambeiro e W. Caldas9. Na sequência e tomando, em alguma medida, como base e
inspiração essa bibliografia estrangeira, os anos 90 permitiram a aproximação de
interfaces das Ciências Sociais e da Comunicação constituindo um conjunto de estudos
que se tornou referência para a análise e para o debate da questão. Para a Sociologia da
Música Gravada a qual me refiro, tem importância fundamental as obras citadas de R.
Morelli, E. Paiano, E. Vicente e J. R. Zan. Seus trabalhos, conectados à bibliografia,
bem mais farta, existente sobre a música popular, seus movimentos e seus personagens
e à análise do material de imprensa, hoje ainda mais acessível, constituem a base
fundamental para a pesquisa nessa área. Estudos que têm sido realizados pela área de
Comunicação tem também oferecido crescente e importante aporte.
Parcela significativa dessa bibliografia apresenta, de formas diferenciadas, uma
revisão dos grandes debates sobre a cultura na sociedade contemporânea. A partir o
contexto dos movimentos sociais, sobretudo na América Latina, ou mesmo a partir e
uma revisão mais ampla, considerando o desenvolvimento dos meios e comunicação e
sua inserção no cotidiano das sociedades, em sua esmagadora maioria, tais estudos
apresentavam a crítica e a consequente refutação, de alguns conceitos propostos pela
Teoria Crítica da Sociedade. De seus autores, T. W. Adorno, suas ideias sobre música

8
Além dos autores já citados: S. Frith, The sociology of rock (Communication and society); P. D. Lopez,
“Innovation and Diversity in the Popular Music Industry, 1969 to 1990”, American Sociological Review.
vol. 57, fev, 1992, e D. Hesmondhalgh, “Flexibility, post-Fordism and the music industries”, Media,
Culture and Society, vol. 18, 1996.
9
O pioneirismo do trabalho citado de O. Jambeiro expressa-se, sobretudo, na proposta de análise do
funcionamento das empresas gravadoras como forma de compreensão de determinados contextos
musicais e culturais.
7

popular e sobre a dinâmica dos meios de comunicação eram (e são) o alvo privilegiado.
Também de maneira muito frequente e mesmo fora do âmbito das Ciências Sociais,
encontra-se a expressa adesão ao referencial teórico oferecido por Pierre Bourdieu,
mesmo que limitada a conceitos específicos.
No que toca à minha experiência de pesquisa, a natureza dos próprios objetos dispôs
a Sociologia da música gravada que procuro desenvolver, em posição de grande
proximidade com alguns momentos da obra de Theodor Adorno, contra todas as
advertências, impedimentos e críticas lançados pelos pares, com todas as dificuldades e
mesmo entraves que essa proximidade pôde conter. Sendo a primeira pesquisa uma
dissertação de mestrado, tomei como guias os ensaios de Adorno que apresentam um
programa de pesquisa mínimo necessário para se enfrentar as relações que a música
estabelece com os meios de massa. Em etapa posterior da exploração, encontrei em
muitos depoimentos oferecidos à pesquisa pelos empresários do setor, claras e
desconcertantes explicitações das indicações feitas por Adorno.
Atualmente ganhou grande nitidez, não sua simples inadequação ao estudo da
música gravada inclusive na contemporaneidade, mas a “difícil reconciliação”, tal como
Gabriel Cohn conceitua os desafios postos para os que procuram uma aplicação mais
prática do referencial teórico e metodológico proposto por Adorno10. O que se passa
com o conceito de indústria cultural constitui o clássico exemplo de tal dificuldade, o
que permite vislumbrar o atalho no qual parte de sua crítica se perde. No entanto, as
possibilidades postas pela potencialidade da crítica imanente do objeto – uma condição
programática desse conjunto de ideias - deve impulsionar a sofisticação dessa
aproximação fundamental. Mais que isso, pode gabaritar e provocar a ida da perspectiva
sociológica a campo enfrentando a questão da presença dos media em todos os liames
da vida social, procurando reparar um déficit histórico e inexplicável de seus
compromissos como ciência11.

