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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Simone Merissi Dias

COTIDIANO EM CONFLITO
RELAÇÕES SOCIAIS E FAMILIARES DE
MULHERES E ESCRAVOS NOS PROCESSOS DE
DIVÓRCIO EM SÃO PAULO
(1780-1822)

SÃO PAULO – 2011


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Simone Merissi Dias

COTIDIANO EM CONFLITO.
RELAÇÕES SOCIAIS E FAMILIARES DE
MULHERES E ESCRAVOS NOS PROCESSOS DE
DIVÓRCIO EM SÃO PAULO
(1780-1822)

Dissertação de Mestrado apresentada a banca


examinadora como exigência parcial para obtenção
do título de mestre em História Social a banca
julgadora da PUCSP, sob a orientação do Prof. Dr.
Fernando Torres Londoño.

SÃO PAULO – 2011


BANCA EXAMINADORA

__________________________________
Presidente da Banca Examinadora
Fernando Torres Londoño – Orientador.

__________________________________
Primeiro Examinador.

__________________________________
Segundo Examinador .
Dedico este trabalho à minha avó materna,
Carmelina Merissi. (In memoriam).
Pequena grande mulher, que ultrapassou todos os limites do amor incondicional, ainda que
muitas vezes os obstáculos parecessem intransponíveis, foi capaz..
Foi amor, força e fé, aquela que ensinou a vida ao fruto de seu ventre.
Seus ensinamentos chegaram até mim vó. E cada palavra desta construção buscou alçar sua
profunda sabedoria.
E cá estamos, nós duas, você comigo, eu com você, unidas através daquela que você amou e
ama para além da vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço profundamente minha mãe, incentivando-me a cada etapa deste trabalho, me

acompanhou, carinhosamente, em minhas idas aos arquivos, me ajudou a separar documentos,

abrigou todas as minhas lágrimas e sorrisos nesta trajetória. Na imensidão de seu amor, foi

compreensiva e cuidadosa. Obrigada mãe.

Agradeço da mesma forma, meu pai. Não somente por apostar em mim, mas por ter sido

capaz de entender minhas escolhas. Foi meu leitor orgulhoso, homem de valor inestimável, a

quem devo a possibilidade de realizar este trabalho.

Ao meu irmão Daniel, exemplo de obstinação, me ensinou a acreditar que sempre é possível,

basta querer e se permitir. Arrancou-me risos, sempre trazendo alegria na bagagem. Somos

um só, irmão e irmã, nos laços e na alma.

Agradecer ao meu mais querido amigo Edgar, ainda é muito pouco. Meu leitor mais fiel e

generoso. Foi capaz de doar muito de seu tempo e coração á mim. Não haverá palavras o

suficiente para agradecê-lo. À Neide, por sua doçura e bom humor, abrigou-me com amor em

seu coração. Aos amigos e incentivadores, meus mais sinceros agradecimentos.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Fernando Torres Londoño. Agradeço os ensinamentos, a atenção

e a generosidade com que me acolheu.

À Profa. Dra. Maria Izilda dos Santos Matos por seu precioso auxílio, sempre atenciosa e

prestativa, auxiliou-me na construção deste trabalho, mesmo nos momentos mais difíceis.

Ao Dr. Táki Athanássios Cordás. Á ele, toda minha admiração e gratidão.

Ao Cássio, com quem compartilhei anseios e descobertas da vida acadêmica e por me

oferecer muito de seu carinho, amor e atenção.

Aos adoráveis: Bernardo (in memoriam), Cléo, Maria, Jorge e Miguel.

Á Betinha, por toda sua atenção e aos funcionários do ACMSP, em especial ao Jair.

Á minha amada afilhada Letícia.


LISTA DE SIGLAS

ACMSP – Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

ACCI-MRCI – Arquivo Central da Comarca de Itu – Museu Republicano Convenção de Itu

AESP – Arquivo do estado de São Paulo

ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FFLCH/USP – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / Universidade de São Paulo

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais


RESUMO

Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar e discutir a mobilidade e a sociabilidade
forjada por mulheres e escravos na sociedade colonial através dos processos de divórcio e
nulidade matrimonial encontrado no ACMSP. Os conflitos e as relações presentes na vida
social e familiar de escravos e mulheres na Capitania de São Paulo nos abrem perspectivas
para (re) avaliar o papel das mulheres na sociedade oitocentista na Capitania de São Paulo.
Conseqüentemente também pode se analisar a construção familiar e a vida social dos
escravos, bem como focalizar os personagens que, após o matrimônio, buscavam romper os
laços que os uniam ao seu conjugue através da justiça eclesiástica que facultava as mulheres o
mesmo direito dos homens para anular ou romper os laços que os unia através do sacramento
do matrimônio. Com base na pesquisa efetuada, foram abordadas as leis eclesiásticas e a
relatividade do alcance social da vigilância empreendida pelo catolicismo que,
conseqüentemente permitiu aos escravos e às mulheres, uma atuação social e familiar,
possibilitando assim questionar estereótipos construídos sobre o espaço ocupado pelas
mulheres na sociedade.

PALAVRA CHAVE:

Divorcio

Matrimônio

Sociabilidade

Escravos

Mulheres

Colônia
ABSTRACT

The main objective of this research is to deepen, through the divorces processes, the conflicts
immersed it the social and family life of slaves and women in the Capitania of São Paulo. For
this purpose, it also analyzes the construction of the family and the social life of slaves, as
well as those women that, after marriage in the Church, wanted to divorce. The stories told by
these women to the ecclesiastical authorities at the right moment of breaking point of family
alliance revealed some information about the relationship between women and the Catholic
Church. Based on the research, were discussed the Church laws and relativity social impact of
surveillance undertaken by the Catholic Church which consequently allowed to slaves and
women to build social and family foundations, allowing questioning the stereotypes
constructed about them.

Keywords:

Woman

Divorce

Colony

Slave

Marriage

Sociableness
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPITULO I 16

Sociabilidade no Conflito: Casa e Separa 16

1. “E Viviam Nesta Cidade de São Paulo” 18

2. Matrimônio 35

3. “Sabe-se que a justificante por ameaças de seu senhor foi obrigada a cazar com o 39
justificado, seu marido”: Matrimônio entre escravos.

4. “A justificante vendeu tudo que tinha, afim de cuidar de seu divórcio” - Divórcios: 45
conflitos porta afora.

CAPITULO II 52

“Sempre Ela Serviu e Obedeceu”: Construção e Desconstrução dos Estereótipos 52

1. “era violento [...] seu dito marido, maltratando-a com pancadas [...] se ausentou 59
por longo período [...] sem deixar para sua sustentação nem uma espiga de milho”:
Sevícias masculinas, argumentação feminina.

2. “recolheu-se o supplicado para a casa e compania de Ignácia de tal com quem vive 69
concubinado, teúdo , e manteúda, com quem já tem um filho ou filha”: Mulheres
traídas e mulheres concubinas.

3. O Direito masculino de correção e as falsas sevícias. 74

4. “promete a dita sua mulher mandallo matar”: Acusações contra mulheres. 79

5. Quando as mulheres traem ou os maridos desconfiam que são traídos. 82

CAPITULO III 87

Religiosidade, Sociabilidade e Família em Meio ao Conflito do Divórcio 87

1. “ Público e notório”: vida social e divórcio 88

2. Vigilância Eclesiástica 99

3. Família Escrava 105

4. Compadrio 110
Considerações Finais 116

Bibliografia 120

Fontes 120

Bibliografia Geral 121

Revistas 124

Dissertações 125
10 

INTRODUÇÃO
Ao refletir sobre o modo de viver e de se relacionar, desenvolvido entre os indivíduos

presentes na realidade da São Paulo colonial, nota-se que é mais fácil para o historiador

conhecer a vivência dos casais e daqueles que os cercavam em situações de conflito, visto que

as dificuldades da convivência a dois se tornaram mais evidentes e, portanto, públicas,

deixando registros históricos, como os processos de divórcio. Portanto, se tentou compreender

e evidenciar o dinamismo dos conflitos sociais e familiares presentes no cotidiano de

mulheres e escravos em São Paulo nas duas últimas décadas do XVIII até o fim do período

colonial em 1822; optei por utilizar como corpus documental desta pesquisa os processos de

divórcio e nullidade de matrimônio, uma vez que esta documentação se destaca por seu

conteúdo repleto de rompimentos e possibilidades de análise.

Desejei deixar bem evidentes os limites desde o início para definir com clareza o

objeto do estudo realizado. Trabalho aqui com os conflitos advindos de uniões legítimas, ou

seja, aquelas que foram celebradas de acordo com as leis eclesiásticas e, com isso, resultaram

em processos de divórcio e nullidade de matrimônio que passaram pelo julgamento das

autoridades do catolicismo. Os conflitos conjugais se caracterizam para tanto, como o centro

das discussões mais amplas desta pesquisa, como a família e as relações sociais.

A atenção foi centrada nos conflitos transcritos em processos envolvendo escravos e

forros e, igualmente, nos relatos das mulheres - sendo escravas ou não - que pretendiam obter,

frente ás autoridades eclesiásticas, permissão para se emanciparem de seus maridos. Optei

assim por analisar, majoritariamente, os processos abertos por mulheres e por aqueles que

envolviam escravos e forros. Delimitei aqui meu objeto; as discussões sobre escravos e forros

partem do contexto conflituoso dos divórcios que, somados à bibliografia, possibilitam outras

discussões que contornam a formação e a dissolução de suas famílias, como a sociabilidade e

o impacto social do trabalho escravo nas ruas da cidade.


11 

Assim sendo, o primeiro capítulo foi dedicado ao dinamismo das relações sociais e

principalmente conjugais em São Paulo, como viver e conviver na cidade, ressaltando o

matrimônio, o matrimônio escravo e o concubinato.

O segundo capítulo foi dedicado á condição feminina, já que as mulheres são maioria

no que diz respeito à movimentação de ações de divórcio. O objetivo para este capítulo é

compreender de que maneira as mulheres vivenciavam situações de conflito, que recursos

utilizavam ao buscarem romper um arranjo familiar e como descreviam suas relações

familiares e conjugais ao Juízo Eclesiástico.

Assim, a atenção neste capitulo é voltada para a figura da mulher presente nos autos.

Do que eram acusadas e porque acusavam; as violências que teriam praticado e as violências

das quais seriam vítimas. Desta forma, pretendo neste capítulo visualizar a mulher, imersa em

uma situação de conflito e como foi descrita nos processos de divórcio.

O terceiro capítulo aborda a religiosidade e a criação de laços familiares em São

Paulo vistas á partir dos conflitos transcritos nas fontes e a vigilância eclesiástica. Neste

capítulo serão discutidos os dois focos principais desta pesquisa, os escravos e as mulheres.

Destaco o compadrio e a construção da família escrava, bem como as justificativas

apresentadas pelas mulheres frente ao Juízo Eclesiástico, uma vez que revelam um pouco de

sua vida social.

Assim, pretendo tratar os conflitos sociais e familiares de mulheres e escravos em São

Paulo entre os anos de 1780 e 1822, de acordo com seu contexto específico, para evitar

generalizações e examinar a multiplicidade de conflitos e práticas sociais.

Não posso deixar de mencionar ainda, que a legislação eclesiástica será analisada

juntamente aos processos de divórcio, já que permite apreender as normas e as práticas

sociais, assim como, averiguar de que forma o Juízo Eclesiástico poderia tornar-se um meio

de contestação da dominação masculina e uma forma de as mulheres se rebelarem contra a


12 

autoridade exercida pela figura masculina, de quem alegavam terem recebido pancadas e

xingamentos. Possivelmente o divórcio se tornou uma “brecha” na lei eclesiástica; lei que

conferia ao homem a autoridade e buscava na mulher, o comportamento honrado e dotado de

toda decência. Mas é necessário ter em mente que o divórcio não dissolvia o sacramento do

matrimônio, portanto os divorciados não podiam se casar novamente, a não ser que um dos

cônjuges viesse a falecer.1

Já as anulações de matrimônio, também consultadas para a elaboração deste estudo, se

constituem como declarações explícitas de que, legalmente, não houve matrimônio, pois o ato

celebrado foi nulo, e se foi nulo inexiste o vínculo de fidelidade, portanto os implicados

estavam desimpedidos para tomarem o estado que preferissem.2

As fontes de investigação e as referências bibliográficas foram utilizadas para a

análise acerca da vida conjugal e social de mulheres e escravos, que formavam um forte

círculo social em São Paulo no período a ser estudado, caminhando por entre livres e

abastados, além de ser a mão de obra predominante na economia paulista em crescimento e de

seu território em expansão.

Utilizei como documentação manuscrita básica, os processos de divórcio e nullidade

de matrimônio, que se encontram no ACMSP. Esta documentação oferece algumas

dificuldades, pois é composta por grande diversidade de manuscritos realizados a várias mãos,

devido à atuação de escrivães, promotores, advogados, juízes e párocos locais; e como bem

lembra Raquel Costa: [...] com muitas abreviações a serem decifradas e, dada a natureza do

texto, contendo profusão de termos jurídicos, que dificultam a compreensão inicial do texto

                                                            
1
COSTA, Raquel R. L. Domingues. Divórcio e anulação de matrimônio em São Paulo colonial. Dissertação de
mestrado. FFLCH/ USP, 1986, p. 3.
2
IDEM, p.3.
13 

[...]3. Estão também sobrecarregados de juízo de valor. Não é raro encontrar descrições

ofensivas como bêbado impertinente, vagabunda, mulher libertina, desvalida, etc.4.

Para localizar esta documentação que, como já mencionado, encontra-se conservada

no ACMSP, o pesquisador consulta a Seção Primeira F, onde estão á disposição 678

processos entre os anos de 1700 a 1920.

Em alguns processos as folhas estão fora de ordem, outros estão bastante deteriorados

ou ainda sem conclusão, o que remete á dificuldade não somente na leitura como na

compreensão, exigindo atenção redobrada do pesquisador.

Por este motivo, selecionei os documentos cuidadosamente, buscando obter o máximo

de informações diante de meu objeto. Ressalto ainda que os nomes e a grafia das palavras

foram mantidos como são descritos nos processos originais.

O recorte temporal foi estipulado inicialmente pelo estado de conservação dos

manuscritos. Documentos entre 1700 e 1770 apresentam grandes obstáculos á compreensão,

por seu avançado estado de deteriorização. Além disso, a Diocese só foi criada em São Paulo

no ano de 1745; antes dessa data a região estava sob domínio do Bispo do Rio de Janeiro, por

isso, os manuscritos anteriores a 1745 ofereciam algumas dificuldades para situar o objeto no

espaço. Portanto, estabeleci o ano de 1780 como data inicial do recorte e 1822 como data

final, uma vez que pretendo estudar o período colonial.

Determinei também a área de estudo a partir da documentação e da criação do

Bispado na Capitania.5 Os processos de divórcio e de anulação de matrimônio consultados

para o desenvolvimento deste trabalho foram todos realizados em São Paulo. Contudo, seus

protagonistas, não raras vezes, moravam nas vilas, como Jacareí, Campinas, Santa Izabel,

Santo Antônio de Paraibuna, São Sebastião, Mogi Mirim, São Carlos, Guaratinguetá e se

                                                            
3
IBIDEM, p.14
4
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 214.
5
GOMES, Edgar da Silva. A instalação do bispado de São Paulo. In: Souza, Ney (ORG). Catolicismo em São
Paulo. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 128-165.
14 

dirigiam para a Capitania para que os processos fossem abertos e ainda durante todo o período

em que o processo estivesse em andamento.

Existem diversos tipos de processos. É possível encontrar divórcios entre escravos, entre

forros e escravos, entre livres e escravos e entre pessoas livres.

Quanto à estrutura desses documentos, um processo de divórcio começa sempre

divulgando, através do escrivão, a versão da parte de quem deu entrada ao processo. Assim,

os processos lidos dão conta de que as mulheres são maioria na hora de abrir o processo. Por

motivos diversos, são elas que mais desejam o fim dos seus casamentos.

Na seqüência, geralmente é encontrado o depoimento de todas as testemunhas do

processo, o que justifica o fato de, algumas vezes, esses processos terem mais de 50 folhas.

Nas partes finais do processo, estão as conclusões, o desfecho do caso e o custo total do

processo.

Não esquecendo ainda de citar que, os processos de divórcio entre dois escravos são

mais complexos, pois devem contar com a autorização e a permissão dos senhores para que

esses escravos possam se divorciar ou anular uma união, de forma que esses processos devem

ser trabalhados com maior cautela. 6

Um divórcio seria viável somente quando o matrimônio havia sido celebrado em face

à Igreja7 e consumado. Com isso, era possível a separação de corpos perpetuamente ou por

tempo determinado, e colocava-se um fim à sociedade conjugal.

A anulação de um matrimônio significava que foi realizado um casamento inválido

dentro das circunstâncias expostas na legislação eclesiástica. No processo de anulação, era

                                                            
6
Em processo que será analisado ao longo deste trabalho, podemos citar o processo de divórcio entre a escrava
Joaquina e o escravo Ambrósio, em 1795. Escravos do mesmo senhor, o Capitão Felipe Neri Teixeira; que os
obrigou a se casarem sem saber que Ambrósio já havia mantido relações sexuais com a mãe de Joaquina,
indicando um impedimento direto. Com isso, o mesmo Capitão apresentou uma petição ao Juízo Geral
Eclesiástico do Bispado de São Paulo para anular o casamento de seus escravos, se responsabilizando pelos
gastos do processo. ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 90.
7
SANTOS, Dayse Lúcide Silva. Entre a norma e o desejo: estudo das tensões na vida conjugal diamantinense
de 1863 a 1933. Minas Gerais/ UFMG. Dissertação de mestrado, 2003. O processo de divórcio foi realizado pela
Igreja durante todo o período colonial e imperial brasileiro, até perder força com o advento da República.
15 

julgado se o matrimônio fora ou não nulo e, no caso de ter sido julgado nulo nunca existira o

vínculo. Nesses casos, era possível um “outro” casamento. Portanto, do ponto de vista

econômico-social, a anulação acarretava maiores conseqüências que o divórcio.

Os divórcios amigáveis eram os mais rápidos, durando poucos dias, ou até mesmo um

só, sendo raros os casos em que divórcios deste tipo durassem mais de um mês. Divórcios

amigáveis entre escravos, provavelmente não ocorriam constantemente, já que para isso

dependeriam do interesse e da permissão de seus proprietários.

Os divórcios litigiosos e os processos de nulidade de matrimônio que seguiam

normalmente até o final eram muito demorados. Um ano seria um tempo considerado normal,

contudo, houve processos que duraram três, nove, doze e até dezenove anos.

Em suma, dedicado aos conflitos sociais, familiares e, principalmente conjugais do

cotidiano de mulheres e escravos em São Paulo entre 1780 e 1822, o presente estudo, como já

mencionado, utiliza como corpus documental básico, os processos de divórcio e a nulidade do

matrimônio, que contabilizam aproximadamente 45 processos. Procuro assim contribuir,

através desta pesquisa, com mais uma historia sobre cotidiano e gênero no período colonial

brasileiro, bem como suscitar outros debates em torno deste tema.


16 

CAPITULO I
“Sociabilidade no Conflito: Casa e Separa”

[...] não há dúvidas de que é mais fácil para o pesquisador conhecer as


relações conjugais em situações de conflito do que em períodos normais da
vida do casal. Estes simplesmente não repercutem nas documentações. O
historiador encontra-se assim diante de um dilema: ou se debruça sobre
obras normativas, em geral produzidas pela Igreja (catecismos, directórios de
confessores, prontuários morais), que regulamentavam cuidadosamente a
vida conjugal em todos os seus aspectos; ou tentar delinear o comportamento
normal a partir das situações anormais de conflito. A primeira é mais fácil. A
essa imagem ideal do casal preferimos, contudo contrapor a imagem real,
ainda que fragmentária, contida na documentação acerca das desavenças
conjugais.8

Aos seis dias do mês de Maio de 1795, o Tribunal Eclesiástico do bispado de São

Paulo recebeu uma petição em nome do Capitão Felipe N. Teixeira, residente na Freguesia de

Nossa Senhora da Conceição das Campinas. Na petição, o Capitão intencionava separar dois

de seus escravos, o africano de Guiné Ambrósio e a crioula Joaquina.

O Capitão Felipe havia obrigado Ambrósio e Joaquina a se casarem pouco antes de

descobrir que Ambrósio havia mantido relações sexuais com Rita, mãe de Joaquina. De

acordo com a petição, o Capitão, ao tomar conhecimento do fato, imediatamente comunicou

ao Tribunal, buscando a anulação do matrimônio celebrado em sua propriedade.

Os advogados do Capitão arrolaram como testemunhas no processo Damian e

Laurianna, também escravos do Capitão Felipe, que diziam ter conhecimento da união carnal

ilícita entre Rita e Ambrósio. Laurianna diz ainda que não comunicou o fato antes [...] por

ignorância[...]9 e Damian afirma saber [...] do conhecimento de Francisco, pai de Joaquina,

que tinha em ódio seu genro Ambrósio [...].10

Por fim, entre os anos 1797 e 1799, precisamente Dom Macedo determinou: [...] Hé

nullo este matrimônio entre Ambrósio e Joaquina, que se acha provado pelos depoimentos

                                                            
8
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI.
Lisboa: Estampa, 1993. p. 116-118.
9
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n. 90.
10
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n.90.
17 

inseridos nestes autos e informações. Podem impetrarem dispensa para serem recebidos em

matrimônio válido [...]11.

É possível até questionar se a razão apresentada pelo senhor ao Juízo era realmente

verdadeira, se ele realmente não tinha conhecimento da relação ilícita entre o escravo

Ambrósio e a mãe de sua esposa Joaquina, ou se, por algum outro motivo, ele se arrependeu

de ter unido seus escravos.

Os autos não fornecem qualquer informação. Provavelmente porque este era um

processo movido por um senhor, que claramente instruiu seus escravos a testemunharem de

acordo com suas afirmações. Portanto, as testemunhas, todas elas escravas do Capitão Felipe,

afirmam categórica e repetidamente que o Capitão não tinha conhecimento da relação carnal

mantida por Rita, mãe de Joaquina e Ambrósio e por isso pretendia o divórcio de seus

escravos.

Mas, por outro lado, é possível apontar que se cativeiro e parentesco não são

experiências excludentes, o cativeiro não abortou a família escrava, deu a ela novos

contornos. Ao passo que Ambrósio e Joaquina receberam dispensa do Tribunal Eclesiástico,

configurando assim possibilidade para uma união conjugal típica, sacramentada pela Igreja

Católica, a escravaria então tecia a sua rede familiar através de mecanismos culturalmente

sancionados pela sociedade senhorial.

Neste capítulo, utilizando os processos de divórcio, busco compreender o dinamismo

dos conflitos familiares e conjugais na convivência entre escravos, forros e livres pobres na

sociedade paulistana. Não tenho intenção de me prolongar em discussões acerca do sistema

escravista, tampouco minhas fontes fornecem dados qualitativos ou quantitativos para uma

análise mais adequada sobre o sistema escravista colonial.

                                                            
11
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, gaveta 05, n.90.
18 

A intenção é resgatar e analisar a família escrava e os conflitos sociais que advém de

um processo de divórcio e anulação de matrimônio entre cativos ou entre cativos e forros.

Esforcei-me para não cristalizar a escravidão como benevolente ou suave, mas como mostra a

historiografia nos últimos 30 anos, a escravidão foi dura, bárbara e violenta, sendo essa

violência inerente ao próprio sistema escravista, como forma de controle social e manutenção

da ordem.12

De acordo com Silvia Lara [...] a ênfase na violência da escravidão estava também

associada à denúncia da coisificação do escravo, transformado em mercadoria, despojado de

suas qualidades humanas e submetidos às péssimas condições de vida e de trabalho [...]13.

A historiadora afirma que a dimensão humana do escravo aflorava apenas quando este

cometia algum crime, fugia ou se aquilombava. Salienta-se desta forma que documentos que

relatam situações conflituosas permitem vislumbrar um pouco melhor essa humanidade, que

contrastava com a coisificação de seres humanos, comprados e vendidos. Não intenciono

neste trabalho qualificar a escravidão como suave ou cruel. Busco nas fontes histórias sobre

os conflitos familiares e conjugais, cotidianos em São Paulo; e as histórias de escravos, que

caminhavam pelas ruas e vielas de São Paulo ao lado de forros, brancos livres e pobres ou

senhores abastados, apresentando uma possibilidade de resgatar não somente de um pouco de

suas histórias, como também daqueles que os cercavam.

Para tanto, é preciso compreender aspectos peculiares da presença escrava na

formação da Capitania de São Paulo.

1. “E viviam nesta cidade de São Paulo”

Eliane Lopes em O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século

XVIII define a cidade por volta da segunda metade dos setecentos. São Paulo seria, em suas

                                                            
12
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.20.
13
IDEM. p.20.
19 

palavras, [...] uma cidade estagnada, que vegetava numa economia de poucas trocas [...]14.

Assim, após comentar a precária situação econômica paulista, ponderou que, entre os

habitantes da cidade, havia numerosa quantidade de gente pobre, destacando os agricultores,

criadores de gado, negociantes e artesãos. A autoridade, o prestígio e o poder dos homens

poderiam ser medidos pelo montante de terra que possuíam, caracterizando desta forma a

importância social de se obter propriedades rurais. A pobreza de São Paulo teria possibilitado,

desde o início, a supremacia da vida no campo, estimulando seus componentes mais abastados

a optar por transitar, intermitentemente entre a casa na fazenda e o lar urbano, a fim de

participar das festas e dar conta de seus encargos administrativos. A autora então ressalva:

[...] no final do século XVIII, o término das expedições ao interior plantou


traços diferentes nos paulistas. Por tornarem-se mais sedentários, ocuparam-
se do comércio, organizando-se, de forma equilibrada, em volta da região da
Sé, ponto de negociações e local de parada das tropas [...]15.

Em texto que se tornou clássico na historiografia paulista, Caio Prado Jr. advertiu

sobre a importância da analise a cerca de aspectos específicos da formação de São Paulo,

essencial para a definição de uma metodologia de pesquisa sobre essa realidade e para a

compreensão de sua economia e da dinâmica de suas relações sociais. Trata-se do movimento

estampado no desenho de caminhos fluviais e terrestres que compunham seu perímetro. A

sociedade formada na vila, depois cidade, de São Paulo nasceu com uma vocação para a

mobilidade. Caio Prado indica a importância considerável do sistema hidrográfico do planalto

paulista. Os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros representavam a melhor e mais utilizada via

de comunicação, [...] não só para as grandes expedições de reconhecimento e exploração do

interior, as entradas e bandeiras, mas também, e é isto o principal, para o intercâmbio das

populações que se estabeleceram no planalto [...]16.

                                                            
14
LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo:
Annablume: FAPESP, 1998, p.23
15
IDEM, p.23
16
PRADO Jr. Caio. A cidade de São Paulo:geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998, p.21.
20 

O centro original da vila de São Paulo, portanto, nasceu no ponto de encontro dos rios

Anhangabaú e Tamanduateí, onde se estabeleceu o Colégio dos Jesuítas, que usavam essas

vias fluviais para alcançar os aldeamentos indígenas próximos.

Essa condição de eixo de caminhos e confluências de rios importantes naturalmente a

tornou um núcleo urbano central, administrativo, religioso e político, tornando-se o centro das

comunicações do planalto. Prado observa que [...] todos os caminhos, fluviais ou terrestres,

que cortam o território paulista vão dar nele e nele se articulam [...].17 O contato entre as

regiões povoadas ou colonizadas se faz necessariamente pela capital. Neste sentido, podemos

apontar ainda a importância das estradas neste intercâmbio. Segundo Teodoro Sampaio:

[...] Entre estas artérias históricas irradiantes, como os dedos de uma


gigantesca mão espalmada sobre o território paulista, medeava o deserto, o
verdadeiro sertão, ampliando-se sempre, e cada vez mais ignorado à
proporção que as estradas se afastam, e todavia não mais conhecido nas
próprias vizinhanças da capital, que era o centro verdadeiro deste sistema de
viação interior [...]18.

Caio Prado reforça que a evolução do planalto paulista e a expansão demográfica

propiciada pela rede hidrográfica refletiram-se nitidamente na disposição das estradas: 19

[...] Para noroeste, pelo Vale do Paraíba, é a estrada que serve às vilas e
povoações da faixa marginal daquele rio. Para sudoeste, é a estrada que leva
aos campos de Sorocaba, Itapetininga e Guarapuava (no atual estado do
Paraná), e dali para as capitanias meridionais, destacadas de São Paulo no
século XVIII. E é por este caminho que São Paulo se abastecia de gado para
                                                            
17
IDEM, p. 27.
18
Revista do Instituto histórico e geográfico de São Paulo, Vol. 1, n. 163 In PRADO Jr. A cidade de São Paulo:
geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998.
19
PRADO Jr., op.cit., p. 20-27. Caio Prado destaca que: [...] Partindo de São Paulo, o povoamento do planalto
começa por seguir duas direções, ambas pelo Tietê: uma rio acima, outra rio abaixo. É seguindo essas linhas que
os colonos se vão estabelecendo e formando as primeiras povoações e vilas. Rio abaixo encontramos já muito
cedo: Nossa Senhora da Expectação do Ó (hoje Freguesia do Ó) e Parnaíba, que em 1625, é constituída em vila.
E pelas variantes do Pinheiros, seu afluente Jeribatiba (Rio Grande), do Cotia e afluente Mbói-Mirim (Embu),
inúmeras povoações e aldeias de índios fundadas ou dirigidas pelos jesuítas: Pinheiros, Itapecirica, Ibirapuera
(hoje Santo Amaro) [...]. Prado cita ainda aldeamentos e vilas Tietê abaixo: Guarulhos, Itaquaquecetuba, São
Miguel, a povoação, logo vila, de Mogi das Cruzes e passando para o Vale do Paraíba encontramos São José dos
Campos. Este setor da capitania logo se torna o mais povoado e no decorrer do século XVII se povoa mais
densamente, concentrando-se no vale do rio a grande maioria das povoações e vilas da Capitania, destaquemos
Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Lorena. O Vale do Paraíba, além da condição de território
mais fértil conhecido até então na Capitania, configura-se ainda como roteiro essencial das bandeiras que [...]
em demanda de Minas Gerais, sertão de São Francisco, norte-nordeste do país [...], passavam invariavelmente
pelo Vale do Paraíba.
21 

o seu consumo e para a reexportação; é por aí também que nos chegavam, e


assim será até a introdução das ferrovias, as tropas de burro, principal meio
de transporte da província. Mesmo o norte do país se supria, através de São
Paulo, dos muares que vinham dos campos do sul [...]20.

