Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
COTIDIANO EM CONFLITO
RELAÇÕES SOCIAIS E FAMILIARES DE
MULHERES E ESCRAVOS NOS PROCESSOS DE
DIVÓRCIO EM SÃO PAULO
(1780-1822)
COTIDIANO EM CONFLITO.
RELAÇÕES SOCIAIS E FAMILIARES DE
MULHERES E ESCRAVOS NOS PROCESSOS DE
DIVÓRCIO EM SÃO PAULO
(1780-1822)
__________________________________
Presidente da Banca Examinadora
Fernando Torres Londoño – Orientador.
__________________________________
Primeiro Examinador.
__________________________________
Segundo Examinador .
Dedico este trabalho à minha avó materna,
Carmelina Merissi. (In memoriam).
Pequena grande mulher, que ultrapassou todos os limites do amor incondicional, ainda que
muitas vezes os obstáculos parecessem intransponíveis, foi capaz..
Foi amor, força e fé, aquela que ensinou a vida ao fruto de seu ventre.
Seus ensinamentos chegaram até mim vó. E cada palavra desta construção buscou alçar sua
profunda sabedoria.
E cá estamos, nós duas, você comigo, eu com você, unidas através daquela que você amou e
ama para além da vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço profundamente minha mãe, incentivando-me a cada etapa deste trabalho, me
abrigou todas as minhas lágrimas e sorrisos nesta trajetória. Na imensidão de seu amor, foi
Agradeço da mesma forma, meu pai. Não somente por apostar em mim, mas por ter sido
capaz de entender minhas escolhas. Foi meu leitor orgulhoso, homem de valor inestimável, a
Ao meu irmão Daniel, exemplo de obstinação, me ensinou a acreditar que sempre é possível,
basta querer e se permitir. Arrancou-me risos, sempre trazendo alegria na bagagem. Somos
Agradecer ao meu mais querido amigo Edgar, ainda é muito pouco. Meu leitor mais fiel e
generoso. Foi capaz de doar muito de seu tempo e coração á mim. Não haverá palavras o
suficiente para agradecê-lo. À Neide, por sua doçura e bom humor, abrigou-me com amor em
Ao meu orientador, Prof. Dr. Fernando Torres Londoño. Agradeço os ensinamentos, a atenção
À Profa. Dra. Maria Izilda dos Santos Matos por seu precioso auxílio, sempre atenciosa e
prestativa, auxiliou-me na construção deste trabalho, mesmo nos momentos mais difíceis.
Á Betinha, por toda sua atenção e aos funcionários do ACMSP, em especial ao Jair.
Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar e discutir a mobilidade e a sociabilidade
forjada por mulheres e escravos na sociedade colonial através dos processos de divórcio e
nulidade matrimonial encontrado no ACMSP. Os conflitos e as relações presentes na vida
social e familiar de escravos e mulheres na Capitania de São Paulo nos abrem perspectivas
para (re) avaliar o papel das mulheres na sociedade oitocentista na Capitania de São Paulo.
Conseqüentemente também pode se analisar a construção familiar e a vida social dos
escravos, bem como focalizar os personagens que, após o matrimônio, buscavam romper os
laços que os uniam ao seu conjugue através da justiça eclesiástica que facultava as mulheres o
mesmo direito dos homens para anular ou romper os laços que os unia através do sacramento
do matrimônio. Com base na pesquisa efetuada, foram abordadas as leis eclesiásticas e a
relatividade do alcance social da vigilância empreendida pelo catolicismo que,
conseqüentemente permitiu aos escravos e às mulheres, uma atuação social e familiar,
possibilitando assim questionar estereótipos construídos sobre o espaço ocupado pelas
mulheres na sociedade.
PALAVRA CHAVE:
Divorcio
Matrimônio
Sociabilidade
Escravos
Mulheres
Colônia
ABSTRACT
The main objective of this research is to deepen, through the divorces processes, the conflicts
immersed it the social and family life of slaves and women in the Capitania of São Paulo. For
this purpose, it also analyzes the construction of the family and the social life of slaves, as
well as those women that, after marriage in the Church, wanted to divorce. The stories told by
these women to the ecclesiastical authorities at the right moment of breaking point of family
alliance revealed some information about the relationship between women and the Catholic
Church. Based on the research, were discussed the Church laws and relativity social impact of
surveillance undertaken by the Catholic Church which consequently allowed to slaves and
women to build social and family foundations, allowing questioning the stereotypes
constructed about them.
Keywords:
Woman
Divorce
Colony
Slave
Marriage
Sociableness
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
CAPITULO I 16
2. Matrimônio 35
3. “Sabe-se que a justificante por ameaças de seu senhor foi obrigada a cazar com o 39
justificado, seu marido”: Matrimônio entre escravos.
4. “A justificante vendeu tudo que tinha, afim de cuidar de seu divórcio” - Divórcios: 45
conflitos porta afora.
CAPITULO II 52
1. “era violento [...] seu dito marido, maltratando-a com pancadas [...] se ausentou 59
por longo período [...] sem deixar para sua sustentação nem uma espiga de milho”:
Sevícias masculinas, argumentação feminina.
2. “recolheu-se o supplicado para a casa e compania de Ignácia de tal com quem vive 69
concubinado, teúdo , e manteúda, com quem já tem um filho ou filha”: Mulheres
traídas e mulheres concubinas.
CAPITULO III 87
2. Vigilância Eclesiástica 99
4. Compadrio 110
Considerações Finais 116
Bibliografia 120
Fontes 120
Revistas 124
Dissertações 125
10
INTRODUÇÃO
Ao refletir sobre o modo de viver e de se relacionar, desenvolvido entre os indivíduos
presentes na realidade da São Paulo colonial, nota-se que é mais fácil para o historiador
conhecer a vivência dos casais e daqueles que os cercavam em situações de conflito, visto que
mulheres e escravos em São Paulo nas duas últimas décadas do XVIII até o fim do período
colonial em 1822; optei por utilizar como corpus documental desta pesquisa os processos de
divórcio e nullidade de matrimônio, uma vez que esta documentação se destaca por seu
Desejei deixar bem evidentes os limites desde o início para definir com clareza o
objeto do estudo realizado. Trabalho aqui com os conflitos advindos de uniões legítimas, ou
seja, aquelas que foram celebradas de acordo com as leis eclesiásticas e, com isso, resultaram
das discussões mais amplas desta pesquisa, como a família e as relações sociais.
forros e, igualmente, nos relatos das mulheres - sendo escravas ou não - que pretendiam obter,
assim por analisar, majoritariamente, os processos abertos por mulheres e por aqueles que
envolviam escravos e forros. Delimitei aqui meu objeto; as discussões sobre escravos e forros
partem do contexto conflituoso dos divórcios que, somados à bibliografia, possibilitam outras
Assim sendo, o primeiro capítulo foi dedicado ao dinamismo das relações sociais e
O segundo capítulo foi dedicado á condição feminina, já que as mulheres são maioria
no que diz respeito à movimentação de ações de divórcio. O objetivo para este capítulo é
Assim, a atenção neste capitulo é voltada para a figura da mulher presente nos autos.
Do que eram acusadas e porque acusavam; as violências que teriam praticado e as violências
das quais seriam vítimas. Desta forma, pretendo neste capítulo visualizar a mulher, imersa em
Paulo vistas á partir dos conflitos transcritos nas fontes e a vigilância eclesiástica. Neste
capítulo serão discutidos os dois focos principais desta pesquisa, os escravos e as mulheres.
apresentadas pelas mulheres frente ao Juízo Eclesiástico, uma vez que revelam um pouco de
Paulo entre os anos de 1780 e 1822, de acordo com seu contexto específico, para evitar
Não posso deixar de mencionar ainda, que a legislação eclesiástica será analisada
sociais, assim como, averiguar de que forma o Juízo Eclesiástico poderia tornar-se um meio
autoridade exercida pela figura masculina, de quem alegavam terem recebido pancadas e
xingamentos. Possivelmente o divórcio se tornou uma “brecha” na lei eclesiástica; lei que
toda decência. Mas é necessário ter em mente que o divórcio não dissolvia o sacramento do
matrimônio, portanto os divorciados não podiam se casar novamente, a não ser que um dos
constituem como declarações explícitas de que, legalmente, não houve matrimônio, pois o ato
celebrado foi nulo, e se foi nulo inexiste o vínculo de fidelidade, portanto os implicados
análise acerca da vida conjugal e social de mulheres e escravos, que formavam um forte
círculo social em São Paulo no período a ser estudado, caminhando por entre livres e
dificuldades, pois é composta por grande diversidade de manuscritos realizados a várias mãos,
devido à atuação de escrivães, promotores, advogados, juízes e párocos locais; e como bem
lembra Raquel Costa: [...] com muitas abreviações a serem decifradas e, dada a natureza do
texto, contendo profusão de termos jurídicos, que dificultam a compreensão inicial do texto
1
COSTA, Raquel R. L. Domingues. Divórcio e anulação de matrimônio em São Paulo colonial. Dissertação de
mestrado. FFLCH/ USP, 1986, p. 3.
2
IDEM, p.3.
13
[...]3. Estão também sobrecarregados de juízo de valor. Não é raro encontrar descrições
Em alguns processos as folhas estão fora de ordem, outros estão bastante deteriorados
ou ainda sem conclusão, o que remete á dificuldade não somente na leitura como na
de informações diante de meu objeto. Ressalto ainda que os nomes e a grafia das palavras
por seu avançado estado de deteriorização. Além disso, a Diocese só foi criada em São Paulo
no ano de 1745; antes dessa data a região estava sob domínio do Bispo do Rio de Janeiro, por
isso, os manuscritos anteriores a 1745 ofereciam algumas dificuldades para situar o objeto no
espaço. Portanto, estabeleci o ano de 1780 como data inicial do recorte e 1822 como data
para o desenvolvimento deste trabalho foram todos realizados em São Paulo. Contudo, seus
protagonistas, não raras vezes, moravam nas vilas, como Jacareí, Campinas, Santa Izabel,
Santo Antônio de Paraibuna, São Sebastião, Mogi Mirim, São Carlos, Guaratinguetá e se
3
IBIDEM, p.14
4
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 214.
5
GOMES, Edgar da Silva. A instalação do bispado de São Paulo. In: Souza, Ney (ORG). Catolicismo em São
Paulo. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 128-165.
14
dirigiam para a Capitania para que os processos fossem abertos e ainda durante todo o período
Existem diversos tipos de processos. É possível encontrar divórcios entre escravos, entre
divulgando, através do escrivão, a versão da parte de quem deu entrada ao processo. Assim,
os processos lidos dão conta de que as mulheres são maioria na hora de abrir o processo. Por
motivos diversos, são elas que mais desejam o fim dos seus casamentos.
processo, o que justifica o fato de, algumas vezes, esses processos terem mais de 50 folhas.
Nas partes finais do processo, estão as conclusões, o desfecho do caso e o custo total do
processo.
Não esquecendo ainda de citar que, os processos de divórcio entre dois escravos são
mais complexos, pois devem contar com a autorização e a permissão dos senhores para que
esses escravos possam se divorciar ou anular uma união, de forma que esses processos devem
Um divórcio seria viável somente quando o matrimônio havia sido celebrado em face
à Igreja7 e consumado. Com isso, era possível a separação de corpos perpetuamente ou por
6
Em processo que será analisado ao longo deste trabalho, podemos citar o processo de divórcio entre a escrava
Joaquina e o escravo Ambrósio, em 1795. Escravos do mesmo senhor, o Capitão Felipe Neri Teixeira; que os
obrigou a se casarem sem saber que Ambrósio já havia mantido relações sexuais com a mãe de Joaquina,
indicando um impedimento direto. Com isso, o mesmo Capitão apresentou uma petição ao Juízo Geral
Eclesiástico do Bispado de São Paulo para anular o casamento de seus escravos, se responsabilizando pelos
gastos do processo. ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 90.
7
SANTOS, Dayse Lúcide Silva. Entre a norma e o desejo: estudo das tensões na vida conjugal diamantinense
de 1863 a 1933. Minas Gerais/ UFMG. Dissertação de mestrado, 2003. O processo de divórcio foi realizado pela
Igreja durante todo o período colonial e imperial brasileiro, até perder força com o advento da República.