2. O produtor musical12


10
G. Cohn, “Difícil Reconciliação: Adorno e a Dialética da Cultura”. Lua Nova, nº 20, maio, 1990.
11
Uma primeira problematização do inquietante distanciamento que a Sociologia tem alimentado com
relação aos meios de comunicação e aos media encontra-se em M. T. Dias, “Sociologia da Comunicação
e as possibilidades da crítica”. XV Congresso Brasileiro de Sociologia. Curitiba/PR, julho de 2011.
12
Esta reflexão toma como base ideias apresentadas em “Produção e difusão de música gravada no Brasil
contemporâneo: o papel do produtor musical”, XXVII Congresso Internacional da ALAS – Associação
Latino Americana de Sociologia, Buenos Aires, Agosto-Setembro de 2009, GT 03.
8

Num momento em que se consolida o encolhimento dos domínios da grande


transnacional fonográfica no universo da música gravada, a presente análise quer
questionar sobre o perfil atual do trabalho de um de seus quadros mais clássicos: o
produtor musical13. Do antigo caçador de talentos ao gestor de ídolos; do fino
conhecedor de equipamentos e técnicas de gravação ao expert em captar tendências e
possibilidades de mercado - sua atividade esteve sempre estrategicamente posicionada
na fronteira entre arte e economia, entre música e business, num processo originalmente
crivado de contradições. O momento em que tenderia a desaparecer ou mudar
radicalmente seu perfil parece ideal para buscarmos mais elementos que levem à
compreensão das transformações em curso14.
Como já foi citado anteriormente, em Os donos da voz pude analisar o universo de
atuação e o processo de trabalho tal como ele se realizava nas grandes companhias
fonográficas. A idéia foi a de mapear historicamente tal organização empresarial,
tomando como referência sua forma no Brasil dos anos 1970, para inclusive melhor
compreender a reordenação que se assistia em meados dos anos 90, base fértil de todas
as mudanças posteriores. Nos anos 70, por mais que o trabalho tivesse organizado num
tipo de linha de produção, a partir de agentes, ações e funções claramente conhecidos,
havia um debate entre estudiosos do tema sobre o dimensionamento da divisão do
trabalho e o âmbito no qual ela incidia em empresas produtoras de mercadorias
culturais.
Tal questionamento tinha fundamental importância exatamente por apontar para
uma das características mais complexas do processo: a de concentrar, no produto final
duas dimensões essencialmente diversas - a produção material e a produção artístico-
musical. Rita Morelli, por exemplo, apontou as implicações que a divisão entre
“produção material e produção cultural” traz aos produtos, considerando que essa
dualidade expressava a divisão social do trabalho tal como ocorria na indústria do disco.
Em sua opinião, a separação entre fábrica e estúdio lhe dava concretude, o que lhe fazia
ver na primeira a expressão do trabalho material e no segundo, a do intelectual. Em

13
Um resultado do acompanhamento das transformações em curso pode ser encontrado em M. T. Dias,
“Indústria fonográfica: a reinvenção de um negócio”. Economia da arte e da cultura, pp. 165-183.
14
Ofereceu especial motivação e subsídio a essa reflexão a publicação, nos últimos anos, das memórias/
biografias de A. Midani, Música, Idolos e Poder. Do Vinil ao Download; M. Mazzola, Ouvindo Estrelas
[Autobiografia] e P. Ramone, Gravando! Os Bastidores da Música, bem como a publicação de entrevista
com Pena Schmidt, feita por P. A. Sanches, “Caiu na rede é peixe”. Carta Capital, n. 538, 2009,
publicada na íntegra em http://pedroalexandresanches.blogspot.com/2009/03/e-pau-e-pedra-e-pena.html -
acesso realizado em 01/06/2011.
9