Em História Geral da Civilização Brasileira, Sérgio Buarque de Holanda, ao

historicizar a geografia de São Paulo, descreve as paisagens naturais que se apresentavam aos

povoadores:

[...] No centro-sul de São Paulo, a partir da chamada depressão periférica


paulista, outras paisagens naturais se apresentavam aos povoadores,
denunciando a transição para os altiplanos subtropicais do Brasil meridional.
Aí, como também no norte de Minas, apareciam manchas de cerradões e
cerrados, florestas galerias não muito típicas e capões de mato, reproduzindo
localmente um tipo de paisagem que, mais para o ocidente, encontrava seu
campo de domínio pleno em Mato Grosso e Goiás, já fora da linha
tordesilhana. Os cerradões e campos naturais do centro-sul de São Paulo e
dos primeiros planaltos paranaenses constituíam uma espécie de vegetação
colocada em posição intermediária entre as matas atlânticas e a área de
domínio das araucárias, que se estendiam do Paraná para o Sul, adquirindo
sua maior expressão nas terras altas do Brasil meridional, território bem
colocado à margem do Brasil legalmente português da época [...]21.

Buarque enfocou a importância da geografia para a formação econômica e social no

Brasil colônia, advertindo que os [...] sertões das caatingas nordestinas e baianas foram o

campo por excelência das atividades de pastoreio [...]22 e ainda que fossem pobres e de

pequeno rendimento econômico, eram extensivos e úteis para a conquista de um [...] vasto

território interior não dotado de outros atrativos, ou aptidões agrárias [...]23 .

Enquanto as terras acidentadas e florestais do Brasil sudeste foram ocupadas muito

localmente à custa de modestas atividades agrícolas e dispersas, este cenário econômico foi se

modificando com a descoberta do ouro no centro sul de Minas e da produção de açúcar e de

café em São Paulo e, três séculos e meio após o descobrimento, a região viria a se tornar [...] a

principal zona agrícola do país, com o advento e expansão dos cafezais. Foi também a área

                                                            
20
PRADO Jr, op.cit., p. 27
21
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001, t. 1, v.2, p. 178-179.
22
IDEM, p. 179.
23
IBIDEM, p.179.
22 

que mais sofreu com a passagem rubiácea exigente, a qual destruiu mais solos do que foi

capaz de criar e fixar riquezas na aludida região [...]24.

Frente a isso, beneficiados pela paisagem atraente aos colonizadores, a vantajosa

posição hidrográfica e a construção de estradas, os caminhos em São Paulo foram sendo

construídos com intuito de ligar a região central aos arredores e a outras regiões da colônia

como o norte e o sul, resultando em fluxo contínuo de pessoas, carros de boi e tropas de muar.

Nota-se que, para tanto, a Câmara da cidade, reiteradas vezes, decidiu pela

participação dos moradores na construção dos caminhos, pois a Câmara se recusava a

participar ou a enviar mão de obra para a realização de obras públicas. 25

As ruas de São Paulo formavam uma teia de ruas que se cruzavam, estreitas e

tortuosas, marcadas pela irregularidade da largura e por ser cheia de becos.

Era nas vias da cidade que os vendedores ambulantes cruzavam com escravos
26
carregando barris com despejos fecais e lixo. Quando anoitecia a cidade repousava numa

esplêndida escuridão; aqueles que quisessem se aventurar pelas ruas durante a noite

enfrentavam o breu com lanternas. Nas noites de luar, andarilhos corajosos ousavam caminhar

sem elas, sabendo que poderiam enfrentar imprevistos.27

O desenvolvimento da cidade levou a população a ocupar as terras além do

Tamanduateí, Anhangabaú, Pinheiros e Tietê. O avanço para o interior e o crescimento de

                                                            
24
HOLLANDA, op.cit, p.179. Sobre a mudança no cenário econômico com a descoberta do ouro, Caio Prado
afirma que a prática agrícola decai drasticamente e com o deslocamento dos paulistas para Minas e depois para
Goiás e Mato Grosso em busca de ouro, São Paulo entra em prolongada estagnação, interrompendo a expansão
colonizadora e o povoamento. Essa situação se interrompe somente pelos fins do século XVIII, com o prematuro
esgotamento das minas. (Cf. PRADO Jr., op.cit., p. 32-33)
25
SANT’ANNA, Nuto. São Paulo no século XIX. Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia – Conselho
Estadual de Cultura, 1977.
26
Cf. Dias, M. O. L. da S. op.cit, p. 29. A historiadora aborda as precárias condições de higiene nas vias da São
Paulo do século XIX e suas consequências. A autora explica: [...] A Independência não mudara em nada as
febres, sezões, os maus cheiros do Tamanduateí que lhes sacrificavam as crianças. São raros os momentos em
que afloram nos acontecimentos da ordem do dia, o que geralmente ocorre nos momentos de crise; quando das
epidemias de cólera-morbo ou de varíola, que se fizeram sentir em 1823, em 1828 e novamente em 1831.
Apareciam como boas samaritanas: recebiam da Câmara um pequeno estipêndio para tratar em suas casas de
escravos ou forros doentes [...].
27
ASSUNÇÃO, Paulo de. A cidade de São Paulo no século XIX: ruas e pontes em transformação. Revista do
AESP, n. 10, maio/2006.
23 

aldeias e povoações exigiu a criação de pontes a fim de facilitar o deslocamento dos

moradores dessa região para o centro da cidade.28

O centro, marcado pela Igreja da Sé, era local de encontros de toda ordem: comerciais

sociais e religiosos, atraindo igualmente aqueles que necessitavam de decisões das

administrações civis e eclesiásticas.

O naturalista francês Saint-Hilaire descreveu cuidadosamente as pontes em São Paulo.

Em sua visita a cidade, entre 1818 e 1819, referiu-se às pontes que ficavam por sobre o

Anhangabaú. A primeira a ser mencionada foi a Ponte do Lorena, que dava acesso a Sorocaba

e Jundiaí. Na descrição dele, ela seria quase plana, com 12 passos de largura, por 25 de

extensão.29 A segunda foi do Açu, que permitia a ligação com a região oeste e era considerada

a mais bonita. A ponte do Açu chamava atenção, segundo ele, por conta dos parapeitos, que

tinham certa elegância arquitetônica, possuía no acesso um aclive com cerca de 150 passos de

extensão e 16 de largura. A terceira era conhecida como Ponte do Ferrão, pois nas imediações

havia a chácara de José da Silva Ferrão. Esta ponte dava acesso à estrada para o Rio de

Janeiro, medindo cerca de 40 passos de cumprimento por 7 de largura.30

Além das paisagens e construções da cidade Saint-Hilaire também descreve a

diversidade social paulista. Nota-se a interpretação de Gilberto Freyre quanto as colocações

do viajante frances: [...] em São Paulo, tamanha era mistura de raças que chegara a descrevê-

la, com algum preconceito, como estranha mescla de que resultam complicações

embaraçosas para a administração e perigosas para a moral pública [...]31. Com relação as

                                                            
28
IDEM.
29
IBIDEM. A ponte do Lorena era destaque na região central. Ligava a Ladeira do Piques com a Ladeira da
Memória (atual Praça da Bandeira). O caminho que ligava São Paulo à aldeia de Pinheiros era conhecido como
Estrada do Araçá (atuais: Rua da Consolação e Avenida Rebouças). Por este trajeto era possível também utilizar
uma das vertentes que ia em direção ao Rio Tietê, seguindo para Jundiaí. A ponte existia desde os primeiros anos
do século XVII. Todavia, foi durante o governo José Bernardo de Lorena que reformas foram feitas e a ponte
passou a ser conhecida como Ponte do Lorena, após a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, a ser
conhecida como Ponte Sete de Abril.
30
SAINT-HILAIRE, A. de. Viagens pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Belo Horizonte/São
Paulo. Itatiaia: EDUSP, 1975, p. 131.
31
FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. São Paulo: Global, 2008, p.65
24 

moradias na cidade o viajante registrou ainda, ao entrar na cidade, provavelmente pela atual

Rua da Consolação, que as casas eram pequenas e bem cuidadas, passando por uma fonte

bonita, depois atravessando a Ponte do Lorena e chegando ao Bexiga.32

Em um artigo para a Revista do AESP, Paulo de Assunção observa que aqueles que

circulavam pelas ruas da cidade julgavam como inconcebível as condições dos calçamentos e

condições das vias, uma vez que se cobravam pesados impostos e, ainda assim, as vias

públicas permaneciam em péssimas condições, verdadeiros lamaçais. Em 15 de abril de 1830,

o jornal O Farol Paulistano, primeiro periódico de São Paulo, publicou um artigo chamado

Um cidadão:

[...] O autor do artigo, dirigindo-se ao redator, dizia ficar com as faces do


rosto vermelhas de vergonha ao escrever aquela carta. Contudo ele via nesta
missiva o meio pelo qual os reclamos poderiam ser atendidos. De forma
rígida, o nosso cidadão indagava como a Câmara Municipal da cidade “que
tão zelosa tem se mostrado, onde se encontram membros tão patrióticos, e
que tem a ventura de possuir um tão ótimo Fiscal, como não vê como não
sabe do miserando estado da rua chamada – do Cônego Leão”? A sua
decepção devia-se ao fato de ter passado pela rua, que era passagem
obrigatória para todos os carros vindos de Santo André e, nela encontrou um
tronco de árvore, sinal que os tropeiros utilizavam para avisar os viajantes
para não passarem por ali, por causa dos buracos e das más condições de
circulação [...]33.

Em se tratando do cotidiano paulista e dos aspectos fundamentais na formação da

cidade, é imprescindível ressaltar que o número de escravos na cidade de São Paulo no início

do século XIX era acintoso, o que causava reações de descontentamento de pessoas da elite,

seja pelo barulho provocado pelas cantorias dos escravos, seja pela confusão gerada nas ruas

estreitas da cidade com o trânsito intenso de carroças, de escravos e de animais. Na tabela

abaixo é possível analisar a evolução da população e a presença escrava em São Paulo entre

os anos de 1803 a 1836.


                                                            
32
ASSUNÇÃO, op.cit.
33
IDEM. Assunção descreve as péssimas condições do calçamento na cidade. Feito de pedras irregulares, não
oferecia nenhuma resistência e se danificava com facilidade. A circulação de pessoas e animais fazia com que as
condições da via ficassem comprometidas. Faltavam recursos financeiros e técnicos para que as vias fossem
pavimentadas de forma conveniente para uso. Além disso, o calçamento danificado, o mato crescido e a sujeira
dos animais contribuíam para um aspecto desagradável registrado pelos próprios moradores e visitantes.
25 

Livres 1803 1817 1836


Vale do Paraíba 30.867 39.084 52.538
Região da Capital 41.902 45.925 57.430
Oeste Paulista 22.611 30.666 49.084
Caminho do Sul 34.490 39.265 55.642
Litoral 14.413 16.718 31.374
Total 144.283 171.658 263.068
Escravos 1803 1817 1836
Vale do Paraíba 8.863 11.831 25.438
Região da Capital 11.821 12.158 14.818
Oeste Paulista 8.766 13.449 26.814
Caminho do Sul 7.975 8.198 12.314
Litoral 6.696 8.961 11.860
Total 44.121 54.597 91.244
População Total 1803 1817 1836
Vale do Paraíba 39.730 50.915 77.976
Região da Capital 53.723 58.083 72.248
Oeste Paulista 31.377 44.115 75.898
Caminho do Sul 42.465 47.463 67.956
Litoral 21.109 25.679 33.234
Total 188.404 226.255 327.312
Ano 1804 Casados Solteiros Viúvos
Vale do Paraíba. 33.8 62.9 3.3
Região da Capital. 24.7 72.1 3.2
Oeste Paulista. 34.0 63.8 2.2
Caminho do Sul. 31.4 64.6 4.0
Litoral. 18.6 78.6 2.9
Total 28.8 68.2 3.0
Ano de 1829 Casados Solteiros Viúvos
Vale do Paraíba 26.5 71.7 1.8
Região da Capital 23.3 73.9 2.8
Oeste Paulista 34.6 63.6 1.8
Caminho do Sul 30.3 66.8 2.9
Litoral 18.9 78.9 2.2
Total 28.4 69.6 2.1
34
Tabela 1: Evolução da população da província de São Paulo (1803-1836)

A escravidão paulista, no final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, foi

configurada pelo trabalho de ganho ou de aluguel, principalmente no centro da cidade, para

onde os escravos se deslocavam diariamente, acompanhados ou não, de seus senhores.

                                                            
34
LUNA, Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de
1750 a 1850. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. Fontes: 1803: “Mapa Geral dos Habitantes
da Capitania de São Paulo, com especificação dos Nascimentos, Casamentos e Óbitos Reduzidos sobre as listas
da Povoação e Casualidades do ano de 1803” - ANRJ, Códice 808, vol. 4, p. 258. 1817: “Mapa Geral dos
Habitantes da Capitania de São Paulo, com especificações dos Nascimentos, Casamentos e Óbitos, Reduzido
sobre as listas da Povoação e Casualidades do ano de 1817”, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documento:
I-32,10,6. 1836: Daniel Pedro Müller. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo, 3. ed., São
Paulo, Governo do Estado de São Paulo, 1978.
26 

A historiografia recente problematiza obras e fontes já utilizadas, debruçando-se sobre

novas fontes. Assim surgiram sugestivas interpretações com relação à presença escrava na

sociedade paulista, como, por exemplo, a reprodução natural dos cativos em algumas regiões

do território; além da construção da família escrava e como essa reprodução e formação

familiar surtiu efeito na economia paulista.

A reprodução natural escrava, logicamente, resulta na multiplicação de braços para o

trabalho. Com isso, aumentar o numero de membros da escravaria significava um impulso na

produção e na economia paulista.

Destaque para o estudo baseado em manuscritos conhecidos como Maços de

População35, do Acervo do AESP, onde o autor Francisco Vidal Luna considera vinte e cinco

diferentes localidades de São Paulo, nos anos de 1777, 1804 e 1829. Ele ressalta a introdução

e o desenvolvimento da produção de açúcar e de café no referido período e as profundas

mudanças ocasionadas no perfil populacional paulista. Luna elucida que o ingresso de cativos

em grande quantidade, principalmente de homens adultos, destruiu o relativo equilíbrio

existente na população, tanto na proporção entre os sexos, quanto na estrutura etária. Além

disso, se analisadas as características demográficas dos escravos e sua relação com as

variáveis da natureza econômica, se perceberá que o casamento e a capacidade reprodutiva

                                                            
35
Os Maços de População de São Paulo formam uma extensa série documental de caráter censitário produzida
entre 1765 e 1850, abrangendo a totalidade da população da Capitania e depois Província de São Paulo. A
confecção dessas listas de caráter nominativo foi inicialmente proposta na complexa conjuntura de conflito com
os castelhanos em torno da Bacia do Prata. Visava-se, então, coletar informações sobre a disponibilidade de
homens aptos ao serviço militar. Através da Ordem Régia de 21 de outubro de 1797, D. Maria I introduziu
importantes e modernizadoras técnicas de recenseamento. Norteava essas novas orientações uma política
mercantilista mais dinâmica e preocupada em racionalizar a máquina administrativa colonial e em incrementar a
população, a agricultura e o comércio do Império português. As mudanças sugeridas atingiram o processo de
levantamento nominativo das populações, que foi enriquecido com novos quesitos, mas fundamentalmente
estabeleceram novas sistemáticas na elaboração e na tabulação dos dados censitários extraídos das listas de
habitantes. Além do mais, elaboraram-se modelos de tabelas econômicas contendo dados sobre consumo,
importação, preços e movimento de navios, que deveriam complementar os dados demográficos. Os “Maços de
População” são estruturados como listas nominativas anuais, que relacionam informações detalhadas sobre cada
indivíduo, livre ou escravo, por domicílio: nome, idade, grau de parentesco ou de relação com o chefe do
domicílio, estado conjugal, cor, naturalidade e ocupação, além dos dados sobre a atividade econômica do
domicílio. Os domicílios de cada vila eram reunidos por Companhia de Ordenança, em maior ou menor número,
dependendo das dimensões da população. Ao final, tabelas (“mapas”) resumiam as informações demográficas e
econômicas por vila, permitindo a tabulação final dos dados referentes a todo o território paulista. Disponível em
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/recenseando.php. Acessado em 12 de Abril de 2010.
27 

dos escravos merece atenção.36 Com relação à economia paulistana, seguem algumas

considerações de Luna:

[...] Apesar das diferenças regionais e modificações ao longo do período


analisado (1777-1829), a agricultura manteve-se como a atividade
econômica fundamental em São Paulo. Inicialmente, a maioria dos locais
estudados baseava sua economia no cultivo de gêneros de subsistência, tal
como arroz, milho, feijão e na pecuária. Estes produtos representavam uma
base de autoconsumo e a principal fonte de renda das agriculturas, pela
venda dos excedentes. Ao longo do tempo, algumas vilas voltaram-se à
produção de gêneros dedicados ao mercado externo; as áreas mais ricas e
importantes dedicavam-se ao processamento de açúcar, como Itu, Campinas
e Porto Feliz. Até 1829, o café, principal produto da economia paulista na
segunda metade do século XIX, ainda encontrava-se em fase inicial. Neste
ano, entre as 25 localidades, apenas na vila de Areias, localizada no Vale do
Paraíba, o café consolidara-se efetivamente. Em Jacareí e Lorena, a
produção avançava, mas em menor escala. Nas demais ocorriam cultivos
esparsos, com pouca representatividade em termos de produção e força de
trabalho. O fumo e o algodão, outros produtos de exportação da região, não
se comparavam economicamente ao açúcar [...]37.

Os engenhos, que passaram a se multiplicar em ritmo inédito no final do século XVIII,

fizeram com que a economia paulista ganhasse pujança e participasse com mais força do

mercado atlântico. A produção açucareira impulsionou, consideravelmente, o crescimento da

população. A vinda de imigrantes de outras regiões da colônia e a aquisição acelerada de

escravos, para compor a mão de obra na produção do açúcar, contribuíram para a elevação

dos índices populacionais.

As duas primeiras décadas do século XIX assistiram à explosão do açúcar, com a

montagem de novos engenhos, persistindo como tendência e motivando a expansão

colonizadora de novas terras.38

Para este estudo, é importante ressaltar que o crescimento do número fazendas

produtoras de açúcar modificaram o cotidiano cultural e social paulista, não somente pelo

grande número de escravos que passaram a integrar a população, como também o aumento
                                                            
36
LUNA, Francisco Vidal. Características demográficas dos escravos de São Paulo (1777-1829). Revista Estudos
Econômicos, São Paulo, 22 (3): 443-483 set/dez 1992. O autor esclarece que os censos realizavam-se de forma
relativamente homogênea no período, embora existam Listas Nominativas para algumas localidades esparsas em
períodos anteriores e posteriores, com diferente formato e menor riqueza de detalhes.
37
IDEM.
38
SILVA, M.B.N da. op. cit., p. 158-159
28 

considerável do número de pessoas que caminhavam pela cidade, uma vez que, por conta da

confluência de rios importantes e sua condição de eixo de caminhos fluviais e terrestres, São

Paulo tornou-se um núcleo urbano central, com relevante presença de escravos caminhando e

trabalhando pelas ruas.

Em São Paulo a desigualdade na distribuição de renda deixava os grupos pobres cada

vez mais pobres, enquanto que os ricos arrolavam uma fortuna cada vez maior.

Incontestavelmente, esse processo interferiu profundamente na sociabilidade da malha urbana

de São Paulo. O histórico da economia paulista denuncia os contrastes sociais existentes na

cidade. Francisco Vidal Luna e Herbert Klein39, em um estudo sobre a escravidão africana na

produção de alimentos em São Paulo no século XIX, alertam que o modo de produção, os

gêneros produzidos e a quantidade de escravos refletem uma São Paulo economicamente e

socialmente desigual. Nota-se que, em 1804, o elevado percentual de 86% dos agricultores
40
proprietários de escravos dedicava-se à produção de alimentos , ou seja, produtos típicos

para o abastecimento local como milho, feijão, toucinho, arroz, mandioca e a produção de

gado. Tais agricultores controlavam 70% da mão de obra cativa.41

Em contrapartida, 14% dos agricultores proprietários de escravos e produtores de

exportáveis: café, açúcar, tabaco e aguardente, controlavam 30% da mão de obra cativa no

mesmo ano. Ainda de acordo com os autores, em contraste com os proprietários de escravos

                                                            
39
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN Herbert S. Escravidão africana na produção de alimentos - São Paulo no
século XIX. Revista de Estudos Econômicos. Vol. 40, n. 2. São Paulo, jun/2010.
40
Os autores refletem que a economia paulista: [...] baseou-se na produção de gêneros para consumo familiar e
abastecimento de mercados locais. Com o passar do tempo, cada vez mais o excedente passou a ser
comercializado entre as várias regiões da capitania e também com outras capitanias. Isso ocorreu, especialmente
a partir do início do século XVIII, quando São Paulo tornou-se uma importante produtora para as recém-abertas
minas de ouro em Minas Gerais. Mesmo depois do crescimento das exportações do açúcar e do café, aquela
produção permaneceu como uma parte fundamental da economia, mantendo uma estreita associação com as
novas culturas de exportação. Desde os primeiros tempos, os alimentos básicos – milho, arroz, feijão e carnes –
foram produzidos em todas as partes de São Paulo. Tanto no litoral como no planalto. Havia também a produção
especializada de artigos como tabaco, a aguardente, a erva-mate e a criação de animais. O processamento de
toucinho era também importante em todas as áreas ocupadas e consumido, em sua maioria, na própria unidade
familiar [...].
41
Importante esclarecer que apesar de ser notável a participação dos escravos e seus proprietários nesse setor,
pois cerca de um quarto dos domicílios produtores de alimentos continha escravos, a maioria das unidades
produtoras do gênero não tinha escravos e dependia do trabalho familiar.
29 

que produziam exportáveis, os agricultores com escravos dedicados ao cultivo de alimentos

tinham em geral pequenos plantéis, sendo que os que tinham cinco escravos ou menos

representavam dois terços desses proprietários.

Conclui-se então que a pequena lavoura não desapareceu. Se analisados os números,

uma pequena parcela de produtores de exportáveis detinha um número maior de escravos e

plantações em maior escala produzindo para exportação, enquanto a maioria dos produtores

de alimentos, como feijão, mandioca, milho, arroz, toucinho ou criação de gado, abastecia o

mercado interno e dependia do trabalho familiar ou tinha no máximo, cinco escravos.

Em São Paulo o trabalho dos escravos tinha também forte impacto na rotina social e

no espaço urbano, uma vez que passava, obrigatoriamente, pelos chafarizes, pelas ruas e pelas

pontes da cidade, deixando um rastro de balbúrdia. Esses escravos criavam diferentes tipos de

laços com uma enorme diversidade de pessoas, fossem os brancos livres, os forros, os

senhores, as autoridades e os eclesiásticos.

Os negros foram vistos como um grupo social irmanado, cadenciado pelos cânticos

africanos, que entoavam as festas e as cerimônias fúnebres.

Aos olhos das elites locais eram vistos como perigosos, dado que os escravos, os

forros e os homens negros e livres, juntamente com os escravos fugidos, se abrigavam na

cidade e em seus entornos e, juntos, se tornavam desordeiros e indisciplinados, o que gerava

conflitos com os outros grupos da sociedade ou entre eles mesmos.

O escravo em São Paulo, por vezes, era alguém a ser temido, agressivo, que constrói

laços perigosos com fugitivos e quilombolas. No comércio ambulante, por exemplo,

coexistiam escravos de ganho e alugados, que se alternavam no serviço doméstico de seus

proprietários. É impressionante como tinham focos diferentes de circulação e de organização


30 

da sobrevivência. Desta maneira estavam unidos escravos e homens livres, os forros e os

homens brancos mais pobres, formando um vínculo social significativo.42

Era com as relações sociais inerentes ao pequeno comércio ambulante que as escravas

reconstruíam seus laços primários para além do espaço doméstico, chegando a improvisar

uma vida comunitária intensa; prática dissimulada de uma resistência que permitia a sua

sobrevivência e devolvia à sua vida a dimensão social, arrebatada pelo tráfico.

Quitutes de toda espécie eram vendidos no centro de São Paulo em pequenos

tabuleiros forrados com toalhas brancas alumiadas de noite por velas de sebo pelas escravas

de certas famílias, que estacionavam nas escadas de pedra que havia diante da Igreja da

Misericórdia. Seus pregões decerto ecoavam docemente – quase como cantiga de ninar –

dentro da silenciosa noite paulistana. Dos mil e um serviços prestados pelos negros nas ruas,

sabe-se que tiravam partido seus donos remediados e endinheirados. 43 No livro Quotidiano e

poder em São Paulo no século XIX, Maria Odila ressalta a atuação das escravas de ganho que

circulavam, diariamente, pela área urbana da cidade:

[...] Escravas de tabuleiro, vendendo quitutes e biscoitos, alternavam-se


como vendedoras (livres, caipiras, mestiças) de garapa, aluá, saúvas fêmeas
e peixes. Focos diferentes de organização e circulação da sobrevivência, de
que participavam escravos e livres, brancos pobres e forros. Acrescentava-se
às demais formas de comércio de rua, principalmente à noite, depois das oito
horas, um comércio de vinténs mais específico de escravos: aguardente,
fumo, arruda, frangos, punhais, velas, velas, cachimbos e estatuetas de barro
[...]44.

Outra obra que trata dessas pequenas experiências de liberdade e o espaço de atuação

dos escravos é Das cores do silêncio: a escravidão no sudeste do século XIX, de Hebe Maria

                                                            
42
Ver DIAS, M. O. L. da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasilense, 1995, p.
157. A autora menciona a área urbana repleta de matagais, pesca e caça, ratifica o favorecimento da coleta e da
subsistência improvisada: [...] tornando possível aos escravos familiarizar-se com técnicas indígenas de obter
iguarias do sertão, com o conhecimento topográfico necessário para saber onde se esconder, fugir, defender-se.
43
SAMARA, E. de M. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37-38.
44
DIAS, M. O. L. da S. op.cit, p. 156.
31 

Mattos de Castro.45 Fica claro que um tipo particular de laço foi fundamental para a adaptação

do escravo a diferentes vivências: o laço familiar, apesar da complexidade do termo familiar:

[...] Numa sociedade em que os processos de desenraizamento e as relações


pessoais exerciam papéis estruturais, o acesso às relações familiares não
pode ser tomado como um dado natural, nem a mobilidade como indicador
de autonomia. Ambos os processos só encontram significação quando
pensados em conjunto, como faces de uma mesma moeda [...]46.

Esta família, que foi construída pelos escravos na caminhada por diferentes culturas,

espaços sociais e geográficos, não pode ser entendida como mera extensão da família

senhorial, tendo os escravos alcançado um nível relevante de estabilidade familiar em

algumas regiões e, por vezes, um tanto próxima da experiência dos homens livres pobres, com

os quais tinham convivência direta.

Imprescindível mencionar que, na virada do XVIII para o XIX, a população escrava de

São Paulo se misturava com a população pobre e liberta, intensificando não apenas os

conflitos, mas também os laços de socialização entre eles.

A historiografia nas últimas décadas mostra o escravo integrado em uma complexa

teia social, movimentando-se constantemente nessa rede de sociabilidade que nasce das

práticas informais nas ruas e vielas da cidade de São Paulo, configurada principalmente pela

dispersão humana. A convivência de culturas diferentes e a forte tensão social também são

características que acompanharão os processos de urbanização e de cosmopolitização.

As recentes preocupações da historiografia com a descoberta de histórias cotidianas

têm favorecido estudos que contemplam aqueles que também eram sujeitos de sua história.

Não os donos do poder, mas os escravos, escravos urbanos, escravas divorciadas, forros,

lavadeiras, quitandeiras que circulavam pela cidade convivendo lado a lado com estudantes,

homens e mulheres livres, pobres imigrantes e com todos aqueles que foram atraídos por
                                                            
45
CASTRO, H. M. M. de. Das cores do silêncio: a escravidão no sudeste do século XIX. São Paulo: Nova
Fronteira, 1993.
46
IDEM, p.63.
32 

possibilidades de ganho em uma São Paulo que não crescia de forma democrática. Os grupos

das classes médias se ampliavam na cidade, vivendo de forma instável, constituindo famílias

ambulantes.47

[...] O processo de urbanização e cosmopolitização de São Paulo e do Rio de


Janeiro, estava marcado pela convivência de culturas diferentes e por forte
tensão social. É enriquecedora a experiência humana de conviver com
personagens de São Paulo numa época em que viviam lado a lado elites e
remediados, professores da faculdade de direito e imigrantes, escravos e
relojoeiros alemães e sentir paulatinamente o progresso afastá-los uns dos
outros [...]48.

A Capitania de São Paulo recebia pessoas que chegavam sozinhas para construir uma

história, sem ter bases familiares prévias e o que conseguiam, na maior parte das vezes, era

uma estabilidade precária, escapando do nível mais baixo, mas ainda numa situação frágil49

Com um estilo de vida pautado pela simplicidade, conviviam com os escravos, que chegavam

a carros puxados por bois, circulavam pelos chafarizes, ruas e pontos da cidade. Maria Odila

salienta que, na época da independência, sabia-se que quase 40% dos moradores da cidade

eram mulheres sós, chefes de família, muitas delas concubinas e mães solteiras.50

Mulheres sós – de maridos ausentes – como esclarece a historiadora, eram parte

integrante da tradição da Vila desde o século XVII. [...] Elas passaram a atrair a atenção das

autoridades em ofícios ou relatórios para o Reino nas últimas décadas do século XVIII, após o

impacto da moda ilustrada e do reformismo europeizante que tomou conta das elites [...]51.

O burburinho nas ruas mal calçadas e pouco iluminadas52, onde residências

misturavam-se aos estabelecimentos comerciais, e, negociantes abastados de fazendas

                                                            
47
OLIVEIRA, Maria Luíza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da
urbanização: São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p.13.
48
IDEM, p.15-16.
49
IBIDEM, p. 13.
50
DIAS, M.O. L. da S. op. cit. p. 29
51
IDEM, p.29.
52
ASSUNÇÃO, op.cit.
33 

vendiam e negociavam seus produtos próximos das quitandeiras ambulantes, geravam muitas

vezes situações conflituosas.