15
julgado se o matrimônio fora ou não nulo e, no caso de ter sido julgado nulo nunca existira o
vínculo. Nesses casos, era possível um “outro” casamento. Portanto, do ponto de vista
Os divórcios amigáveis eram os mais rápidos, durando poucos dias, ou até mesmo um
só, sendo raros os casos em que divórcios deste tipo durassem mais de um mês. Divórcios
amigáveis entre escravos, provavelmente não ocorriam constantemente, já que para isso
normalmente até o final eram muito demorados. Um ano seria um tempo considerado normal,
contudo, houve processos que duraram três, nove, doze e até dezenove anos.
cotidiano de mulheres e escravos em São Paulo entre 1780 e 1822, o presente estudo, como já
através desta pesquisa, com mais uma historia sobre cotidiano e gênero no período colonial
CAPITULO I
“Sociabilidade no Conflito: Casa e Separa”
Aos seis dias do mês de Maio de 1795, o Tribunal Eclesiástico do bispado de São
Paulo recebeu uma petição em nome do Capitão Felipe N. Teixeira, residente na Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição das Campinas. Na petição, o Capitão intencionava separar dois
descobrir que Ambrósio havia mantido relações sexuais com Rita, mãe de Joaquina. De
Laurianna, também escravos do Capitão Felipe, que diziam ter conhecimento da união carnal
ilícita entre Rita e Ambrósio. Laurianna diz ainda que não comunicou o fato antes [...] por
Por fim, entre os anos 1797 e 1799, precisamente Dom Macedo determinou: [...] Hé
nullo este matrimônio entre Ambrósio e Joaquina, que se acha provado pelos depoimentos
8
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI.
Lisboa: Estampa, 1993. p. 116-118.
9
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n. 90.
10
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n.90.
17
inseridos nestes autos e informações. Podem impetrarem dispensa para serem recebidos em
É possível até questionar se a razão apresentada pelo senhor ao Juízo era realmente
verdadeira, se ele realmente não tinha conhecimento da relação ilícita entre o escravo
Ambrósio e a mãe de sua esposa Joaquina, ou se, por algum outro motivo, ele se arrependeu
processo movido por um senhor, que claramente instruiu seus escravos a testemunharem de
acordo com suas afirmações. Portanto, as testemunhas, todas elas escravas do Capitão Felipe,
afirmam categórica e repetidamente que o Capitão não tinha conhecimento da relação carnal
mantida por Rita, mãe de Joaquina e Ambrósio e por isso pretendia o divórcio de seus
escravos.
Mas, por outro lado, é possível apontar que se cativeiro e parentesco não são
experiências excludentes, o cativeiro não abortou a família escrava, deu a ela novos
configurando assim possibilidade para uma união conjugal típica, sacramentada pela Igreja
Católica, a escravaria então tecia a sua rede familiar através de mecanismos culturalmente
dos conflitos familiares e conjugais na convivência entre escravos, forros e livres pobres na
escravista, tampouco minhas fontes fornecem dados qualitativos ou quantitativos para uma
11
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, gaveta 05, n.90.
18
Esforcei-me para não cristalizar a escravidão como benevolente ou suave, mas como mostra a
historiografia nos últimos 30 anos, a escravidão foi dura, bárbara e violenta, sendo essa
violência inerente ao próprio sistema escravista, como forma de controle social e manutenção
da ordem.12
De acordo com Silvia Lara [...] a ênfase na violência da escravidão estava também
A historiadora afirma que a dimensão humana do escravo aflorava apenas quando este
cometia algum crime, fugia ou se aquilombava. Salienta-se desta forma que documentos que
relatam situações conflituosas permitem vislumbrar um pouco melhor essa humanidade, que
neste trabalho qualificar a escravidão como suave ou cruel. Busco nas fontes histórias sobre
caminhavam pelas ruas e vielas de São Paulo ao lado de forros, brancos livres e pobres ou
XVIII define a cidade por volta da segunda metade dos setecentos. São Paulo seria, em suas
12
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.20.
13
IDEM. p.20.
19
palavras, [...] uma cidade estagnada, que vegetava numa economia de poucas trocas [...]14.
Assim, após comentar a precária situação econômica paulista, ponderou que, entre os
poderiam ser medidos pelo montante de terra que possuíam, caracterizando desta forma a
importância social de se obter propriedades rurais. A pobreza de São Paulo teria possibilitado,
desde o início, a supremacia da vida no campo, estimulando seus componentes mais abastados
a optar por transitar, intermitentemente entre a casa na fazenda e o lar urbano, a fim de
participar das festas e dar conta de seus encargos administrativos. A autora então ressalva:
Em texto que se tornou clássico na historiografia paulista, Caio Prado Jr. advertiu
essencial para a definição de uma metodologia de pesquisa sobre essa realidade e para a
sociedade formada na vila, depois cidade, de São Paulo nasceu com uma vocação para a
paulista. Os rios Tietê, Tamanduateí e Pinheiros representavam a melhor e mais utilizada via
interior, as entradas e bandeiras, mas também, e é isto o principal, para o intercâmbio das
14
LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo:
Annablume: FAPESP, 1998, p.23
15
IDEM, p.23
16
PRADO Jr. Caio. A cidade de São Paulo:geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998, p.21.
20
O centro original da vila de São Paulo, portanto, nasceu no ponto de encontro dos rios
Anhangabaú e Tamanduateí, onde se estabeleceu o Colégio dos Jesuítas, que usavam essas
tornou um núcleo urbano central, administrativo, religioso e político, tornando-se o centro das
comunicações do planalto. Prado observa que [...] todos os caminhos, fluviais ou terrestres,
que cortam o território paulista vão dar nele e nele se articulam [...].17 O contato entre as
regiões povoadas ou colonizadas se faz necessariamente pela capital. Neste sentido, podemos
apontar ainda a importância das estradas neste intercâmbio. Segundo Teodoro Sampaio:
[...] Para noroeste, pelo Vale do Paraíba, é a estrada que serve às vilas e
povoações da faixa marginal daquele rio. Para sudoeste, é a estrada que leva
aos campos de Sorocaba, Itapetininga e Guarapuava (no atual estado do
Paraná), e dali para as capitanias meridionais, destacadas de São Paulo no
século XVIII. E é por este caminho que São Paulo se abastecia de gado para
17
IDEM, p. 27.
18
Revista do Instituto histórico e geográfico de São Paulo, Vol. 1, n. 163 In PRADO Jr. A cidade de São Paulo:
geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998.
19
PRADO Jr., op.cit., p. 20-27. Caio Prado destaca que: [...] Partindo de São Paulo, o povoamento do planalto
começa por seguir duas direções, ambas pelo Tietê: uma rio acima, outra rio abaixo. É seguindo essas linhas que
os colonos se vão estabelecendo e formando as primeiras povoações e vilas. Rio abaixo encontramos já muito
cedo: Nossa Senhora da Expectação do Ó (hoje Freguesia do Ó) e Parnaíba, que em 1625, é constituída em vila.
E pelas variantes do Pinheiros, seu afluente Jeribatiba (Rio Grande), do Cotia e afluente Mbói-Mirim (Embu),
inúmeras povoações e aldeias de índios fundadas ou dirigidas pelos jesuítas: Pinheiros, Itapecirica, Ibirapuera
(hoje Santo Amaro) [...]. Prado cita ainda aldeamentos e vilas Tietê abaixo: Guarulhos, Itaquaquecetuba, São
Miguel, a povoação, logo vila, de Mogi das Cruzes e passando para o Vale do Paraíba encontramos São José dos
Campos. Este setor da capitania logo se torna o mais povoado e no decorrer do século XVII se povoa mais
densamente, concentrando-se no vale do rio a grande maioria das povoações e vilas da Capitania, destaquemos
Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá e Lorena. O Vale do Paraíba, além da condição de território
mais fértil conhecido até então na Capitania, configura-se ainda como roteiro essencial das bandeiras que [...]
em demanda de Minas Gerais, sertão de São Francisco, norte-nordeste do país [...], passavam invariavelmente
pelo Vale do Paraíba.
21
historicizar a geografia de São Paulo, descreve as paisagens naturais que se apresentavam aos
povoadores:
Brasil colônia, advertindo que os [...] sertões das caatingas nordestinas e baianas foram o
campo por excelência das atividades de pastoreio [...]22 e ainda que fossem pobres e de
pequeno rendimento econômico, eram extensivos e úteis para a conquista de um [...] vasto
localmente à custa de modestas atividades agrícolas e dispersas, este cenário econômico foi se
café em São Paulo e, três séculos e meio após o descobrimento, a região viria a se tornar [...] a
principal zona agrícola do país, com o advento e expansão dos cafezais. Foi também a área
20
PRADO Jr, op.cit., p. 27
21
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001, t. 1, v.2, p. 178-179.
22
IDEM, p. 179.
23
IBIDEM, p.179.
22
que mais sofreu com a passagem rubiácea exigente, a qual destruiu mais solos do que foi
construídos com intuito de ligar a região central aos arredores e a outras regiões da colônia
como o norte e o sul, resultando em fluxo contínuo de pessoas, carros de boi e tropas de muar.
Nota-se que, para tanto, a Câmara da cidade, reiteradas vezes, decidiu pela
As ruas de São Paulo formavam uma teia de ruas que se cruzavam, estreitas e
Era nas vias da cidade que os vendedores ambulantes cruzavam com escravos
26
carregando barris com despejos fecais e lixo. Quando anoitecia a cidade repousava numa
esplêndida escuridão; aqueles que quisessem se aventurar pelas ruas durante a noite
enfrentavam o breu com lanternas. Nas noites de luar, andarilhos corajosos ousavam caminhar
24
HOLLANDA, op.cit, p.179. Sobre a mudança no cenário econômico com a descoberta do ouro, Caio Prado
afirma que a prática agrícola decai drasticamente e com o deslocamento dos paulistas para Minas e depois para
Goiás e Mato Grosso em busca de ouro, São Paulo entra em prolongada estagnação, interrompendo a expansão
colonizadora e o povoamento. Essa situação se interrompe somente pelos fins do século XVIII, com o prematuro
esgotamento das minas. (Cf. PRADO Jr., op.cit., p. 32-33)
25
SANT’ANNA, Nuto. São Paulo no século XIX. Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia – Conselho
Estadual de Cultura, 1977.
26
Cf. Dias, M. O. L. da S. op.cit, p. 29. A historiadora aborda as precárias condições de higiene nas vias da São
Paulo do século XIX e suas consequências. A autora explica: [...] A Independência não mudara em nada as
febres, sezões, os maus cheiros do Tamanduateí que lhes sacrificavam as crianças. São raros os momentos em
que afloram nos acontecimentos da ordem do dia, o que geralmente ocorre nos momentos de crise; quando das
epidemias de cólera-morbo ou de varíola, que se fizeram sentir em 1823, em 1828 e novamente em 1831.
Apareciam como boas samaritanas: recebiam da Câmara um pequeno estipêndio para tratar em suas casas de
escravos ou forros doentes [...].
27
ASSUNÇÃO, Paulo de. A cidade de São Paulo no século XIX: ruas e pontes em transformação. Revista do
AESP, n. 10, maio/2006.
23
O centro, marcado pela Igreja da Sé, era local de encontros de toda ordem: comerciais
Em sua visita a cidade, entre 1818 e 1819, referiu-se às pontes que ficavam por sobre o
Anhangabaú. A primeira a ser mencionada foi a Ponte do Lorena, que dava acesso a Sorocaba
e Jundiaí. Na descrição dele, ela seria quase plana, com 12 passos de largura, por 25 de
extensão.29 A segunda foi do Açu, que permitia a ligação com a região oeste e era considerada
a mais bonita. A ponte do Açu chamava atenção, segundo ele, por conta dos parapeitos, que
tinham certa elegância arquitetônica, possuía no acesso um aclive com cerca de 150 passos de
extensão e 16 de largura. A terceira era conhecida como Ponte do Ferrão, pois nas imediações
havia a chácara de José da Silva Ferrão. Esta ponte dava acesso à estrada para o Rio de
do viajante frances: [...] em São Paulo, tamanha era mistura de raças que chegara a descrevê-
la, com algum preconceito, como estranha mescla de que resultam complicações
embaraçosas para a administração e perigosas para a moral pública [...]31. Com relação as
28
IDEM.