outra via, um autor como Antoine Hennion, em seu estudo citado, considerou a
produção de discos como resultado de um processo coletivo, realizado por um “criador
coletivo”, por mais que posteriormente a autoria fosse conferida a um determinado
artista. Considerando a fragilidade dos limites existentes entre as várias etapas
envolvidas, questionava a existência de rígida divisão do trabalho nesse tipo de
produção industrial.
Investindo em outra possibilidade, procurei mostrar que a divisão do trabalho
existente fazia frequentemente aparecer sobrepostas, a dimensão material e a artístico-
cultural na ação de uma instância executora daquilo que, por outro lado, era planejado
pela administração central. O trabalho material propriamente dito, ao realizar o então
planejado, acabava por envolver também o trabalho do artista no estúdio, além daquele
de gravação, tratamento técnico, gráfica, dentre outros15. Portanto, o planejamento, de
um lado, e a execução da produção, de outro, sintetizariam a essência da divisão do
trabalho tal como se realizava na grande indústria fonográfica.
Vale frisar que não se quis, com essa equação, simplesmente retirar do processo sua
dimensão eminentemente artística, que é sua razão de ser. O que ainda hoje deve ser
alvo de questionamento é a autonomia do artista sobre a sua obra no raio de ação das
grandes empresas de media. Uns poucos a conquistaram quase que por inteiro, por mais
que sempre precisem de aprovação para seus projetos. No entanto, no mundo da canção
de sucesso, em suas várias cepas, sempre foi alta a subordinação à racionalidade
empresarial.
Retomando a argumentação, temos que, em seu modelo clássico, a instância
definidora dos rumos e do desenvolvimento da produção era (e ainda é) a do alto
executivo da empresa - o diretor geral ou presidente e do diretor artístico. Nesse âmbito,
encontramos o produtor musical, por mais que suas atividades situem-se entre a esfera
do planejamento e a da execução16.
Como parte dos quadros das grandes companhias, o trabalho do produtor musical se
efetivava, portanto, em várias etapas do processo: colaborando na escolha do repertório,

15
M. T. Dias, Os Donos da Voz, pp. 69-76.
16
Vale distinguir nomenclaturas que frequentemente aparecem embaralhadas e suas respectivas funções:
o diretor artístico é o responsável pela política de atuação da empresa, juntamente com o diretor geral ou
presidente. Definiam cast, segmentos, lançamentos, regras gerais para o marketing e orçamentos globais.
O produtor musical era o coordenador da execução do projeto, o que detinha conhecimentos específicos
que possibilitavam a realização da produção da forma como foi pensada. Partilhava da elaboração musical
do produto, ao mesmo tempo que representava, nesta esfera, o executivo da empresa. Para o
conhecimento da trajetória de um alto executivo brasileiro dessa área e que passou pelas várias funções,
ver o livro já citado de A. Midani.
10

na seleção dos músicos e arranjadores17; no planejamento, organização, direção e


acompanhamento das gravações (as etapas de gravação, mixagem e masterização); no
trabalho de edição fonográfica - montagem do disco na seqüência em que as músicas
deveriam ser apresentadas18 e escolhendo as faixas de trabalho (músicas a serem usadas
na divulgação nas rádios e na televisão); na orientação aos setores de marketing e
vendas; e na prospecção de novos artistas - o trabalho de “caçador de talentos” - dentre
outros.
Portanto, em torno do conhecimento musical, dos artistas, do mercado, do público
e, sobretudo, dos detalhes técnicos que podem transformar um disco e um artista num
produto musicalmente sofisticado e/ou de sucesso é que sempre se constituiu o universo
de atuação do produtor musical.
A sofisticação que seu trabalho alcançou no final dos anos 80, permitiu que
enunciasse o processo amplo de reorganização que envolveu as grandes companhias
fonográficas: a partir de suas especialidades, o produtor foi aos poucos sendo desligado
do quadro das empresas, autonomizando-se, passando a atuar como prestador de
serviços, em projetos específicos desenvolvidos por elas19. Alguns artistas de carreira já
consolidada preferiam trabalhar com produtores com quem tinham experiência e
intimidade; outros buscavam nomes de profissionais especializados em determinados
estilos para conferirem uma mudança substantiva em suas trajetórias. Em todos os
casos, a presença de um produtor musical no processo de produção de um disco, era
garantia de segurança, sofisticação (considerados as características e limites de cada
produto) e profissionalismo.
Com a profunda reestruturação operada pelas empresas nos anos 90, os produtores
musicais, que inauguraram a onda de terceirização, foram aos poucos abrindo seus
próprios selos fonográficos, estúdios e empresas de consultoria. De certa forma, a
descentralização das atividades ligadas à música gravada lhes favoreceu.