Na cidade do falatório e disse me disse, onde o público e o privado eram questões

ainda confusas e desajustadas, como entender o que acontecia porta adentro, atrás de uma

árvore, dentro do armazém, ou até em uma simples conversa entre uma lavadeira e um

estudante nos arredores do Largo São Francisco? O olhar dos viajantes contribui muito para

visualizarmos algumas especificidades da vivência em São Paulo. Maria Odila relata a visão

dos viajantes sobre a cidade:

[...] Nos depoimentos dos viajantes, fora o burburinho e o movimento das


ruas mais centrais, alguns estereótipos pitorescos trazem a força dos
preconceitos, a ênfase na cor local e a conseqüente idealidade abstrata de
imagens desvinculadas de seu contexto histórico. Zaluar comenta a tensão
latente na população entre a boêmia dos estudantes europeizados e a gente
furtiva da terra, que não pareciam feitos um para o outro, nem lhe parecia
que pudessem conciliar-se. Esse viajante, como outros que o antecederam,
transmitem um vulto de criação indiferentemente deles, dos estudantes ou
dos sobradões de balcão de ferro: o das beatas de manta de beata ou de
mantilhas negras, a percorrer as ruas com o rosário na mão, rezando um
terço no oratório da esquina. [...] onde as beatas [...] Nas ruas mal calçadas
se abalroam, de rosário na mão [...] 53. Os observadores contemporâneos
também descreveram negras de tabuleiro sentadas nas calçadas da Rua da
Quitanda Velha, durante o dia ou à noite, sob a iluminação fumacenta dos
rolos de cera escura, pregados nos tabuleiros ou socados nos turbantes,
quando caminhavam lentamente, jogando sombras pelo caminho [...]54.

Pode-se dizer que São Paulo era uma cidade com alguma vocação para a movimentação

incessante de seus habitantes. Mas a intimidade destas relações faz com que aquela São Paulo,

da virada do século XVIII para o XIX, peça aos seus observadores uma visão microscópica

ou, como propõe Maria Odila55, uma leitura dos documentos às avessas ou nas entrelinhas,

                                                            
53
Ver ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo. In: DIAS, M. O. L. da S.
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 22
54
DIAS, M. O. L. da S. op.cit.p. 22.
55
DIAS, Maria Odila da Silva Leite. Mulheres sem história. Revista de História, n. 114, jan/jun, 1983, p. 31-45.
34 

buscando mapear as relações entre homens e mulheres e a inserção destes sujeitos históricos

na sociedade.56

Nem mesmo a iconografia foi capaz de captar os turbilhões sociais paulistanos. A foto

registrada por Militão Augusto de Azevedo em 1862, ainda que em um período posterior ao

estudado, permite uma análise de como as lentes de uma máquina viriam a captar o

movimento nas ruas e becos de São Paulo.

A imagem57 parece refletir, já na

segunda metade do século XIX, uma

cidade bucólica e silenciosa. Ao fundo,

por conta das lentes que ainda eram

incapazes de focar pessoas ou objetos

em movimento, as imagens das pessoas

que caminham pela rua estão borradas.

A leitura dessa imagem diz muito sobre o imaginário criado sobre a cidade. Uma vez que as

únicas figuras nítidas são as que estavam paradas no momento do registro, vincula-se à cidade

uma noção de monotonia. Como reflete Foucault: [...] a essência manifestada, a invisibilidade

profunda do que se vê é solidária com a invisibilidade daquele que vê – malgrado os espelhos,

os reflexos, as imitações, os retratos [...]58. Ressalto, portanto, que a imagem de uma cidade

entregue ao marasmo, onde tudo parece assentado e pouco movimentado, deve dar lugar ao

                                                            
56
Ver ZANNATA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-
1822). Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2005.
57
Rua do Rosário 1862/63. MAJOLO, op.cit. O autor, ao analisar as Atas da Câmara neste período, encontra
descrições do que chamou de banalidades do dia a dia e muitos trechos de histórias de vida. São brigas,
infrações, conchavos políticos, entre outros desacertos mediados pelos Juízes de Paz, nomeados pelos vereadores
após a Constituição de 1824, com a função de mediadores entre a população e a Câmara. Ao contrário do que
parece estar refletido na imagem, as Atas apresentam uma cidade de relações densas e figuras políticas com
pouco controle sobre a população e principalmente a partir 1828 [...] uma Câmara Municipal enfraquecida e sem
contar plenamente com a força destinada aos Juízes de Paz, começa a conviver mais intimamente com o
dinamismo das ruas. As vereanças tornaram-se então caóticas, bagunçadas, perdidas num turbilhão de
requerimentos [...].
58
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 20.
35 

dinamismo das relações sociais nas ruas paulistanas, que as lentes não foram capazes de

captar.

2. Matrimônios

Os matrimônios, no século XIX, se realizavam em círculos limitados, estavam sujeitos

a certos padrões e normas que agrupavam socialmente os indivíduos, em função da origem e

da posição econômica ocupada. Na escolha do cônjuge os fatores biológicos, como idade e

aparência física, encontravam-se subjugados à estrutura mercantil do casamento. O processo

de escolha funcionava, essencialmente, como um sistema de mercado, ainda que este fato não

eliminasse a fusão dos grupos sociais e raciais que ocorreu paralelamente, através das uniões

esporádicas que dinamizavam as relações entre os sexos.59

Era também por meio do casamento que poderiam emergir alianças entre indivíduos

pertencentes a classes sociais divergentes. Os estrangeiros, buscando a ascensão social,

também poderiam se fazer valer do matrimônio. Sabe-se que os comerciantes portugueses

tinham acesso às famílias tradicionais paulistanas através do casamento, propiciando rápida

integração com a família da esposa e, ainda, na esfera de influência política e social do

sogro.60

Alzira Campos, ao debruçar-se sobre inventários e testamentos, apontou a posição

privilegiada ocupada pelos dotes na economia paulista, sendo responsável, em ampla margem,

pela transferência de bens entre os moradores de São Paulo. A preocupação com o dote (pago,

não pago, prometidos ou pagos em parte) consolida o embate financeiro entre credores ou

devedores da “capitalização do casamento”.61

                                                            
59
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial: caminhos e descaminhos. São Paulo: Paz
e Terra, 2003, p. 104-133.
60
KUSNESOF, Elizabeth Anne. Social mobility and immobility in urban change. São Paulo: 1765 to 1820. American
Historical Association, 1974, p.8.
61
CAMPOS, A. L. de A. op. cit. p. 133
36 

Os dotes deviam adequar-se aos limites econômicos das famílias. As classes mais

humildes buscavam eliminar o dote através de pedidos de dispensa. Nestes pedidos são

comuns as [...] alegações sobre a modicidade do dote da moça, o que a impediria de encontrar

companheiro de igualha [...]62. Já entre as elites, a prática do dote em São Paulo começou a

entrar em declínio na segunda metade do século XIX, como avaliou Muriel Nazzari. A partir

daí, o casamento deixou de [...] constituir a estrutura de um empreendimento para ser uma

entidade distinta dos negócios da família [...]63. Mas o casamento não protagonizava somente

nos negócios das famílias; constituía-se ainda como uma tentativa da Igreja de evitar as

relações ilícitas e os pecados da carne.

A cerimônia de casamento era um ato social de grande importância. A celebração

legal implicava em despesas, direitos e obrigações recíprocas de fidelidade e de assistência.

Todavia, o alto custo era um entrave à legitimação das famílias, o que favorecia as uniões

ilícitas entre as camadas mais pobres da população. Por isso, os homens pobres relutavam em

formar laços legítimos.

Apesar dos apelos da Igreja para que os casais se unissem em matrimônio e

formassem uma família legítima aos olhos da fé, as uniões ilícitas ainda ocupavam muito

espaço na sociedade paulistana deste período. Segundo Gomes, a questão das taxas para

casamento volta e meia ocupava os debates entre os poderes temporal e espiritual:

[...] A questão da cobrança de taxas para casamento provocou debates


acalorados entre os poderes temporal e espiritual no período colonial. No dia
8 de abril de 1771, o pároco de Iguatemi, padre Pasqual Correia Leite,
recebeu uma carta de dom Luiz Antonio de Souza. O assunto abordado foi a
cobrança das taxas que impediam os nubentes de contrair o matrimônio

                                                            
62
IDEM, p. 135
63
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil,
(1600-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 151. Segundo a autora, as mulheres da elite deixaram
de ser objeto de transação financeira e parte integrante dos negócios da família para contraírem outra
representatividade nesta sociedade na qual [...] tanto filhos como filhas adquiriram liberdade na escolha de seus
cônjuges. Essa liberdade era, ela própria, conseqüência do declínio da prática do dote [...]. Cf. ZANNATA, Aline
Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-1822). Dissertação de
Mestrado: Universidade Estadual de Campinas, 2005.
37 

[...]64. Em 2 de setembro de 1797, o procurador do conselho, guarda-mor


Manuel Alvares Alvim, ao recordar à câmara eclesiástica a existência de um
recurso feito no ano de 1790 junto a corte para isentar os vassalos das
provisões de casamento, recurso esse que fora cumprido com dignidade pelo
antigo prelado, denunciava que a atual câmara eclesiástica estava
descumprindo uma ordem de Sua Majestade, a rainha, cobrando entre 3 mil
e 4 mil réis. Solicitou também providencias ao bispo, o qual deu sua resposta
e recorreu ao príncipe regente [...]65.

Possivelmente a população sofria uma série de pressões para celebrar uniões em

função das normas impostas pela religião, sendo que, ao clero, competia atuar neste sentido.

A interferência da Igreja é pertinente, uma vez que o matrimônio não é apenas um contrato,

mas também um sacramento, conforme as condições disciplinares consagradas pelo Concílio

de Trento, que invalidavam, nos seus efeitos, os casamentos não celebrados pela Igreja. 66

Neste quadro, diante da complexidade de todos os fatores que envolvem o

matrimônio, o amor como estímulo parece ter ocupado um lugar de menor importância,

aparecendo mais como conseqüência da vida a dois e da convivência em comum.

Nos processos de divórcio, são mais comuns as referências à estima, à dedicação e à

gratidão do que realmente ao amor entre os cônjuges. Além disso, os padrões de moralidade

eram mais flexíveis, havia pouco a se dividir e oferecia-se uma vida simples.67

                                                            
64
O documento a seguir demonstra a dificuldade de se tratar deste assunto [recorrente] desde o período da
instalação do bispado de São Paulo até a Independência do Brasil: [...] Consta-me que os novos moradores dessa
povoação se acham totalmente agravados e desgostosos pelo ônus que V.M. lhes quer por pagar cada pessoa
meia pataca para sua desobriga; e juntamente alguns dos que ai casaram se acham vexados com excomunhões
pela sua pobreza lhes não permitir terem pago as exuberantes despesas que se lhe fizeram [...] como bom pastor
atalhe aquelas consequências que podem seguir-se, usando com eles toda consideração e equidade com que a
Igreja costuma favorecer e não escandalizar [AESP, Doc. Interessantes, Vol. 6, p. 175-176]. GOMES, Edgar da
Silva. Catolicismo em São Paulo (1749-1764). In: Catolicismo em São Paulo. SOUZA, N. (Org.). São Paulo:
Paulinas, 2004, p. 188-189.
65
GOMES, Edgar da Silva. Catolicismo em São Paulo (1749-1764) In Catolicismo em São Paulo. SOUZA, N.
(Org.). São Paulo: Paulinas, p. 222.
66
Cf. ALBERIGO, G. (Org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995. Convocado em 1545
pelo Papa Paulo III, o Concílio de Trento tinha por fim estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos. Foi o
mais longo concílio da história da Igreja, realizado de 1545 até 1563. Emitiu numerosos decretos disciplinares e
especificou claramente as doutrinas católicas quanto à salvação, aos sacramentos e ao canône bíblico, em
oposição ao protestantismo. Unificou o ritual da missa, abolindo as variações locais, instituindo a chamada
"Missa Tridentina" (referência à cidade de Trento, onde o concílio transcorreu). Regulou as obrigações dos
bispos. Confirmou a presença de Cristo na Eucaristia. Foram criados seminários como centros de formação
sacerdotal e reconheceu-se a superioridade do papa sobre a assembleia conciliar. Foi instituído o índice de livros
proibidos (o Index Librorum Prohibitorum) e reorganizada a Inquisição.
67
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX. Caderno de
pesquisa, São Paulo, (37): 17-25, Mai/ 1981.
38 

Acrescenta-se ainda a violência, que parecia estar fortemente intrincada no cotidiano

de muitos casais paulistas. Sabe-se que, para obtenção de um divórcio, a Igreja considerava a

violência física e o espancamento os mais graves percalços da convivência a dois.

Provavelmente, por isso, em todos os processos as mulheres relatam que recebiam pancadas

tão violentas, que suas vidas estavam em perigo se obrigadas a continuar dividindo o teto com

seus esposos.

Os limites da verdade nestas afirmações são de impossível julgamento, contudo é

fato que questões financeiras, concubinato com escravas e até mesmo com índias podiam ser

os verdadeiros motivos na tentativa de emancipação feminina, encobertos pelas alegações de

espancamentos e tentativas de homicídio.

Para as escravas essa emancipação seria obtida, exclusivamente, com a autorização

do senhor. O problema é que este mesmo senhor foi o responsável pela união indesejada. Para

as forras a saída era se dirigir diretamente ao Tribunal Eclesiástico. Rita, uma parda forra da

Vila de Paraíba, casada com Joaquim há quatro anos, obrigada a casar enquanto ainda era

cativa, pede ao Tribunal Eclesiástico o divórcio por conta das bebedeiras do marido, que

sempre terminavam em surras e xingamentos.

[...] a justificante Rita, parda forra, moradora da vila de Paraíba, sendo


cazada há quatro annos com Joaquim Marques tem se portado com honra e
gratidão, sempre respeitando o marido [...] que vive embriagado, tem vivido
nesta villa em dar escândalos, além de ser muito impertinente o referido
Joaquim. [...] disse a justificante, em segundo lugar, que pelo contrário, se
tem portado o referido marido com escândalos públicos e notórios,
injuriando-a de palavras, tratando-a como a mais vil do mundo [...]68

Se isso de fato aconteceu como descrito no trecho acima, ou se Rita buscava

dissolver uma união delimitada somente nos interesses de seu ex-senhor, não é possível saber

com certeza. O fato é que mulheres escravas eram obrigadas a se casar de acordo com a

vontade de seus senhores, todavia, apesar da indissolubilidade do sacramento do matrimônio,


                                                            
68
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 84.
39 

forras e escravas com a devida permissão de seus senhores buscavam, frente ao Tribunal

Eclesiástico, a separação de corpos; o fim da obrigação de dividir o teto e a cama com seus

companheiros.

A constatação relevante diante do processo de Rita e Joaquim citado ao início deste

capítulo é, pois, ainda que unidos por um homem que detinha poder sobre seus corpos e vidas,

diante da construção de um parentesco forçado; é possível notar o ressoar da busca pela

estabilidade e controle da vida familiar no cativeiro, paradoxalmente, através de um processo

de divórcio.

Explico: ao senhor, ávido de homens e mulheres pacificados, a criação de

parentescos escravos seria interessante, poderia evitar fugas e desobediências, podendo

assegurar ainda domínio sobre os braços de trabalho dos homens e os ventres lucrativos das

mulheres; ao escravo, arrancado de sua geografia ou mesmo os nascidos no berço da

escravidão, criavam e recriavam o parentesco. Como?

O senhor os une, eles se desunem, visando encontrar alguma estabilidade familiar e

conjugal. Enquanto escravos buscavam incessantemente a permissão de seus senhores para o

divórcio, os forros recorriam diretamente ao Tribunal Eclesiástico. A vida no cativeiro era

complexa, assim como o comportamento conjugal e a construção do parentesco escravo.

3. “Sabe-se que a justificante por ameaças de seu senhor foi obrigada a cazar com o
justificado, seu marido”69: Matrimônio entre escravos.

[...] Nas semanas precedentes ao casamento, fizeram-se os preparativos


católicos usuais: assinaram-se papéis, pagaram-se taxas, publicaram-se os
banhos. Então, num dia de primavera, na fazenda Rio Claro, na província de
São Paulo, um padre, que viera da vila próxima de Santo Antônio da
Paraibuna, preparou-se para celebrar a missa na capela da fazenda. Com os
bancos arrumados, ele aprontou o altar com castiçais, de quatro palmos de
altura, missal, sino e cálice, e vestiu os trajes sagrados sobre a sua batina
preta. Duas testemunhas estavam a postos, enquanto o noivo esperava á
porta da capela. A jovem noiva, que demorou a se vestir da melhor forma,
                                                            
69
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio.Estante 15, Gaveta 16, n. 245. 1823.
40 

finalmente se apresentou para a cerimônia. Dita a missa dadas as bênçãos


matrimoniais, o padre partiu da fazenda e retornou á sua casa na vila [...]70.

Este trecho pertence à obra de Sandra Lauderdale Graham: Caetana diz não e retrata

os preparativos para a união entre dois escravos. Essa jovem, com talvez dezessete anos, e

Custódio com vinte e tantos anos, companheiros de escravidão ou parceiros, termo que os

reconhecia como pertencentes ao mesmo senhor, o capitão Luís Mariano de Tolosa, dono da

Fazenda Rio Claro. A história retrata uma realidade dos cativos: [...] revelam a fragilíssima

margem de opção por parceiros a eles reservada [...]71. O processo de anulação de matrimônio

movido por Caetana esteve sob exame das autoridades religiosas por quase cinco anos. Teve

início em São Paulo, em fevereiro de 1836 e terminou na Bahia, em 1840.72

Parte dos autos do processo de divórcio de Caetana, que ainda estão no Arquivo da

Cúria Metropolitana de São Paulo, contam um pouco da história da jovem escrava. Esta

história resgata importantes aspectos da vivência em São Paulo e quais os impactos que

poderiam advir de um casamento ou uma anulação – no caso de Caetana – na vida de jovens

escravas que sofriam com uma prática comum da época: os senhores que obrigavam seus

escravos a se casarem.

Na petição de Caetana consta que, no ano de 1836, seu senhor, o Capitão Tolosa, a

chamou e lhe disse que iria casá-la com um dos escravos de sua propriedade, pelo qual

Caetana não sentia nada a não ser repugnância. O desespero teria tomado conta da jovem e

apesar do tom positivo usado pelo Capitão, a fim de convencê-la, Caetana teve coragem para

dizer a ele que não queria se casar. Por fim, foi convencida diante do argumento do Capitão

de que não queria dentro de sua casa, para servir suas filhas, uma escrava solteira. Ela acabou

se casando, seguindo o desejo de Tolosa.

                                                            
70
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: Histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira.
São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 23
71
CAMPOS, A. L de A. op.cit. p. 536
72
GRAHAM, S. L. op. cit., p. 25
41 

Mas Caetana tirou uma carta da manga; em um ato de desobediência, não permitiu

que o marido a tocasse nos três dias seguintes ao casamento. No quarto dia, recebeu a notícia

de que o marido, com a ajuda de um tio, havia decidido usar de violência, com açoites e

práticas de tortura para obrigá-la a manter relações sexuais com ele. Amedrontada, Caetana

recorreu ao seu senhor, pedindo proteção e ajuda judicial para desfazer aquele casamento.
73
Tolosa consentiu, conservando-a em câmara separada. Consta ainda no longo processo –

que tem mais de 50 folhas – que não era somente o Capitão Tolosa que fazia pressão sobre

Caetana. Seus padrinhos, sendo a madrinha escrava da mesma casa, a quem a jovem escrava

devia obediência e gratidão, ordenaram que Caetana acatasse ao seu senhor e se casasse ainda

que contra vontade. Nota-se em trecho dos autos:

[...] Diz Caetana, escrava do Capitão Luis Mariano de Tolosa, que foi pelo
mesmo obrigada a se cazar com Francisco, escravo da mesma caza. A
justificante, propondo a ação de nullidade de matrimônio, com a licença do
dito Capitão Luis Mariano Tolosa. [...] o dito Francisco obrigando-a à
consumação do matrimônio, com violência e injúrias [...]74.

Caetana, assim como outras escravas, na tentativa de pôr fim ao seu casamento

indesejado e ao qual foram obrigadas a comparecer por vontade de seu senhor, trouxeram à

tona uma realidade que muitos desconheciam: escravos também se casavam e se separavam,

sob os olhos e à vigilância da Igreja católica.

Mas um casamento entre escravos não é fato que se espera encontrar. A versão comum

é que aos escravos era negada a oportunidade de se casarem e formarem um lar. Em 1707, um

sínodo católico reunido em Salvador, então capital da colônia, publicou uma compilação de

leis diocesanas conhecida como Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Essas leis

                                                            
73
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.
74
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.
42 

pretendiam ser condizentes com o direito canônico e com o Concílio de Trento e, ao mesmo

tempo, aplicáveis às circunstâncias especiais do Brasil. 75

O sínodo julgou necessário declarar que os escravos podiam casar [...] com outras

pessoas cativas ou livres [...] e seus senhores não deveriam impedi-los com ameaças ou [...]

máo tratamento [...]. A lei ainda advertia os senhores a não venderem um escravo casado para

um lugar tão distante que o cônjuge não pudesse segui-lo, mas ao mesmo tempo, as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia também assegurava ao senhor que um

escravo continuava cativo, mesmo casado com uma pessoa livre ou liberta, e [...] estava

obrigado a continuar servindo seu senhor, ainda que isso significasse a separação de seu

marido ou sua esposa [...]76. Vale lembrar que a Igreja também pregava a proibição da

escravidão indígena; proibição esta que nunca foi respeitada. Neste sentido, torna-se

significativo ressaltar o limitado alcance das leis régias ou eclesiásticas no povoamento da

colônia.

A Igreja, ainda que incentivasse a prática do matrimônio, acabava por esbarrar em

suas próprias exigências. Tal como estabelecidas pelo Concílio de Trento em 1563, e

praticadas rotineiramente no Brasil católico dos séculos XVIII e XIX, as provas necessárias

de parentescos e a falta de impedimentos eram desanimadoras para os pobres em geral e, em

especial, para os escravos sendo muito complicadas para os seus senhores.

A Igreja pedia provas de que nenhum dos noivos tivesse sido casado antes, o que, por

sua vez, exigia que o padre de qualquer paróquia em que eles tivessem vivido quando adultos

por mais de seis meses fornecesse uma declaração por escrito de que o requerente era solteiro.

Obter tal documento era uma tarefa demorada e custosa que supunha alfabetização e

habilidades sociais que poucos escravos tinham condições de possuir. A prova de identidade e

                                                            
75
GRAHAM, S. L. op.cit. p. 50.
76
IDEM, p. 50-51.
43 

elegibilidade, a publicação de banhos, o pagamento do padre para realizar a missa – tudo

dependia do empenho dedicado do senhor, bem como contribuições do seu próprio bolso.77

É então surpreendente a quantidade de senhores que se empenharam para unirem seus

escravos em matrimônio. Uniões entre escravos não eram, desta forma, tão incomuns. A

questão não é porque tão poucos casamentos entre escravos, e sim por que tantos casamentos

entre escravos?

De acordo com Robert Slenes em Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na

formação da família escrava78, publicado em 1999, uma resposta plausível seria a de que os

senhores poderiam manter sua influência e seu domínio mais facilmente sobre um escravo ou

uma escrava que já tivessem formado uma família naquele espaço de convivência e uma fuga

implicaria em abandonar, principalmente, os filhos. Talvez seja também esse o motivo de o

número de mulheres fugitivas ser bem menor do que o de homens fugitivos. Os senhores

podem ter apelado para o instinto materno de suas escravas para evitarem as fugas e a

desobediência, já que para elas seria difícil deixar seus filhos para trás ou, em caso de fuga,

encontrariam muitas dificuldades para se mover num terreno difícil ou se esconderem com

facilidade carregando consigo crianças pequenas e dependentes.

Havia ainda o medo da represália aos parentes que ficavam para trás, outro recurso dos

senhores para impedir que seu bem mais caro e valioso se transformasse em grande prejuízo.

Para os senhores escravistas em São Paulo, poderia ser vantajoso permitir que seus escravos

mantivessem laços familiares estreitos.

A construção de vínculos sociais e familiares confiaria ao senhor algum controle,

ainda que indireto, sobre seus cativos. Silvia Lara traz considerações importantes acerca das

uniões escravas. Como observa a historiadora, [...] a existência do tráfico e sua intensidade,

associadas á necessidade de ampla exploração de mão de obra africana sob o regime de


                                                            
77
IBIDEM, p. 51.
78
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999,
p.149-197.
44 

escravidão, apontavam para uma pequena preocupação dos senhores quanto á reprodução

endógena do contingente de escravos [...]79.

As autoridades eclesiásticas também não deixaram de se preocupar com essa questão.

Lara cita Benci, Antonil e Ribeiro Rocha80, que já no início do século XVIII criticavam

veementemente o costume das uniões ilícitas tanto entre escravos, como entre senhores e

escravos e aconselhavam os senhores a casarem seus escravos conforme as leis católicas, já

que o sacramento do matrimônio tinha sido instituído [...] não só para propagação do gênero

humano, senão também [...] para remédio da concupiscência e para evitar pecados [...]81.

Antonil era ainda mais enfático quanto à preocupação com a reprodução escrava,

reprovando coices [...] principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas [...]82,

aconselhando os senhores a darem sobras das mesas aos filhos pequenos dos escravos a fim

de que eles [...] os sirvam de boa vontade e [...] se alegrem de lhes multiplicar servos e servas

[...] e tratá-los bem, já que [...] algumas escravas procuram de propósito o aborto, só para que

não cheguem os filhos de suas entranhas e padecer o que elas padecem [...]83.

A alta no preço dos escravos e a necessidade de mão de obra revelam um pouco da

racionalidade senhorial. Silvia Lara observa que, em carta dirigida a D. Rodrigo de Sousa

Coutinho, José Feliciano da Rocha Gameiro aborda a questão da mão de obra escrava e a alta

nos preços dos escravos, propondo a todos que compravam escravos para a agricultura que

comprassem o mesmo número de homens e mulheres cativas e, por meio do casamento,

aumentassem a população, livrando-se das despesas anuais com a compra de cativos.84

O aspecto desestimulante deste processo de união e socialização do escravo seria a

dificuldade de vender um escravo fortemente estabelecido em seu círculo social. Embora até
                                                            
79
LARA, op.cit, p. 220.
80
LARA, op.cit, p.220-2
81
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no Governo dos escravos (1705). São Paulo: Grijalbo, 1977,
p.102 105. Apud LARA, op.cit, p. 220-1.
82
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711). São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, p. 106-112 apud LARA, op.cit, p.221.
83
ANTONIL, op.cit, p. 120-132. Apud LARA, op.cit, p.221.
84
LARA, op.cit, p.221.
45 

1869 não houvesse nenhuma lei proibindo a venda separada de marido e mulher, a Igreja há

tempos se posicionava contra transações que colocassem obstáculos às uniões escravas. Mas,

como foi possível averiguar anteriormente, a Igreja por vezes era ignorada. O grande

problema seriam as fugas ou rebeliões por descontentamento.

Como na história não existe verdade absoluta, é razoável concluir que não há provas

concretas da intencionalidade dos senhores nas uniões entre seus escravos, não porque os

senhores não fossem astutos ou implacáveis, [...] mas porque não há dados que comprovem

uma política de comum acordo [...]85.

O matrimônio pode então ser interpretado como uma tentativa de ordenar a

sociedade, inclusive escravos, pois era preocupação de autoridades, clérigos e fazendeiros,

estimular os pobres e os escravos a honrarem seus votos matrimoniais e viver em famílias

estáveis.

4. “A justificante vendeu tudo que tinha, afim de cuidar de seu divórcio”86 - Divórcios:
conflitos porta afora.

Assim como um casamento legítimo poderia acontecer somente na Igreja, o processo

de divórcio no período colonial também dependia da aprovação da Igreja. A verdade é que as

pessoas recorriam exclusivamente à Igreja para resolver os impasses que tornavam a vida

conjugal intolerável. Eram as mulheres que mais se valiam deste recurso.

[...] Anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de Mil Oitocentos e


Hum aoz quatorze dias do mês de Dezembro do dito anno, nesta cidade de
São Paulo e no Cartório do Auditório Geral Eclesiástico[...] vendo aly me foi
apresentada huma petição por parte de Bárbara Oliveira e Moraes[...] para
efeito de justificar neste superior juízo[...] contra seu marido Salvador
Marianno de Camargo, morador na Freguesia de Cutia [...]87.
[...] Anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de Mil Oitocentos
e vinte e um, aoz dois dias do mês de Agosto nesta cidade de São Paulo e no
Cartório do Auditório Geral Eclesiástico onde me foi apresentada uma

                                                            
85
GRAHAM, S.L, op.cit. p.56.
86
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220. 1821.
87
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
46 

petiçam por parte de Gertrudez Maria de Jesus[...] contra seu marido


Antônio Pedro Moreira, morador da Villa de Jacarehy [...]88.
[...] Anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de Mil Oitocentos
e vinte e oito, aoz quinze dias do mês de Janeiro nesta cidade de São Paulo e
no Cartório do Auditório Geral Eclesiástico, para efeito de progredirem os
termos da ação de liberação de divórcio, entre a authora Dona Antônia
Justina Vieira contra seu marido Antônio Gonçalves de Oliveira, morador da
Villa de Guaratinguetá [...]89.

Os motivos variavam, mas o mais citado foi a violência masculina. Empurrões,

murros, pontapés, coices, esporadas, arrastões pelo chão, puxões de cabelo, batidas de cabeça

na parede são os mais comuns, além das tentativas de matar.

[...] seu marido a trata como escrava e a persegue, executando nella tantas
pancadas, dando-lhe bofetadas e arrancando facas para matá-la e por
repetidas vezes com perigo de vida [...] e por elle andar concubinado.90 [...]
ella justificante sempre foi obediente ao seu marido, cumprindo com elle
suas obrigações de mulher casada [...] dires a várias pessoas não aguentar
mais os impropérios que seu marido lhe faria [...] seu gênio áspero e colérico
[...] além do péssimo vício de se embriagar, se embarassou com outra mulher
escrava na mesma casa, com quem setem ajuntado carnalmente vivendo
manteridamente, contra todas as desposições das Salutares Leis Civis
Canônicas [...] gravíssima ofensa e total abandono [...]91.

Freqüentemente a separação ocorria devido às agressões físicas. Tanto escravas como

forras e brancas pobres alegavam sofrer constantemente com espancamentos, provocando

ferimentos e risco de vida.

O cansaço, o abandono do lar, a traição, a depauperação dos bens da família, os maus

tratos, a intolerância e a coação constituem aspectos de tensão da vida conjugal dos

paulistanos exaltados na documentação de divórcio e de anulação de matrimônio, permitindo

vislumbrar dimensões da vida familiar.

Em 1808, uma esposa conseguiu, a muito custo, obter a ajuda de um enteado, filho de

seu primeiro marido. Por ter reclamado com o marido de se concubinar com uma afilhada

                                                            
88
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
89
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
90
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 122.
91
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
47 

criada por ela, a esposa havia recebido muitas pancadas com cordas de couro, das quais

resultaram feridas profundas. Depois do incidente, o marido a havia fechado [...] em um

quarto, tirando a chave, a deixou por morta com ameaças de logo voltar e acabar de matá-la

[...]. De acordo com as testemunhas do processo, os escravos a tiraram do quarto, e ela [...] de

rastos se foi valer de seu enteado vizinho, que a socorreu, mandou sangrar e curar as chagas

[...]92.