29
IBIDEM. A ponte do Lorena era destaque na região central. Ligava a Ladeira do Piques com a Ladeira da
Memória (atual Praça da Bandeira). O caminho que ligava São Paulo à aldeia de Pinheiros era conhecido como
Estrada do Araçá (atuais: Rua da Consolação e Avenida Rebouças). Por este trajeto era possível também utilizar
uma das vertentes que ia em direção ao Rio Tietê, seguindo para Jundiaí. A ponte existia desde os primeiros anos
do século XVII. Todavia, foi durante o governo José Bernardo de Lorena que reformas foram feitas e a ponte
passou a ser conhecida como Ponte do Lorena, após a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, a ser
conhecida como Ponte Sete de Abril.
30
SAINT-HILAIRE, A. de. Viagens pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Belo Horizonte/São
Paulo. Itatiaia: EDUSP, 1975, p. 131.
31
FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. São Paulo: Global, 2008, p.65
24
moradias na cidade o viajante registrou ainda, ao entrar na cidade, provavelmente pela atual
Rua da Consolação, que as casas eram pequenas e bem cuidadas, passando por uma fonte
Em um artigo para a Revista do AESP, Paulo de Assunção observa que aqueles que
circulavam pelas ruas da cidade julgavam como inconcebível as condições dos calçamentos e
condições das vias, uma vez que se cobravam pesados impostos e, ainda assim, as vias
o jornal O Farol Paulistano, primeiro periódico de São Paulo, publicou um artigo chamado
Um cidadão:
cidade, é imprescindível ressaltar que o número de escravos na cidade de São Paulo no início
do século XIX era acintoso, o que causava reações de descontentamento de pessoas da elite,
seja pelo barulho provocado pelas cantorias dos escravos, seja pela confusão gerada nas ruas
abaixo é possível analisar a evolução da população e a presença escrava em São Paulo entre
A escravidão paulista, no final do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX, foi
34
LUNA, Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de
1750 a 1850. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. Fontes: 1803: “Mapa Geral dos Habitantes
da Capitania de São Paulo, com especificação dos Nascimentos, Casamentos e Óbitos Reduzidos sobre as listas
da Povoação e Casualidades do ano de 1803” - ANRJ, Códice 808, vol. 4, p. 258. 1817: “Mapa Geral dos
Habitantes da Capitania de São Paulo, com especificações dos Nascimentos, Casamentos e Óbitos, Reduzido
sobre as listas da Povoação e Casualidades do ano de 1817”, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Documento:
I-32,10,6. 1836: Daniel Pedro Müller. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo, 3. ed., São
Paulo, Governo do Estado de São Paulo, 1978.
26
novas fontes. Assim surgiram sugestivas interpretações com relação à presença escrava na
sociedade paulista, como, por exemplo, a reprodução natural dos cativos em algumas regiões
População35, do Acervo do AESP, onde o autor Francisco Vidal Luna considera vinte e cinco
diferentes localidades de São Paulo, nos anos de 1777, 1804 e 1829. Ele ressalta a introdução
mudanças ocasionadas no perfil populacional paulista. Luna elucida que o ingresso de cativos
existente na população, tanto na proporção entre os sexos, quanto na estrutura etária. Além
35
Os Maços de População de São Paulo formam uma extensa série documental de caráter censitário produzida
entre 1765 e 1850, abrangendo a totalidade da população da Capitania e depois Província de São Paulo. A
confecção dessas listas de caráter nominativo foi inicialmente proposta na complexa conjuntura de conflito com
os castelhanos em torno da Bacia do Prata. Visava-se, então, coletar informações sobre a disponibilidade de
homens aptos ao serviço militar. Através da Ordem Régia de 21 de outubro de 1797, D. Maria I introduziu
importantes e modernizadoras técnicas de recenseamento. Norteava essas novas orientações uma política
mercantilista mais dinâmica e preocupada em racionalizar a máquina administrativa colonial e em incrementar a
população, a agricultura e o comércio do Império português. As mudanças sugeridas atingiram o processo de
levantamento nominativo das populações, que foi enriquecido com novos quesitos, mas fundamentalmente
estabeleceram novas sistemáticas na elaboração e na tabulação dos dados censitários extraídos das listas de
habitantes. Além do mais, elaboraram-se modelos de tabelas econômicas contendo dados sobre consumo,
importação, preços e movimento de navios, que deveriam complementar os dados demográficos. Os “Maços de
População” são estruturados como listas nominativas anuais, que relacionam informações detalhadas sobre cada
indivíduo, livre ou escravo, por domicílio: nome, idade, grau de parentesco ou de relação com o chefe do
domicílio, estado conjugal, cor, naturalidade e ocupação, além dos dados sobre a atividade econômica do
domicílio. Os domicílios de cada vila eram reunidos por Companhia de Ordenança, em maior ou menor número,
dependendo das dimensões da população. Ao final, tabelas (“mapas”) resumiam as informações demográficas e
econômicas por vila, permitindo a tabulação final dos dados referentes a todo o território paulista. Disponível em
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/recenseando.php. Acessado em 12 de Abril de 2010.
27
dos escravos merece atenção.36 Com relação à economia paulistana, seguem algumas
considerações de Luna:
fizeram com que a economia paulista ganhasse pujança e participasse com mais força do
escravos, para compor a mão de obra na produção do açúcar, contribuíram para a elevação
produtoras de açúcar modificaram o cotidiano cultural e social paulista, não somente pelo
grande número de escravos que passaram a integrar a população, como também o aumento
36
LUNA, Francisco Vidal. Características demográficas dos escravos de São Paulo (1777-1829). Revista Estudos
Econômicos, São Paulo, 22 (3): 443-483 set/dez 1992. O autor esclarece que os censos realizavam-se de forma
relativamente homogênea no período, embora existam Listas Nominativas para algumas localidades esparsas em
períodos anteriores e posteriores, com diferente formato e menor riqueza de detalhes.
37
IDEM.
38
SILVA, M.B.N da. op. cit., p. 158-159
28
considerável do número de pessoas que caminhavam pela cidade, uma vez que, por conta da
confluência de rios importantes e sua condição de eixo de caminhos fluviais e terrestres, São
Paulo tornou-se um núcleo urbano central, com relevante presença de escravos caminhando e
vez mais pobres, enquanto que os ricos arrolavam uma fortuna cada vez maior.
cidade. Francisco Vidal Luna e Herbert Klein39, em um estudo sobre a escravidão africana na
produção de alimentos em São Paulo no século XIX, alertam que o modo de produção, os
socialmente desigual. Nota-se que, em 1804, o elevado percentual de 86% dos agricultores
40
proprietários de escravos dedicava-se à produção de alimentos , ou seja, produtos típicos
para o abastecimento local como milho, feijão, toucinho, arroz, mandioca e a produção de
exportáveis: café, açúcar, tabaco e aguardente, controlavam 30% da mão de obra cativa no
mesmo ano. Ainda de acordo com os autores, em contraste com os proprietários de escravos
39
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN Herbert S. Escravidão africana na produção de alimentos - São Paulo no
século XIX. Revista de Estudos Econômicos. Vol. 40, n. 2. São Paulo, jun/2010.
40
Os autores refletem que a economia paulista: [...] baseou-se na produção de gêneros para consumo familiar e
abastecimento de mercados locais. Com o passar do tempo, cada vez mais o excedente passou a ser
comercializado entre as várias regiões da capitania e também com outras capitanias. Isso ocorreu, especialmente
a partir do início do século XVIII, quando São Paulo tornou-se uma importante produtora para as recém-abertas
minas de ouro em Minas Gerais. Mesmo depois do crescimento das exportações do açúcar e do café, aquela
produção permaneceu como uma parte fundamental da economia, mantendo uma estreita associação com as
novas culturas de exportação. Desde os primeiros tempos, os alimentos básicos – milho, arroz, feijão e carnes –
foram produzidos em todas as partes de São Paulo. Tanto no litoral como no planalto. Havia também a produção
especializada de artigos como tabaco, a aguardente, a erva-mate e a criação de animais. O processamento de
toucinho era também importante em todas as áreas ocupadas e consumido, em sua maioria, na própria unidade
familiar [...].
41
Importante esclarecer que apesar de ser notável a participação dos escravos e seus proprietários nesse setor,
pois cerca de um quarto dos domicílios produtores de alimentos continha escravos, a maioria das unidades
produtoras do gênero não tinha escravos e dependia do trabalho familiar.
29
tinham em geral pequenos plantéis, sendo que os que tinham cinco escravos ou menos
plantações em maior escala produzindo para exportação, enquanto a maioria dos produtores
de alimentos, como feijão, mandioca, milho, arroz, toucinho ou criação de gado, abastecia o
Em São Paulo o trabalho dos escravos tinha também forte impacto na rotina social e
no espaço urbano, uma vez que passava, obrigatoriamente, pelos chafarizes, pelas ruas e pelas
pontes da cidade, deixando um rastro de balbúrdia. Esses escravos criavam diferentes tipos de
laços com uma enorme diversidade de pessoas, fossem os brancos livres, os forros, os
Os negros foram vistos como um grupo social irmanado, cadenciado pelos cânticos
Aos olhos das elites locais eram vistos como perigosos, dado que os escravos, os
O escravo em São Paulo, por vezes, era alguém a ser temido, agressivo, que constrói
Era com as relações sociais inerentes ao pequeno comércio ambulante que as escravas
reconstruíam seus laços primários para além do espaço doméstico, chegando a improvisar
uma vida comunitária intensa; prática dissimulada de uma resistência que permitia a sua
tabuleiros forrados com toalhas brancas alumiadas de noite por velas de sebo pelas escravas
de certas famílias, que estacionavam nas escadas de pedra que havia diante da Igreja da
Misericórdia. Seus pregões decerto ecoavam docemente – quase como cantiga de ninar –
dentro da silenciosa noite paulistana. Dos mil e um serviços prestados pelos negros nas ruas,
sabe-se que tiravam partido seus donos remediados e endinheirados. 43 No livro Quotidiano e
poder em São Paulo no século XIX, Maria Odila ressalta a atuação das escravas de ganho que
Outra obra que trata dessas pequenas experiências de liberdade e o espaço de atuação
dos escravos é Das cores do silêncio: a escravidão no sudeste do século XIX, de Hebe Maria
42
Ver DIAS, M. O. L. da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasilense, 1995, p.
157. A autora menciona a área urbana repleta de matagais, pesca e caça, ratifica o favorecimento da coleta e da
subsistência improvisada: [...] tornando possível aos escravos familiarizar-se com técnicas indígenas de obter
iguarias do sertão, com o conhecimento topográfico necessário para saber onde se esconder, fugir, defender-se.
43
SAMARA, E. de M. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 37-38.
44
DIAS, M. O. L. da S. op.cit, p. 156.
31
Mattos de Castro.45 Fica claro que um tipo particular de laço foi fundamental para a adaptação
Esta família, que foi construída pelos escravos na caminhada por diferentes culturas,
espaços sociais e geográficos, não pode ser entendida como mera extensão da família
algumas regiões e, por vezes, um tanto próxima da experiência dos homens livres pobres, com
São Paulo se misturava com a população pobre e liberta, intensificando não apenas os
teia social, movimentando-se constantemente nessa rede de sociabilidade que nasce das
práticas informais nas ruas e vielas da cidade de São Paulo, configurada principalmente pela
dispersão humana. A convivência de culturas diferentes e a forte tensão social também são
têm favorecido estudos que contemplam aqueles que também eram sujeitos de sua história.
Não os donos do poder, mas os escravos, escravos urbanos, escravas divorciadas, forros,
lavadeiras, quitandeiras que circulavam pela cidade convivendo lado a lado com estudantes,
homens e mulheres livres, pobres imigrantes e com todos aqueles que foram atraídos por
45
CASTRO, H. M. M. de. Das cores do silêncio: a escravidão no sudeste do século XIX. São Paulo: Nova
Fronteira, 1993.
46
IDEM, p.63.
32
possibilidades de ganho em uma São Paulo que não crescia de forma democrática. Os grupos
das classes médias se ampliavam na cidade, vivendo de forma instável, constituindo famílias
ambulantes.47
A Capitania de São Paulo recebia pessoas que chegavam sozinhas para construir uma
história, sem ter bases familiares prévias e o que conseguiam, na maior parte das vezes, era
uma estabilidade precária, escapando do nível mais baixo, mas ainda numa situação frágil49
Com um estilo de vida pautado pela simplicidade, conviviam com os escravos, que chegavam
a carros puxados por bois, circulavam pelos chafarizes, ruas e pontos da cidade. Maria Odila
salienta que, na época da independência, sabia-se que quase 40% dos moradores da cidade
eram mulheres sós, chefes de família, muitas delas concubinas e mães solteiras.50
integrante da tradição da Vila desde o século XVII. [...] Elas passaram a atrair a atenção das
autoridades em ofícios ou relatórios para o Reino nas últimas décadas do século XVIII, após o
impacto da moda ilustrada e do reformismo europeizante que tomou conta das elites [...]51.