3. Trajetórias exemplares

Gostaria de citar dois exemplos significativos de trajetórias profissionais de


produtores musicais de notória importância na história da música popular brasileira, dos

17
Merece um estudo específico o papel dos arranjadores na história da música gravada. Responsáveis
pela realização de grandes discos, o raio de sua atuação foi encolhendo na medida em que os aparatos
técnicos foram se sofisticando, estando atualmente restrita a produtos muito especiais.
18
P. Ramone, Gravando! Os Bastidores da Música, especialmente capítulos 1, 3 e 8.
19
M. T. Dias, Os Donos da Voz, pp. 95-106.
11

quais podemos extrair elementos caros à compreensão dos rumos que o universo da
música gravada tem tomado.
Pena Schmidt é um produtor musical na acepção mais ampla do termo, na medida
em que sua trajetória foi fazendo transbordar sua atividade por setores os mais diversos
no mundo da música gravada20. Envolvido desde cedo com música, como ouvinte/
consumidor, ainda jovem começou a trabalhar inicialmente como técnico em aparelhos
eletrônicos na fábrica de instrumentos musicais Giannini. Em seguida, atuou como
gerente do estúdio Gravodisc da gravadora brasileira Continental, onde foi também
gerente de Produção Artística.
Nos anos 80, foi diretor artístico da Warner, num momento importante de
consolidação da empresa no mercado nacional. Dessa empreitada – na qual foi braço
direito de André Midani - surgiram artistas como Ira! Titãs, Ultraje a Rigor, dentre
outros integrantes do amplo movimento de consolidação do mercado de música
dirigido ao público jovem, via rock brasileiro. Ao lado da produção de discos e artistas,
reúne-se seu trabalho como técnico de som, engenheiro de gravações e stage manager.
Nessa última área, foi aprimorando sua ligação com os grandes espetáculos musicais ao
vivo, tendo sido responsável pela coordenação de palco de grandes eventos musicais
(festivais de jazz, blues, rock, apresentações de artistas da cena pop internacionais -
Free Jazz, Nescafé in Blues, Heineken Concerts, Hollywood Rock, show de Madonna,
Oasis, dentre outros).
Em 1992, decidiu criar o selo independente Tinitus – uma indie dos tempos da
globalização. A idéia era a de investir na produção de artistas, formando-os tanto para
seguirem carreiras autônomas, quanto para potencialmente integrarem os quadros das
grandes companhias, oferecendo assim o inédito trabalho terceirizado na área de
Artistas & Repertório, pronto para a promoção e difusão. Apesar de ter estabelecido
parcerias com empresas como a então PolyGram (hoje Universal Music), o desinteresse
da gravadora por discos de novos artistas, que inicialmente vendem pouco mas que
precisam de grandes investimentos em promoção, inviabilizou o negócio.
Depois de dedicar-se a empresa de montagem de palcos para grandes espetáculos,
atuou, durante um ano, como diretor artístico junto à gravadora brasileira Trama. Em
seguida, em 2004, assumiu a superintendência e a direção artística do Auditório
Ibirapuera, na cidade de São Paulo.

20
Fontes: M. T. Dias, idem, pp.145-155; entrevista realizada pela autora com Pena Schmit em São Paulo,
em 18/01/2008; e na entrevista concedida por ele a P. A. Sanches, já citada, versão online.
12

O ritmo das mudanças operadas por Schmidt em sua trajetória profissional é


emblemático da cadência na qual segue o próprio panorama mundial da música
gravada. Se considerarmos, sobretudo, o seu trabalho como produtor musical em
grandes empresas (Warner, Sony, Continental, Som Livre) quando produziu trabalhos
de artistas como Mutantes, Rita Lee, Walter Franco, Novos Baianos, Jorge Benjor,
além dos citados nomes do rock brasileiro, ganha relevo o fato de migrar de maneira
mais decisiva para a área das apresentações ao vivo, em plena e grave crise do modelo
de produção e difusão restrita, operado pelas grandes gravadoras.