Partindo dos relatos presentes nos autos, verifiquei que os objetos mais usados para

causar tais ferimentos foram cordas de couro, chicote, remo de canoa, vara cabo, palmatória,

pedaços de pau e laço dobrado. As pancadas eram por vezes tão violentas que, em certos

casos, a mulher era obrigada a ficar de cama por um tempo considerável, tendo de receber

cuidados e tratamento.

Eram freqüentes também os casos de infidelidade masculina, e são igualmente

recorrentes as relações ilícitas com as escravas que, na grande maioria das vezes, eram de

propriedade do casal. Nesse contexto, a relação se dá dentro de casa ou pelo menos no mesmo

sítio, repetindo-se geralmente a fórmula do triângulo amoroso vivendo junto. É o concubinato

que caracteriza este tipo de relação que, por vezes, duravam anos, resultando até em filhos

ilegítimos.93

Para efeito de comparação com outras regiões da colônia, destaco Marilda Santana

que, ao estudar as mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais, enfatiza os casos de

negras escravas denunciadas ao Juízo Eclesiástico por serem freqüentemente surpreendidas

em concubinato com seus senhores, sendo punidas por isso. Essas mulheres encontravam-se,

como afirmou a autora, [...] numa situação ambígua, quando amásias de seus senhores: nesta

                                                            
92
COSTA, R. L.D da, op.cit. p. 190-223.
93
IDEM, p.292-293.
48 

condição, se por um lado alcançavam alguns objetivos materiais e afetivos, por outro se

sujeitavam aos desígnios dos concubinos, tendo que se resignar ao papel de amantes [...]94.

Ao passo que Manolo Florentino e José Góes95, ao analisarem as famílias escravas e o

tráfico Atlântico no Rio de Janeiro entre 1790 e 1850, relatam um fato ocorrido em 1847. O

inspetor de quarteirão de Guarulhos, no Campo do Goitacazes tomou conhecimento da morte

de um senhor moço e de uma escrava de nome Joana. Ao entrar na sala da casa do jovem

senhor, encontrou Vicente José Ferreira caído no chão, com onze facadas no peito. Foi

informado, pela irmã de Vicente, que os assassinos eram dois escravos, de propriedade de seu

outro irmão. Mas a escrava Joana continuava desaparecida. O inspetor saiu então em busca da

moça. Quando a encontrou, à beira de um riacho, estava com o corpo dilacerado. Os dois

foram enterrados e começaram as buscas pelos assassinos. Ao serem encontrados,

confessaram: mataram Joana por ciúme da relação íntima que ela mantinha com o jovem

senhor Vicente José Ferreira96.

No clássico Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre afirma que:

[...] Introduzidas as mulheres africanas no Brasil dentro de condições


irregulares de vida sexual, a seu favor não se levantou nunca, como a favor
das índias, a voz poderosa dos padres da Companhia. De modo que por
muito tempo as relações entre colonos e mulheres africanas foram as de
franca lubricidade animal. Pura descarga de sentidos. Mas não que fossem as
negras que trouxessem da África nos instintos, no sangue, na carne, maior
violência sensual que as portuguesas ou as índias [...]97.

Percebe-se também que, quanto maior fosse a liberdade das escravas dentro das casas

paulistas, mais difícil poderia ser a situação da esposa. A presença efetiva da escrava se fazia

                                                            
94
SILVA, Marilda Santana. Dignidade e Transgressão: Mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais
(1748-1830). Campinas, São Paulo: Ed. Unicamp, 2001, p. 27.
95
FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro (1790-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
96
IDEM, p.76-78.
97
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2004, p. 516.
49 

notar pelo simples fato de tratar melhor dos assuntos domésticos do que a esposa,

disciplinando e organizando o trabalho doméstico; sendo útil e necessária.

A perda do controle feminino, com relação aos assuntos domésticos e às atenções

masculinas, fica bem evidente em processo de divórcio de 1821, onde a esposa se queixa da

falta de atenção do marido para com ela, pois quase nunca se falavam e:

[...] Tendo seu marido um espírito fogoso e frenético e agradar uma escrava
da caza [...] ele dedicava seus mimos a uma escrava de nome Joana com
quem consulta seus negócios e desposições que tem de fazer, a ponto de
abraça-la, correr-lhe a mão pela cabeça mesmo a vista da suplicante,
abusando de sua bondade [...]98.

O marido, em sua defesa, desloca a atenção para as deficiências da esposa: [...] nem

vive mal encaminhado com aquela escrava Joana, portanto essa é sua comadre, e tendo como

tem boa disposição para o arranjo da casa, parece que por estes dois princípios faz-se digna de

alguma atenção [...]99.

Assim, recorrentemente, a preferência masculina se fixava nas relações ilícitas com as

escravas nos limites de sua propriedade, situação confortável para o homem. Destaca-se o

número expressivo de processos em que a escrava é bastante próxima da esposa, o que chama

a atenção para a possibilidade da mesma ter usufruído desta proximidade em seu benefício

para lançar dúvidas sobre o comportamento masculino, a fim de conseguir o divórcio com

maior facilidade.

É nos processos de divórcio que se nota o movimento e o falatório nas ruas da cidade.

O maior exemplo disso são as testemunhas. Elas dão seus depoimentos baseadas não só nos

fatos dos quais foram testemunhas, mas também naqueles contados pelo povo.

As testemunhas tornam possível tentar compreender, ainda que nas entrelinhas, a

construção de laços de familiarização entre classes sociais diversas. Ainda que o foco
                                                            
98
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n. 233.
99
IDEM.
50 

principal da pesquisa sejam os escravos e as mulheres, é absolutamente indispensável,

principalmente quando localizados geograficamente em São Paulo, citar os forros, os livres

pobres e até mesmo a elite, que eram presenças constantes e fundamentais no dia a dia e no

falatório das ruas da cidade.

É muito comum encontrar testemunhas que comprovam seus depoimentos através do

falatório nas ruas. As discussões, por diversas vezes, ocorriam fora do recinto doméstico,

assim como grande parte da vida das pessoas na cidade. Segue trecho do depoimento de uma

testemunha em processo de 1823:

[...] Alexandre José Pedroso, casado, natural da Freguesia de São Miguel e


morador na Santa Izabel, onde vive de seu ofício de pintor, de idade que dice
ser de vinte e três annos mais ou menos [...] dice que conhece perfeitamente
a justificante Antônia Maria, escrava que foi do Capitam Antônio Caetanno
de Sousa, de quem ainda é seu marido100, e que no tempo em que ella mesma
escrava era, por elle foi obrigada a casar com o justificado seu marido,
fazendo-lhe ameaças, o que ele testemunha sabe por ouvir diser a algumas
pessoas e por ser público [...].101

A troca de informações sobre a vida alheia e a crença de que muitas mulheres foram

salvas no momento em que o marido tentava matá-las por um milagre são alguns dos fatores

de maior destaque em depoimentos de testemunhas e justificativas femininas para suas

petições de divórcio. Constam, em grande número nos processos, depoimentos de

testemunhas que afirmam ter conhecimento de determinada situação por conta do falatório

nas ruas, bem como relatos de mulheres que dizem terem recebido uma graça divina, sendo

salvas graças a milagres como: a arma não disparou, a faca não tinha ponta aguda o suficiente

para matar ou então estava escuro e o marido acabou acertando a porta.102

                                                            
100
Quando se casou, Antônia Maria era escrava do Capitão Antônio Caetanno, assim como seu marido. O
Capitão obrigou seus dois escravos a se casarem, ainda que Antônia Maria não concordasse. Depois de forra,
Antônia Maria abriu o processo de divórcio contra seu marido, que por sua vez permanecia como escravo do
Capitão.
101
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
102
COSTA, R. R. L. D. da. op.cit, p.210.
51 

A ênfase no milagre, que salva a esposa da morte certa, se constituía em poderoso

recurso perante as autoridades eclesiásticas responsáveis pela análise do processo, acentuando

a atitude e o comportamento masculino, tão arraigado de violência, que se faziam necessárias

intervenções divinas.103

É na linguagem niveladora dos documentos legais e na bibliografia produzida sobre o

tema, que se encontram os conflitos, o drama e as manobras sociais de seus personagens. E

nestes documentos, é possível vislumbrar um pouco da condição familiar de escravos e forros,

como também se apresenta uma reflexão sobre a condição feminina e sua atuação perante o

Tribunal Eclesiástico, desejosas de se emanciparem de seus maridos.

Emergem das histórias contatas pelas mulheres às autoridades eclesiásticas conflitos

cotidianos como adultérios e espancamentos. Perante as acusações de espancamento, por

exemplo, a defesa do marido poderia alegar que o homem é superior e assim estaria

exercendo seu direito à correção. Mas qual seria o limite entre corrigir e maltratar?

E todas as mulheres que afirmaram terem sido vítimas da infidelidade ou da

agressividade do marido, estariam dizendo a verdade? Ou ainda do que eram acusadas e por

quê? São estas as questões a serem discutidas no capítulo a seguir.

                                                            
103
IDEM, p.211.
52 

CAPITULO II
“sempre ela serviu e obedeceu”104: Construção e desconstrução dos estereótipos

As paulistas da capital têm em comum com o sexo masculino ingenuidade e


bondade. O tom da conversa em sociedade é jovial e natural, animado por
pilhérias engraçadas. É injustiça acoimá-las de levianas. Embora a sua
conversação faça vivo contraste com o modo mais requintado de suas
antepassadas europeias, a quem a severa etiqueta não permite expansões
ingênuas, entretanto a sua jovialidade sem afetação não destoa nesta
província do Brasil, conservando a naturalidade e franqueza. As paulistas
são esbeltas, porém de constituição forte, graciosas nos gestos, e nos traços
fisionômicos do belo rosto redondo se demonstra alegria expansiva.
Também o colorido de sua cútis é menos pálido do que o da maioria da
brasileiras e, por essa razão são consideradas as mais formosas mulheres do
Brasil.105

Neste capítulo serão apresentados aspectos da condição feminina em meio ao conflito

do divórcio em São Paulo, no período a ser estudado. Mediante a análise dos processos que,

em sua maioria, eram movidos por mulheres, intento compreender a condição da vida

conjugal e a rebeldia frente às leis impostas pela Igreja e pelo Estado.

De fato, muitas mulheres tentaram manipular as leis eclesiásticas para obter um

resultado positivo frente ao Tribunal. Mas de que forma o fizeram e que informações sobre a

vida cotidiana das mulheres estão presentes nos conflitos transcritos nos processos?

Juntamente com a bibliografia referente ao tema, pretendo observar estas questões neste

capítulo e, da mesma maneira, problematizar os principais conflitos da vida a dois, vistos a

partir de suas petições de divórcio, nos anos de 1780 a 1822.

Nos processos de divórcio notam-se as manobras femininas para dar fim à união

indesejada, à violência a qual poderiam estar submetidas e quais recursos usavam para se

libertar dos maridos. Pretendo explorar a multiplicidade de papéis exercidos pelas mulheres, a

partir do desejo de se emanciparem dos companheiros.

                                                            
104
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58. 1801.
105
J. B. SPIX e C. F. P. von Martius. Viagem pelo Brasil, 1817-1820
53 

No âmbito da historiografia nacional os estudos publicados nos últimos três decênios

nas áreas de história social, demográfica e cultural, contribuíram para o desvendamento da

história da família e das mulheres.106

A historiografia a partir dos anos 70, com a explosão dos movimentos feministas,

buscou romper com a imagem da mulher reclusa e passiva, inserida única e exclusivamente

no ambiente doméstico. Marilda Santana nota que “[...] guiados por estudos que legitimaram a

atenção aos grupos geralmente excluídos da narrativa histórica, os pesquisadores buscaram

novas formas de se aproximar do cotidiano das mulheres do passado [...]” 107. Maria Odila da

Silva Dias sugere que:

[...] A historiografia das últimas décadas favorece uma história social das
mulheres, pois vem se voltando para a memória de grupos marginalizados do
poder. Novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os
historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história
microssocial do quotidiano: a percepção dos processos históricos diferentes,
simultâneos, a relatividade das dimensões da história, do tempo linear, de
noções como progresso e evolução, dos limites de conhecimento possível
diversificam os focos de atenção dos historiadores, antes restritos ao
processo de acumulação de riqueza, do poder e à história política
institucional [...]108.

Segundo Maria Izilda Santos de Matos, desde os anos 70, quando de forma contínua

os historiadores passaram a buscar testemunhos sobre as mulheres, enfrentaram o desafio da

invisibilidade feminina no passado. O processo de emergência do tema privilegiou, nessa

mesma década, entre outras questões, “o trabalho feminino, em particular, o trabalho

fabril”.109 Matos menciona:

[...] É indiscutível a maior visibilidade do trabalho, por seu papel


fundamental para a sobrevivência e pelo fato de ocupar grande parte da vida
cotidiana e o seu papel nas plataformas feministas. Todavia, esse privilégio
dado ao mundo do trabalho possivelmente se deve a um certo vinculamento

                                                            
106
SILVA, Marilda Santana da. op. cit., p. 19
107
IDEM, p. 19.
108
DIAS, M. O. L. da S. op.cit. p. 14
109
MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 07-13
54 

inicial a uma herança da tradição marxista, cuja preocupação era identificar


os signos da opressão masculina e capitalista sobre as mulheres [...]110.

Nos anos 80 a produção historiográfica apresenta abordagens diversas. Segue Matos:

[...] No âmbito do trabalho, além de resgatar o cotidiano fabril, as lutas e


greves femininas, procurou-se recuperar as múltiplas estratégias e
resistências criadas e recriadas pelas mulheres no cotidiano, bem como sua
capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas
coloniais e políticos para encontrar brechas, através das quais pudessem se
expressar ou, ao menos sobreviver [...]111.

Assim procurou-se rever as imagens e os enraizamentos impostos pela historiografia,

bem como dar visibilidade às mulheres. A emergência da história das mulheres foi

fundamental para a desmistificação das correntes historiográficas herdeiras do iluminismo,

que se acreditavam informadas pela verdade e pela imparcialidade de seus profissionais,

eliminando as mulheres das considerações dessa disciplina. E. P. Thompson, apesar das

críticas feitas a ele em razão da maneira como incorpora as mulheres em seus estudos,

ressaltou: [...] não existem causas perdidas na história, e o que parece secundário, numa dada

conjuntura, pode revelar-se decisivo em outras [...]112.

Mas a história das mulheres não é só delas, é também a história das crianças, da

família, do casamento, do trabalho. É a história de seu corpo, de sua sexualidade, da violência

que sofreram e praticaram; da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos.113

A vida social e familiar tinha a participação ativa das mulheres, ainda que houvesse

certo exagero por parte de romancistas e estudiosos ao transmitirem o estereótipo da mulher

submissa e do homem superior e dominador. As variações no comportamento de mulheres

                                                            
110
Sobre o tema, ver: BLANCO, Esmeralda Luiz. O trabalho da mulher e do menor na indústria paulistana
(1890-1920). Petrópolis: Vozes, 1982. PENA, Maria Valéria Juno. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina
na constituição do sistema fabril. São Paulo: Paz e Terra, 1981; TEIXEIRA, Amélia R.S. et. al. O trabalho da
mulher na indústria de vestuário. In Mulher, mulheres. São Paulo: Cortez/Fundação Carlos Chagas, 1983 apud
MATOS, M. I. S. op.cit, p. 30.
111
MATOS, M.I. S. op. cit. p.13
112
THOMPSON, E.P. The making of the English working class. Nova Iorque: Pantheon, 1959, v.I, p.936. Apud
DIAS, M.O. L. da S. Op.cit. p.14.
113
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009, p. 7
55 

pertencentes a diferentes classes sociais geraram situações de conflito para o casamento,

incitadas por rebeldia ou mesmo insatisfação. Exemplifica-se: no século XIX, os processos de

divórcio relatam histórias de casais que se separaram por incompatibilidade de gênios.114

Maria Beatriz Nizza da Silva chama atenção para o fato de que, já no final do século

XVIII, a Igreja aceitou um novo tipo de divórcio, cuja petição era redigida pelos dois

cônjuges em comum.

No processo de divórcio envolvendo o tenente Manuel Teixeira de Carvalho e sua

esposa Francisca da Chagas de Jesus no ano de 1816, o tenente enviou o Capitão-mor

Joaquim Theobaldo ao Cartório Eclesiástico na função de procurador. Nas palavras do

procurador, registradas nos autos: [...] Diz o tenente Manuel Teixeira de Carvalho e sua

mulher Francisca da Chagas de Jesus que são cazados [...] unidos segundo as leis[...] e de

comum acordo pela separação e divórcio [...] 115

O procurador enviado pelo tenente e os advogados das partes entraram num acordo

quanto à guarda dos filhos e à partilhas dos bens. O processo foi rápido e não ultrapassou um

mês. Com isso surge uma discussão interessante e fica a dúvida: como a Igreja, sempre tão

criteriosa nos assuntos referentes ao divórcio, pôde ter aceitado uma separação amigável?

Para Raquel Costa uma resposta possível seria que esse tipo de divórcio surgiu no

final do século XVIII, devido às necessidades de ordem prática, para atender uma população

que crescia, pois o divórcio litigioso era mais demorado e mais caro. Deste modo, a Igreja

acabou ajustando-se às necessidades dos colonos.

Segundo Nizza da Silva, a sociedade paulista procurou uma maneira de resolver de

forma mais prática as desavenças de cônjuges, alegando incompatibilidade de gênios e

dispondo de comum acordo dos bens do casal e o destino dos filhos, ficando assim livres para
                                                            
114
Sobre separações amigáveis ver: ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio
entre a elite paulista (1765-1822). São Paulo. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2005. COSTA, Raquel R. L.
Domingues. Divórcio e anulação de matrimônio em São Paulo Colonial. Dissertação de Mestrado.
FFLCH/USP, 1986.
115
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 161.
56 

viverem separadamente e negociarem sobre si com total independência um do outro116, ao

passo que Eni de Mesquita Samara alega que as separações amigáveis aparentemente tinham

o propósito de simplificar os processos, situação onde é preciso dividir bens e filhos, tendo a

possibilidade de evitar escândalos e a inquirição de testemunhas. Evitava-se assim

“transparecer as alterações que estavam se efetuando nas relações entre marido e esposa”, as

quais ficavam salientes nos processos em que as mulheres queixavam-se de seus maridos.117

Este exemplo é importante para notar-se que, como sugere Samara, os divórcios onde

se alegam incompatibilidades de gênio teriam significado que [...] o fato das mulheres estarem

sujeitas aos casamentos arranjados não garantia a manutenção da união [...]118. Portanto, a

visão da mulher condicionada à obediência cega fica comprometida com o surgimento de

obras recentes, que dão ênfase à questão do conflito de papéis e de práticas femininas.119

É possível que a própria natureza do sistema patriarcal e a divisão de incumbências

nos casamentos criaram requisitos para a afirmação da personalidade feminina. Antônio

Cândido sugere que a organização do sistema colonial desenvolveu aspectos viris na

personalidade da mulher, que favoreceram o aparecimento de características acentuadas de

comando e iniciativa. 120

A historiografia, não raras vezes, cita exemplos de mulheres que, na ausência dos

maridos, ficam incumbidas de zelar pelo patrimônio da família, administrando os negócios e

gerindo propriedades. Outras trabalhavam na agricultura e em pequenas manufaturas

                                                            
116
SILVA, M.B N da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1984. Apud, ZANATTA, p.150.
117
SAMARA, Eni de Mesquita.As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco
Zero, 1989, p. 119 apud ZANATTA, op.cit. p. 151.
118
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.57.
119
Cf. o segundo capitulo da obra de Vainfas (1988), intitulado Mulheres degradadas, fornicação ilícita (p. 60-
68). Coletânea História e sexualidade no Brasil, também de Vainfas; Dissertação de mestrado de Marilda
Santana da Silva, Dignidade e transgressão: mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais (1748-1830),
em especial o terceiro capítulo, 2001; a coletânea Mulheres, adúlteros e padres, organizada por Lima, 1987, ou
ainda Joan Scott, “História das Mulheres” na obra A escrita da história, organizada por Peter Burke, 1991.
120
CÂNDIDO, A. The Brazilian family, in T. Lynn Smith (ed), Brazil Portrait of Half a Continent. NY:
Marchand General, 1951 apud Samara, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.
58.
57 

domésticas121, cooperando para o sustento da casa. Não esquecendo ainda as mulheres que,

durante o bandeirismo, assumindo o papel de matronas, cuidavam da casa, dos filhos e dos

negócios ou da lavoura nascente.122

Sobre a figura feminina na sociedade colonial, Mary Del Priori afirma:

[...] Durante o período colonial uma série de múltiplos fatores cristalizou-se,


conferindo à mulher uma situação específica na sociedade que então se
formava. O rico período de entrecruzamento de etnias diversas, os diálogos
entre visões de mundo diferentes, costumes, hábitos e crenças marcados pela
alteridade fecundaram a condição feminina que então se organizava [...]123.

Gilberto Freyre, no prefácio à primeira edição de Casa Grande e Senzala, pondera

que:

[...] A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a


quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas
legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido da
democratização social no Brasil. Entre os filhos mestiços, legítimos e mesmo
ilegítimos, havidos delas pelos senhores brancos, subdividiu-se parte
considerável das grandes propriedades, quebrando-se assim a força das
sesmarias feudais e dos latifúndios do tamanho de reinos [...]124.

Priori sublinha que a condição feminina fabricava-se, então, pelo caráter exploratório

da empresa portuguesa no Brasil do século XVI ao XVIII. O modelo escravista de exportação

vincava as relações de gênero.

Além dele, a tradição androcêntrica da cultura ibérica e os objetivos da empreitada

colonial estimulavam os homens – padres, governantes, cientistas – a estabeleceram um papel

identificado com o esforço de colonização para todas as mulheres, indiscriminadamente; além

de abordar o longo processo de domesticação da mulher no sentido de torná-la responsável


                                                            
121
Exemplifico: em 1817, Maria Joaquina, casada há dez anos com Francisco Justino, afirma em sua petição de
divórcio [...] ser seu marido, concubinado com Angela de Tal [...], trata a amante como esposa e [...] não lhe dá
coisa alguma [...] vive a justificante do trabalho de suas mãos [...]. ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de
matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 167.
122
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.58.
123
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia.
São Paulo: Editora UNESP, 2009, p.21.
124
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2004, p. 33.
58 

pela casa, pelos filhos, pelo marido, pelo casamento, pela procriação, no que Priori chama de

figura da santa-mãezinha.

Esse processo de adestramento que residia, principalmente, num discurso sobre

padrões ideais de comportamento, importado da metrópole, teve nos moralistas, pregadores e

confessores os seus mais eloquentes portas-vozes.125

Surgido no eco do Concílio de Trento, esse discurso reorganizava as funções do

corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzindo-se numa conduta individual domesticada,

principalmente no que se refere aos comportamentos femininos. Difundido no Brasil,

possibilitou a expansão religiosa que os portugueses desenvolveram no ultramar, podendo ser

considerada, em seus múltiplos aspectos como propaganda cristã e ação civilizadora.126

Segunda Marilda Santana da Silva, a Igreja detinha, no período colonial, a

competência exclusiva em matéria das causas matrimoniais, entre elas, a dissolução do

casamento. A historiadora, ao problematizar o divórcio, pontua que a separação do

matrimônio foi reconhecida pelo Concílio de Trento, ao confirmar [...] por muitas causas se

pode se separar entre os consortes, quanto ao toro, ou quanto à habitação, por tempo certo, ou

incerto [...] 127.

Em território brasileiro a separação dos corpos foi regulamentada pelas Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia, em 1707. A separação ocorria por motivos de causa

                                                            
125
DEL PRIORE, Mary. op.cit., p. 23. A historiadora esclarece que elementos desse discurso normatizador já se
encontravam presentes na mentalidade popular portuguesa – e mesmo européia – cabendo à Igreja metropolitana
adaptar valores conhecidos das populações femininas, para um discurso com conteúdo e objetivo específicos. Tal
discurso foi pulverizado sobre toda a atividade religiosa exercida na colônia, dando especial sabor normativo aos
sermões dominicais, às palavras ditas pelo padre no confessionário, às regras das confrarias e irmandades, aos
“causos moralizantes”, aos contos populares, aos critérios com que se julgavam os infratores das normas por
intermédio da murmuração e da maledicência. A mentalidade colonial foi sendo lentamente penetrada e
impregnada por esse tipo de discurso.
126
SILVA, Marilda Santana. Op. cit. p. 48
127
O sacrossanto e ecumênico Concílio de Trento. Editora Reformata, 1745 apud Londoño, Fernando Torres.
Legislacion eclesiástica para el matrimônio em el Brasil colonial – Las contituiciones Del arzebispado de
Bahia, p. 2. Cf. SILVA, M. S. op. cit., p. 78.
59 

maior, podendo ocasionar a separação dos corpos nos casos de adultério, de apostasia e

heresia e nos casos de sevícias dos cônjuges.128

1. “era violento [...] seu dito marido, maltratando-a com pancadas [...] se ausentou por
longo período [...] sem deixar para sua sustentação nem uma espiga de milho”129:
Sevícias masculinas, argumentação feminina.

Nos processos de divórcio o queixoso buscava provar junto ao Juízo Eclesiástico

todos os problemas enfrentados na vida conjugal, com a intenção de facilitar a obtenção de

um resultado favorável. Mas o pedido sempre deveria basear-se nos itens das Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia.

Verifica-se que o conteúdo de acusações e defesas presentes nos autos denunciam

uma diversidade muito grande de problemas no relacionamento conjugal. As queixas

femininas mais comuns são as sevícias e o concubinato. Contudo, as sevícias e os maus tratos

físicos abrangem diferentes níveis de agressão física, que iam de bofetões até tentativas de

homicídio.

Nos casos de sevícias graves, como a tentativa de homicídio, as justificantes relatam

o perigo de morte eminente e quão danoso pode ser o convívio com seu marido-agressor.

Em 1821, a justificante Gertrudez Maria de Jesus, branca pobre, vendeu tudo o que

tinha: suas roupas, jóias e até a sua cama, a fim de cuidar de seu divórcio pelos meios

competentes. Ela afirma que seu marido, Antônio Pedro Moreira, homem que tem sua lavoura

como fonte de renda, além dos maus-tratos e das injúrias, a faz trabalhar no lugar de sua

escrava, com quem, de acordo com Gertrudez, Antônio vive concubinado.

[...] com gravíssimas ofensas e total abandono [...] violando o modo de fé


conjulgal. [...] maltratando-a com pancadas, injuriando-a e fazendo-a
trabalhar na rossa, em casa, com tarefas. [...] Antônio vive concubinado com
uma de suas escravas [...] violando o modo de fé conjugal [...]130.
                                                            
128
SILVA, M. S. Op.cit. p. 79-80.
129
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58. 1801.
130
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
60 

As testemunhas confirmam que Antônio vive concubinado com uma de suas escravas

e obriga a esposa a trabalhar em casa no lugar da escrava. O vizinho do casal, Sebastião

Antunes Lima, um rapaz de vinte e seis anos disse:

[...] injuriando-a com pancadas, sendo a causa de muitas vezes ella se ver
obrigada a afugentar-se pelos matos, temendo a morte. [...] Geraldo Martins,
casado, natural da Villa Nossa Senhora da Conceição, morador na Villa de
Jacarehy, vive de suas lavouras [...] atesta que Antônio difama Gertrudez
publicamente e anda concubinado com uma de suas escravas [...]. 131

Em 1803, um homem que caminhava por um matagal em São Paulo, apanhando

pinhão, deparou-se com um casal na mesma atividade. Foi então que o homem iniciou uma

briga com a esposa e passou a esmurrá-la. O rapaz então intercedeu, perguntando ao marido

porque ele havia levado a esposa para [...] lugares tão ogros tendo negra [...]. É na resposta

obtida que se sobressai o ódio do marido e fica nítida a idéia de que para ele, a vida de sua

mulher não tem qualquer significado: [...] a negra tem mais serventia do que essa mulher

porque a negra vendo como dinheiro e a mulher não [...]132.

Nos casos de sevícias graves, as justificantes relatam o perigo de morte eminente e

quão danoso pode ser o convívio com seu marido-agressor, reforçando no processo a idéia da

fragilidade feminina, porventura no intuito de alcance mais seguro da sentença favorável.133 O

espancamento, que provocava ferimentos graves e risco de vida, é a acusação mais freqüente

ao longo do período estudado. Eram agressões direcionadas principalmente à cabeça e ao

rosto, resultando em traumas físicos e/ou psicológicos.

São recorrentes declarações do tipo: [...] a justificante encontra-se amedrontada [...] ou

ainda apontam-se os graus das lesões [...] através dos curativos, remédios e freqüentemente a

necessidade da sangria para curar a esposa que sofreu nas mãos do marido [...]134, destacando

                                                            
131
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
132
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 62.
133
COSTA, R. R.L D. Op.cit. p. 205.
134
IDEM, p.210-211.
61 

sempre uma violência brutal por parte do marido, intencionando, com o depoimento da

justificante e de suas testemunhas, sensibilizar as autoridades eclesiásticas.

As consequências dos espancamentos são ricamente detalhadas nos autos, incluindo o

depoimento de vizinhos, curandeiros e até parteiras. Em 1808, Vila de São Carlos, uma

mulher alega ter ficado muito ferida e doente após um dos ataques do companheiro. Ela

afirma que, para escapar da morte teve de ficar [...] de cama no uso de sangrias, e outros
135
remédios para curar suas feridas sanguinolentas [...] . Uma das testemunhas se identifica
136
como José Manuel de Almeida, que [...] vivia da arte da cirurgia [...] e declara ter sido

chamado para curar a mulher.137

Não é possível abordar a condição feminina nos processos de divórcio e não

mencionar as sevícias contra esposas grávidas138.