47
OLIVEIRA, Maria Luíza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da
urbanização: São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005, p.13.
48
IDEM, p.15-16.
49
IBIDEM, p. 13.
50
DIAS, M.O. L. da S. op. cit. p. 29
51
IDEM, p.29.
52
ASSUNÇÃO, op.cit.
33
vendiam e negociavam seus produtos próximos das quitandeiras ambulantes, geravam muitas
ainda confusas e desajustadas, como entender o que acontecia porta adentro, atrás de uma
árvore, dentro do armazém, ou até em uma simples conversa entre uma lavadeira e um
estudante nos arredores do Largo São Francisco? O olhar dos viajantes contribui muito para
visualizarmos algumas especificidades da vivência em São Paulo. Maria Odila relata a visão
Pode-se dizer que São Paulo era uma cidade com alguma vocação para a movimentação
incessante de seus habitantes. Mas a intimidade destas relações faz com que aquela São Paulo,
da virada do século XVIII para o XIX, peça aos seus observadores uma visão microscópica
ou, como propõe Maria Odila55, uma leitura dos documentos às avessas ou nas entrelinhas,
53
Ver ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo. In: DIAS, M. O. L. da S.
Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 22
54
DIAS, M. O. L. da S. op.cit.p. 22.
55
DIAS, Maria Odila da Silva Leite. Mulheres sem história. Revista de História, n. 114, jan/jun, 1983, p. 31-45.
34
buscando mapear as relações entre homens e mulheres e a inserção destes sujeitos históricos
na sociedade.56
Nem mesmo a iconografia foi capaz de captar os turbilhões sociais paulistanos. A foto
registrada por Militão Augusto de Azevedo em 1862, ainda que em um período posterior ao
estudado, permite uma análise de como as lentes de uma máquina viriam a captar o
A leitura dessa imagem diz muito sobre o imaginário criado sobre a cidade. Uma vez que as
únicas figuras nítidas são as que estavam paradas no momento do registro, vincula-se à cidade
uma noção de monotonia. Como reflete Foucault: [...] a essência manifestada, a invisibilidade
os reflexos, as imitações, os retratos [...]58. Ressalto, portanto, que a imagem de uma cidade
entregue ao marasmo, onde tudo parece assentado e pouco movimentado, deve dar lugar ao
56
Ver ZANNATA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-
1822). Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2005.
57
Rua do Rosário 1862/63. MAJOLO, op.cit. O autor, ao analisar as Atas da Câmara neste período, encontra
descrições do que chamou de banalidades do dia a dia e muitos trechos de histórias de vida. São brigas,
infrações, conchavos políticos, entre outros desacertos mediados pelos Juízes de Paz, nomeados pelos vereadores
após a Constituição de 1824, com a função de mediadores entre a população e a Câmara. Ao contrário do que
parece estar refletido na imagem, as Atas apresentam uma cidade de relações densas e figuras políticas com
pouco controle sobre a população e principalmente a partir 1828 [...] uma Câmara Municipal enfraquecida e sem
contar plenamente com a força destinada aos Juízes de Paz, começa a conviver mais intimamente com o
dinamismo das ruas. As vereanças tornaram-se então caóticas, bagunçadas, perdidas num turbilhão de
requerimentos [...].
58
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 20.
35
dinamismo das relações sociais nas ruas paulistanas, que as lentes não foram capazes de
captar.
2. Matrimônios
de escolha funcionava, essencialmente, como um sistema de mercado, ainda que este fato não
eliminasse a fusão dos grupos sociais e raciais que ocorreu paralelamente, através das uniões
Era também por meio do casamento que poderiam emergir alianças entre indivíduos
sogro.60
privilegiada ocupada pelos dotes na economia paulista, sendo responsável, em ampla margem,
pela transferência de bens entre os moradores de São Paulo. A preocupação com o dote (pago,
não pago, prometidos ou pagos em parte) consolida o embate financeiro entre credores ou
59
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial: caminhos e descaminhos. São Paulo: Paz
e Terra, 2003, p. 104-133.
60
KUSNESOF, Elizabeth Anne. Social mobility and immobility in urban change. São Paulo: 1765 to 1820. American
Historical Association, 1974, p.8.
61
CAMPOS, A. L. de A. op. cit. p. 133
36
Os dotes deviam adequar-se aos limites econômicos das famílias. As classes mais
humildes buscavam eliminar o dote através de pedidos de dispensa. Nestes pedidos são
comuns as [...] alegações sobre a modicidade do dote da moça, o que a impediria de encontrar
companheiro de igualha [...]62. Já entre as elites, a prática do dote em São Paulo começou a
entrar em declínio na segunda metade do século XIX, como avaliou Muriel Nazzari. A partir
daí, o casamento deixou de [...] constituir a estrutura de um empreendimento para ser uma
entidade distinta dos negócios da família [...]63. Mas o casamento não protagonizava somente
nos negócios das famílias; constituía-se ainda como uma tentativa da Igreja de evitar as
Todavia, o alto custo era um entrave à legitimação das famílias, o que favorecia as uniões
ilícitas entre as camadas mais pobres da população. Por isso, os homens pobres relutavam em
formassem uma família legítima aos olhos da fé, as uniões ilícitas ainda ocupavam muito
espaço na sociedade paulistana deste período. Segundo Gomes, a questão das taxas para
62
IDEM, p. 135
63
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil,
(1600-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 151. Segundo a autora, as mulheres da elite deixaram
de ser objeto de transação financeira e parte integrante dos negócios da família para contraírem outra
representatividade nesta sociedade na qual [...] tanto filhos como filhas adquiriram liberdade na escolha de seus
cônjuges. Essa liberdade era, ela própria, conseqüência do declínio da prática do dote [...]. Cf. ZANNATA, Aline
Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-1822). Dissertação de
Mestrado: Universidade Estadual de Campinas, 2005.
37
função das normas impostas pela religião, sendo que, ao clero, competia atuar neste sentido.
A interferência da Igreja é pertinente, uma vez que o matrimônio não é apenas um contrato,
de Trento, que invalidavam, nos seus efeitos, os casamentos não celebrados pela Igreja. 66
matrimônio, o amor como estímulo parece ter ocupado um lugar de menor importância,
gratidão do que realmente ao amor entre os cônjuges. Além disso, os padrões de moralidade
eram mais flexíveis, havia pouco a se dividir e oferecia-se uma vida simples.67
64
O documento a seguir demonstra a dificuldade de se tratar deste assunto [recorrente] desde o período da
instalação do bispado de São Paulo até a Independência do Brasil: [...] Consta-me que os novos moradores dessa
povoação se acham totalmente agravados e desgostosos pelo ônus que V.M. lhes quer por pagar cada pessoa
meia pataca para sua desobriga; e juntamente alguns dos que ai casaram se acham vexados com excomunhões
pela sua pobreza lhes não permitir terem pago as exuberantes despesas que se lhe fizeram [...] como bom pastor
atalhe aquelas consequências que podem seguir-se, usando com eles toda consideração e equidade com que a
Igreja costuma favorecer e não escandalizar [AESP, Doc. Interessantes, Vol. 6, p. 175-176]. GOMES, Edgar da
Silva. Catolicismo em São Paulo (1749-1764). In: Catolicismo em São Paulo. SOUZA, N. (Org.). São Paulo:
Paulinas, 2004, p. 188-189.
65
GOMES, Edgar da Silva. Catolicismo em São Paulo (1749-1764) In Catolicismo em São Paulo. SOUZA, N.
(Org.). São Paulo: Paulinas, p. 222.
66
Cf. ALBERIGO, G. (Org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995. Convocado em 1545
pelo Papa Paulo III, o Concílio de Trento tinha por fim estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos. Foi o
mais longo concílio da história da Igreja, realizado de 1545 até 1563. Emitiu numerosos decretos disciplinares e
especificou claramente as doutrinas católicas quanto à salvação, aos sacramentos e ao canône bíblico, em
oposição ao protestantismo. Unificou o ritual da missa, abolindo as variações locais, instituindo a chamada
"Missa Tridentina" (referência à cidade de Trento, onde o concílio transcorreu). Regulou as obrigações dos
bispos. Confirmou a presença de Cristo na Eucaristia. Foram criados seminários como centros de formação
sacerdotal e reconheceu-se a superioridade do papa sobre a assembleia conciliar. Foi instituído o índice de livros
proibidos (o Index Librorum Prohibitorum) e reorganizada a Inquisição.
67
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX. Caderno de
pesquisa, São Paulo, (37): 17-25, Mai/ 1981.
38
de muitos casais paulistas. Sabe-se que, para obtenção de um divórcio, a Igreja considerava a
Provavelmente, por isso, em todos os processos as mulheres relatam que recebiam pancadas
tão violentas, que suas vidas estavam em perigo se obrigadas a continuar dividindo o teto com
seus esposos.
fato que questões financeiras, concubinato com escravas e até mesmo com índias podiam ser
do senhor. O problema é que este mesmo senhor foi o responsável pela união indesejada. Para
as forras a saída era se dirigir diretamente ao Tribunal Eclesiástico. Rita, uma parda forra da
Vila de Paraíba, casada com Joaquim há quatro anos, obrigada a casar enquanto ainda era
cativa, pede ao Tribunal Eclesiástico o divórcio por conta das bebedeiras do marido, que
dissolver uma união delimitada somente nos interesses de seu ex-senhor, não é possível saber
com certeza. O fato é que mulheres escravas eram obrigadas a se casar de acordo com a
forras e escravas com a devida permissão de seus senhores buscavam, frente ao Tribunal
Eclesiástico, a separação de corpos; o fim da obrigação de dividir o teto e a cama com seus
companheiros.
capítulo é, pois, ainda que unidos por um homem que detinha poder sobre seus corpos e vidas,
de divórcio.
assegurar ainda domínio sobre os braços de trabalho dos homens e os ventres lucrativos das
3. “Sabe-se que a justificante por ameaças de seu senhor foi obrigada a cazar com o
justificado, seu marido”69: Matrimônio entre escravos.
Este trecho pertence à obra de Sandra Lauderdale Graham: Caetana diz não e retrata
os preparativos para a união entre dois escravos. Essa jovem, com talvez dezessete anos, e
Custódio com vinte e tantos anos, companheiros de escravidão ou parceiros, termo que os
reconhecia como pertencentes ao mesmo senhor, o capitão Luís Mariano de Tolosa, dono da
Fazenda Rio Claro. A história retrata uma realidade dos cativos: [...] revelam a fragilíssima
margem de opção por parceiros a eles reservada [...]71. O processo de anulação de matrimônio
movido por Caetana esteve sob exame das autoridades religiosas por quase cinco anos. Teve
Parte dos autos do processo de divórcio de Caetana, que ainda estão no Arquivo da
Cúria Metropolitana de São Paulo, contam um pouco da história da jovem escrava. Esta
história resgata importantes aspectos da vivência em São Paulo e quais os impactos que
escravas que sofriam com uma prática comum da época: os senhores que obrigavam seus
escravos a se casarem.
Na petição de Caetana consta que, no ano de 1836, seu senhor, o Capitão Tolosa, a
chamou e lhe disse que iria casá-la com um dos escravos de sua propriedade, pelo qual
Caetana não sentia nada a não ser repugnância. O desespero teria tomado conta da jovem e
apesar do tom positivo usado pelo Capitão, a fim de convencê-la, Caetana teve coragem para
dizer a ele que não queria se casar. Por fim, foi convencida diante do argumento do Capitão
de que não queria dentro de sua casa, para servir suas filhas, uma escrava solteira. Ela acabou
70
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: Histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira.
São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 23
71
CAMPOS, A. L de A. op.cit. p. 536
72
GRAHAM, S. L. op. cit., p. 25
41
Mas Caetana tirou uma carta da manga; em um ato de desobediência, não permitiu
que o marido a tocasse nos três dias seguintes ao casamento. No quarto dia, recebeu a notícia
de que o marido, com a ajuda de um tio, havia decidido usar de violência, com açoites e
práticas de tortura para obrigá-la a manter relações sexuais com ele. Amedrontada, Caetana
recorreu ao seu senhor, pedindo proteção e ajuda judicial para desfazer aquele casamento.