No universo da produção de discos, Marco Mazzola é exemplo acabado daquilo que


se entende e se espera de um produtor musical.21 Desde meados dos anos 1960, foi se
definindo como um profissional da área técnica, iniciando seu trabalho em estúdios de
gravação, passando logo aos quadros das grandes companhias. A partir de sua
especialidade, foi alçando vôo até chegar aos postos de direção. Atuou em empresas
como Philips, posteriormente chamada PolyGram e na implantação da WEA e da
Ariola, todas elas responsáveis pela administração de casts dos mais distintos da musica
popular brasileira (Elis Regina, Jorge Bem, Chico Buarque, Milton Nascimento,
Gilberto Gil, Gal Costa, para citar apenas nomes do primeiro time)22.
Anunciando a tendência de autonomização aqui já apontada, em 1988, a partir da
impossibilidade de conjugar o seu trabalho na CBS com convites para atuar como
produtor contratado (no caso, para produzir um disco do americano Paul Simon),
demitiu-se da empresa. No ano seguinte, inaugurou seu próprio estúdio, percebendo a
carência de equipamentos sofisticados de gravação no país e das vantagens de sua
importação e manutenção.23 Em torno do estúdio, criou inicialmente uma produtora – o
embrião do que veio a ser, em 1996, o seu próprio selo fonográfico, o MZA.
Interessante notar as práticas e objetivos que orientam a sua atuação. Mazzola
praticamente reproduz, em menor escala, o modo de produção das grandes empresas,
oferecendo atividades que se complementam às delas, estabelecendo parcerias24. Além


21
Fontes: M. Mazzola, Ouvindo Estrelas; R. Morelli, Indústria Fonográfica: Um Estudo Antropológico e
M. T. Dias, Os Donos da Voz.
22
R. Morelli, idem, destacou o papel desempenhado por Mazzola na trajetória de Belchior.
23
Vale lembrar que é a partir desse momento que as gravadoras deixam de investir na atualização de seus
estúdios, considerando a necessidade de altos e constantes investimentos, dada a rapidez com que os
equipamentos precisam ser substituídos. Com esse movimento, potencializaram a autonomização de mais
essa área da produção de música gravada. Sobre o tema, ver M. T. Dias, idem, pp.95-129).
24
MZA é a atual responsável pela organização da Noite Brasileira no Festival de Jazz de Montreaux, na
Suíça, onde se apresentam grandes músicos brasileiros, que em geral estão ligadas a grandes gravadoras.
13

de prospectar talentos (tarefa que, nessa altura, as grandes empresas já não mais
realizavam), buscando candidatos ao sucesso, foi absorvendo aos poucos, o contingente
excedente de artistas que, apesar de apresentarem potencial de mercado, não
interessavam às grandes e teriam que buscar gravadoras independentes. Com o tipo de
formação que dispunha, passou a produzir discos de uma nova safra de artistas
brasileiros (Chico César, Zeca Baleiro, Ivete Sangalo, Rita Ribeiro, Banda Eva) e a
absorver um cast de artistas renomados sem contrato com as grandes gravadoras ou que
estavam, de alguma forma, buscando mudanças em suas trajetórias (casos de Emílio
Santiago, João Bosco, Ney Matogrosso, Gal Costa, Jair Rodrigues, dentre outros).
O modelo de negócios articulava o investimento na produção do disco e a assinatura
de um contrato de marketing e distribuição com uma grande companhia; as primeiras
parceiras foram a Warner e a PolyGram. O modelo vigora até hoje. Da carta de serviços
que a MZA Music oferece na atualidade, além do estúdio disponível para locação,
destaca-se a Consultoria disposta em três modalidades (Consulta, Consultoria Prime e
Consultoria Golden). No modelo mais elementar - o primeiro - o artista tem uma
consulta de uma hora com o “renomado produtor”, ocasião em que vai receber pareceres
sobre suas chances no mercado e orientações sobre modificações que deve fazer em sua
carreira. Na modalidade Golden, “o serviço é 100% completo”, a empresa coordena a
produção de toda a obra. “Aqui o artista não precisa se preocupar com nada, a MZA
executará o projeto”. Mas acrescentam no finalzinho do texto: “o artista só precisa
aprovar”25.