As questões da gravidez, do parto e dos riscos que a mulher corria nessas ocasiões, são

abordadas na própria legislação eclesiástica. O momento do parto era considerado perigoso

tanto para a parturiente, como para o bebê. Por isso havia recomendações específicas para o

sacramento do batismo139 no momento do parto, onde particularmente as parteiras saibam

como batizar um recém-nascido em caso de necessidade.140

                                                            
135
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 75.
136
IDEM.
137
Sobre a necessidade de curativos e tratamentos, ver Dissertação de mestrado de Raquel R. L. D da Costa, item intitulado
As sevícias praticadas pelos maridos, p. 203-225. A autora afirma que [...] a necessidade de curativos e tratamentos levava à
procura de alguém que pudesse ajudar nesse sentido, nem sempre seria uma pessoa que tinha por atividade o trato com
remédios e sangrias, uma parteira ou curandeira. Muitas vezes era procurada uma vizinha, talvez por ter algum
conhecimento no sentido de aliviar o sofrimento físico resultante dos maus tratos [...]. COSTA, R R. L. D da. Op.cit, p. 221
(Grifo meu). Novamente o destaque para a fragilidade da mulher e a necessidade de obter alguma ajuda frente à violência
masculina se tornam argumentos poderosos e consistentes, dos quais os advogados sempre se utilizavam nos autos.
138
A primeira menção a um aborto resultante de espancamento é do ano de 1749, num processo da vila de Curitiba, no qual
se diz que [...] a cria saiu com lesão [...], pois a mulher já estava com [...] dores de parto [...] quando foi agredida pelo marido.
Em depoimento, a tia da justificante afirma: [...] na compania do dito seu marido da roça para sua casa estando nella com
dores de parto lhe deu o dito marido uns empurrões com a mão [...] no dia seguinte parira a dita justificante uma filha, e esta
trazia no ventre de sua mãe um olho coberto de sangue, e não sabe ela testemunha se dos ditos empurrões ficou a criança com
alguma lesão [...] ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 163. Ver em COSTA,
R. R L. D da. Op.cit, p. 211. (Grifo da autora).
139
Ainda hoje, segundo o Código de Direito Canônico, qualquer pessoa pode em perigo de morte pode receber o batismo,
basta que ao solicitar o sacramento um adulto a batize “em nome do pai, do filho e do espírito santo” e lhe derrame água
limpa na cabeça. Cf. Código de direito canônico. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Cap. I. “Da celebração do batismo”. Cân
850-863. Cap III. “Dos batizandos”. Cân 867.
140
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. 1, Tit. XIII § 44 e Tit.XVI.
62 

Mulheres próximas do parto deveriam comungar, uma vez que o trabalho de parto, não

raramente, poderia resultar na morte de mãe e filho ou de um dos dois141. As mulheres prestes

a dar à luz deveriam se confessar, principalmente aquelas às vésperas de ter o primeiro

filho142.

Nessas circunstâncias, maus tratos contra a esposa grávida provocando o aborto e,

conseqüentemente, impedindo-a de exercer a maternidade e manter o corpo sadio durante a

gestação ou, no difícil momento do nascimento, tinham forte apelo frente às autoridades

religiosas, pois ressalta a imagem de um homem sem sentimentos, indiferente à própria prole.

Em alguns processos atribui-se diretamente aos maus tratos físicos a ocorrência de

abortos. No ano de 1821, uma esposa residente na vila de Bragança relata que sofreu um

aborto após ser espancada pelo marido. Uma das testemunhas afirma que o próprio marido

contou que havia [...] lhe dado muitas pancadas [...]143.

Em outro caso, um oficial de ourives de São Paulo foi acusado pela esposa de
144
provocar-lhe o aborto, desferindo contra ela [...] coices no ventre [...] , com a intenção de

matá-la. Baseado no depoimento da mulher, o escrivão então concluiu que o homem

propositalmente atacou a mulher [...] a fim de ver se periga a vida da supplicante com o

aborto [...]145.

Em processo anteriormente mencionado, uma parda forra que residia na vila de

Paraíba acusa seu marido, o pardo forro Joaquim, nos primeiros dias de Abril de 1807. Ela

afirma que sofria com constantes maus tratos físicos, que seu marido vivia embriagado e

ainda a humilhava com xingamentos publicamente.

Mas uma testemunha, de nome Joaquim Lustoza de Cássio, relata que Joaquim

Marques, o marido, ofende a esposa Rita com [...] escândalos públicos [...] e ainda agride
                                                            
141
IDEM, Liv 1, Tit. XXIV, § 87.
142
IDEM, Liv. 1, Tit. XXXV, § 136
143
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 221.
144
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
145
IDEM.
63 

fisicamente a esposa [...] dando-lhe esporadas continuamente, e por cuja causa ha pouco antes

da semana santa teve a referida justificante um aborto, cujo feto nem foi baptizado, injúria

gravíssima [...]146.

Nota-se, pela linguagem utilizada no processo, que maltratar fisicamente a esposa

grávida era um motivo ainda mais forte para o pedido de divórcio. Poderia, obviamente,

resultar num aborto, na morte de uma criança que não havia sido sequer batizada. Atitude que

o escrivão define como injúria gravíssima.

Torna-se relevante sublinhar que maus tratos e maridos agressivos [...] surgem em

diferentes níveis da sociedade local, ora nas famílias mais importantes, ora nas mais humildes

[...]147, marcando um relacionamento conjugal. Mulheres humildes afirmavam sofrer abusos

físicos, verbais e sexuais, [...] bem como as brancas de famílias importantes localmente

[...]148.

O Juízo Eclesiástico recebia queixas e petições vindas de diferentes camadas sociais.

Aline Zanatta, em estudo sobre o divórcio e as mulheres da elite paulistana149 argumenta que

mulheres de camadas sociais mais privilegiadas também alegavam sofrer maus tratos físicos e

serem traídas pelos maridos. Zanatta destaca a petição de Dna. Maria Francisca de Camargo,

que afirma ser seviciada por seu segundo marido, o Cirurgião-mor Antônio José de Babo

Brochado, por volta de 1819, na vila de Itu. De acordo com a pesquisa, Dna. Maria Francisca

era a décima primeira filha de Dna. Benta Paes Camargo e do Capitão Pedro da Rocha de

Sousa. A família Camargo veio para São Paulo nos finais do século XVI e disputou os cargos

da administração de São Paulo por um longo período, principalmente durante o século XVII,

                                                            
146
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 84.
147
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 214.
148
IDEM, p. 214.
149
ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-
1822). São Paulo. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2005.
64 

detendo vários cargos na Câmara, [...], pois vários de seus membros ocupavam cargos de Juiz

Ordinário, vereadores e almotacéis [...] 150.

Dna. Maria Francisca casou-se pela primeira vez em 1797, em Cotia, com o Cirurgião-

mor Thomé Jacinto Teixeira Nogueira e residiam na vila de Itu, onde o marido exercia sua

profissão em uma botica. Além de ter sido nomeado pela Coroa, era também proprietário de

uma botica onde vendia remédios. Ficaram casados por vinte anos até que, em 1817, o

Cirurgião-mor faleceu. Como o casal não tinha filhos, os bens e posses foram herdados por

sua esposa, Dna. Maria Francisca.

Com a morte do Cirurgião-mor, a vila de Itu precisava de um cirurgião. Os “homens

bons da vila” trataram de buscar um novo cirurgião. Foi quando Dr. Antônio de Babo

Brochado instalou-se na vila. Menos de um ano após o falecimento do Dr. Thomás Jacinto,

Dna. Maria Francisca estava casada novamente, com o Antônio de Babo Brochado.

Mas em 1819, Dna. Maria Francisca já havia encaminhado uma petição ao Tribunal

Eclesiástico, onde afirmava ter sido fisicamente maltratada pelo marido. Em sua defesa, o

advogado do Dr. Antônio contesta as afirmações da mulher e faz um importante adendo: o

marido queria interferir na atuação de sua mulher na avaliação dos bens de seu primeiro

marido, pois afirmava que o Cirurgião-mor era a “cabeça” do casal. Segue trecho dos autos:

[...] Diz Brochado desta vila por cabeça de sua mulher Dna. Maria Francisca [...] que ele quer

haver vista dos autos de inventário que se procedeu por este Juízo dos bens, que ficarão por

falecimento do Cirurgião-mor Thomé Jacinto Teixeira Nogueira, portanto [...]151.

Dna. Maria Francisca e sua defesa contestam, afirmando que o Dr. Antônio estava

dominado por “cega ambição”, e que suas afirmações eram [...] fundadas no ódio, na

                                                            
150
MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada. Significados econômicos e sociais de vida de
habitantes da região do planalto de Piratininga 1648-1682. Dissertação de mestrado. Agosto, 2000, p. 219 apud
ZANATTA, op.cit, p.88.
151
Inventário de Thomé Jacinto Teixeira Nogueira. ACCI-MRCI, 1° Of. Maço 24-A in ZANATTA, op.cit, p.91.
65 

inimizade, no orgulho e na calúnia [...]152. Dr. Antônio se defendeu, declarando que era um

homem [...] manso, pacífico e de regular conduta e probidade [...]153. O fato é que,

paralelamente às acusações de sevícias, calúnias e concubinatos com meretrizes, o conflito

central residia na herança deixada pelo primeiro marido à Dna. Maria Francisca. Ambos

reivindicavam poder sobre os bens, gerando desacordos que culminaram no divórcio. As

testemunhas do processo, entre eles dois padres, uma senhora de engenho e uma costureira

confirmam as alegações de Dna. Maria Francisca. Os padres, [...] representantes máximos da

moral e dos bons costumes junto à sociedade, também confirmaram os itens alegados pela

autora, por saberem devido ao antigo conhecimento e familiaridade que possuíam com a

autora [...]154.

Outro fato importante é a participação de uma senhora de engenho na petição. Esta

senhora permitiu que Dna. Maria Francisca morasse com ela durante todo o período em que o

processo estivesse em julgamento. Como determina Aline Zanatta, as mulheres da elite

também criavam laços de solidariedade entre si, como fica evidente no depósito de Dna.

Maria Francisca.

As acusações persistiram, mas, infelizmente, não foi possível constatar como se deu o

fim dos tramites do processo, [...], porém, no inventário de José da Rocha Camargo, irmão de

Dna. Maria Francisca, verificou-se que essa senhora, após divorciar-se de José Babo

Brochado, foi convidada a morar com seu irmão na vila de São Carlos [...] 155.

Se Dna. Maria Francisca recorreu ao Juízo Eclesiástico para se divorciar do marido

com alguns meses de casada, o mesmo não acontecia com boa parte das mulheres. É grande o

número de mulheres que pediram o divórcio após um longo período de tempo. Porque esperar

tanto tempo?
                                                            
152
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n. 187 in ZANATTA,
op.cit, p. 91.
153
ZANATTA. Op.cit, p. 94.
154
IDEM, p. 94.
155
IBIDEM, p. 96.
66 

Como foi abordado pela historiografia, esperava-se da mulher um comportamento

paciente, bondoso e passivo, na esperança de que o companheiro apresentasse alguma

mudança em seu comportamento. A imagem mais comum presente nos autos é da mulher

honrosa, que servia ao marido com respeito e dedicação. O homem por sua vez [...] hé homem

devasso, falta de comprometimento com a honra, religião e temor de Deus [...]156.

Essa imagem do homem devasso, que maltratava a mulher com suas tiranias, pode ser

observada em todos os processos que tinham mulheres como justificantes. Até mesmo

doenças poderiam dar origem a um processo de divórcio.

No ano de 1817, na vila de Sorocaba, Maria Antônia de Camargo, mãe de Maria Leite

da Conceição, desejava separar sua filha, com catorze anos, do marido João da Fé do Amaral,

com quem estava casada há mais ou menos dois meses157.

Representada pela mãe, a menina afirma que seu marido exalava um cheiro

insuportável [...] na noite do casamento e, estando-se o supplicado adescalçadamente na

presença da supplicante, observou a mesma as pernas e os pés enchados, lançando-se tão mao

cheiro que não podendo aturar, saio do quarto [...]158. Neste processo, não foi possível

identificar de qual doença padecia o homem, somente os sintomas foram mencionados nos

autos:

[...] e mesmo porque descobrindo-se pelo decurso do tempo padecer o


supplicado aquela moléstia há tempos e com, tal ataque que o prosta de cama
sem comer, nem beber, e arrojando do estômago alguma coisa que leva, e
isto em todas as conjunções das Luas; e além desta moléstia padece outra na
testa que é um enchaço que costuma a purgar, indicando ser Gomas ou
Palparias [...]159

                                                            
156
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
157
Este processo apresenta ainda outros problemas como o casamento forçado pela família e desentendimentos
posteriores entre o marido e a família da esposa. Nota-se em trechos do processo: [...] que vivendo quieta e
praticamente na compania de sua mãe Maria Antônia de Camargo e estando na idade de 14 annos, por
insistências e empenhos q cometeo João da Fé do Amaral tanto com a Dna. Sua mãe da supplicante como com
seu avô Matheus Bueno de Camargo e apesar de não prestar a mesma supplicante seu consentimento, nem
aquela sua mãe conhecimento do supplicado morador de Piracicaba [...] a supplicante se casou com o justificado
[...].
158
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 170.
159
IDEM.
67 

As doenças, como fator relevante para o divórcio, estão incluídas no item referente às

sevícias nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Nota-se: [...] declaramos que

se algum deles com ódio capital tratar tão mal ao outro, que vivendo juntos corra perigo de

vida, ou padeça moléstia grave, se possa este justamente se separar [...]160.

Na vila de Jundiaí, em 1813, uma esposa argumenta que não poderia mais conviver

com a doença de seu marido, estando ele [...] contaminado da contagiosa moléstia de morféia

[...]161, também conhecida como lepra, mal de Lázaro ou elefantíase-dos-gregos162.

Mas se o motivo para o divórcio era alguma doença, as mais comuns são as doenças

venéreas. E é a partir destas queixas femininas que se torna possível a abordagem de outro

fator fundamental alegado pelas mulheres em seus pedidos de divórcio: o desregramento

sexual dos maridos.

As relações ilícitas, principalmente com meretrizes, podiam resultar no contágio e

disseminação de doenças venéreas. Uma mulher poderia até suportar uma traição, mas colocar

sua vida em risco com doenças contagiosas era argumento feminino certeiro frente ás

autoridades eclesiásticas. Se as testemunhas comprovassem os fatos e descrevessem os

sintomas da moléstia, era muito provável que a mulher obtivesse um resultado positivo em

sua petição.

O interessante é que, na maioria das vezes, não constam entre o rol de testemunhas

médicos, cirurgiões ou alguém com qualquer conhecimento mais específico. O mais comum

era a comprovação dos fatos por meio de depoimentos das testemunhas. O Juiz julgava a

                                                            
160
Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Liv I, Tit. LXXII, § 316.
161
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 8 , n. 131.
162
Lycurgo Santos Filho verifica que a lepra espalhou-se pelo Brasil, tendo sido considerada endêmica, no
século XIX, em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Maranhão. Segregar os atingidos foi a tática adotada
pelas autoridades coloniais, a fim de tentar deter o avanço da doença, que fazia com que as pessoas fugissem dos
que a portavam. Ver FILHO, Lycurgo Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo, HUCITEC-
EDUSP, 1977, v. 1, p. 188.
Nos autos dos processos, se o marido era leproso, obviamente, a esposa não poderia ser obrigada a conviver com
ele, ou pior ainda coabitar com ele, o que poderia acarretar em graves riscos para a esposa. Cf. COSTA, R. R. L.
D da. Op.cit. p. 255-256.
68 

sentença baseada nestes depoimentos ou, porventura, no conhecimento pessoal sobre o

assunto de um algum membro do Juízo.

Na vila de Paraíba, em 1795, uma esposa reclama ter sido contaminada pouco depois

do casamento por doenças venéreas, alega que se casou muito sadia, mas meses depois [...]

principiou a padecer moléstias adquiridas pelo dito marido, fruto de seus vícios e relações

pecaminosas com meretrizes [...]163. Em 1813, na cidade de São Paulo, uma esposa afirma [...]

ter ficado o corpo coberto de feridas pelas moléstias que o dito marido adquiriu ao fazer atos

ilícitos [...]164.

O caso mais grave identificado nos processos estudados ocorreu na cidade de São

Paulo, em 1814. A esposa recorreu ao Juízo com o pedido de divórcio e separação de corpos

imediata. Ela dizia que seu marido, levando uma vida sexualmente desregrada, havia

adquirido moléstias fétidas e purulentas. O depoimento de um Cirurgião-mor aponta para a

gravidade da situação:

[...] que é verdade que ele tem perpétua impossibilidade de coabitar por
defeito, e perda total do membro, e ainda os mesmo traços ilícitos, que
solicita ter, e donde provem talvez a discordia deste casal lhe são prejudiciais
a ele por ainda existir fistuloso e poder em conseqüência disso purgar, e,
outrossim, ela justificante que pode em consequencia das fistolas adquirir
algum contágio e, por conseguinte, que todo o deduzido na petição é mesmo
verdade [...]165.

O mais impressionante é que este marido encontrava-se em tão graves condições, que

foi realizada uma cirurgia para retirada do membro, tornando-o inabilitado em suas funções

sexuais. Os relatos de contágio por doenças venéreas, que caminhavam lado-a-lado com os

relatos de relações ilícitas, se comprovados por testemunhas, são tidos pelo Juízo como uma

desonra, a quebra do sacramento do matrimônio. A infidelidade conjugal aparece como um

dos problemas mais significativos da vida a dois.

                                                            
163
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3 , n. 47.
164
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 123.
165
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimînio. Estante 15, Gaveta 8, n. 135.
69 

2. “recolheu-se o supplicado para a casa e compania de Ignácia de tal com quem vive
concubinado, teúdo , e manteúda, com quem já tem um filho ou filha”: 166 Mulheres
traídas e mulheres concubinas.

Antes mesmo de debater o concubinato, é preciso distinguir adultério de concubinato.

O adultério enquadra-se em uma violação da fidelidade conjugal, não implica a existência de

mais de uma relação sexual, é então o contato carnal de um dos cônjuges com outra pessoa.

O concubinato é uma relação estável e duradoura e não apenas contato sexual. As

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia definem concubinato como [...] ilícita

conversação do homem com mulher continuada por tempo considerável [...]167.

Fornicações ou relações transitórias com envolvimento esporádico e superficial são

relacionamentos adúlteros, enquanto nos concubinatos prevaleciam a coabitação e a longa

duração dos “tratos ilícitos” 168.

O adultério em si não seria motivo para o divórcio. [...] Mesmo para a mancebia, a

simples fama pública não dava direito a que se aplicassem as leis [...]169:

[...] E achando-se fama pública de alguns estarem amancebados, se lhes


farão os termos de admoestação, guardando-se a ordem sobredita; porém não
havendo outros indícios, presunções, ou escândalo, não poderão pela fama
somente ser condenados em pena pecuniária, ou outra alguma [...].170

Para uma petição de divórcio esperava-se um fato consistente, como uma outra

família, um comportamento público escandaloso e notório, que deveria ser comprovado por

testemunhas para haver suficiente certeza de que um crime havia sido cometido.

Nota-se que a legislação eclesiástica trata com benevolência as relações ilícitas

ocasionais. Aqueles que cometiam o adultério, simples cópula carnal ilícita, são considerados

[...] incontinentes, e fornicárias vagas [...] deveriam assim ser [...] repreendidas e, advertidas

                                                            
166
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n.222. 1821.
167
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. 5, Tit. XXII § 979.
168
LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo:
Annablume: FAPESP, 1998, p. 111.
169
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 265.
170
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, Liv 5, Tit XXII, § 987.
70 

paternalmente [...]171. Portanto, o concubinato é considerado mais grave, uma razão

consistente para um pedido de divórcio.

Quando a mulher faz queixa contra o homem infiel, nota-se que as reclamações

também partem de todas as classes da sociedade, indo desde o preto forro ao cirurgião-mor,

que traiam suas mulheres com mulheres escravas, livres, meretrizes ou até mesmo índias.

No caso das meretrizes ou prostitutas, as acusações davam conta de que os homens se

alojavam em suas casas, como menciona Saint-Hilaire, em casas mal freqüentadas, [...]

verdadeiros prostíbulos [...], onde as mulheres faziam seus negócios do sexo para garantir a

sobrevivência. São Paulo, ainda de acordo com Saint-Hilaire, destacou-se pelo elevado

número de mulheres prostitutas, espalhadas também pelas ruas da cidade, com o objetivo de

atrair seus fregueses.172

Relações ilícitas com meretrizes são mencionadas como um agravante e não um

motivo. Por exemplo, em 1790, Gertrudez Maria do Nascimento, uma esposa de São Paulo

relaciona [...] as pancadas, puxando pela espora [...] com crueldade própria de um homem

mao cristão [...] e o descaso do marido para com ela e os filhos com o fato de seu marido [...]

andar mal encaminhado [...] todas as noites em funções pelas casas de meretrizes com quem

continuamente adultera a supplicante de sorte que ha muitos meses huma só noite não

pernoita com a suplicante [...], e Gertrudez ainda afirma que seu marido [...] nem dela faz

caso, nem dos filhos e da caza, destruindo os bens desta [...].

O marido de Gertrudez, Luiz de Araújo Lima, era tido na cidade como um bom oficial

de ourives, mas perdia todo o dinheiro que ganhava com prostitutas. Em depoimento de

Gertrudez às autoridades eclesiásticas ela afirma: [...] que sendo bom official de ourives,

                                                            
171
IDEM, Liv 5, Tit XXIII, § 993.
172
In: Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Trad. Regina Regis Junqueira.
São Paulo: Edusp, 1974, p.78.
71 

como hé público nesta cidade [...] recebe as obras e encomendas destribuindo

endiscriminadamente com mulher prostituta com quem adultera [...]173.

Uma testemunha, a preta forra Rosa Francisca, de Guiné, conta que o marido de

Gertrudez ainda [...] vive e mora em caza de Caetana sua concubina, lá vive e mora dias,

noites e semanas inteiras, o que dice ela testemunha saber por ver e presenciar como por ser

fama pública e notória nesta cidade [...]174. As relações ilícitas com meretrizes eram

agravantes, o motivo concreto seria o concubinato com Caetana e os maus tratos físicos.

O homem podia ainda colocar a concubina dentro de casa, dando a ela permissão para

que agisse como175 senhora, menosprezando a presença e as funções da esposa, como afirma a

testemunha de uma esposa em processo de 1819, na cidade de São Paulo. A testemunha conta

que o marido tinha uma moça da cidade como concubina desde que ficou viúvo e, mesmo

após casar-se novamente, continuava concubinado com a mulher, levando-a para morar com o

casal.

A testemunha diz saber dos fatos por freqüentar a casa do casal e ainda porque o

homem a pediu para levar a concubina para a Igreja, pois não gostava que ela saísse sozinha,

tratamento que não dava à sua esposa de fato.

Concubinas escravas também mostram o quão frágil podia ser a relação entre marido e

mulher, e ainda como uma esposa podia perder espaço para uma escrava. Uma esposa em São

Paulo se queixa que o marido não lhe dá a menor atenção, nem mesmo conversa com ela, mas

é só [...] mimos e agrados com uma escrava da casa, dando-lhe abraços e acarinhando sua

cabeça [...], tudo na frente da mulher. O homem ainda pedia conselhos à escrava e contava-lhe

causos, como se estivesse conversando com a esposa.

                                                            
173
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
174
IDEM.
175
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.
72 

Em Guaratinguetá, no ano de 1817, um marido levou a escrava, sua concubina, para a

vila, [...] fazendo-lhe uma morada separada da mulher, que permanece no engenho [...]. O

homem passou a viver com sua concubina escrava na vila e deixou a esposa no engenho 176.

Nestes autos prevalece a imagem da senhora traída em sua honra, perdendo seu espaço

de esposa legítima para a concubina escrava do marido.

E perder espaço para uma índia? Em 1788, um marido foi acusado pela esposa de

relacionar-se ilicitamente com uma índia da Aldeia de Barueri. Durante oito meses manteve a

índia vivendo junto com a esposa, depois deixou a índia na casa de uma filha que não ficava

distante de sua morada. Por fim, levou a índia de volta para a Aldeia e passou a freqüentar

cotidianamente a Aldeia, sendo ainda acusado pela esposa de obter facilidades no contato com

a índia através do diretor da Aldeia.

O marido admite ter se relacionado com a índia, mas antes de se casar. Disse que

depois de seu casamento não voltou a se relacionar ilicitamente com a índia. As testemunhas

contam que para poder se casar, o homem teve que primeiro tratar do casamento da índia

Felícia com um índio de sua Aldeia e, mesmo depois disso, o homem mantinha o casal,

mandando-lhes cavalos, gado e mantimentos, que eram levados até a aldeia por seus escravos.

O marido diz que gosta de fazer caridade e por isso ajuda os necessitados, como era o

caso do casal de indígenas. O Juízo entendeu que fazer caridade e ajudar os necessitados não

era prova de concubinato, nem mesmo de adultério, não havendo nada errado com o

comportamento do marido, que foi absolvido.177

A recorrente acusação de concubinato presente nos autos é um possível reflexo da

ilegitimidade em São Paulo. Fernando Londoño em A outra família observa através das atas

de batismo que entre 1741 e 1845 a taxa de ilegitimidade era de aproximadamente 39%.

Assim, 39% das crianças que nasciam em São Paulo seriam frutos de relações ilícitas, do
                                                            
176
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 170 In COSTA, R. R. L.
D. da. Op.cit, p. 294.
177
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n. 678.
73 

simples adultério ao concubinato. O historiador ainda faz uma ressalva: não se pode esquecer

ainda das crianças que carregavam somente o nome, sendo o pai um incógnito. Em alguns

casos, a identidade do pai era conhecida pelo pároco local, [...] mas por diversas razões não

era registrado [...]178.

Londoño reitera que as atas de batismo não revelam qual era o tipo de relação que os

pais da criança mantinham no momento da concepção. Desta forma, [...] fica difícil saber que

porcentagens de crianças ilegítimas eram frutos de concubinatos ou produtos de relações

esporádicas [...]179.

Nos autos o concubinato é apontado como uma queixa recorrente das mulheres. Por

diversas razões, as mulheres realmente se incomodavam com o fato de seus maridos se

relacionarem sexualmente e até mesmo afetivamente com outra mulher, podendo inclusive ter

filhos com ela. Muitos destes maridos mencionados nos processos mantinham de fato duas

casas, com duas famílias.

Obviamente, o fato de o marido ter outra família pode ser bastante incômodo para uma

esposa legítima, por motivos que vão da desonra pública à divisão dos bens matérias com a

outra família do marido após sua morte.

Uma mulher enfurecida por algum outro motivo podia acusar o marido de concubinato

sem que isso fosse verdade? Sim, mas provavelmente o depoimento das testemunhas

denunciaria sua mentiria pois, num concubinato, onde o homem pode vir a morar com sua

concubina, os indícios da infidelidade ficam mais expostos, um número maior de pessoas

toma conhecimento do fato e podem testemunhar comprovando ou não as afirmações da

esposa.

O adultério é mais difícil de ser comprovado. Ainda que as testemunhas confirmem a

versão da esposa, não seria um motivo para o divórcio, seria uma razão a mais, e não a razão
                                                            
178
LONDOÑO, Fernando Torres. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São Paulo:
Edições Loyola, 1999, p.57.
179
IDEM, p. 58.
74 

principal. Frente a isso, a esposa denunciante deveria apresentar motivos previstos nos

fundamentos legais para obtenção de um divórcio.

Mas como observa Raquel Costa180, os fundamentos legais eram insuficientes para

abranger a diversidade dos problemas matrimoniais, que englobavam fatores familiares, a

sexualidade dos cônjuges e a intimidade de casal.

Por isso, qualquer que fosse o problema enfrentado pela mulher ou pelo homem, a

solução seria encaixá-lo nos termos da legislação. Havia sim motivos falsos, ou falsas

sevícias, que serão posteriormente abordados, mas por vezes, o motivo não é falso, ele

simplesmente não se encaixava na legislação.

Portanto, ainda que houvesse falsas alegações por parte das mulheres no intuito de

obter o divórcio, não significa que os conflitos entre marido e mulher não existissem ou que

alguns maridos não fossem de fato homens rudes e violentos, justificando seus atos como

sendo seu direito de homem e marido, tendo licença para “corrigir” a esposa ou então que as

mulheres não forjassem depoimentos e/ou testemunhos para manipular a lei a seu favor.

Os relatos de mulheres e homens nos processos de divórcio retratam uma forma de

enquadrar os problemas conjugais na legislação.

3. O Direito masculino de correção e as falsas sevícias.

Sabe-se que era conferido ao homem o direito à correção da mulher e, com isso, as

mulheres tinham de provar às autoridades eclesiásticas que não haviam dado motivos para os

espancamentos e que eram agredidas de forma excessiva e sem qualquer razão. Em processo

de 1819 evidencia-se um exemplo destas justificativas:

[...] Diz Dona Anna Angélica da Silva e Castro, filha legítima do Doutor
Miguel Carlos Lins de Castro, já falecido, e de sua mulher Dona Francisca
da Silva e Castro, desta cidade[...] cazada na forma do Sagrado Concílio
Tridentino e Leis Eclesiásticas, com o Tenente Ignácio José de Macedo, que

                                                            
180
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit. p. 262.
75 

não obstante comporta-se em tudo com aquella honra[...] sem dar ao seu
marido o menor motivo de desgosto, elle a trata com a maior inhumanidade,
dando-lhe pancadas. [...]o supplicado vive em contínua briga com a
supplicante. [...] Diz a supplicante que ella venera profundamente o
Ignácio[...] mas não pode deixar de ponderar que estando a justificante,
como está presa pelo seu marido, e morta a fome, como por isso mesmo
grande perigo a sua vida[...]181

Destacar as qualidades femininas e a falta de motivos dados pela mulher para que o

marido seja violento com ela é uma constante nos autos. Por conta da necessidade de afirmar

a obediência feminina, destaca-se sempre que a mulher não dava motivos para as dissensões

do casal.

Muitas situações conjugais apresentadas nos autos refletem a questão do direito

masculino à correção. Em um processo de 1815, na defesa apresentada pelo marido, são

apresentadas alegações importantes quanto a esta questão;

[...] Nada tem sido bastante para sufocar o orgulho, a vingança e a


inobediência, com que a justificante contra todos os ditames da razão, contra
os deveres de súdita, em uma palavra contra o determinado por todas as Leis
intenta sublevar-se contra seu marido, sobre quem ela tem uma espécie de
domínio tal qual o pai sobre seu filho [...]182.

São invocadas ainda as leis da Igreja e civis para fundamentar o comportamento

masculino:

[...] P.q. por Direito Divino natural e positivo, e mesmo por todas as Leis
Canônicas, e Civis deve toda mulher casada viver sujeita a seu marido,
incumbindo àquela obedecer-lhe, amá-lo, e servi-lo, e podendo este corrigi-
la, repreendê-la, e mesmo castigá-la com moderação quando seja indócil,
teimosa, e incorrigível [...]183.

Raquel Costa destaca que fica reconhecida a sujeição, sem que o marido tenha direito

de praticar sevícias, mas como questiona Costa, [...] onde estaria o equilíbrio entre os maus

                                                            
181
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.
182
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n 182.
183
IDEM.
76 

tratos físicos e a correção? [...]184 Argumentos para a resposta desta pergunta não são

discutidos ou analisados nos processos, mas, como ressalta a autora, [...] o aparecimento

desses argumentos, ainda que de maneira esporádica, é bastante significativo [...]185.

Em 1788, a defesa do marido, em suas considerações finais, lembra que a esposa

deveria estar sujeita ao marido, enquanto representa a união de Cristo com a Igreja e justifica

que ainda que a mulher tenha sido agredida, a continuidade do matrimônio deveria ser

assegurada: [...] Sendo certo que por quaisquer razões caseiras, e ainda por pancadas não

excedendo a devida moderação se não deve separar os casados daquela união santa o

matrimônio, como fica ponderado [...]186.