73
Tolosa consentiu, conservando-a em câmara separada. Consta ainda no longo processo –
que tem mais de 50 folhas – que não era somente o Capitão Tolosa que fazia pressão sobre
Caetana. Seus padrinhos, sendo a madrinha escrava da mesma casa, a quem a jovem escrava
devia obediência e gratidão, ordenaram que Caetana acatasse ao seu senhor e se casasse ainda
[...] Diz Caetana, escrava do Capitão Luis Mariano de Tolosa, que foi pelo
mesmo obrigada a se cazar com Francisco, escravo da mesma caza. A
justificante, propondo a ação de nullidade de matrimônio, com a licença do
dito Capitão Luis Mariano Tolosa. [...] o dito Francisco obrigando-a à
consumação do matrimônio, com violência e injúrias [...]74.
Caetana, assim como outras escravas, na tentativa de pôr fim ao seu casamento
indesejado e ao qual foram obrigadas a comparecer por vontade de seu senhor, trouxeram à
tona uma realidade que muitos desconheciam: escravos também se casavam e se separavam,
Mas um casamento entre escravos não é fato que se espera encontrar. A versão comum
é que aos escravos era negada a oportunidade de se casarem e formarem um lar. Em 1707, um
sínodo católico reunido em Salvador, então capital da colônia, publicou uma compilação de
leis diocesanas conhecida como Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Essas leis
73
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.
74
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.
42
pretendiam ser condizentes com o direito canônico e com o Concílio de Trento e, ao mesmo
O sínodo julgou necessário declarar que os escravos podiam casar [...] com outras
pessoas cativas ou livres [...] e seus senhores não deveriam impedi-los com ameaças ou [...]
máo tratamento [...]. A lei ainda advertia os senhores a não venderem um escravo casado para
um lugar tão distante que o cônjuge não pudesse segui-lo, mas ao mesmo tempo, as
escravo continuava cativo, mesmo casado com uma pessoa livre ou liberta, e [...] estava
obrigado a continuar servindo seu senhor, ainda que isso significasse a separação de seu
marido ou sua esposa [...]76. Vale lembrar que a Igreja também pregava a proibição da
escravidão indígena; proibição esta que nunca foi respeitada. Neste sentido, torna-se
colônia.
suas próprias exigências. Tal como estabelecidas pelo Concílio de Trento em 1563, e
praticadas rotineiramente no Brasil católico dos séculos XVIII e XIX, as provas necessárias
A Igreja pedia provas de que nenhum dos noivos tivesse sido casado antes, o que, por
sua vez, exigia que o padre de qualquer paróquia em que eles tivessem vivido quando adultos
por mais de seis meses fornecesse uma declaração por escrito de que o requerente era solteiro.
Obter tal documento era uma tarefa demorada e custosa que supunha alfabetização e
habilidades sociais que poucos escravos tinham condições de possuir. A prova de identidade e
75
GRAHAM, S. L. op.cit. p. 50.
76
IDEM, p. 50-51.
43
dependia do empenho dedicado do senhor, bem como contribuições do seu próprio bolso.77
escravos em matrimônio. Uniões entre escravos não eram, desta forma, tão incomuns. A
questão não é porque tão poucos casamentos entre escravos, e sim por que tantos casamentos
entre escravos?
formação da família escrava78, publicado em 1999, uma resposta plausível seria a de que os
senhores poderiam manter sua influência e seu domínio mais facilmente sobre um escravo ou
uma escrava que já tivessem formado uma família naquele espaço de convivência e uma fuga
número de mulheres fugitivas ser bem menor do que o de homens fugitivos. Os senhores
podem ter apelado para o instinto materno de suas escravas para evitarem as fugas e a
desobediência, já que para elas seria difícil deixar seus filhos para trás ou, em caso de fuga,
encontrariam muitas dificuldades para se mover num terreno difícil ou se esconderem com
Havia ainda o medo da represália aos parentes que ficavam para trás, outro recurso dos
senhores para impedir que seu bem mais caro e valioso se transformasse em grande prejuízo.
Para os senhores escravistas em São Paulo, poderia ser vantajoso permitir que seus escravos
ainda que indireto, sobre seus cativos. Silvia Lara traz considerações importantes acerca das
uniões escravas. Como observa a historiadora, [...] a existência do tráfico e sua intensidade,
escravidão, apontavam para uma pequena preocupação dos senhores quanto á reprodução
Lara cita Benci, Antonil e Ribeiro Rocha80, que já no início do século XVIII criticavam
veementemente o costume das uniões ilícitas tanto entre escravos, como entre senhores e
que o sacramento do matrimônio tinha sido instituído [...] não só para propagação do gênero
humano, senão também [...] para remédio da concupiscência e para evitar pecados [...]81.
Antonil era ainda mais enfático quanto à preocupação com a reprodução escrava,
reprovando coices [...] principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas [...]82,
aconselhando os senhores a darem sobras das mesas aos filhos pequenos dos escravos a fim
de que eles [...] os sirvam de boa vontade e [...] se alegrem de lhes multiplicar servos e servas
[...] e tratá-los bem, já que [...] algumas escravas procuram de propósito o aborto, só para que
não cheguem os filhos de suas entranhas e padecer o que elas padecem [...]83.
racionalidade senhorial. Silvia Lara observa que, em carta dirigida a D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, José Feliciano da Rocha Gameiro aborda a questão da mão de obra escrava e a alta
nos preços dos escravos, propondo a todos que compravam escravos para a agricultura que
dificuldade de vender um escravo fortemente estabelecido em seu círculo social. Embora até
79
LARA, op.cit, p. 220.
80
LARA, op.cit, p.220-2
81
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no Governo dos escravos (1705). São Paulo: Grijalbo, 1977,
p.102 105. Apud LARA, op.cit, p. 220-1.
82
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711). São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, p. 106-112 apud LARA, op.cit, p.221.
83
ANTONIL, op.cit, p. 120-132. Apud LARA, op.cit, p.221.
84
LARA, op.cit, p.221.
45
1869 não houvesse nenhuma lei proibindo a venda separada de marido e mulher, a Igreja há
tempos se posicionava contra transações que colocassem obstáculos às uniões escravas. Mas,
como foi possível averiguar anteriormente, a Igreja por vezes era ignorada. O grande
Como na história não existe verdade absoluta, é razoável concluir que não há provas
concretas da intencionalidade dos senhores nas uniões entre seus escravos, não porque os
senhores não fossem astutos ou implacáveis, [...] mas porque não há dados que comprovem
estáveis.
4. “A justificante vendeu tudo que tinha, afim de cuidar de seu divórcio”86 - Divórcios:
conflitos porta afora.
pessoas recorriam exclusivamente à Igreja para resolver os impasses que tornavam a vida
85
GRAHAM, S.L, op.cit. p.56.
86
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220. 1821.
87
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
46
murros, pontapés, coices, esporadas, arrastões pelo chão, puxões de cabelo, batidas de cabeça
[...] seu marido a trata como escrava e a persegue, executando nella tantas
pancadas, dando-lhe bofetadas e arrancando facas para matá-la e por
repetidas vezes com perigo de vida [...] e por elle andar concubinado.90 [...]
ella justificante sempre foi obediente ao seu marido, cumprindo com elle
suas obrigações de mulher casada [...] dires a várias pessoas não aguentar
mais os impropérios que seu marido lhe faria [...] seu gênio áspero e colérico
[...] além do péssimo vício de se embriagar, se embarassou com outra mulher
escrava na mesma casa, com quem setem ajuntado carnalmente vivendo
manteridamente, contra todas as desposições das Salutares Leis Civis
Canônicas [...] gravíssima ofensa e total abandono [...]91.
Em 1808, uma esposa conseguiu, a muito custo, obter a ajuda de um enteado, filho de
seu primeiro marido. Por ter reclamado com o marido de se concubinar com uma afilhada
88
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
89
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
90
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 122.
91
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
47
criada por ela, a esposa havia recebido muitas pancadas com cordas de couro, das quais
quarto, tirando a chave, a deixou por morta com ameaças de logo voltar e acabar de matá-la
[...]. De acordo com as testemunhas do processo, os escravos a tiraram do quarto, e ela [...] de
rastos se foi valer de seu enteado vizinho, que a socorreu, mandou sangrar e curar as chagas
[...]92.
Partindo dos relatos presentes nos autos, verifiquei que os objetos mais usados para
causar tais ferimentos foram cordas de couro, chicote, remo de canoa, vara cabo, palmatória,
pedaços de pau e laço dobrado. As pancadas eram por vezes tão violentas que, em certos
casos, a mulher era obrigada a ficar de cama por um tempo considerável, tendo de receber
cuidados e tratamento.
recorrentes as relações ilícitas com as escravas que, na grande maioria das vezes, eram de
propriedade do casal. Nesse contexto, a relação se dá dentro de casa ou pelo menos no mesmo
que caracteriza este tipo de relação que, por vezes, duravam anos, resultando até em filhos
ilegítimos.93
Para efeito de comparação com outras regiões da colônia, destaco Marilda Santana
em concubinato com seus senhores, sendo punidas por isso. Essas mulheres encontravam-se,
como afirmou a autora, [...] numa situação ambígua, quando amásias de seus senhores: nesta
92
COSTA, R. L.D da, op.cit. p. 190-223.
93
IDEM, p.292-293.
48
condição, se por um lado alcançavam alguns objetivos materiais e afetivos, por outro se
sujeitavam aos desígnios dos concubinos, tendo que se resignar ao papel de amantes [...]94.
tráfico Atlântico no Rio de Janeiro entre 1790 e 1850, relatam um fato ocorrido em 1847. O
de um senhor moço e de uma escrava de nome Joana. Ao entrar na sala da casa do jovem
senhor, encontrou Vicente José Ferreira caído no chão, com onze facadas no peito. Foi
informado, pela irmã de Vicente, que os assassinos eram dois escravos, de propriedade de seu
outro irmão. Mas a escrava Joana continuava desaparecida. O inspetor saiu então em busca da
moça. Quando a encontrou, à beira de um riacho, estava com o corpo dilacerado. Os dois
confessaram: mataram Joana por ciúme da relação íntima que ela mantinha com o jovem
Percebe-se também que, quanto maior fosse a liberdade das escravas dentro das casas
paulistas, mais difícil poderia ser a situação da esposa. A presença efetiva da escrava se fazia
94
SILVA, Marilda Santana. Dignidade e Transgressão: Mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais
(1748-1830). Campinas, São Paulo: Ed. Unicamp, 2001, p. 27.
95
FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro (1790-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
96
IDEM, p.76-78.
97
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2004, p. 516.
49
notar pelo simples fato de tratar melhor dos assuntos domésticos do que a esposa,
masculinas, fica bem evidente em processo de divórcio de 1821, onde a esposa se queixa da
falta de atenção do marido para com ela, pois quase nunca se falavam e:
[...] Tendo seu marido um espírito fogoso e frenético e agradar uma escrava
da caza [...] ele dedicava seus mimos a uma escrava de nome Joana com
quem consulta seus negócios e desposições que tem de fazer, a ponto de
abraça-la, correr-lhe a mão pela cabeça mesmo a vista da suplicante,
abusando de sua bondade [...]98.
O marido, em sua defesa, desloca a atenção para as deficiências da esposa: [...] nem
vive mal encaminhado com aquela escrava Joana, portanto essa é sua comadre, e tendo como
tem boa disposição para o arranjo da casa, parece que por estes dois princípios faz-se digna de
escravas nos limites de sua propriedade, situação confortável para o homem. Destaca-se o
número expressivo de processos em que a escrava é bastante próxima da esposa, o que chama
a atenção para a possibilidade da mesma ter usufruído desta proximidade em seu benefício
para lançar dúvidas sobre o comportamento masculino, a fim de conseguir o divórcio com
maior facilidade.
É nos processos de divórcio que se nota o movimento e o falatório nas ruas da cidade.
O maior exemplo disso são as testemunhas. Elas dão seus depoimentos baseadas não só nos
fatos dos quais foram testemunhas, mas também naqueles contados pelo povo.
construção de laços de familiarização entre classes sociais diversas. Ainda que o foco
98
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n. 233.
99
IDEM.