4. O produtor musical hoje

Tal como hoje é amplamente discutido, as transformações radicais operadas no


mundo da música gravada nos últimos dez anos, tem suas raízes essencialmente
fincadas no advento e consolidação das tecnologias digitais, presentes em todos os
âmbitos da sociedade: dos processos produtivos industriais às formas de interação
sócio-culturais. A diminuição dramática da participação das grandes gravadoras no
processo de difusão musical é proporcional ao aumento das praticas de
compartilhamento de arquivos musicais no formato digital e das vendas de tais
produtos, por parte de vários agentes, na internet.


25
De acordo com site oficial da MZA http://www.mzamusic.com.br/site.htm, acesso em 28/11/2011.
14

Nesse percurso, a reestruturação promovida pelas grandes gravadoras nos anos 90


foi se aprofundando ao mesmo tempo em que foi sendo redefinido o papel do produtor
musical – que a elas esteve original e essencialmente ligado, como procurei mostrar.
Nesse âmbito, a transformação se acentua na medida em que se expandem as
possibilidades tecnológicas, demandando assim mais elementos para o entendimento da
situação.

O acesso facilitado às tecnologias digitais de registro, produção e difusão de música,


tem, potencialmente, eliminado a necessidade do trabalho do produtor. Muitos artistas
se “auto produzem”, realizam os registros em seus home studios, interpretam as
possibilidades oferecidas pelas máquinas, considerando estratégias por eles mesmos
concebidas. Mas essa mesma facilidade pode também indicar a brecha em prol da
preservação: porque os recursos são muitos e as possibilidades quase ilimitadas, outros
preferem contratar um especialista, o produtor que pode trazer ao produto exatamente
aquilo que ele estava à beira de perder – a sua distinção26.

Por outro lado, a oferta ampla, geral e irrestrita de música para download gratuito na
web, ao chocar-se com a questão dos direitos autorais e conexos, derrubando o clássico
modelo de negócio dos discos, fez a música gravada perder a centralidade que até então
detinha, no conjunto da cultura musical contemporânea. Se, para a carreira profissional
de um músico ou banda, gravar um disco significava atingir um dos pontos mais altos,
hoje o registro na forma de disco constitui apenas mais uma das estratégias
desenvolvidas em um variado conjunto dominado pelo show, pela apresentação ao vivo
- umas das formas principais de se fazer a música chegar ao ouvinte, mas que
atualmente se tornou a fundamental quando se trata de se ganhar a vida, de se viver de
música. Claro que a música ao vivo sempre ocupou lugar distinto, sempre houve grande
valorização das apresentações musicais; o que muda é a relação que estas estabelecem
com o produto disco. Fazia-se o show para divulgar o disco (mesmo que não
funcionasse) e a tendência atual é a de fazer o show e aproveitar para vender o disco; o
disco se torna assim uma maneira de prolongamento da experiência do show. Do ponto
de vista dos negócios, note-se que, de certa forma, essa sempre foi a estratégia utilizada


26
Um exemplo: a banda recifense Nação Zumbi, para o disco Fome de Tudo (Deck, 2007, feito a partir da
troca de arquivos entre os músicos pela rede) contratou os serviços do produtor brasileiro radicado nos
EUA Mario Caldato. Cf. MATHIAS, A.“Nações Unidas”. Rolling Stones, SP: Spring Publicações,
dezembro de 2007, pp.98-100. O universo da atividade do músico que é também produtor é analisada por
T. Bacal, “Sonoridades artificiais: os produtores e suas considerações acerca das características do som
digital”. 34º Encontro da ANPOCS, ST 33, 2010.
15

pelos músicos independentes; como não tinham os seus discos nas lojas (que em geral
ofereciam somente o catálogo das grandes gravadoras) eles eram vendidos nos shows.