Admite-se no período estudado que a correção engloba o castigo físico, contudo, este

deveria ser aplicado com moderação, sem que se defina com precisão um limite para os

castigos e o que seria agir moderadamente.

Os advogados de defesa se valiam recorrentemente deste argumento para justificar as

sevícias, valendo-se inclusive das leis canônicas e civis. Em 1818 um advogado afirma que o

acusado é tido como um homem pacífico e que se fez valer de seus direitos para marido para

corrigir sua mulher, [...] e poria em ação os meios violentos, e coativos, que lhe são

permitidos por Direito Divino, e humano, e corrigiria a audácia da justificante [...]187.

Nos autos fica evidente a construção da imagem da mulher boa e frágil e do homem

forte e violento. Havia essa imagem sido construída para que se conseguisse com maior

facilidade o divórcio? É necessário se ater a esta questão para não correr o risco de

desenvolver uma imagem simplista das relações familiares e conjugais, ou vitimizar as

mulheres, pois nem sempre as alegações de sevícias eram verdadeiras.

                                                            
184
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p 239.
185
IDEM, p.240.
186
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n.677 apud COSTA,
R.R.L.D. da. Op.cit, p. 241.
187
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n.187.
77 

Em alguns casos foi possível encontrar falsas sevícias nos autos, principalmente nos

depoimentos recolhidos das testemunhas. Raquel Costa exalta dois exemplos. No primeiro,

uma mulher, moradora do termo de São Paulo, consegue comprovar sua justificação de

sevícias frente ao Tribunal. Porém, em 1814, o escrivão comunica ao Vigário Geral que a

mulher não havia dado continuidade ao processo após conseguir a separação de corpos.

O escrivão decide então tomar providências e decreta que se a mulher não der

continuidade ao processo deve voltar para a companhia de seu marido. A mulher decide então

não dar continuidade ao processo e prefere voltar para o marido.188 No segundo, a esposa

inicia a justificação de sevícias contra o marido em 1809. Em 1814, o escrivão mais uma vez

chama a atenção do Vigário Geral, dizendo que a mulher iniciou a prova de justificação com

uma única testemunha e não se preocupou mais com assunto, vivendo inclusive ilicitamente

longe do marido. Foram tomadas providências contra ela. Mesmo assim, a mulher não

prosseguiu com o processo. O Vigário Geral decidiu então que ela fosse encontrada e presa no

aljube, até que decidisse voltar ao convívio de seu marido e manter a união matrimonial.189

Torna-se perceptível que nem sempre as sevícias eram de fato praticadas, sendo

utilizadas como argumento frente às autoridades para se emanciparem de seus maridos.

Possivelmente havia outros motivos para que uma mulher optasse pelo divórcio, todavia, estes

motivos não eram aceitos pela Igreja como justificativa para um divórcio. As mulheres, por

sua vez, faziam uso de argumentos convincentes frente ao Tribunal, como as agressões

físicas. Um exemplo encontra-se em autos de 1816, na vila de Atibaia. Uma viúva, que vivia

de seus bens, foi procurada para casar. Aceitando a proposta de casamento, passou ao novo

marido uma escritura, onde garantia a ele a posse de seus bens. O marido, ao receber a

escritura, abandonou a mulher, deixando-a sem comida, dinheiro e roupas. A mulher descreve

                                                            
188
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 09, n.142 apud COSTA, R. R.
L. D. da. Op.cit, p.250-1.
189
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 6, n. 96 apud COSTA, R. R.
L.D. da. Op.cit, p.251.
78 

esta situação às autoridades e afirma ainda que o marido era agressivo [...] improperando-a

prometendo-lhe pancadas [...]190.

As sevícias, que a mulher alegou ter sofrido, não foram comprovadas pelas

testemunhas, que depõe somente com relação à subtração dos bens materiais da justificante e

afirmam não terem visto ou ouvido falar sobre as sevícias. Como a subtração dos bens não foi

considerada uma justificativa justa pela Igreja, o divórcio foi julgado improcedente.191 Em

1782 apresentou uma petição de divórcio juntamente com uma justificação de sevícias. Mas é

na inquirição das testemunhas que surgem fatos reveladores. As testemunhas afirmam que as

acusações lançadas contra o marido foram espalhadas pela mãe da justificante. O Vigário

Geral julga o processo improcedente, uma vez que, de acordo com as testemunhas, as

justificativas de sevícias eram falsas.192

Outras ainda inventam sevícias. Em 1788, uma moradora do bairro Nossa Senhora do

Ó argumentou em sua petição que sofria maus tratos físicos, inclusive durante a gravidez, que

havia sido expulsa de casa pelo marido. Ela disse que passou três anos afastada do marido e,

quando voltou, foi por ele tratada como escrava, insultando-a e deixando ordens ao filho e a

seus escravos para desatendê-la.193

Mas as testemunhas arroladas não confirmam sua versão. Uma senhora afirmou que a

justificante chegou em seu sítio pedindo ajuda e remédios, pois havia sido brutalmente

atacada pelo marido. A senhora, penalizada, a fez deitar e buscou remédios, [...] nessa mesma

occasião não viu ela testemunha nódoas nem pisadura alguma [...]. A testemunha ainda

contou que [...] passadas algumas horas, vieram buscar a dita justificante um irmão e um

negro [...] ela se levantou e os seguiu como se não tivesse moléstia alguma [...].194

                                                            
190
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 9, n. 158.
191
IDEM.
192
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 39.
193
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 35, n. 458.
194
IDEM.
79 

Um reverendo ainda desmente a mulher, dizendo que ela não faz qualquer serviço de

escrava, pelo contrário ele afirma que [...] tem visto e presenciado a justificante mandando

lavar roupa pela escrava Joana, na borda do Rio Tietê, e a justificante sempre vendo seu

serviço [...].195 Obviamente o divórcio foi negado, pois as justificativas da esposa foram

consideradas improcedentes pelo Juízo. Não fica claro desta forma porque a mulher pretendia

divorciar-se, o fato é que ela não trouxe fatos reais às autoridades eclesiásticas, por isso, não

obteve a sentença por ela desejada.

Além disso, algumas mulheres também foram acusadas pelos maridos no Juízo. É

bastante escassa a quantidade de processos de divórcio movidos pelos maridos. A diferença

entre acusações femininas e masculinas é que as mulheres, normalmente, são acusadas de

colocar em risco a vida de seus maridos de forma indireta, ou seja, a mulher contrata alguém

para matá-lo, ou tenta envenená-lo com atos diabólicos ou feitiçaria196.

4. “promete a dita sua mulher mandallo matar”: Acusações contra mulheres.

Em 1819, José Gabriel de Carvalho afirma:

[...] Diz José Gabriel de Carvalho, que elle está casado a face da Igreja a
dezoito annos e sempre estimou e respeitou sua mulher, como Dna. Marida,
porém a doce para treze annos jamais podem se unir pelo forte gênio da dita
sua ulher Genoveva de Sousa Penna, de tal forma que já mandou matar José
da Costa, seo camarada, em occasião[...] achava presente Filisberto Antônio
dos Reis e o Capitão-mor Raimundo Felipe de Izabel chegou na mesma
occasião e ainda o achou ensangüentado e não perigou porque lhe acodiram
Felisberto [...] promete a dita sua mulher mandollo matar [...] 197

Com base no depoimento acima, destaca-se que um homem também poderia sofrer

consequências físicas a partir das atitudes femininas e precisa ser socorrido por terceiros.

Todavia, processos em que os maridos acusam as esposas de violência física são bastante

                                                            
195
IBIDEM.
196
COSTA, R. R L. D. da. Op.cit, p. 213
197
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 9, n. 196.
80 

incomuns. A diferença entre as acusações de homens e mulheres é que as mulheres se

queixam de violência física e do concubinato, enquanto os homens fazem denúncias

envolvendo uso superstições, magia e feitiçaria.

Em Guaratinguetá, por volta de 1780, uma esposa foi acusada pelo marido de adultério

e feitiçaria. Segunda o marido, a esposa lhe ameaçou de morte [...] ainda que fosse por arte

diabólica ou feitiçaria [...]198.

Coincidência ou não, o homem pediu o divórcio quando já estava doente, e disse que a

esposa contratou um negro feiticeiro para que lhe fizesse [...] algum veneno para o matar e,

que quando soubesse que ele era morto, pagaria bem o seu trabalho [...]199, e ainda [...] lhe deu

para beber seo próprio mestruo para enlouquecer, e da mesma sorte vidro moído a fim de o

matar, de que se lhe originaram as gravíssimas moléstias que tem padecido [...]200.

Obviamente, não se esperava este comportamento de uma mulher. Em História das

Mulheres no Brasil201, Emanuel Araújo lembra que às mulheres cabia sujeitar-se ao homem,

pois era a figura masculina que deveria exercer autoridade sobre a mulher, nunca o contrário.

Araújo argumenta que o fundamento religioso aplicado na colônia requisitava a

vigilância masculina constante sobre a mulher, pois, uma mulher ao [...] arrebentar as amarras

ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das

instituições civis e religiosas [...]202.

A figura masculina (avô, pai, tio, padrinho, irmão) era superior, portanto, deveria

exercer autoridade, já que mulheres não eram confiáveis, pois carregavam dentro de si a

essência manipuladora de Eva. São Paulo na Epístola aos Efésios aborda claramente: [...] As

mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor porque o homem é a cabeça da

                                                            
198
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 38.
199
IDEM.
200
IBIDEM.
201
ARAÚJO, Emanuel. Sexualidade feminina na colônia in DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 45-77.
202
IDEM, p. 45.
81 

mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as

mulheres em tudo sujeitas aos maridos [...]203.

A mulher deveria ser permanentemente controlada. O mesmo Paulo de Tarso

determina:

[...] Quanto ás mulheres, que elas tenham roupas descentes, se enfeitem com
pudor e modéstia, nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário
suntuoso, mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, com convém a
mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução, a mulher conserve
o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou
doutrine o homem. Que ela conserve pois, o silêncio. Porque primeiro foi
formado Adão e depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher
que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela
maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na
santidade [...]204.

Em 1486, no tratado de demonologia escrito por Heinrich Kramer e Jakob Sprenger,

dois dominicanos alemães, escreveram um tratado de demonologia, onde afirmam suas

convicções:

[...] Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada
a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura
é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa
falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona a mente [...] São por
natureza mais impressionáveis e mais propensas a receberem influências do
espírito descorporificado [...] possuidoras de linguagem traiçoeira, não se
abstém de contar às suas amigas tudo que aprendem através das artes do mal
[...] Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres.205

Fica explícita a ligação entre a feitiçaria e a sexualidade feminina. Não é a toa que se

acreditava que os feitiços fabricados pelas bruxas eram muito úteis no campo afetivo-

conjugal, fossem para conquistar o amor, fossem para causar a morte.

A administração na bebida de menstruação, por exemplo, tinha o intuito de causar

loucura no marido, a administração de vidro moído na comida para levar á morte ou o filtro

                                                            
203
IBIDEM, p. 46.
204
Op. Cit, p. 46.
205
ARAÚJO, Emanuel. Sexualidade feminina na colônia in DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 46-47.
82 

do amor, que consistia em coar chá ou café nas peças íntimas e oferecer ao homem, na

tentativa de enlouquecê-lo 206.

As sevícias, das quais as mulheres eram acusadas, não implicavam necessariamente

num confronto direto entre as partes. Elas usavam meios indiretos para atingir os maridos, em

ações que podem ser feitas às escondidas. O que se procura nos autos é uma violência

indireta, provavelmente ligada à questão de oportunidade e chance da mulher atingir o

marido.

O marido, por sua vez, poderia sentir-se menos atingido em sua honra se

apresentasse os fatos desta forma, desviando a atenção para atos diabólicos ou de feitiçaria,

contra os quais seria difícil o enfrentamento.

Nos autos os homens foram acusados de envenenamento, mas não de bruxaria. Eles

buscavam usar produtos como mercúrio ou ervas consideradas venenosas, que apresentassem

perigo real à vida humana. Já a mulher fazia uso da superstição e do misterioso, através

feitiços e crendices e com a ajuda de pessoas entendidas no assunto.

5. Quando as mulheres traem ou os maridos desconfiam que são traídos

Os homens também acusavam suas esposas por supostas traições. Todavia, enquanto

as mulheres acusavam os maridos de uma relação ilícita consumada, os homens baseavam-se

em suposições ou desconfianças.

O homem podia simplesmente desconfiar do comportamento de sua esposa, como

por exemplo, se precisasse viajar e se ausentar por tempo considerável, voltava desconfiado

das atitudes da mulher.

Em 1816, em São Paulo, um marido, sempre que viajava ou se ausentava por alguma

razão, voltava pra casa agressivo sempre demonstrando desconfiança em relação á esposa.

Uma das testemunhas afirma que o marido, sempre que voltava para casa após suas viagens,
                                                            
206
Cf. FILHO, Lycurgo de Castro Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo: HUCITEC-EDUSP,
1997, v.1, p.207 in COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 227 e segs.
83 

ameaçava a mulher [...] com facas de ponta aguda para que ela confessasse o que tinha feito,

quando ele andou ausente de sua companhia [...]207

Em outro caso, o marido demonstra ciúme por conta da atividade exercida por sua

esposa. A mulher, que não tinha, de acordos com os autos, qualquer ajuda do marido para sua

sobrevivência, possuía um botequim bastante freqüentado. O marido, que foi descrito pelas

testemunhas do processo como um vadio, quando voltava de suas andanças, maltratava a

esposa por desconfiança e ciúme. As testemunhas não confirmam as acusações do marido, ao

contrário, dizem que a mulher era apenas gentil com seus fregueses e não desonesta ou infiel.

As acusações contra mulheres por adultério quase sempre mencionam relações entre

mulheres casadas e homens livres. Em apenas um processo, da vila de Bragança em 1816, um

escravo foi mencionado. O homem acusava a esposa dizendo ao genro que ela [...] tinha saído

de noite para coabitar com o escravo Salvador [...]. O genro diz em seu testemunho que nunca

desconfiou da sogra e ainda tentou fazer o sogro rever o engano que estava cometendo. Mas

não, a fala do genro não teria surtido qualquer efeito sobre o homem, que continuou com suas

desconfianças, até que, no decorrer no processo, comprovou-se que eram apenas falsas

desconfianças208.

Se havia escravos na casa (escravos domésticos), percebe-se que a maioria dos que

tinham alguma relação mais direta com a intimidade das senhoras eram do sexo feminino, o

que viria a facilitar a infidelidade masculina. Raquel Costa julgou as acusações masculinas

como [...] frutos da irritação, simples desejo de ferir a esposa, do que resultado de fatos reais

[...]209.

Mas nos autos nota-se que os homens também vinham a dizer a verdade. Em

processo movido por um marido da vila de Santos, o homem apresentou sérias queixas quanto

ao comportamento de sua esposa.


                                                            
207
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 162.
208
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 8, n. 139.
209
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit., p 309.
84 

O marido afirma que sua esposa seguia os maus conselhos de sua própria mãe, que

instigava a filha a se prostituir. Ele ainda afirma que sua cunhada também saia de casa durante

a noite [...] para maus fins [...] e que um dia chegou a sua casa e encontrou a esposa e a

cunhada sentadas na porta. Ele pediu às duas que entrassem, no que ambas se negaram. A

cunhada ainda chamou dois rapazes que passavam pela rua, e as duas saíram com os rapazes

para um boteco, deixando o marido enfurecido e causando um grande desentendimento entre

o casal, sendo necessária a interferência de soldados.

Fica claro no decorrer do processo, que de fato, a esposa se aproveitou da saúde

precária do marido para se entregar de vez à prostituição, encarada pela mulher e por sua

família como uma forma de sobrevivência. Mas o homem, devido à sua saúde frágil, faleceu

antes do final do processo, deixando a mulher viúva.210

Havia ainda a preocupação com o relacionamento entre mulheres e párocos. E essa

preocupação não era infundada. Em 1821, um marido apresentou paralelamente ao processo

movido pela esposa, uma petição acusando a mulher de adultério com um reverendo.

A mulher teria recebido autorização para viver em São Paulo, enquanto o marido

continuava vivendo num sítio, na Freguesia de Juquiri. Longe dos olhos do marido, a esposa

então iniciou um relacionamento ilícito com o reverendo que, conseqüentemente, causou um

grande escândalo na cidade. As testemunhas confirmam os fatos apresentados pelo marido e

ainda reforçam a acusação, dizendo que a mulher era conduzida no lombo de um animal até a

chácara do padre. O marido não seguiu com o processo, apesar de a petição ter sido julgada

procedente, porque disse que perdoara a esposa e concordou em proceder com um processo de

divórcio amigável, retirando as acusações de crime.

Nota-se, portanto, que as mulheres poderiam apresentar uma petição ao Juízo

eclesiástico, buscando livrar-se de maus tratos ou denunciar o marido que porventura estaria

                                                            
210
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n.75.
85 

vivendo concubinado com uma escrava ou até mesmo uma índia, mas também poderiam estar

mascarando o verdadeiro motivo pelo qual não queriam mais viver com seus maridos. Podia

uma mulher simplesmente não querer mais viver com o marido e por isso pedir o divórcio?

Perante as autoridades eclesiásticas, não. Mas, em acordo com o marido, podia conseguir um

divórcio amigável.

Mas se o marido não quisesse se separar e o motivo pelo qual de fato a mulher

desejava se emancipar não se enquadrar nos fundamentos legais, talvez o último recurso fosse

alegar ser destratada pelo marido ou acusá-lo de ser infiel. Dna. Maria Francisca, mulher da

elite paulistana, casada pela segunda vez com um cirurgião-mor, é um exemplo de como a

mulher poderia usar a lei a seu favor. O que estimulou Dna. Maria Francisca a pedir o

divórcio foi a intromissão de seu segundo marido na administração da herança que o primeiro

marido havia deixado para ela, ou seja, seu motivo real era financeiro, material.

Contudo, os motivos por ela apresentados foram as supostas sevícias que o marido

teria praticado contra ela. Foi na defesa do marido e no depoimento de testemunhas que a

verdadeira razão para o divórcio veio à tona. É possível que o marido de Dna. Maria

Francisca a tenha ofendido com palavras ou até mesmo a agredido fisicamente, mas fica

evidente que o motivo da discórdia entre o casal era financeiro.

No caso das mulheres escravas, forras ou livres pobres, os motivos apresentados

tinham uma chance maior de serem verdadeiros, já que, na maioria das vezes, não havia muita

coisa a ser dividida numa vida miserável, cheia de percalços e dificuldades.

Claro que isso não significa que mulheres abastadas não fossem fisicamente e

moralmente maltratadas, mas quando se possui bens, boa educação e família localmente

importante existem muitos outros fatores que devem ser levados em consideração, enquanto a

mulher de condição desfavorecida não tinha muito que partilhar ou exigir.


86 

Mulheres eram traídas e maltratadas, mas também maltratavam e traíam, fugindo da

imagem da santa-mãezinha, da mulher submissa. Das esposas legítimas às concubinas,

percebe-se a teia de relações sociais e afetivas criadas por mulheres de todas as classes

sociais. Da mulher casada prostituída à injustamente acusada de ser adúltera, elas criaram

laços sociais que permitiam não apenas a vivência social como também a sobrevivência.

Os laços afetivos e sociais, bem como a religiosidade que permearam os processos de

divórcio em São Paulo, presentes nos relatos de homens e mulheres e, principalmente nos

depoimentos das testemunhas serão discutidos no capítulo a seguir.


87 

CAPITULO III

Religiosidade, Sociabilidade e Família em Meio ao Conflito do Divórcio

Os processos de divórcio revelam muito do cotidiano de mulheres e escravos, das

reclamações, das frustrações, da maneira como as tensões efervesceram na sociedade, e de

que forma faziam parte dela. Como descreve Sandra Graham:

[...] Recolhiam-se depoimentos de testemunhas relevantes, quem quer que


fossem – de pobres e analfabetos a ricos e influentes, as quais, por sua vez
estavam aptas a fornecer informações sobre aspectos íntimos ou mundanos
que nenhuma fonte pode fornecer ao historiador [...].211

As causas para a efetivação de um processo de divórcio perpétuo, segundo a

legislação, eram: ocorrência do crime de adultério; abandono do lar; não cumprimento das

obrigações maritais e união carnal entre adulterinos.

Alguns aspectos gerais sobre os processos de divórcio devem ser compreendidos antes

de uma análise mais completa dos seus conteúdos. Ressalto que, em alguns processos

analisados, o intervalo de tempo entre a data do casamento e a data do pedido de divórcio

entre os casais não pôde ser determinado pela ausência de informações mais precisas. Ainda

assim, foi possível perceber que alguns destes casais viveram entre quatro e trinta anos juntos.

A expressão [...] viveram juntos por muitos anos [...], ainda que não definisse com

exatidão estes períodos, foi mencionada em considerável número de processos estudados.

Durante o tempo de vida conjugal, alternando momentos de brigas e de harmonia, a

convivência de muitos casais foi se tornando insuportável, fazendo com que os mesmos

buscassem no divórcio uma alternativa legal para a resolução de seus impasses conjugais.

Os envolvidos nesses documentos ocupavam as mais variadas camadas sociais. Eram

fazendeiros, negociantes, agentes de negócios e oficiais de justiça, mas também apareciam

                                                            
211
GRAHAM, S. L. Op. cit, p. 12.
88 

pessoas pouco ou nada abastadas como o pequeno agricultor, o alfaiate, o pintor, a fiandeira, o

sapateiro, o carpinteiro, entre outros.

O convívio cotidiano com os principais envolvidos no processo era um fator

importante para o poder eclesiástico, pois apontava para um maior conhecimento dos

pormenores da vida dos casais em questão, o que conferia segurança aos rumos que os

processos supostamente tomariam.

1. “ Público e notório”: vida social e divórcio

[...] quando o justificado se ausentou para Curitiba deixou a justificante na


maior e mais deplorável miséria e necessidade, sem deixar para sua
sustentação, nenhuma espiga de milho e que elle testemunha, chegou a
justificante a lhe pedir o que comer, e por elle vista em total desamparo. Se
recolheu para a casa de seu irmão José Pires e está na sua companhia athé o
justificado retornar á dita freguesia [...].212

A freguesia era a de Cotia. O ano era 1801. Já haviam passado quatorze dias do mês

de dezembro. Uma petição de divórcio foi apresentada no cartório do Auditório Geral

Eclesiástico, na cidade de São Paulo.

A costureira Bárbara de Oliveira e Moraes apresentou uma petição ao Juízo, com

intenção de pôr fim ao seu casamento com Salvador Mariano de Camargo. A costureira, que

vivia com o marido em um sítio, contou às autoridades eclesiásticas que era muito maltratada

pelo marido.

Os espancamentos e maus tratos teriam levado Bárbara a reivindicar a separação

perpétua. No depoimento das testemunhas se torna possível vislumbrar o dia a dia do casal.

Consta nos autos que Salvador, um curitibano tido como violento por quem o

conhecia, agredia a esposa diária e publicamente. Dava-lhe pancadas, jogava seus pertences

no fogo e a deixava passar por necessidades, obrigando a mulher a esmolar comida e ajuda

aos próprios escravos. Após um dos ataques à esposa, Salvador viajou para Curitiba. Bárbara
                                                            
212
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
89 

ficou muito machucada. Com a ausência do senhor, um dos escravos ajudou a mulher ferida a

fugir para a casa de um parente, onde ficou convalescendo de suas feridas. Uma testemunha

descreve nos autos:

[...] lhe deu muitas pancadas e não contente com o que tinha feito ainda
mandou castigar pelos escravos [...] hum dos mesmos escravos,
compadecido pela miserável situação da justificante sua senhora, reabrio a
porta do quarto, Bárbara fugiu e se escondeu na casa de um parente seu,
onde esteve cuidando de suas feridas [...] e se continuasse a justificante a
viver mais tempo em companhia do justificado, seguramente perigaria sua
vida e talves a morte, visto que foi salva por um de seus escravos [...] estes
factos e acontecimentos todos públicos e notórios entre o povo daquela
freguesia [...]213.

Salva por um escravo, Bárbara corria risco de morte se fosse obrigada a viver com o

marido. Era preciso dar fim àquele casamento urgentemente. Perante o Juízo, as sevícias que

Bárbara afirmou ter sofrido são motivos consistentes para a obtenção do divórcio. Enfatizando

que o comportamento de seu marido defrontava-se contra as leis religiosas, a esposa tinha

como testemunhas seus escravos e alguns vizinhos. Todos confirmaram a versão da esposa,

contando às autoridades que viram ou ouviram falar dos maus tratos que Bárbara sofria,

trazendo à tona a importância da questão da sociabilidade na cidade de São Paulo.

Para dar início às discussões sobre religiosidade, vida social e familiar de mulheres e

escravos em São Paulo, desejo lembrar que se faz necessário analisar o conceito colonial de

família, a relação dos colonos com a Justiça Eclesiástica, as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia e as visitações do Santo Ofício.

No Brasil as pesquisas que privilegiam as estruturas domiciliares trazem em seu bojo a

preocupação com as diversas formas de casamento, revelando o entendimento que a

historiografia faz dos arranjos familiares derivados das ligações entre os homens e as

mulheres, desde o início da colonização.

                                                            
213
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Gaveta 4, Estante 15, n. 58.
90 

Em sua obra dedicada à sociedade colonial, Gilberto Freyre, em Casa Grande e

Senzala, desenvolveu a idéia de que a adaptação portuguesa ao modelo de colonização

implantada no Brasil resultou na chamada família patriarcal brasileira. Mariza Corrêa, ao

abordar o tratamento dado à família na obra de Freyre, considera que [...] se a colonização no

Brasil foi um processo díspar, teríamos a constituição de unidades domésticas de variedade

equivalente nas muitas regiões onde se instalaram os primeiros colonizadores [...]214.

Eni de Mesquita observa, no mesmo sentido, que no modelo genérico de estrutura

familiar foram [...] esquecidas as variações que ocorrem na organização da família em função
215
do tempo, do espaço e dos diferentes grupos sociais [...] , enquanto Sheila Faria ressalta a

especificidade da formação familiar no sudeste, uma vez que a estrutura da família paulista,

por exemplo, mostrou-se diferente daquela apresentada por Freyre na região de lavoura

canavieira no Nordeste216.

O tema tornou-se recorrente na historiografia e pesquisas foram direcionadas para a

organização e formação socioeconômica das cidades, permeando assim a vivência e a

convivência na colônia.

De acordo com Maria Beatriz Nader, em artigo publicado na Revista Brasileira de

História “Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX - o olhar da historiografia” na década

de 1970 os historiadores se debruçaram sobre temas anteriormente pesquisados, buscando

novas perspectivas para compreender a sociedade brasileira:

[...] A historiografia produzida forneceu inúmeros trabalhos sobre as


diversas formas de arranjos familiares e revelou o entendimento das ligações
entre os homens e as mulheres. Mesmo com a evolução das pesquisas sobre

                                                            
214
CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal. In ALMEIDA, Maria S. Colcha de retalhos: Estudos
sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.20.
215
SAMARA, Eni de Mesquita. Tendências atuais da História da família no Brasil. In: A. M. et. al. (Orgs.).
Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
216
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
91 

a família, os estudos levam à compreensão de que todas as composições


familiares na sociedade têm no casamento sua base [...]217.

Nesse caso, o casamento seria considerado uma engrenagem para manutenção e

transmissão do patrimônio; um espaço para interesses pessoais e de formação de um sistema

de dominação política e econômica. Garantia a transferência da autoridade paterna para o

marido, que passava a ter a função de disciplinar a esposa e a prole. Com isso, o marido (e

também o pai), tinha legitimidade para os atos de violência contra a esposa e os filhos.

É relevante analisar a construção familiar, uma vez que as normas que seguem sua

formação, a estruturação e composição da família e a desagregação do grupo familiar são

elementos importantes para a compreensão da sociedade como um todo.

Contudo é importante lembrar que o sentido do termo família, como casal e filhos, é

muito recente, como destaca Jean Louis Flandrin. Para Flandrin, o conceito de família, tal

como hoje é habitualmente definido (pai-mãe-filho), é um fenômeno bastante atual, chamando

a atenção para os diferentes sentidos do conceito de família. Segundo Flandrin, podemos

considerar como família todos que viviam na mesma casa218, os parentes consangüíneos mais

próximos ou então os consangüíneos que não viviam na mesma residência.219

Em sua dissertação de mestrado, Raquel da Costa também faz menção ao amplo

conceito que o termo família pode abranger.

[...] Privilegiamos o grupo pai-mãe-filhos, mas não podemos deixar de lado


na análise as relações existentes a partir de sentidos mais amplos do termo
família, isto é, de todos que vivem na mesma casa sob um chefe e dos
parentes em geral, sem haver a co-residência, não esquecendo dos escravos,
componentes da sociedade colonial, presentes nos autos utilizados e
importantes na vida conjugal e familiar [...]220.