50
pobres e até mesmo a elite, que eram presenças constantes e fundamentais no dia a dia e no
falatório nas ruas. As discussões, por diversas vezes, ocorriam fora do recinto doméstico,
assim como grande parte da vida das pessoas na cidade. Segue trecho do depoimento de uma
A troca de informações sobre a vida alheia e a crença de que muitas mulheres foram
salvas no momento em que o marido tentava matá-las por um milagre são alguns dos fatores
testemunhas que afirmam ter conhecimento de determinada situação por conta do falatório
nas ruas, bem como relatos de mulheres que dizem terem recebido uma graça divina, sendo
salvas graças a milagres como: a arma não disparou, a faca não tinha ponta aguda o suficiente
100
Quando se casou, Antônia Maria era escrava do Capitão Antônio Caetanno, assim como seu marido. O
Capitão obrigou seus dois escravos a se casarem, ainda que Antônia Maria não concordasse. Depois de forra,
Antônia Maria abriu o processo de divórcio contra seu marido, que por sua vez permanecia como escravo do
Capitão.
101
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
102
COSTA, R. R. L. D. da. op.cit, p.210.
51
intervenções divinas.103
como também se apresenta uma reflexão sobre a condição feminina e sua atuação perante o
exemplo, a defesa do marido poderia alegar que o homem é superior e assim estaria
exercendo seu direito à correção. Mas qual seria o limite entre corrigir e maltratar?
agressividade do marido, estariam dizendo a verdade? Ou ainda do que eram acusadas e por
103
IDEM, p.211.
52
CAPITULO II
“sempre ela serviu e obedeceu”104: Construção e desconstrução dos estereótipos
do divórcio em São Paulo, no período a ser estudado. Mediante a análise dos processos que,
em sua maioria, eram movidos por mulheres, intento compreender a condição da vida
resultado positivo frente ao Tribunal. Mas de que forma o fizeram e que informações sobre a
vida cotidiana das mulheres estão presentes nos conflitos transcritos nos processos?
Juntamente com a bibliografia referente ao tema, pretendo observar estas questões neste
Nos processos de divórcio notam-se as manobras femininas para dar fim à união
indesejada, à violência a qual poderiam estar submetidas e quais recursos usavam para se
libertar dos maridos. Pretendo explorar a multiplicidade de papéis exercidos pelas mulheres, a
104
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58. 1801.
105
J. B. SPIX e C. F. P. von Martius. Viagem pelo Brasil, 1817-1820
53
A historiografia a partir dos anos 70, com a explosão dos movimentos feministas,
buscou romper com a imagem da mulher reclusa e passiva, inserida única e exclusivamente
no ambiente doméstico. Marilda Santana nota que “[...] guiados por estudos que legitimaram a
novas formas de se aproximar do cotidiano das mulheres do passado [...]” 107. Maria Odila da
[...] A historiografia das últimas décadas favorece uma história social das
mulheres, pois vem se voltando para a memória de grupos marginalizados do
poder. Novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os
historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história
microssocial do quotidiano: a percepção dos processos históricos diferentes,
simultâneos, a relatividade das dimensões da história, do tempo linear, de
noções como progresso e evolução, dos limites de conhecimento possível
diversificam os focos de atenção dos historiadores, antes restritos ao
processo de acumulação de riqueza, do poder e à história política
institucional [...]108.
Segundo Maria Izilda Santos de Matos, desde os anos 70, quando de forma contínua
106
SILVA, Marilda Santana da. op. cit., p. 19
107
IDEM, p. 19.
108
DIAS, M. O. L. da S. op.cit. p. 14
109
MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 07-13
54
bem como dar visibilidade às mulheres. A emergência da história das mulheres foi
críticas feitas a ele em razão da maneira como incorpora as mulheres em seus estudos,
ressaltou: [...] não existem causas perdidas na história, e o que parece secundário, numa dada
Mas a história das mulheres não é só delas, é também a história das crianças, da
que sofreram e praticaram; da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos.113
A vida social e familiar tinha a participação ativa das mulheres, ainda que houvesse
110
Sobre o tema, ver: BLANCO, Esmeralda Luiz. O trabalho da mulher e do menor na indústria paulistana
(1890-1920). Petrópolis: Vozes, 1982. PENA, Maria Valéria Juno. Mulheres e trabalhadoras: presença feminina
na constituição do sistema fabril. São Paulo: Paz e Terra, 1981; TEIXEIRA, Amélia R.S. et. al. O trabalho da
mulher na indústria de vestuário. In Mulher, mulheres. São Paulo: Cortez/Fundação Carlos Chagas, 1983 apud
MATOS, M. I. S. op.cit, p. 30.
111
MATOS, M.I. S. op. cit. p.13
112
THOMPSON, E.P. The making of the English working class. Nova Iorque: Pantheon, 1959, v.I, p.936. Apud
DIAS, M.O. L. da S. Op.cit. p.14.
113
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009, p. 7
55
Maria Beatriz Nizza da Silva chama atenção para o fato de que, já no final do século
XVIII, a Igreja aceitou um novo tipo de divórcio, cuja petição era redigida pelos dois
cônjuges em comum.
procurador, registradas nos autos: [...] Diz o tenente Manuel Teixeira de Carvalho e sua
mulher Francisca da Chagas de Jesus que são cazados [...] unidos segundo as leis[...] e de
O procurador enviado pelo tenente e os advogados das partes entraram num acordo
quanto à guarda dos filhos e à partilhas dos bens. O processo foi rápido e não ultrapassou um
mês. Com isso surge uma discussão interessante e fica a dúvida: como a Igreja, sempre tão
criteriosa nos assuntos referentes ao divórcio, pôde ter aceitado uma separação amigável?
Para Raquel Costa uma resposta possível seria que esse tipo de divórcio surgiu no
final do século XVIII, devido às necessidades de ordem prática, para atender uma população
que crescia, pois o divórcio litigioso era mais demorado e mais caro. Deste modo, a Igreja
dispondo de comum acordo dos bens do casal e o destino dos filhos, ficando assim livres para
114
Sobre separações amigáveis ver: ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio
entre a elite paulista (1765-1822). São Paulo. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2005. COSTA, Raquel R. L.
Domingues. Divórcio e anulação de matrimônio em São Paulo Colonial. Dissertação de Mestrado.
FFLCH/USP, 1986.
115
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 161.
56
passo que Eni de Mesquita Samara alega que as separações amigáveis aparentemente tinham
o propósito de simplificar os processos, situação onde é preciso dividir bens e filhos, tendo a
“transparecer as alterações que estavam se efetuando nas relações entre marido e esposa”, as
quais ficavam salientes nos processos em que as mulheres queixavam-se de seus maridos.117
Este exemplo é importante para notar-se que, como sugere Samara, os divórcios onde
se alegam incompatibilidades de gênio teriam significado que [...] o fato das mulheres estarem
sujeitas aos casamentos arranjados não garantia a manutenção da união [...]118. Portanto, a
obras recentes, que dão ênfase à questão do conflito de papéis e de práticas femininas.119
A historiografia, não raras vezes, cita exemplos de mulheres que, na ausência dos
116
SILVA, M.B N da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1984. Apud, ZANATTA, p.150.
117
SAMARA, Eni de Mesquita.As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco
Zero, 1989, p. 119 apud ZANATTA, op.cit. p. 151.
118
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.57.
119
Cf. o segundo capitulo da obra de Vainfas (1988), intitulado Mulheres degradadas, fornicação ilícita (p. 60-
68). Coletânea História e sexualidade no Brasil, também de Vainfas; Dissertação de mestrado de Marilda
Santana da Silva, Dignidade e transgressão: mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais (1748-1830),
em especial o terceiro capítulo, 2001; a coletânea Mulheres, adúlteros e padres, organizada por Lima, 1987, ou
ainda Joan Scott, “História das Mulheres” na obra A escrita da história, organizada por Peter Burke, 1991.
120
CÂNDIDO, A. The Brazilian family, in T. Lynn Smith (ed), Brazil Portrait of Half a Continent. NY:
Marchand General, 1951 apud Samara, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.
58.
57
domésticas121, cooperando para o sustento da casa. Não esquecendo ainda as mulheres que,
durante o bandeirismo, assumindo o papel de matronas, cuidavam da casa, dos filhos e dos
que:
Priori sublinha que a condição feminina fabricava-se, então, pelo caráter exploratório
pela casa, pelos filhos, pelo marido, pelo casamento, pela procriação, no que Priori chama de
figura da santa-mãezinha.
corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzindo-se numa conduta individual domesticada,
matrimônio foi reconhecida pelo Concílio de Trento, ao confirmar [...] por muitas causas se
pode se separar entre os consortes, quanto ao toro, ou quanto à habitação, por tempo certo, ou
125
DEL PRIORE, Mary. op.cit., p. 23. A historiadora esclarece que elementos desse discurso normatizador já se
encontravam presentes na mentalidade popular portuguesa – e mesmo européia – cabendo à Igreja metropolitana
adaptar valores conhecidos das populações femininas, para um discurso com conteúdo e objetivo específicos. Tal
discurso foi pulverizado sobre toda a atividade religiosa exercida na colônia, dando especial sabor normativo aos
sermões dominicais, às palavras ditas pelo padre no confessionário, às regras das confrarias e irmandades, aos
“causos moralizantes”, aos contos populares, aos critérios com que se julgavam os infratores das normas por
intermédio da murmuração e da maledicência. A mentalidade colonial foi sendo lentamente penetrada e
impregnada por esse tipo de discurso.
126
SILVA, Marilda Santana. Op. cit. p. 48
127
O sacrossanto e ecumênico Concílio de Trento. Editora Reformata, 1745 apud Londoño, Fernando Torres.
Legislacion eclesiástica para el matrimônio em el Brasil colonial – Las contituiciones Del arzebispado de
Bahia, p. 2. Cf. SILVA, M. S. op. cit., p. 78.
59
maior, podendo ocasionar a separação dos corpos nos casos de adultério, de apostasia e
1. “era violento [...] seu dito marido, maltratando-a com pancadas [...] se ausentou por
longo período [...] sem deixar para sua sustentação nem uma espiga de milho”129:
Sevícias masculinas, argumentação feminina.
um resultado favorável. Mas o pedido sempre deveria basear-se nos itens das Constituições
femininas mais comuns são as sevícias e o concubinato. Contudo, as sevícias e os maus tratos
físicos abrangem diferentes níveis de agressão física, que iam de bofetões até tentativas de
homicídio.
o perigo de morte eminente e quão danoso pode ser o convívio com seu marido-agressor.
Em 1821, a justificante Gertrudez Maria de Jesus, branca pobre, vendeu tudo o que
tinha: suas roupas, jóias e até a sua cama, a fim de cuidar de seu divórcio pelos meios
competentes. Ela afirma que seu marido, Antônio Pedro Moreira, homem que tem sua lavoura
como fonte de renda, além dos maus-tratos e das injúrias, a faz trabalhar no lugar de sua
As testemunhas confirmam que Antônio vive concubinado com uma de suas escravas
[...] injuriando-a com pancadas, sendo a causa de muitas vezes ella se ver
obrigada a afugentar-se pelos matos, temendo a morte. [...] Geraldo Martins,
casado, natural da Villa Nossa Senhora da Conceição, morador na Villa de
Jacarehy, vive de suas lavouras [...] atesta que Antônio difama Gertrudez
publicamente e anda concubinado com uma de suas escravas [...]. 131
pinhão, deparou-se com um casal na mesma atividade. Foi então que o homem iniciou uma
briga com a esposa e passou a esmurrá-la. O rapaz então intercedeu, perguntando ao marido
porque ele havia levado a esposa para [...] lugares tão ogros tendo negra [...]. É na resposta
obtida que se sobressai o ódio do marido e fica nítida a idéia de que para ele, a vida de sua
mulher não tem qualquer significado: [...] a negra tem mais serventia do que essa mulher
quão danoso pode ser o convívio com seu marido-agressor, reforçando no processo a idéia da
espancamento, que provocava ferimentos graves e risco de vida, é a acusação mais freqüente
ainda apontam-se os graus das lesões [...] através dos curativos, remédios e freqüentemente a
necessidade da sangria para curar a esposa que sofreu nas mãos do marido [...]134, destacando
131
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
132
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 62.
133
COSTA, R. R.L D. Op.cit. p. 205.
134
IDEM, p.210-211.