“Trabalhar para o público, administrar recursos para encontrar o público, saber se


conectar com o público, apresentar seu trabalho de forma consistente, cada vez melhor.
Fazer produção musical para o futuro” 27. Eis a tarefa que Pena Schmidt vê hoje para o
produtor musical, a maneira como pode trabalhar em conjunto com o artista. Isso
porque, em sua opinião, a realidade da música mudou radicalmente e não haveria a
mínima condição de se voltar atrás. Por exemplo, todas as tentativas de criminalização
dos downloads, da atividade dos blogs que colocam no espaço digital toda a herança
gravada da música universal, seriam ineficazes por que já seguem contra uma maioria.
Um bilhão de downloads, contra o interesse particular de 50 empresas, diz. Como abolir
os ipods, os telefones celulares e os iphones, que todos querem vender valorizando
exatamente suas capacidades de sistemas tocadores e “baixadores” de música? As
grandes companhias gravadoras não teriam conseguido ver o potencial de promoção
imenso que a web poderia trazer aos seus produtos, pois teriam que acompanhar o
movimento, ampliar o raio de sua ação, transformando-se também28.

Já Marco Mazzola ainda acredita que a saída para o embate entre gravadoras e
downloads ilegais está na regularização das vendas de música no suporte digital, que as
grandes empresas acabaram de implantar. “Você fica três meses dentro de um estúdio
criando com o artista um CD, gastando em músicos, estúdios, capa, marketing etc. e em
seguida ao lançamento, e muitas vezes até antes do produto estar no mercado, este
produto já está disponibilizado na rede”29. Confirma, dessa forma, a impressão de que
em sua atividade, reproduz, em espaço diferenciado, a lógica do grande business.

Em todos os casos, com a dilatação do âmbito de produção da música gravada para


além das grandes gravadoras, há que se considerar que de todas as transformações
trazidas pelo digital, o esmaecimento das contradições e tensões que sempre, de alguma
forma, caracterizaram as relações entre produtor e músicos/artistas e entre produtor e
empresários/diretores artísticos, constitui fato de distinta amplitude sociológica. O foco
incidiria mais nas primeiras que nas segundas, pois nelas sempre esteve contida a
dimensão da produção do conteúdo musical propriamente dito, nosso alvo último.


27
Entrevista concedida à autora por email, em 19/02/2009. Disponível no blog http://penas.blogspot.com/
28
De acordo com artigo citado de P. A. Sanches, versão online.
29
Idem, ibidem.
16

Como apontou Ana Maria Bahiana, o produtor era visto muitas vezes como um músico
frustrado (muitos tinham de fato experiências como músicos profissionais) que
procurava impingir ao artista um modelo que ele próprio não tinha conseguido seguir30.
Antoine Hennion apresentou opiniões de produtores musicais que reclamavam o
reconhecimento do seu trabalho, com o argumento de que lhes restava sempre o lugar à
sombra do artista, com uma diferença: se o disso era bom, o mérito era do artista; se era
ruim, a culpa era do produtor31. Das várias possibilidades aqui apresentadas, Tatiana
Bacal, em seu artigo citado, constata a situação na qual se encontram e convergem, por
meio das tecnologias digitais, o trabalho e a atuação do antigo engenheiro de som, do
músico, do artista e do produtor musical. O músico tecnologicamente informado se
transforma no produtor, que por sua vez é também artista, no sentido de não atuar
somente nos bastidores das gravações, mas ganhar o centro da cena. Para os estudiosos
da música gravada resta o desafio de saber se, em suas novas configurações, o trabalho
do produtor transformado teria superado as velhas e fundantes contradições numa nova
síntese. O sentido e o alcance dessas transformações devem, portanto, continuar sendo
objeto de nossa atenta observação.

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30
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31
A. Hennion, Les Professionnels du Disque, pp.75-76.
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