                                                            
217
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX - o olhar da historiografia. Revista
Brasileira de História. Vol. 23 n. 46. São Paulo, 2003.
218
Incluindo escravos, afilhados e até mesmo concubinos.
219
FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995, p. 30-41.
220
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 5.
92 

Assim, levando em conta a relevância do casamento para a construção da instituição

familiar, era necessário que houvesse mulheres brancas na colônia. Desde o início do processo

de povoamento no Brasil, os colonos procuraram manter o estilo de casamento existente em

Portugal, dessa maneira, casar-se com mulheres nativas ou escravas não era o ideal. Certo

seria casar-se com mulheres da corte. Para tanto, era preciso trazer mulheres brancas para a

colônia.221

Poderiam ser órfãs ou meretrizes diziam os jesuítas. Pouco importava que essas

mulheres não fossem “de família”. O que importava é que fossem mulheres em condições de

contraírem casamento com os colonos que pertenciam a diferentes classes sociais. 222

Os comportamentos femininos do Brasil dos séculos XVIII e XIX caracterizavam-se

como “virtuosos” e resultantes de um padrão moral imposto pela ação conjunta entre a Igreja

Católica e o Estado. As normas do Concílio de Trento (1545-1563) atuaram por todo período

colonial, não somente reforçando os valores da Igreja, como por exemplo, o sacramento do

matrimônio, mas também legitimando a condição posta como superior do homem em seu

papel de pai, marido ou padre. Tanto o Estado como a Igreja se apresentaram como instâncias

de regulação, de arbitragem e de delimitação de poderes. 223

                                                            
221
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial: São Paulo, Edusp, 1984.
Sobre a vinda dos colonos e as mudanças sociais e familiares advindas desse intercâmbio, ver Algranti, Leila Mazan.
Famílias e vinda doméstica In NOVAES, Fernando A. e SOUZA, Laura de Mello (Orgs). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 1, p. 83-153. Segundo Algranti,
[...] Nos primeiros séculos da colonização, a organização familiar e a vida doméstica não poderiam deixar de ser
influenciadas por alguns dos elementos que marcaram profundamente a formação da sociedade brasileira e o modo de vida de
seus habitantes. A distância da metrópole – que dividia muitas vezes os membros de uma família entre os dois lados do
Atlântico -, a falta de mulheres brancas, a presença da escravidão negra e indígena, a constante expansão do território, assim
como a precariedade de recursos e de toda sorte de produtos com os quais estavam acostumados os colonos no seu dia-a-dia,
são apenas alguns dos componentes que levaram a transformações de práticas e costumes solidamente constituídos no Reino,
tanto no que se refere à constituição das famílias como aos padrões de moradia, alimentação e hábitos domésticos[...], p.84-5.
222
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX. O olhar da historiografia. Revista Brasileira de
História. Vol.23 n.46. São Paulo, 2003.
223
Em 1545-1563, foi convocado o Concílio Ecumênico da Igreja Católica que iniciou uma redefinição de seus dogmas
essenciais. O Concílio foi inaugurado em Trento, norte de Itália, desenvolvendo-se em três fases. A primeira (1545-1547)
tratou dos temas colocados pelos protestantes, dedicando-se a justificá-los. A segunda (1551-1552) concentrou-se na questão
dos sete sacramentos. No período final (1561-1563), foram tratadas condições disciplinárias, frisando o problema da
residência episcopal, considerado, unanimemente, um assunto chave para a execução da Reforma. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/articles/4747/1/Um-Estudo-Sobre-O-Concilio-De Trento/pagina1.html#ixzz0t6mcDZUq>.
Acesso em: 25 set. 2009.
93 

Fixaram princípios e os distribuíram de acordo com as fronteiras e as hierarquias

estabelecidas. Essas duas grandes instituições, produtoras de poder, buscavam agir como

princípio de direito por meio de mecanismos legais de interdição e sanção.

Todavia, como destacou Caio Prado Jr.:

[...] Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociedade colonial:


incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia;
dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes leigos e
eclesiásticos. Neste verdadeiro descalabro, ruína em que chafurdava a
colônia e sua variada população, que encontramos da vitalidade, capacidade
renovadora?[...].224

Prado sintetiza que a realidade colonial se esboçava em tremenda desordem e que, se

esta colonização tinha como núcleo a família ou a família do senhor, (da pequena maioria,

portanto, e isto se esquece freqüentemente) a colonização ficou muito aquém da sua missão.

Na visão de Caio Prado Jr, o papel que deveria ser exercido pela instituição familiar, como

formadora dos indivíduos e de seu caráter, deu lugar à promiscuidade com escravos [...] do

mais baixo teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais irregulares e

desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal disfarçada por uma hipócrita submissão,

puramente formal, ao pai e chefe [...]225.

Por esta razão, não se pode esperar dos mandamentos da Igreja ou do Estado um freio

sério à corrupção dos costumes. Como ouviu St. Hilaire do vigário de São João del-Rei, [...]

os brasileiros são naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além dos sentidos; e

quanto aos pastores, estes parecem considerar a ofensa e o perdão como simples funções

maquinais [...]226.

Nota-se que, à revelia das leis civis e eclesiásticas, os homens que vieram a povoar a

colônia facilitavam a miscigenação. Gilberto Freyre menciona que, apesar da desaprovação da

                                                            
224
PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 354-5.
225
IDEM, p. 354-5.
226
IDEM, p. 352.
94 

Igreja, os colonos deitavam-se com suas escravas e com as mulheres nativas. Ressalta também

o projeto político e econômico do Estado Português de ocupar as vastas terras brasileiras227.

Edgar Gomes, ao analisar algumas cartas jesuíticas do século XVI, faz as seguintes

considerações:

[...] Nóbrega atacou a mancebia e o cativeiro dos índios. A miscigenação


povoava a terra naqueles tempos. Os inacianos queriam atacar esses males.
Além de escravizar os nativos, os colonizadores se serviam das mulheres
indígenas como objeto de seu prazer [...] A exploração sexual da mulher
indígena esteve em curso desde os primeiros colonizadores [...] “A facilidade
de obter índias assultanava os portugueses [...] houve quem se desse ao luxo
– ou ao desleixo – de servir-se à mesa por mulheres nuas. Padres [...]
deixaram-se também levar no rojão da carne” [...] As índias eram
descartáveis “É terrível esta sede maldita de músculos de homens e mucosa
de mulher, infelizmente todo mal não para por ai”. Nóbrega, de certa forma,
se escandalizava com a imoralidade reinante na colônia. Acreditou, o padre
Nóbrega, que a nomeação de um prelado para a Colônia poderia moralizar os
costumes [...].228

Segundo Eliana Goldschmidt, autora de Convivendo com o pecado:

[...] Portugal estabeleceu no Brasil uma linha legislativa derivada do


Concílio de Trento na qual o que não era virtude, era pecado, o que não
competia ao espírito, pertencia à carne, envolvendo a humanidade em
combate maniqueísta em torno da salvação.229 Transmitido universalmente
aos descendentes de Adão e Eva, o pecado original adquiriu o direito de
reparação do “estado de ofensa” entre eles e Deus com a morte do Cristo, e
perpetuou esta redenção através do sacramento do batismo [...]230.

Os séculos de dominação na colônia viram grandes fluxos de pessoas, sobretudo

masculinas, buscarem adaptação no Novo Mundo. Para o projeto metropolitano de ocupação

do território descoberto, seria necessário organizar socialmente a população que vivia na

colônia. Para a execução desse projeto, a Igreja católica, a serviço do Estado, desenvolveu os

                                                            
227
Cf. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2004, p. 366-573. Freyre dedicou dois
capítulos (Caps. IV e V) de sua obra à questão do escravo negro e a vida sexual e de família do brasileiro.
228
GOMES, Edgar da Silva; NÓBREGA, Manoel da: A Presença do Catolicismo na Fundação de São Paulo.
São Paulo: Paulinas, Revista de Cultura Teológica. Ano XII, n. 48, jul/set, 2004. p. 89-106.
229
GOLDSCHIMDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822).
São Paulo: Annablume, 1998, p.27.
230
BOSSY, John. Cristandade no Ocidente 1400-1700. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 18-19 apud
GOLDSCHIMDT, E. M. R. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822). São Paulo:
Annablume, 1998, p. 27.
95 

projetos reformistas do Concílio de Trento, que fundamentaram as Constituições Primeiras do

Arcebispado da Bahia. As constituições repassaram as leis eclesiásticas estabelecidas pelo

Concílio Tridentino. Davam ordem às uniões carnais, muito embora, assim como as leis

civis, suas normas variassem entre os grupos sociais, as raças, o estatuto jurídico dos

indivíduos e principalmente, de uma capitania para outra. 231

O texto das Constituições pregava que o casamento era o único meio cristão de

dominar os corpos e legitimar as uniões naturais entre os sexos, buscando dominar o que

podemos chamar de sexualidade ilícita. Eliana Goldschimidt descreve:

[...] Entende-se por sexualidade ilícita no período colonial o desrespeito aos


limites traçados no Concílio de Trento que circunscreviam o padrão a ser
seguido pelas populações católicas ao sacramento matrimonial e por
extensão à mulher honrada. No Brasil, o marco do esforço colonial para se
enquadrar nas determinações tridentinas é constituído pela publicação, em
1719, do compêndio legislativo intitulado Constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia, o qual vigorou inalterado até 1822. Dentre os temas
de conteúdo moral, relacionou os chamados “delitos da carne”: sodomia,
estupro, sedução, concubinato, adultério, incesto, bestialidade, lenocídio e
molície, [entre outros] os quais juntamente com a bigamia eram levados ao
conhecimento das autoridades episcopais através da denúncia judicial [...].232

Com a intenção de dominar corpos e consciências, foi montada uma rede de

informantes laicos e eclesiásticos. A idéia era adentrar na intimidade dos colonos:

[...] E confessando sua culpa dentro, neste tempo da graça, disse que, sendo
ele de idade de nove ou dez anos, nesta cidade, em casa de Cristóvão de
Barros, ouviu dizer a Francisco Nunes, criado do dito Cristóvão de Barros,
que ora mostra ser de idade de vinte e dois anos, estando ambos sós, vindo a
falar no pecado da carne, que dormir homem com mulher não era pecado. E
isto lhe disse o dito Francisco Nunes, o qual é natural de Ilhéus e ele o tem
por cristão-velho e é irmão de Gaspar Fernandes, capelão desta Sé. E por ele
confessante cuidar que o dito Francisco Nunes lhe disse era verdade, que
dormir um homem com uma mulher não era pecado, assim teve para si por
espaço de alguns dias, e estando neste erro, isto mesmo disse a algumas
pessoas, até que o dito capelão Gaspar Fernandes emendou a ele confessante
deste erro em que estava, e lhe declarou como fazer o sobredito era pecado, e
                                                            
231
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX. O olhar da historiografia. Revista
Brasileira de História. Vol.23 no.46. São Paulo, 2003.
232
GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822).
São Paulo: Annablume, 1998.p.17.
96 

nunca mais disse a ninguém que o não era, como dantes tinha dito, e que
desta culpa pede perdão. E sendo mais perguntado, disse que o dito
Francisco Nunes, quando disse que dormir um homem e uma mulher não era
pecado, não lhe declarou mais outra qualidade alguma de solteira, solteiro ou
casado, mas simplesmente homem com mulher, e que não sabe o dito
Francisco Nunes está ainda hoje na dita falsa opinião, nem tem dele por
outra via resposta ruim [...]. 233

Contudo o pecado não era apenas uma construção intelectual, era motivo de tensão

entre os desejos individuais dos colonos e os ideais da Igreja e do Estado. Asunción Lavrin,

na introdução de Sexualidade e Casamento na América Latina Colonial afirma:

[...] Em princípio, na sociedade colonial sulamericana, o sexo era permitido


somente após o casamento. Mas a realidade era muito mais complexa e
flexível. O concubinato e as relações ilícitas eram práticas comuns e
constantes. Concubinato e ilegitimidade eram constantemente numerosos.
Além disso, as persistentes tensões em relação ao casamento e à sexualidade
– entre a Igreja e o Estado de um lado e entre o desejo individual e a
limitação social do outro [...]234.

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador”. O ditado que corria solto na Europa

no século XVII, e que se tornou verso do músico e compositor brasileiro Chico Buarque, faz

alusão, segundo Ronaldo Vainfas, à liberdade sexual nos tempos coloniais.

Em artigo publicado na revista Nossa História, Vainfas argumenta que muitos

cronistas e historiadores associaram, em tom moralista, a liberdade sexual dos colonos à

ausência quase completa de religião. 235

[...] Afinal, nosso clero aqui sempre foi escasso, a Igreja desorganizada e
muitos padres mal ligavam para seu ofício espiritual. Padres mal preparados
e poucos, com a excepção quase solitária dos jesuítas, vale insistir que
Gilberto Freyre chamou, com bom humor, de “donzelões intransigentes” –
incansáveis no propósito de propagar a fé e moralizar os costumes [...]236.

                                                            
233
VAINFAS, Ronaldo (org). Confissões da Bahia: Santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia
das letras, 1997 – Retratos do Brasil. A Igreja diferenciava a fornicação simples (relações entre pessoas solteiras)
da fornicação qualificada (adultérios, concubinatos, relações com freiras, sodomia, bestialidade, etc.). O
monitório da visitação já incluía como heresia o dizer que não havia pecado na fornicação. p.130-1.
234
LAVRIN. Asunción. Sexuality and marriage in colonial Latin America. Nebraska: University of Nebraska
Press, 1989.
235
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História. Vol. 1, n. 1, 2003. p. 11-17.
236
IDEM, p. 12.
97 

Mas será que teria sido assim? O pecado era parte da rotina na colônia enquanto a

religião ficava de lado? Vainfas destaca que:

[...] Por volta de 1591, a Inquisição mandou um visitador do Santo Ofício ao


Brasil para averiguar a quantas andava a fé e o comportamento dos colonos.
O que tais documentos revelam, antes de tudo, é o sentimento de culpa que
atormentava - ou podia atormentar - os próprios portugueses, sabedores do
quanto pecavam na terra, principalmente com as índias. Mas como é possível
saber o que se passava na consciência desses portugueses há 500 anos? A
resposta está no tipo de denúncia que a Inquisição recolheu, naquele tempo,
contra os que diziam que fornicar não era pecado: muitos colonos acusavam
os que diziam, sobretudo nas conversas masculinas nas tavernas, engenhos e
vilas, regadas a vinho que fornicar não era pecado. Narrando suas aventuras
sexuais, muitos riam, enquanto alguns polemizavam, dizendo que fornicar
era pecado sim, e pecado mortal que condeva ao inferno [...]237.

O pecado fazia parte do dia a dia, assim como Deus e o Diabo. Religião e sexo

caminhavam juntos e faziam parte dos contornos das relações sociais já no século XVI:

[...] E confessando suas culpas, disse que haverá dez anos pouco mais ou
menos, sendo ela de idade de treze ou catorze anos, estando em casa de seu
pai nesta cidade, sendo donzela, veio ter um dia à sua casa outra moça do seu
próprio corpo então, e que parecia ser da sua própria idade então, sua
vizinha, com a qual costumava folgar muitas vezes, filha de um carpinteiro,
parecia-lhe que tinha por nome Francisca, moravam em uma rua que vai do
terreiro de Jesus para a horta do correeiro, onde mora Domingos d’Almeida,
a qual ora é casada com Gonçalo Gonçalves, mestre de açucar do engenho
de Antônio Francisco do Porto. E estando assim, ambas a sós em casa,
fecharam a porta por dentro e se deitaram sobre uma cama e tiveram ambas
o nefando ajuntamento carnal [...]. 238

O Santo Ofício estava então empenhado em moralizar os colonos. Entre denúncias e

confissões, surge a mistura entre as coisas da fé e o desejo. Vainfas, no artigo acima citado,

conta algumas estórias presentes nos documentos da Inquisição:

[...] certa mulher, flagelada por um temporal na Bahia, gritou que Deus
mijava sobre ela e a queria afogar e outra, de língua espanhola, na mesma
situação, bradou: Bendito sea el carajo de mi señor Jesu Christo que agora

                                                            
237
IBIDEM, p. 13.
238
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo:
Companhia das letras, 1997 – Retratos do Brasil, p. 257-261.
98 

mija sobre mi. Acusadas de blasfêmia, ouviram do visitador: Deus não mija,
que é coisa pertencente oa homem e não a Deus [...]. 239

Além da blasfêmia, o uso de termos escatofônicos e a sexualização do divino também

eram comuns. Virgem Maria era mesmo virgem, antes, durante e depois do parto?

[...] Houve muitos que a chamaram diretamente de puta – usando mesmo


este palavrão. E um grande poeta daquele tempo, não hesitou, certa vez, em
jurar pelo pentelho da Virgem. Blasfêmias dos colonos? Sem dúvida, mas
também prova cabal de que o sagrado podia conviver com desejo e sexo
[...]240.

Na sociedade colonial o pecado era parte do cotidiano. As práticas irracionais do

instinto contrapunham-se à racionalidade da normas, promovendo repúdio por parte daqueles

que tinham a intenção de moralizar a sociedade ainda em formação no Brasil.

Estariam enganados aqueles que acreditam que as leis eclesiásticas dominaram os

hábitos dos colonos, assim como também se enganariam aqueles que afirmam que a Igreja

não exercia considerável intervenção. Sem radicalismos, é preciso relativizar o alcance das

normas e leis eclesiásticas, uma vez considerada a vastidão do território e a dispersão da

população que acabavam por resultar numa administração civil e eclesiástica mal aparelhada.

Não é possivel generalizar comportamentos e pensamentos. Os sujeitos absorviam –

ou não – as regras; cada um à sua maneira. Seria impraticável medir o sentimento religioso

de cada colono. Prosseguindo com Caio Prado:

[...] A Igreja forma assim uma esfera de grande importância da


administração pública. Emparelha-se com a administração civil e, é mesmo
muito difícil, se não impossível, distinguir na prática uma da outra em
muitos correntes casos. Daí os atritos, que são frequentes, entre autoridades
civis e eclesiásticas. Porém, mais comum e normal é a coloboração;
colaboração tão íntima e indispensável ao funcionamento regular da
administração em geral que nada há o que lembre a atualidade. É um
anacronismo berrante projetar relações de hoje da Igreja com a
administração civil, naquele passado, procurando analisá-las com critérios
semelhantes. Mais que simples relações, o que havia era uma verdadeira

                                                            
239
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História. Vol. 1, n. 1, 2003, p. 13.
240
IDEM, p. 13.
99 

comunhão, uma identidade de propósitos animados pelo mesmo espírito


[...]241.

2. Vigilância Eclesiástica

A denunciação judicial é uma manifestação dos crimes, para que por meio
deles sejam castigados os que os cometerem em ordem à satisfação da
República, e da parte, se a houver.
[Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia].242

No mundo ibérico Inquisição, Igreja e Estado, justificados pela teoria da salvação,

intentavam exercer uma função complementar e disciplinadora das sociedades coloniais,

vigiando e fazendo vigiar a observância de sua doutrina através da instituição da dinâmica da

delação.243

Entre o fim do século XVIII e início do XIX, homens e mulheres que circulavam

diariamente pelas vias publicas paulistanas ainda viviam em clima de denúncia e envolvidos

em trâmites judiciários e práticas populares, como mostra Eliana Goldschmidt:

[...] O incentivo à delatação começava com a exigência de apresentação à


Mesa do Santo Ofício no primeiro domingo da quaresma, para declarar todo
e qualquer ato de heresia relacionado em seu monitório. Não havia critério
de julgamento para as acusaçòes feitas, recebendo-se inclusive as formuladas
por pessoas legalmente desqualificadas, de crédito duvidoso ou de suposta
falsidade; e as produzidas anonimamente, por ouvir dizer e ainda por
presumir: a validade delas dependeria da vontade de cada inquisidor [...]244.

As fontes pesquisadas dão conta de que era preciso não apenas evitar o pecado, mas

ter cautela e estar atento aos deslizes dos outros. Todos os envolvidos em um processo de

divórcio, tanto justificante como justificado e, principalmente, as testemunhas, faziam

                                                            
241
PRADO Jr. Op.cit, p.329.
242
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo:
Companhia das letras, 1997 – Retratos do Brasil, p. 67.
243
GOLDSCHIMIDT, E. M. R. Op.cit, p.67
244
IDEM, p.68.
100 

acusações que visavam desconstruir a imagem do outro perante as autoridades eclesiásticas e

a sociedade.

Em 1828, testemunhas atestam que o marido de Antônia Justina Vieira, o alferes

Antônio Gonçalves de Oliveira, era um homem devasso, que não tinha qualquer compromisso

com a honra, religião e temor a Deus.

[...] Porque o marido esquecendo-se dos deveres do seu estado tem


maltratado a Antônia não só com escandalozos impropérios, mas com todo
gênero de crueldades, espancando e sem motivo algum injuriando-a de
palavras picantes e athé lançando-a para fora de casa, motivo porque
Antônia se recolheu em casa de seu pai, o Sargento-mor Francisco Viera [...]
continuou na amizade ilícita que já tinha antes de se casar com huma cabra
de nome Francisca [...] e depois se introduzio de amizade com outra cabra de
nome Anna [...] publicamente concubinado [...]245.

As denúncias de atos que atentam gravemente contra as leis eclesiáticas são

recorrentes nos processos de divórcio. Na intenção de contextualizar a mulher em um

ambiente violento e perigoso, advogados faziam menção às violações contra as leis da Igreja.

Os espancamentos, as ameaças e os xingamentos somavam-se ao concubinato, a bestiliadade

e às uniões pecaminosas baseadas na desigualdade social entre os membros (senhor e

escrava). Os sujeitos deviam ser, ainda que na teoria, honrosos e tementes às leis de Deus.

Em todos os processos constam os juramentos:

[...] Manuel Joaquim da Silveira, casado em face da Igreja, natural morador


da Freguesia de Cotia deste Bispado, de idade que deve ser de trinta e cinco
anos, que vive de suas lavouras, testemunha aqui ao Reverendíssimo Doutor
Vigário Geral devido juramento dos Santos Evangelhos [...] em que pôs sua
mão direita subcargo do cargo do qual me foi encarregado, que dissesse
verdade do que blefe [...]246.

As qualidades mais comuns da justificante eram: “uma mulher honrosa”, “boa esposa”,

“religiosa”, “obediente” e “dedicada”.

                                                            
245
ACMSP Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
246
ACMSP Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
101 

[...] Religiosa servindo a hum marido apezar de suas tiranias, com todo
amor e cuidado e em tudo cumprindo com seus deveres [...] ela sempre
serviu e obedeceu [...] Joaquim Vieira de Brito, casado, natural da Vila de
Santo Amaro e morador de São Roque de idade que dice ser de quarenta e
três annos, que vive de sua lavoura e do trato de animais [...] testemunha em
razam de próprio e verdadeiro conhecimento e por terem ouvido na
visinhança [...] Testemunha que o justificado dava muitas pancadas em sua
esposa [...]. Comportada e cheia de toda honra, saúde e paz no Senhor que de
todos hé verdadeiro remédio, lus e salvação [...]. Que a justificante hé casada
e recebida em face da Igreja [...] obedecendo-lhe, servindo-o e amando-o
como praticão as mulhes honradas [...] ser a mesma comportada, quieta e
pouco ficando pela vizinhança [...]247.

Neste contexto os espaços da família e da religião podem ser vistos ao mesmo tempo

como locais da materialização do poder seja de classe, seja de gênero. Trata-se de espaços de

compartilhamento de experiências vividas diferencialmente por homens e mulheres, que por

sua vez, são portadores de identidades diferenciadas.

A vivência conflituosa entre classes e gêneros desenhava o espaço social paulistano. A

diversificada população de livres, forros e escravos, no processo de ocupação do perímetro

urbano, favoreceram um modo de vida na cidade permeado por tensões.

As relações sociais, apesar de seu caráter hierárquico, também eram marcadas por

fortes ligações vicinais, de parentesco e amizade, como podemos testemunhar na petição de

divórcio da branca livre Gertrudez Maria Joaquina do Nascimento. No ano de 1790,

Gertrudez acusava seu marido de espancá-la e viver concubinado com uma mulata forra de

nome Caetana, moradora do bairro São Bento. Rosa Francisca, uma preta forra vinda de

Guiné, amiga de Gertrudes, testemunha:

[...] Rosa Francisca, preta forra de naçam de Guiné e moradora nesta cidade,
de idade que dice ser de trinta annos, que vive do trabalho de suas mãos de
lavar e fiar algodam testemunha, por presencear na própria caza, digo na sua
própria caza248, onde se veio a justificante recolher no tempo das bexigas,
vindo a justificante com ella de seu sítio com seu marido, e filhos, [...] por
não ter onde morar, dando assim ella testemunha este abrigo [...] o marido da

                                                            
247
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 122.
248
Erro do escrivão. A intenção era escrever: “por precencear na sua própria caza”, mas acabou escrevendo: “por
precencear na própria caza”. Para reaver o erro ele recorre ao “digo”. Assim lê-se: “por precensear na própria
caza, digo, na sua própria caza”.
102 

justificante, perseguindo-a com coices e pancadas com as mesmas botas que


trazia calçadas, lançando-as cama abaixo na occasiam de sua prenhez [...] o
marido da justificante então já vivia com esta mulata forra, de nome Caetana
e com quem até agora vive concubinado, ordinário: que desta verdade
ignore: que esta concubina foi muitas vezes dela a testemunha, onde a
justificante e seo marido viviam, procurar por elle, e sem medo e sem
vergonha que o botacesse para fora. [...] vive e mora em casa de Caetana sua
concubina, lá vive em mora dias, noites e semanas inteiras, o que dice ella
testemunha saber por ver e presenciar quanto tinha deposto como por ser
fama pública e notória nesta cidade [...]249.

Neste depoimento estão presentes diversos aspectos da vida social e conjugal dessa

mulher paulistana. Rosa Francisca, uma preta forra que vivia do trabalho de suas mãos,

corrobora as afirmações da amiga, a branca livre Gertrudez. Afirma que Luis estava

concubinado com a mulata forra Caetana e era na casa da mulata que ele passava os dias e as

noites, além de espancar Gertrudes, inclusive durante a gestação.

Rosa também abrigou a amiga com o marido Luis e os filhos durante um surto de

varíola. Nesse período, Caetana foi à casa de Rosa para encontrar Luis, às vistas de Gertrudes.

Nota-se que a preta forra ficou muito revoltada com o fato de que Luis não pediu para

Caetana se retirar, chamando-o de “ordinário”. Ao que parece, Rosa tinha apreço pela amiga

Gertrudes, e afirmou saber dos fatos não apenas por presenciá-los, mas porque eram “públicos

e notórios”. Ou seja, a vida conjugal de Gertrudes perambulava pelas ruas da cidade como as

tropas de muar e os carros de boi. O falatório e o burburinho quanto à vida alheia são

recorrentes, como se verifica no depoimento de outra testemunha:

[...] Anna Maria de Moraes, solteira, natural desta cidade e nella moradora,
de idade que dice ser de quarenta annos, que vive do trabalho de suas mãos
testemunha a quem o Revendíssimo Senhor Doutor Vigário Geral e
governador deste bispado Paulo de Souza Rocha [...] Ouviu e lhe contou
Rosa Francisca, preta forra desta cidade, que tudo quanto a justificante
padece com o predicto seu marido provem de andar e viver concubinado hà
muitos annos com uma mulata de nome Caetana, com quem comete
adultério e vive de dia e de noite na caza desta mesma concubina,
desamparando por isso a justificante e seus filhos, tratando-a com sevícias,
chegando a tal excesso que estando a justificante prenhe, tendo dado coices
                                                            
249
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
103 

no ventre e ver se periga ella na sua vida e pode abortar. Dice mais ella
testemunha que indo à caza de Dna. Caetana, moradora na Rua Sam Bento
desta mesma cidade, esta mesma Dna. Caetana dice a ella testemunha,
falando sobre a justificante e o estado miserável em que esta vive com seu
marido, que este maltrata muito de sevícias a justificante: o que tudo dice
ella testemunha, não só por lhe diserem, como por ser nesta cidade público e
notório e ainda mais por dizer ella testemunha a mesma justificante algumas
vezes que foi à sua caza, chorando e lamentando seu lastimoso estado [...]250.

Assim sendo, a preta forra Rosa ouviu dizer que Gertrudes padecia frente ao desprezo

e a violência do marido; contou para Anna, que por sua vez, foi até a casa da mulata forra

Caetana na Rua São Bento, de quem ouviu que os boatos eram verdadeiros; Luis traía

Gertrudes e a espancava com freqüência.

Na trama social paulista, esboçava-se uma rede afetiva e moral tecida com

trabalhadores livres, sitiantes das redondezas e pequenos comerciantes das vilas. Esta rede era

cerzida de várias maneiras; através de favores mútuos, parentescos fictícios (compadrio) e

demonstrações recíprocas de afeto.

Eni de Mesquita Samara, em A família brasileira, destacou as particularidades da

formação e do convívio familiar em São Paulo. As famílias extensas, do tipo senhorial,

compostas de pai, mãe, filhos, escravos e agregados não eram numericamente predominantes.

Samara afirma que o mais comum em São Paulo eram famílias com estruturas mais

simples e composta de poucos integrantes. Constatou-se que as extensas, do tipo patriarcal,

eram apenas uma das formas de organização familiar e não chegavam a representar 26% dos

domicílios. Nos demais, ou seja, 74% das casas predominavam outros tipos de composição, o

que significa que famílias extensas eram representativas apenas de um segmento da

população.251

[...] O fato é que nos domicílios com estrutura mais complexa, as ligações de
trabalho eram determinantes. Por isso, é mais comum encontrarmos escravos

                                                            
250
IDEM.
251
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.17-18.
104 

e agregados252, do que parentes e afilhados. No entanto, é importante


considerarmos que por tratar-se de uma sociedade escravista, os dados que
se referem aos domicílios complexos ainda são pouco significativos. É
surpreendente verificarmos que dentre os proprietários locais 64% não
tinham escravos e 80% não tinham agregados. Estamos trabalhando,
portanto com uma pequena parcela da população [...]253.

Esta constituição familiar pode se caracterizar como reflexo da economia vigente em

São Paulo que, nas últimas décadas do XVIII e ao princípio do XIX, era voltada, em sua

maioria, para a produção nas lavouras de subsistência, caminhando à margem da produção de

açúcar para exportação. Os processos de divórcio mostram que um grande número de pessoas,

não apenas em São Paulo, mas também nas vilas, ainda viviam de sua lavoura. Na petição,

envolvendo Salvador e Bárbara, já citada no início deste capítulo, todos os envolvidos viviam

de suas lavouras:

[...] Petiçam por parte de Bárbara de Oliveira e Moraes [...] para efeito de
justificar neste superior juízo [...] contra seu marido Salvador Marianno
Camargo, morador na Freguesia de Cutia, que vive de sua lavoura.
Testemunha 1.
Geraldo José da Silva, casado, natural desta cidade de São Paulo e morador
na Freguesia de Cutia, de idade que deve ser de quarenta annos, que vive de
sua lavoura [...].
Testemunha 2.
Manuel Joaquim da Silveira, casado, natural e morador da Freguesia de
Cutia deste Bispado, de idade que dice ser de trinta e cinco annos, que vive
de suas lavouras [...].
Testemunha 3.
José Fernandes França, casado, natural da Freguesia de Santo Amaro e de
presente morador na Freguesia de São Roque, de idade que deve ser de
sessenta e oito annos, que vive de suas lavouras [...]. 254

                                                            
252
IDEM, p.34-36. Agregados são aqui descritos como indivíduos que nada possuem de seu, por isso se abrigam
na moradia alheia. Eni Samara discorre sobre agregados ligados às famílias locais, ficando difícil explicar
economicamente sua presença em domicílios onde, teoricamente, representam mais despensas do que lucros. Os
exemplos vão desde agregados velhos doentes que viviam da caridade particular, como mulheres que viviam
maritalmente com homens solteiros sem que isso resultasse em uniões definitivas. Muitas vezes, a agregada era
concubina do dono da casa, quadro este que, embora reduzido, não deixa de recompor parte da imagem típica
das famílias brasileiras do período colonial.
253
IBIDEM, p.35. Em dados fornecidos pela autora, dentre os proprietários com escravos predominavam aqueles
com pequeno número: 10% tinham apenas 1 escravo; 32,4% tinham até 10; e somente 1 proprietário possuía
mais de 50 escravos. A presença de escravos e agregados é explicável pela necessidade de mão de obra, já que
esses indivíduos desempenhavam múltiplas funções como serviços domésticos, ajudantes, aprendizes, lavradores
etc.; ainda que muitas vezes exercessem atividades econômicas independentes, com recursos pessoais e escravos
próprios.
254
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
105 

[...] Na Capitania de São Paulo a pequena lavoura não foi eliminada pela expansão do

açúcar [...]255, como fica claro no estudo demográfico realizado por Luna e comentado acima,

era relevante o número de produtores de gêneros alimentícios para abastecimento interno que

possuíam, em média, um a cinco escravos. E foi neste contexto, nas idas e vindas das grandes

fazendas para o centro de São Paulo, ou na produção de gêneros alimentícios em pequenas

propriedades, que os escravos vivenciavam sua sociabilidade e a construção de laços

familiares.