61
sempre uma violência brutal por parte do marido, intencionando, com o depoimento da
depoimento de vizinhos, curandeiros e até parteiras. Em 1808, Vila de São Carlos, uma
mulher alega ter ficado muito ferida e doente após um dos ataques do companheiro. Ela
afirma que, para escapar da morte teve de ficar [...] de cama no uso de sangrias, e outros
135
remédios para curar suas feridas sanguinolentas [...] . Uma das testemunhas se identifica
136
como José Manuel de Almeida, que [...] vivia da arte da cirurgia [...] e declara ter sido
As questões da gravidez, do parto e dos riscos que a mulher corria nessas ocasiões, são
tanto para a parturiente, como para o bebê. Por isso havia recomendações específicas para o
135
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 75.
136
IDEM.
137
Sobre a necessidade de curativos e tratamentos, ver Dissertação de mestrado de Raquel R. L. D da Costa, item intitulado
As sevícias praticadas pelos maridos, p. 203-225. A autora afirma que [...] a necessidade de curativos e tratamentos levava à
procura de alguém que pudesse ajudar nesse sentido, nem sempre seria uma pessoa que tinha por atividade o trato com
remédios e sangrias, uma parteira ou curandeira. Muitas vezes era procurada uma vizinha, talvez por ter algum
conhecimento no sentido de aliviar o sofrimento físico resultante dos maus tratos [...]. COSTA, R R. L. D da. Op.cit, p. 221
(Grifo meu). Novamente o destaque para a fragilidade da mulher e a necessidade de obter alguma ajuda frente à violência
masculina se tornam argumentos poderosos e consistentes, dos quais os advogados sempre se utilizavam nos autos.
138
A primeira menção a um aborto resultante de espancamento é do ano de 1749, num processo da vila de Curitiba, no qual
se diz que [...] a cria saiu com lesão [...], pois a mulher já estava com [...] dores de parto [...] quando foi agredida pelo marido.
Em depoimento, a tia da justificante afirma: [...] na compania do dito seu marido da roça para sua casa estando nella com
dores de parto lhe deu o dito marido uns empurrões com a mão [...] no dia seguinte parira a dita justificante uma filha, e esta
trazia no ventre de sua mãe um olho coberto de sangue, e não sabe ela testemunha se dos ditos empurrões ficou a criança com
alguma lesão [...] ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 163. Ver em COSTA,
R. R L. D da. Op.cit, p. 211. (Grifo da autora).
139
Ainda hoje, segundo o Código de Direito Canônico, qualquer pessoa pode em perigo de morte pode receber o batismo,
basta que ao solicitar o sacramento um adulto a batize “em nome do pai, do filho e do espírito santo” e lhe derrame água
limpa na cabeça. Cf. Código de direito canônico. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Cap. I. “Da celebração do batismo”. Cân
850-863. Cap III. “Dos batizandos”. Cân 867.
140
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. 1, Tit. XIII § 44 e Tit.XVI.
62
Mulheres próximas do parto deveriam comungar, uma vez que o trabalho de parto, não
raramente, poderia resultar na morte de mãe e filho ou de um dos dois141. As mulheres prestes
filho142.
gestação ou, no difícil momento do nascimento, tinham forte apelo frente às autoridades
religiosas, pois ressalta a imagem de um homem sem sentimentos, indiferente à própria prole.
abortos. No ano de 1821, uma esposa residente na vila de Bragança relata que sofreu um
aborto após ser espancada pelo marido. Uma das testemunhas afirma que o próprio marido
Em outro caso, um oficial de ourives de São Paulo foi acusado pela esposa de
144
provocar-lhe o aborto, desferindo contra ela [...] coices no ventre [...] , com a intenção de
propositalmente atacou a mulher [...] a fim de ver se periga a vida da supplicante com o
aborto [...]145.
Paraíba acusa seu marido, o pardo forro Joaquim, nos primeiros dias de Abril de 1807. Ela
afirma que sofria com constantes maus tratos físicos, que seu marido vivia embriagado e
Mas uma testemunha, de nome Joaquim Lustoza de Cássio, relata que Joaquim
Marques, o marido, ofende a esposa Rita com [...] escândalos públicos [...] e ainda agride
141
IDEM, Liv 1, Tit. XXIV, § 87.
142
IDEM, Liv. 1, Tit. XXXV, § 136
143
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 221.
144
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
145
IDEM.
63
fisicamente a esposa [...] dando-lhe esporadas continuamente, e por cuja causa ha pouco antes
da semana santa teve a referida justificante um aborto, cujo feto nem foi baptizado, injúria
gravíssima [...]146.
grávida era um motivo ainda mais forte para o pedido de divórcio. Poderia, obviamente,
resultar num aborto, na morte de uma criança que não havia sido sequer batizada. Atitude que
Torna-se relevante sublinhar que maus tratos e maridos agressivos [...] surgem em
diferentes níveis da sociedade local, ora nas famílias mais importantes, ora nas mais humildes
físicos, verbais e sexuais, [...] bem como as brancas de famílias importantes localmente
[...]148.
Aline Zanatta, em estudo sobre o divórcio e as mulheres da elite paulistana149 argumenta que
mulheres de camadas sociais mais privilegiadas também alegavam sofrer maus tratos físicos e
serem traídas pelos maridos. Zanatta destaca a petição de Dna. Maria Francisca de Camargo,
que afirma ser seviciada por seu segundo marido, o Cirurgião-mor Antônio José de Babo
Brochado, por volta de 1819, na vila de Itu. De acordo com a pesquisa, Dna. Maria Francisca
era a décima primeira filha de Dna. Benta Paes Camargo e do Capitão Pedro da Rocha de
Sousa. A família Camargo veio para São Paulo nos finais do século XVI e disputou os cargos
da administração de São Paulo por um longo período, principalmente durante o século XVII,
146
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n. 84.
147
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 214.
148
IDEM, p. 214.
149
ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-
1822). São Paulo. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2005.
64
detendo vários cargos na Câmara, [...], pois vários de seus membros ocupavam cargos de Juiz
Dna. Maria Francisca casou-se pela primeira vez em 1797, em Cotia, com o Cirurgião-
mor Thomé Jacinto Teixeira Nogueira e residiam na vila de Itu, onde o marido exercia sua
profissão em uma botica. Além de ter sido nomeado pela Coroa, era também proprietário de
uma botica onde vendia remédios. Ficaram casados por vinte anos até que, em 1817, o
Cirurgião-mor faleceu. Como o casal não tinha filhos, os bens e posses foram herdados por
bons da vila” trataram de buscar um novo cirurgião. Foi quando Dr. Antônio de Babo
Brochado instalou-se na vila. Menos de um ano após o falecimento do Dr. Thomás Jacinto,
Dna. Maria Francisca estava casada novamente, com o Antônio de Babo Brochado.
Mas em 1819, Dna. Maria Francisca já havia encaminhado uma petição ao Tribunal
Eclesiástico, onde afirmava ter sido fisicamente maltratada pelo marido. Em sua defesa, o
marido queria interferir na atuação de sua mulher na avaliação dos bens de seu primeiro
marido, pois afirmava que o Cirurgião-mor era a “cabeça” do casal. Segue trecho dos autos:
[...] Diz Brochado desta vila por cabeça de sua mulher Dna. Maria Francisca [...] que ele quer
haver vista dos autos de inventário que se procedeu por este Juízo dos bens, que ficarão por
Dna. Maria Francisca e sua defesa contestam, afirmando que o Dr. Antônio estava
dominado por “cega ambição”, e que suas afirmações eram [...] fundadas no ódio, na
150
MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada. Significados econômicos e sociais de vida de
habitantes da região do planalto de Piratininga 1648-1682. Dissertação de mestrado. Agosto, 2000, p. 219 apud
ZANATTA, op.cit, p.88.
151
Inventário de Thomé Jacinto Teixeira Nogueira. ACCI-MRCI, 1° Of. Maço 24-A in ZANATTA, op.cit, p.91.
65
inimizade, no orgulho e na calúnia [...]152. Dr. Antônio se defendeu, declarando que era um
homem [...] manso, pacífico e de regular conduta e probidade [...]153. O fato é que,
central residia na herança deixada pelo primeiro marido à Dna. Maria Francisca. Ambos
testemunhas do processo, entre eles dois padres, uma senhora de engenho e uma costureira
moral e dos bons costumes junto à sociedade, também confirmaram os itens alegados pela
autora, por saberem devido ao antigo conhecimento e familiaridade que possuíam com a
autora [...]154.
senhora permitiu que Dna. Maria Francisca morasse com ela durante todo o período em que o
também criavam laços de solidariedade entre si, como fica evidente no depósito de Dna.
Maria Francisca.
As acusações persistiram, mas, infelizmente, não foi possível constatar como se deu o
fim dos tramites do processo, [...], porém, no inventário de José da Rocha Camargo, irmão de
Dna. Maria Francisca, verificou-se que essa senhora, após divorciar-se de José Babo
Brochado, foi convidada a morar com seu irmão na vila de São Carlos [...] 155.
com alguns meses de casada, o mesmo não acontecia com boa parte das mulheres. É grande o
número de mulheres que pediram o divórcio após um longo período de tempo. Porque esperar
tanto tempo?
152
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n. 187 in ZANATTA,
op.cit, p. 91.
153
ZANATTA. Op.cit, p. 94.
154
IDEM, p. 94.
155
IBIDEM, p. 96.
66
mudança em seu comportamento. A imagem mais comum presente nos autos é da mulher
honrosa, que servia ao marido com respeito e dedicação. O homem por sua vez [...] hé homem
Essa imagem do homem devasso, que maltratava a mulher com suas tiranias, pode ser
observada em todos os processos que tinham mulheres como justificantes. Até mesmo
No ano de 1817, na vila de Sorocaba, Maria Antônia de Camargo, mãe de Maria Leite
da Conceição, desejava separar sua filha, com catorze anos, do marido João da Fé do Amaral,
Representada pela mãe, a menina afirma que seu marido exalava um cheiro
presença da supplicante, observou a mesma as pernas e os pés enchados, lançando-se tão mao
cheiro que não podendo aturar, saio do quarto [...]158. Neste processo, não foi possível
identificar de qual doença padecia o homem, somente os sintomas foram mencionados nos
autos:
156
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
157
Este processo apresenta ainda outros problemas como o casamento forçado pela família e desentendimentos
posteriores entre o marido e a família da esposa. Nota-se em trechos do processo: [...] que vivendo quieta e
praticamente na compania de sua mãe Maria Antônia de Camargo e estando na idade de 14 annos, por
insistências e empenhos q cometeo João da Fé do Amaral tanto com a Dna. Sua mãe da supplicante como com
seu avô Matheus Bueno de Camargo e apesar de não prestar a mesma supplicante seu consentimento, nem
aquela sua mãe conhecimento do supplicado morador de Piracicaba [...] a supplicante se casou com o justificado
[...].
158
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 170.
159
IDEM.
67
As doenças, como fator relevante para o divórcio, estão incluídas no item referente às
sevícias nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Nota-se: [...] declaramos que
se algum deles com ódio capital tratar tão mal ao outro, que vivendo juntos corra perigo de
Na vila de Jundiaí, em 1813, uma esposa argumenta que não poderia mais conviver
com a doença de seu marido, estando ele [...] contaminado da contagiosa moléstia de morféia
Mas se o motivo para o divórcio era alguma doença, as mais comuns são as doenças
venéreas. E é a partir destas queixas femininas que se torna possível a abordagem de outro
disseminação de doenças venéreas. Uma mulher poderia até suportar uma traição, mas colocar
sua vida em risco com doenças contagiosas era argumento feminino certeiro frente ás
sintomas da moléstia, era muito provável que a mulher obtivesse um resultado positivo em
sua petição.
O interessante é que, na maioria das vezes, não constam entre o rol de testemunhas
médicos, cirurgiões ou alguém com qualquer conhecimento mais específico. O mais comum
era a comprovação dos fatos por meio de depoimentos das testemunhas. O Juiz julgava a
160
Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Liv I, Tit. LXXII, § 316.
161
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 8 , n. 131.
162
Lycurgo Santos Filho verifica que a lepra espalhou-se pelo Brasil, tendo sido considerada endêmica, no
século XIX, em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Maranhão. Segregar os atingidos foi a tática adotada
pelas autoridades coloniais, a fim de tentar deter o avanço da doença, que fazia com que as pessoas fugissem dos
que a portavam. Ver FILHO, Lycurgo Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo, HUCITEC-
EDUSP, 1977, v. 1, p. 188.
Nos autos dos processos, se o marido era leproso, obviamente, a esposa não poderia ser obrigada a conviver com
ele, ou pior ainda coabitar com ele, o que poderia acarretar em graves riscos para a esposa. Cf. COSTA, R. R. L.