3. Família Escrava

No final da década de 1970 a discussão em torno da família escrava no Brasil buscou

uma nova perspectiva de apresentação do escravo enquanto sujeito histórico ativo, ao invés de

mero objeto desprovido de humanidade e vontade própria. Historiadores renderam esforços

no sentido de resgatar as possibilidades de autonomia e espaços de manobras dos cativos e

libertos. 256

Nesse processo de descentralização dos processos históricos e a descoberta das

histórias de gente sem história, o início dos anos 1980 viu o surgimento de uma série de

estudos publicados sobre a história de homens e mulheres que foram negligenciados pela

historiografia mais tradicional e pela sociedade em que viveram.

[...] à historiografia brasileira, neste momento, se descortina um novo


universo analítico no qual temos como a organização do trabalho e da vida
escrava, a problemática da constituição e quebra da família entre cativos, a
gestação de uma cultura escrava, a questão do liberto no mundo escravista e
o destino da mão de obra liberta no período pós abolição surgem como
desafios a exigir o aprofundamento das análises recentemente iniciadas.257

                                                            
255
SILVA, M.B. N. (Org.). História de São Paulo colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 162.
256
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da
Unicamp, 2004, p. 36.
257
Ver MACHADO, Maria Helena P. T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social
da escravidão. Revista Brasileira de História, Vol. 8, n. 16, 1988. In: ROCHA, C. M. História de famílias
escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004. p. 37-38.
106 

Não à toa, a história de famílias escravas vem suscitando inúmeras divergências de

interpretação. Complexa, sua formação em São Paulo passa pela constituição e o início da

urbanização numa cidade ainda predominantemente rural, o drama e o conflito da adaptação

de homens e mulheres cativos a um cotidiano conflituoso.

Estudiosos desta temática destacam diferentes pontos de vista historiográficos, na

tentativa de buscar esses indivíduos em documentos que, produzidos à sua época, exigem um

estudo atento e minucioso.

José Flavio Motta, em seu trabalho sobre posse de cativos e família escrava em

Bananal nas três primeiras do século XIX, observa que uma primeira aproximação à temática

escrava é possível tomando-se os informes, segundo o estado conjugal:

Quase um terço (32,1%) dos escravos de Lorena na faixa etária dos 15 aos
59 anos eram casados ou viúvos; em Bananal o percentual correlato chaga a
39,8%. Computando-se conjuntamente as duas faixas etárias, a participação
dos casados ou viúvos alcança um terço em Lorena (33,3%) e supera
ligeiramente os dois quintos em Bananal (40,4%). Verifica-se pois, em uma
abordagem ainda pouco refinada, consideradas apenas três grandes faixas
etárias, que a participação dos casados ou viúvos aumenta com a idade dos
cativos, não obstante haver, em termos globais, largo predomínio dos
solteiros”.258

Em artigo escrito em co-autoria, Iraci Del Nero da Costa, Robert Slanes e Stuart B.

Schwartz analisam as listas nominativas de quatro das oito Companhias de Ordenanças de

Lorena para o ano de 1801. 259 Constatou-se que, naquela localidade e naquele ano, 53% dos

escravos tinham família e que a incidência de casamentos entre escravos não pertencentes ao

mesmo senhor era baixa.260

                                                            
258
MOTTA, J. F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-
1829). São Paulo: Annablume, 1999, p. 231.
259
COSTA, Iraci Del Nero da, Slenes; Robert W.; Schwartz, Stuat B. A família escrava em Lorena (1801).
Revista de Estudos econômicos, Vol. 17, número 2, São Paulo, mai/ago, 1987. In: ROCHA, C. M. Histórias de
famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004, p. 38. A autora Cristiany Rocha
ressalta que, diferentemente da maioria das listas nominativas de censos antigos feitos entre o final do século
XVIII e a década de 1840 para toda a Província de São Paulo, as listas utilizadas pelos autores acima citados,
contêm a indicação das relações familiares entre escravos.
260
Os autores adotaram um percentual de 10,3% do total das uniões. Desejo ressaltar que, em nenhum dos
documentos analisados para este trabalho, encontrou-se uniões entre escravos não pertencentes ao mesmo
senhor.
107 

Em uniões entre escravos do mesmo senhor observam-se duas situações: a primeira,

onde os dois cônjuges são escravos e a segunda, onde um é escravo e outro é forro, como no

caso da parda forra Antônia Maria, que apresentou às autoridades eclesiásticas uma petição

para obtenção do divórcio, no ano de 1823.

Em um processo de divórcio com aproximadamente 25 páginas, Antônia conta que

residia na Freguesia de Vila Izabel e foi obrigada pelo seu senhor enquanto era cativa, a casar-

se com um escravo deste mesmo senhor, chamado Francisco. Segue a história como descrita

nos autos:

[...] Diz Antônia Maria parda forra, residente em Vila Izabel deste bispado,
que sendo ella cazada obrigatoriamente, com Francisco escravo do Capitão
Antônio Caettano de Sousa, de quem também era a suplicante captiva, antes
de se libertar foi a suplicante obrigada pelo mesmo a recebê-lo em face da
Igreja com o escravo Francisco, que por ter a suplicante Legal conhecimento
da pécima condussão daquele escravo, porém pellas amarras que lhe fazia o
seu senhor, via-se a suplicante contudo obrigada a recebê-lo, devendo o
senhor seu marido tratá-la estimada como mulher própria, o contrário tem
praticado, ultrajando-a de pancadas, maltratando-a com bofetadas,
arrancando facas para com ellas por em esicução a sua maldade puxando
continuamente outras armas ofensivas para matá-la, que por imensias veses
setemvisto [...] fazendo author impropérios não mesmo dignos de
consideração, apesar da suplicante obdecê-lo, trata-lo afim de viverem
empas o que nunca conseguiu [...] valeu-se do senhor do dito escravo para
que impedice a semelhantes procedimentos, dando as nessesarias
providencias atantas desordens [...] Este pelo contrário se insitou contra ella,
dando-lhe muita pancada, vendo por isso obrigada a fugir para o matto e
ultimamente se recolheu na casa de seu pai, onde athé o presente reside [...] a
supplicante veio a esta cidade procurar meios de se divorciar, que elle jamais
quer ter escravos despozados vendo-se assim a suplicante desvalida e
destituída [...] que ella suplicante, mulher forra, cazada com Francisco,
escravo do Capitam Antônio Caettano de Sousa, moradora da Freguesia de
Santa Izabel, termo de Mogi das Cruzes [...] tem justificado várias sevícias
contra o dito seu marido, e como se segue propôs contra o mesmo a causa do
divórcio [...] mas como o dito marido hé escravo, se faz preciso que seu
senhor authorize para estar em juízo ou para o defender [...] e porque
naquella freguesia, não há oficiais de justiça eclesiástica, a supplicante não
pode com as despesas de hir hum oficial desta cidade para hisso [...]261.

As disputas do casal registradas nos autos revelam a criação de um espantoso

martirológio feminino. O quadro das dificuldades conjugais, registrado pelos tribunais


                                                            
261
Como na Freguesia de Santa Izabel não havia oficiais de justiça, o escrivão notifica que seria necessário
passar precatório a justiças ordinárias de Santa Izabel.
108 

eclesiásticos, retratam mulheres freqüentemente aterrorizadas e brutalizadas pelos maridos,

sob pretextos considerados inconsistentes mesmo para a ótica da época, com o indefectível

pedido de justificação de sevícias.

Embora com muitas acusações paralelas ao lado dos motivos legais, são as agressões

físicas, as sevícias propriamente ditas, as que mais se destacam nos autos, e não poderia ser

diferente, pois as solicitações deveriam conter acusações suficientes para a obtenção de um

resultado positivo frente ao Juízo.

Antônia Maria, a parda forra que deseja emancipar-se de seu marido, aparece, em sua

petição de divórcio, como uma mulher presa não somente à escravidão como a uma união

forçada com um marido violento, além de espancamentos e xingamentos, por vezes públicos,

que extrapolavam a vida privada, vindo a coincidir com a vida coletiva.

Ao tomar contato com este processo, não pude deixar de notar que, de fato, a história

de Antônia Maria sensibiliza o leitor. Fica bastante evidente no processo que muitas pessoas

na vila de Santa Izabel tinham conhecimento da situação de Antônia. Uma das testemunhas,

que disse conhecer Antônia Maria e seu marido Francisco, sabia que os dois eram casados há

mais ou menos sete anos, e sempre ouviu dizer sobre os maus tratos aplicados contra Antônia,

citando inclusive alguns nomes como [...] Antônio do Prado e Alexandre de tal, sabe que a

justificante por ameaças de seu senhor em tempo que delle era escrava foi obrigada a casar

com o justificado seu marido e por ser público sabe que este a tem maltrado com pancadas

[...]262.

Encontrei depoimentos de quatro testemunhas diferentes, nenhuma delas escravas.

Todas eram pessoas livres, que viviam de seus ofícios, como pintor e sapateiro, e todas são

unânimes em afirmar que Antônia Maria era maltratada pelo marido escravo, com a

conivência de seu ex-senhor, o Capitão-mor Antônio Caettano de Sousa.

                                                            
262
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n.245.
109 

O pintor Alexandre José Pedroso, casado, com aproximadamente vinte e três de idade,

contou que o fato de Antônia ser espancada pelo marido era de conhecimento dos moradores

daquela vila e ainda afirma ter testemunhado um dos ataques sofridos pela mulher. [...] em

huma occasiam estando elle testemunha de noite dormindo em casa do dito Capitam, foi

acordado pela justificante afim de lhe acodir, que seu marido lhe ameaçava [...]263.

Este depoimento fornece uma informação considerável: Antônia Maria ainda morava

na casa de seu antigo senhor, junto com seu marido escravo. Obviamente, Antônia visava

deixar os domínios de seu ex-senhor para trás, bem como sua união com Francisco. Contudo,

este fato não anula as sevícias que a parda forra afirmou ter sofrido, o fato é que as marcas de

facadas em seu corpo, somadas aos testemunhos, convenceram os membros do Juízo, que

permitiram que Antônia fosse morar com o pai. Infelizmente, não encontrei outras

informações sobre o pai de Antônia, apenas seu nome: Garcia Ribeiro Leal264.

É relevante ponderar que se dava destaque á violência conjugal também para

sensibilizar as autoridades eclesiásticas. Às vezes a acusação era apenas um artifício, usado

para alcançar a obtenção do divórcio, mas descoberto com o depoimento das testemunhas.265

Daí a importância do depoimento das testemunhas. E quanto mais próximas fossem

do casal, mais verossímil seria seu depoimento, como foi discutido no capítulo anterior. Para

este capítulo, acredito ser importante observar que os depoimentos das testemunhas revelam

que conhecer e ser reconhecido, ou ainda, ouvir falar de alguém conhecido são fatores

absolutamente indispensáveis frente ao Juízo.

Parentes, co-residentes, vizinhos e compadres. Em São Paulo todos pareciam se

conhecer; e de fato se conheciam. Em processos de divórcio a condição de parente, vizinho ou

compadre trazia maior credibilidade aos depoimentos testemunhais.

                                                            
263
IDEM.
264
IBIDEM.
265
Cf. COSTA, R. R. L D.da. Op.cit, p. 203-224.
110 

As parentelas, enraizadas em São Paulo desde os primeiros momentos históricos,

formavam por vezes um novelo único de laços de sangue e de aliança.

Afirmações do tipo: [...] sei disso por ser vizinho [...] e [...] afirma conhecer muito

justificante e justificado por ser seu compadre [...], exemplificam tal proposição. Volto a

recorrer à petição de Antônia Maria. No depoimento, transcrito abaixo, a testemunha atesta

estar ciente dos fatos por ser compadre da justificante e do justificado:

[...] Antônio da Cunha Pinto, branco, viúvo, natural da Freguesia de Nossa


Senhora da Conceiçam dos Guarulhos e morador na Santa Izabel deste
bispado, com idade que dice ser de mais ou menos setenta e quatro annos
[...] Aos Costumes dicesses elle testemunha compadre da justificante
Antônia Maria e do justificado seu marido Francisco, escravo do capitam
Antônio Caettanno de Sousa. E sendo-lhe perguntado pelo contheudo da
petiçam, que lhe foi lida e declarada pelo Reverendíssimo Ministro Doutor
Vigário Geral dice que por teres conhecimento que tem da justificante e do
justificado seu marido e por ves saber que sam casados há sete annos mais
ou menos [...] Sabe que a justificante por ameaças de seu senhor em tempo
que delle era escrava foi obrigada a casar com o justificante seu marido, por
ser público que este a tem maltratado com pancadas, outras ainda com
bofetadas, puxando por facas para ella, vendo-se por estes e outros motivos
depender sua vida delle, como tudo hé público e pela mesma razam sabe que
ainda há bem poucos dias o justificado a queria matar, e seguindo queixas ao
Capitam Antônio Caetanno de Sousa deste facto acontecido com seu marido
escravo do mesmo [...]266.

4. Compadrio

Sandra Graham, em Caetana diz não, dedicou um capítulo à questão do

apadrinhamento, discorrendo sobre como as alianças familiares estabelecidas por sangue e

casamentos ampliavam-se com a prática da cultura católica dos laços voluntários do

apadrinhamento ritual.

Escolher padrinhos e madrinhas para batizar uma criança ligava as famílias a redes

mais amplas de clientelismo, resultando em favores e obrigações para com as crianças. Em

caso de ausência, morte ou qualquer tipo de incapacidade dos pais em exercer suas funções, as

obrigações recaíam sobre os padrinhos. Estes tinham o dever sério e sancionado pela Igreja de

                                                            
266
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
111 

guiar o bem-estar espiritual de uma criança. Não contente apenas com o cuidado material das

crianças, a Igreja lhes proporcionava pais espirituais através do batismo.267

Todos os recém nascidos, como já discutido, deveriam ser batizados, sendo

recomendado veementemente aos pais que não esperassem muito tempo para batizarem seus

filhos, pois os bebês corriam o risco de deixarem esta vida e perderem a salvação por toda

eternidade, tendo em vista que é no batismo que reside o perdão ao pecado original.268

As Constituições consideravam ainda o cativeiro do gentio da terra um dos “fins

injustos” da relação entre senhores e índios, independentemente destes terem sido batizados

ou não.269 Ainda que o sacramento do batismo não alterasse a situação dos índios, por

exemplo, a Igreja contestava o uso de gentios para trabalhos escravos. O mesmo não

acontecia com os africanos.

A escravização do africano, na legislação eclesiástica, era fato inquestionável. As leis

baianas preocupavam-se apenas com os [...] escravos brutos e boçais [...] e de língua não

sabida, [...] como são os que vêm da Mina, e muitos de Angola [...]270.

Contudo, admitindo que muitos deles morriam ainda jovens devido às duras

condições de trabalho, permitiam o batismo de adultos mediante respostas a seis perguntas

que transmitiam o seu consentimento. Eram elas:

Queres lavar a tua alma com água santa?


Queres comer o sal de Deus?
Botas fora de tua alma todos os teus pecados?
Não hás de fazer mais pecados?
Queres ser filhos de Deus?
Botas fora da tua alma o demônio?271

                                                            
267
GRAHAM, S. L. Op. cit. p. 69.
268
GOLDSCHMIDT. E. M. R. Op.cit, p. 27. Segundo a autora, recém nascidos que tivessem suas vidas
ameaçadas deveriam receber o batismo ainda no ventre materno, o batismo seria realizado em qualquer parte do
corpo da criança que estivesse aparecendo; podendo ser as mãozinhas, pés ou cabeça. As que nasciam saudáveis,
de acordo com o “costume universal” português deveriam ser batizadas até oito dias depois de nascidas.
269
IDEM, p. 28.
270
IBIDEM, p. 28.
271
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. I, Tit. XIV, § 50-51.
112 

As reflexões sobre as práticas do apadrinhamento brasileiro entre escravos começaram

com o trabalho de Stuart Schwartz sobre a zona açucareira baiana, que embora descreva uma

região geograficamente distante e uma economia diferente numa época anterior, continua a

ser um dos estudos mais detalhados na historiografia brasileira. Stephen Gudeman e Stuart

Schwartz enfatizam que, no cenário de uma sociedade escravista de desigualdades exageradas

e forçadas, a relação comercial que ligava o senhor ao escravo estava totalmente em

contradição com a igualdade que supostamente advinha do parentesco ritual e por ela

ameaçada. Eles viram nisso uma explicação para um padrão persistente: na década de 1780,

em quatro paróquias, nenhum escravo teve seus senhores como padrinhos. 272

Nos engenhos da São Paulo colonial o padrão se repetiu como mostra Alida

Metcalf273, que encontrou somente um caso em que o senhor assumiu o papel de padre e

batizou um bebê escravo agonizante. Esses casos são raros, possivelmente pela

impossibilidade de um senhor assumir o bem-estar espiritual de um escravo e ainda assim

obrigá-lo a trabalhar, discipliná-lo ou vendê-lo. Atitudes que comprometeriam o dever

religioso assumido no ato do batismo.

O apadrinhamento não consistia apenas na relação entre padrinhos e afilhados, mas

também no estreitamento da relação dos padrinhos com os pais da criança. Compreendido na

troca, como em todas as relações de clientelismo, o compadrio não era somente a concessão

de favores de cima para baixo, mas também uma promessa recíproca de serviço, deferência,

obediência e lealdade. Em suma, essas alianças eram construídas entre companheiros novos

ou reforçavam as já existentes. A promoção de companheiros de escravidão a padrinhos

                                                            
272
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 70. A respeito das práticas de apadrinhamento, ver Stephen Gudeman e Stuart
Schwartz. Cleansing original sin: godparenthood and the baptism of slaves in eighteenth-century Bahia, In
SMITH, Raymond T. (Org.). Kinship ideology and pratice in Latin America. Chapel Hill: University of North
Carolina press, 1984, p. 406-412.
273
METCALF, Alida. C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santana de
Paraíba, Brazil, 1720-1820. Texas: University Microfilms Internacional, 1983.
113 

demonstrava uma estratégia para encontrar uma saída aos difíceis problemas sociais e

cotidianos que enfrentavam.274

Os paulistas preservavam o compadrio como uma relação altamente significativa.

Dada a importância social do batismo para ricos e pobres indistintamente, ter um padrinho

influente era também uma forma de ser bem aceito socialmente.275 Baseado em variada trama

de deveres e obrigações, abria portas para a solidariedade.

Em texto particularmente significativo, fica evidente a relação de reciprocidade entre

padrinhos e afilhados:

[...] Declaro que criei desde pequena a parda Joana Batista do Nascimento,
afilhada do meu marido, e pelo muito amor que lhe tenho, vivendo sempre
em minha companhia, ajudando-me no meu trabalho e sempre obediente, e
tratando-me com respeito, assim como a meus criolos Benedito e sua irmã
Henriqueta, Ana e sua irmã Virgínia, os quais já eram forros por morte de
meu marido, com a condição de ficarem sujeitos a mim durante a minha
vida, e por minha morte ficam livres e forros de toda a escravidão, de modo
que a dita Joana Benedita e os ditos meus quatro criolos são os meus
herdeiros [...]276.

Era responsabilidade do padrinho proteger e beneficiar seus afilhados, enquanto destes

se esperava o respeito e a obediência, valores muito apreciados na época. Nem mesmo a

morte seria capaz de desfazer os laços do compadrio. Na distribuição dos legados, os

afilhados foram sempre lembrados. Beneficiar os afilhados nas partilhas era uma prática

comum em todas as classes sociais, pouco importando quanto fosse o montante de bens do

testador. Quando existiam herdeiros legítimos naturalmente deveriam se contentar com uma

parcela, um quinhão, ou mesmo um agrado feito em forma de roupas, objetos ou jóias. Na

lista de benefícios que um afilhado poderia receber em testamento constam pequenas quantias

                                                            
274
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 75.
275
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 32
276
IDEM, p. 33
114 

em dinheiro, objetos de prata, peças do mobiliário, imagens religiosas, jóias de ouro, escravos

e até mesmo roupas de uso pessoal.277

Os escravos, por sua vez, costumavam escolher para padrinhos pessoas livres ou de

escalões mais baixos da sociedade livre. Todavia, escolher outros escravos também era

comum e podia ser vantajoso. O maior dos benefícios seria manter laços de compadrio com

indivíduos cativos na mesma senzala, pois estes seriam mais confiáveis e presentes,

respondendo com maior generosidade a alguma necessidade.

O compromisso estabelecido no ato do batismo era bastante significativo para os

escravos, uma vez que, através dele, eles redimensionariam seu espaço social e cotidiano,

simbolizando uma possibilidade significativa de cooperação e um parentesco ritual, que pode

revelar elementos relativos às expectativas dos cativos diante da família.278

Para Cristiany Rocha, o compadrio poderia transcender os limites das propriedades, ou

seja, poderia abranger padrinhos e afilhados pertencentes a senhores diferentes. Amparada

pelos registros de batismos dos escravos da família do Capitão Camillo Xavier Bueno da

Silveira, Rocha menciona, por mais de uma vez, casos de escravinhos batizados por escravos

vindos de outras propriedades, buscando construir laços de parentesco e solidariedade com

famílias antigas, já enraizadas na fazenda do Capitão Camillo.279

Os escravos também construíram novas alianças entre os companheiros ou reforçavam

as existentes. A promoção de alguns deles a padrinhos demonstrava as estratégias dos cativos

para encontrar uma saída aos difíceis problemas cotidianos. Os laços de apadrinhamento

ofereciam vantagens mútuas para os escravos.280

Zona de densa afetividade, o parentesco apresentava inevitavelmente uma face

perversa, em especial quando interesses materiais entravam em jogo. A grande maioria dos

                                                            
277
IBIDEM, p. 34
278
ROCHA, C. M. Op.cit, p. 121
279
IDEM, p. 121-123.
280
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 69-75
115 

crimes cometidos no âmbito da família refere-se a pessoas aparentadas num grau próximo e

por afinidade (cunhados, sogros e genros). Interesses econômicos, ao que parece, formavam

um poderoso pólo de tensões, sendo motivo de discordâncias entre irmãos, pais, filhos e

afilhados. Com isso, testamentos e inventários prolongavam-se, não raramente, por disputas

intermináveis.281

Solidariedades vicinais, favores mútuos, laços pessoais e familiares, criando

parentescos fictícios e os referenciais emocionais encetavam ações verticalizantes e

fomentavam dependências morais. Por se tratar de um meio social desigual, hierárquico e de

relações um tanto quanto frágeis e provisórias, estas dependências afetivas não eram sólidas,

ao contrário, eram voláteis o suficiente para agudizar tensões latentes, facilmente traduzidas

em violência.

                                                            
281
CAMPOS, A. L. de A. Op.cit, p.459.
116 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para estas páginas finais, quero ressaltar que escravos e mulheres, na construção e

desconstrução de laços sociais, familiares e conjugais, foram também sujeitos protagonistas

de suas histórias.

Escravas obrigadas por seus senhores a se casarem, utilizaram os mesmos recursos

que mulheres brancas da elite para pôr fim ao casamento. A escrava Caetana acusou o marido

de maltratá-la e fazer-lhe ameaças, bem como Dna. Maria Francisca, mulher da elite, acusou o

marido de atacá-la fisicamente. Ambas, apesar de ocuparem posições opostas na sociedade

senhorial paulista, recorreram ao mesmo Juízo eclesiástico com o mesmo intuito: se

emanciparem de seus maridos.

Incontestavelmente, as diferenças sociais aparecem e trazem á tona conflitos

distintos. Enquanto a escrava buscava livrar-se de um homem por quem alimentava repulsa, a

senhora branca, por trás das acusações de sevícias, intencionava libertar-se do casamento

porque seu marido não permitia que ela usufruísse de forma plena da herança deixada por seu

primeiro marido.

Enquanto a escrava implorou pela benevolência de seu senhor, e por vezes foi

atendida, a mulher da elite refugiou-se nas terras de uma senhora de engenho.

As mulheres, que deveriam enquadrar-se na sociedade como honradas, boas mães e

esposas utilizaram justamente esse argumento para conseguir o divórcio. Ser boa mãe, mulher

distinta e honrada lhe concedia o direito de não aceitar os maus tratos dos companheiros. Fica

claro também que algumas delas utilizaram este discurso para lançarem dúvidas sobre o

comportamento de seus maridos, ainda que essas acusações não fossem verdadeiras.

Foi possível concluir ainda que escravas e senhoras poderiam vir a ocupar, na prática,

uma o lugar da outra, ao passo que esposas legítimas reclamam da proximidade dos maridos

com as escravas, tratando-as como senhoras, acarinhando e dispensando atenção ás negras da


117 

casa, enquanto, não raras vezes, esposas afirmavam serem obrigadas a fazer o serviço da casa

e serem tratadas como escravas.

Os processos de divórcio revelam que os papéis de cada sujeito na sociedade eram

flutuantes e extremamente complexos. Escravos comprados e vendidos como mercadorias,

formaram famílias e construíram laços de parentesco permanentes, como o compadrio.

Portanto, cativeiro e parentesco, de fato, não foram experiências excludentes.

Eclesiásticos que deveriam zelar pela religião e bons costumes mantiveram

escandalosos relacionamentos com mulheres casadas.

Mulheres casadas se entregavam á prostituição de maneira pública e notória,

enquanto mulheres solteiras pariam filhos de homens sabidamente casados.

Senhoras atacadas pelos maridos esmolavam ajuda aos escravos. Acredito ser

pertinente ressaltar que o laço construído entre senhoras e escravos em alguns casos, deu-se

de maneira tão significativa, que despertou desconfiança nos maridos, como foi citado nos

autos do processo de divórcio requerido por marido da vila de Bragança em 1814, discutido

no segundo capítulo deste estudo.

Na movediça sociedade paulista, os próprios membros do Juízo Eclesiástico

alertavam sobre as manobras utilizadas para se obter o divórcio.

Ao indeferir uma petição de divórcio requerido por uma esposa de São Paulo em

1812, o promotor do Juízo argumenta:

[...] muitas pessoas procuram este Juízo para saírem do poder de seus
maridos pretextando o ser por meios competentes com o fim de se
divorciarem; e logo que conseguem [...] nunca mais cuidam em promover os
termos do divórcio; e despótica e arbitrariamente [...] viverem
desenfreadamente [...]282.

                                                            
282
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 111.
118 

A colocação do promotor indica que esta era uma prática freqüente, o que significa

não só que os fundamentos da lei não acorrentaram os colonos em seu discurso, como

demonstra que os conflitos familiares, sociais e conjugais borbulhavam incessantemente no

cotidiano dos paulistas.

Destaco conjuntamente para estas considerações finais, a violência presente nos

autos analisados. Violência esta que, quando comprovada no depoimento das testemunhas,

vinha a ser considerada pelas autoridades eclesiásticas como injúria gravíssima.

As mulheres e seus advogados alegavam que a atitude e o comportamento

masculinos foram violentos a tal ponto, que um milagre salvou a esposa da morte, como se

Deus não permitisse que a tentativa de homicídio se concretizasse.

Em 1821, uma esposa conseguiu um resultado positivo para sua petição após provar

ás autoridades que viver com seu marido podia levar á morte. No depoimento das testemunhas

são evidentes a ira violenta do marido e a presença dos vizinhos como fator decisivo para

impedir a morte certa da mulher.

[...] indo elle testemunha do lugar onde reside como de visita à casa da
supplicante no dia 14 de Setembro do ano próximo passado, e vindo a
supplicante recebe-lo, o dito marido com um modo tão extraordinário
principiou logo a dar repetidas pancadas na supplicante, que denegriu-lhe o
rosto, quase lhe furou o olho esquerdo, fez-lhe ferimentos pela cabeça,
quebrou-lhe um braço e não contente com tudo isto puxou uma faca que
trazia para a matar, que se não acudissem os vizinhos armados para tão
grande desordem certamente o dito marido mataria a supplicante [...]283.

A violência, muitas vezes comprovada nos autos, configurou-se como a acusação

mais freqüente que encontrei nos autos, seguida pela infidelidade de um dos cônjuges.

Acredito que dentre mentiras e verdades de escravas como Caetana ou senhoras

como Dna. Maria Francisca; pude concluir que de fato a criação de laços sociais, familiares e

conjugais construídos por escravos e mulheres sujeitos protagonistas não somente deste
                                                            
283
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 224.
119 

trabalho como de suas histórias, constituiu-se como fator relevante para a vivência,

convivência e sobrevivência destes sujeitos; bem como os conflitos que emergiam desta densa

zona de afetos e desafetos.

Por entre compadres, casados, divorciados, pais, mães e filhos da escravaria,

encontrei histórias que me levaram ao meu primeiro objetivo: evidenciar que os escravos

construíram bases familiares e laços de parentesco, usufruindo de recursos sociais e conjugais

semelhantes aos experimentados por homens brancos livres da sociedade senhorial paulista,

construindo e desconstruindo vínculos e parentescos. Escravos se casaram e se divorciaram

frente ás autoridades eclesiásticas; ainda que fique em aberto para discussão o porquê de

tantos senhores terem obrigado seus escravos a se casarem ou até mesmo permitido que seus

escravos se casassem por vontade própria.

As acusações de sevícias e adultérios somadas aos depoimentos das testemunhas me

permitiram argumentar meu segundo objetivo: sinalizar a condição feminina em meio ao

conflito do divórcio. As agressões que sofreram e também cometeram como intencionaram

usar os fundamentos da lei a seu favor, do que acusaram e do que foram acusadas.

A bibliografia e as fontes me permitiram ainda discussões sobre a religiosidade e a

sociabilidade na colônia e em São Paulo, as condições da vida na cidade, os tumultos sociais

cotidianos e os limites da vigilância eclesiástica. Acredito desta forma, que alcancei meus

objetivos principais para este trabalho, possibilitando, do mesmo modo, discussões diversas

sobre este tema.

“... são histórias recuperadas, coletadas e reunidas a partir de fontes


registradas e guardadas por razões muito diferentes e particulares”.
Sandra Lauderdale Graham para a introdução de Caetana diz não.
120 

FONTES E BIBLIOGRAFIAS

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ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n.187.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 221.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n.222.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 224.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n. 233.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n.245.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio.Estante 15, Gaveta 16, n. 245.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 35, n. 458.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n.677.

ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n. 678.

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