D da. Op.cit. p. 255-256.
68
Na vila de Paraíba, em 1795, uma esposa reclama ter sido contaminada pouco depois
do casamento por doenças venéreas, alega que se casou muito sadia, mas meses depois [...]
principiou a padecer moléstias adquiridas pelo dito marido, fruto de seus vícios e relações
pecaminosas com meretrizes [...]163. Em 1813, na cidade de São Paulo, uma esposa afirma [...]
ter ficado o corpo coberto de feridas pelas moléstias que o dito marido adquiriu ao fazer atos
ilícitos [...]164.
O caso mais grave identificado nos processos estudados ocorreu na cidade de São
Paulo, em 1814. A esposa recorreu ao Juízo com o pedido de divórcio e separação de corpos
imediata. Ela dizia que seu marido, levando uma vida sexualmente desregrada, havia
gravidade da situação:
[...] que é verdade que ele tem perpétua impossibilidade de coabitar por
defeito, e perda total do membro, e ainda os mesmo traços ilícitos, que
solicita ter, e donde provem talvez a discordia deste casal lhe são prejudiciais
a ele por ainda existir fistuloso e poder em conseqüência disso purgar, e,
outrossim, ela justificante que pode em consequencia das fistolas adquirir
algum contágio e, por conseguinte, que todo o deduzido na petição é mesmo
verdade [...]165.
O mais impressionante é que este marido encontrava-se em tão graves condições, que
foi realizada uma cirurgia para retirada do membro, tornando-o inabilitado em suas funções
sexuais. Os relatos de contágio por doenças venéreas, que caminhavam lado-a-lado com os
relatos de relações ilícitas, se comprovados por testemunhas, são tidos pelo Juízo como uma
163
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3 , n. 47.
164
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 123.
165
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimînio. Estante 15, Gaveta 8, n. 135.
69
2. “recolheu-se o supplicado para a casa e compania de Ignácia de tal com quem vive
concubinado, teúdo , e manteúda, com quem já tem um filho ou filha”: 166 Mulheres
traídas e mulheres concubinas.
mais de uma relação sexual, é então o contato carnal de um dos cônjuges com outra pessoa.
O adultério em si não seria motivo para o divórcio. [...] Mesmo para a mancebia, a
simples fama pública não dava direito a que se aplicassem as leis [...]169:
Para uma petição de divórcio esperava-se um fato consistente, como uma outra
família, um comportamento público escandaloso e notório, que deveria ser comprovado por
testemunhas para haver suficiente certeza de que um crime havia sido cometido.
ocasionais. Aqueles que cometiam o adultério, simples cópula carnal ilícita, são considerados
[...] incontinentes, e fornicárias vagas [...] deveriam assim ser [...] repreendidas e, advertidas
166
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n.222. 1821.
167
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. 5, Tit. XXII § 979.
168
LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século XVIII. São Paulo:
Annablume: FAPESP, 1998, p. 111.
169
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 265.
170
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, Liv 5, Tit XXII, § 987.
70
Quando a mulher faz queixa contra o homem infiel, nota-se que as reclamações
também partem de todas as classes da sociedade, indo desde o preto forro ao cirurgião-mor,
que traiam suas mulheres com mulheres escravas, livres, meretrizes ou até mesmo índias.
alojavam em suas casas, como menciona Saint-Hilaire, em casas mal freqüentadas, [...]
verdadeiros prostíbulos [...], onde as mulheres faziam seus negócios do sexo para garantir a
sobrevivência. São Paulo, ainda de acordo com Saint-Hilaire, destacou-se pelo elevado
número de mulheres prostitutas, espalhadas também pelas ruas da cidade, com o objetivo de
motivo. Por exemplo, em 1790, Gertrudez Maria do Nascimento, uma esposa de São Paulo
relaciona [...] as pancadas, puxando pela espora [...] com crueldade própria de um homem
mao cristão [...] e o descaso do marido para com ela e os filhos com o fato de seu marido [...]
andar mal encaminhado [...] todas as noites em funções pelas casas de meretrizes com quem
continuamente adultera a supplicante de sorte que ha muitos meses huma só noite não
pernoita com a suplicante [...], e Gertrudez ainda afirma que seu marido [...] nem dela faz
O marido de Gertrudez, Luiz de Araújo Lima, era tido na cidade como um bom oficial
de ourives, mas perdia todo o dinheiro que ganhava com prostitutas. Em depoimento de
Gertrudez às autoridades eclesiásticas ela afirma: [...] que sendo bom official de ourives,
171
IDEM, Liv 5, Tit XXIII, § 993.
172
In: Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo (1822). Trad. Regina Regis Junqueira.
São Paulo: Edusp, 1974, p.78.
71
Uma testemunha, a preta forra Rosa Francisca, de Guiné, conta que o marido de
Gertrudez ainda [...] vive e mora em caza de Caetana sua concubina, lá vive e mora dias,
noites e semanas inteiras, o que dice ela testemunha saber por ver e presenciar como por ser
fama pública e notória nesta cidade [...]174. As relações ilícitas com meretrizes eram
agravantes, o motivo concreto seria o concubinato com Caetana e os maus tratos físicos.
O homem podia ainda colocar a concubina dentro de casa, dando a ela permissão para
que agisse como175 senhora, menosprezando a presença e as funções da esposa, como afirma a
testemunha de uma esposa em processo de 1819, na cidade de São Paulo. A testemunha conta
que o marido tinha uma moça da cidade como concubina desde que ficou viúvo e, mesmo
após casar-se novamente, continuava concubinado com a mulher, levando-a para morar com o
casal.
A testemunha diz saber dos fatos por freqüentar a casa do casal e ainda porque o
homem a pediu para levar a concubina para a Igreja, pois não gostava que ela saísse sozinha,
Concubinas escravas também mostram o quão frágil podia ser a relação entre marido e
mulher, e ainda como uma esposa podia perder espaço para uma escrava. Uma esposa em São
Paulo se queixa que o marido não lhe dá a menor atenção, nem mesmo conversa com ela, mas
é só [...] mimos e agrados com uma escrava da casa, dando-lhe abraços e acarinhando sua
cabeça [...], tudo na frente da mulher. O homem ainda pedia conselhos à escrava e contava-lhe
173
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
174
IDEM.
175
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.
72
vila, [...] fazendo-lhe uma morada separada da mulher, que permanece no engenho [...]. O
homem passou a viver com sua concubina escrava na vila e deixou a esposa no engenho 176.
Nestes autos prevalece a imagem da senhora traída em sua honra, perdendo seu espaço
E perder espaço para uma índia? Em 1788, um marido foi acusado pela esposa de
relacionar-se ilicitamente com uma índia da Aldeia de Barueri. Durante oito meses manteve a
índia vivendo junto com a esposa, depois deixou a índia na casa de uma filha que não ficava
distante de sua morada. Por fim, levou a índia de volta para a Aldeia e passou a freqüentar
cotidianamente a Aldeia, sendo ainda acusado pela esposa de obter facilidades no contato com
O marido admite ter se relacionado com a índia, mas antes de se casar. Disse que
depois de seu casamento não voltou a se relacionar ilicitamente com a índia. As testemunhas
contam que para poder se casar, o homem teve que primeiro tratar do casamento da índia
Felícia com um índio de sua Aldeia e, mesmo depois disso, o homem mantinha o casal,
mandando-lhes cavalos, gado e mantimentos, que eram levados até a aldeia por seus escravos.
O marido diz que gosta de fazer caridade e por isso ajuda os necessitados, como era o
caso do casal de indígenas. O Juízo entendeu que fazer caridade e ajudar os necessitados não
era prova de concubinato, nem mesmo de adultério, não havendo nada errado com o
ilegitimidade em São Paulo. Fernando Londoño em A outra família observa através das atas
de batismo que entre 1741 e 1845 a taxa de ilegitimidade era de aproximadamente 39%.
Assim, 39% das crianças que nasciam em São Paulo seriam frutos de relações ilícitas, do
176
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 170 In COSTA, R. R. L.
D. da. Op.cit, p. 294.
177
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n. 678.
73
simples adultério ao concubinato. O historiador ainda faz uma ressalva: não se pode esquecer
ainda das crianças que carregavam somente o nome, sendo o pai um incógnito. Em alguns
casos, a identidade do pai era conhecida pelo pároco local, [...] mas por diversas razões não
Londoño reitera que as atas de batismo não revelam qual era o tipo de relação que os
pais da criança mantinham no momento da concepção. Desta forma, [...] fica difícil saber que
esporádicas [...]179.
Nos autos o concubinato é apontado como uma queixa recorrente das mulheres. Por
relacionarem sexualmente e até mesmo afetivamente com outra mulher, podendo inclusive ter
filhos com ela. Muitos destes maridos mencionados nos processos mantinham de fato duas
Obviamente, o fato de o marido ter outra família pode ser bastante incômodo para uma
esposa legítima, por motivos que vão da desonra pública à divisão dos bens matérias com a
Uma mulher enfurecida por algum outro motivo podia acusar o marido de concubinato
sem que isso fosse verdade? Sim, mas provavelmente o depoimento das testemunhas
denunciaria sua mentiria pois, num concubinato, onde o homem pode vir a morar com sua
esposa.
versão da esposa, não seria um motivo para o divórcio, seria uma razão a mais, e não a razão
178
LONDOÑO, Fernando Torres. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São Paulo:
Edições Loyola, 1999, p.57.
179
IDEM, p. 58.
74
principal. Frente a isso, a esposa denunciante deveria apresentar motivos previstos nos
Mas como observa Raquel Costa180, os fundamentos legais eram insuficientes para
Por isso, qualquer que fosse o problema enfrentado pela mulher ou pelo homem, a
solução seria encaixá-lo nos termos da legislação. Havia sim motivos falsos, ou falsas
sevícias, que serão posteriormente abordados, mas por vezes, o motivo não é falso, ele
Portanto, ainda que houvesse falsas alegações por parte das mulheres no intuito de
obter o divórcio, não significa que os conflitos entre marido e mulher não existissem ou que
alguns maridos não fossem de fato homens rudes e violentos, justificando seus atos como
sendo seu direito de homem e marido, tendo licença para “corrigir” a esposa ou então que as
mulheres não forjassem depoimentos e/ou testemunhos para manipular a lei a seu favor.
Sabe-se que era conferido ao homem o direito à correção da mulher e, com isso, as
mulheres tinham de provar às autoridades eclesiásticas que não haviam dado motivos para os
espancamentos e que eram agredidas de forma excessiva e sem qualquer razão. Em processo
[...] Diz Dona Anna Angélica da Silva e Castro, filha legítima do Doutor
Miguel Carlos Lins de Castro, já falecido, e de sua mulher Dona Francisca
da Silva e Castro, desta cidade[...] cazada na forma do Sagrado Concílio
Tridentino e Leis Eclesiásticas, com o Tenente Ignácio José de Macedo, que
180
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit. p. 262.
75
não obstante comporta-se em tudo com aquella honra[...] sem dar ao seu
marido o menor motivo de desgosto, elle a trata com a maior inhumanidade,
dando-lhe pancadas. [...]o supplicado vive em contínua briga com a
supplicante. [...] Diz a supplicante que ella venera profundamente o
Ignácio[...] mas não pode deixar de ponderar que estando a justificante,
como está presa pelo seu marido, e morta a fome, como por isso mesmo
grande perigo a sua vida[...]181
Destacar as qualidades femininas e a falta de motivos dados pela mulher para que o
marido seja violento com ela é uma constante nos autos. Por conta da necessidade de afirmar
a obediência feminina, destaca-se sempre que a mulher não dava motivos para as dissensões
do casal.
masculino:
[...] P.q. por Direito Divino natural e positivo, e mesmo por todas as Leis
Canônicas, e Civis deve toda mulher casada viver sujeita a seu marido,
incumbindo àquela obedecer-lhe, amá-lo, e servi-lo, e podendo este corrigi-
la, repreendê-la, e mesmo castigá-la com moderação quando seja indócil,
teimosa, e incorrigível [...]183.
Raquel Costa destaca que fica reconhecida a sujeição, sem que o marido tenha direito
de praticar sevícias, mas como questiona Costa, [...] onde estaria o equilíbrio entre os maus
181
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.
182
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n 182.
183
IDEM.
76
tratos físicos e a correção? [...]184 Argumentos para a resposta desta pergunta não são
discutidos ou analisados nos processos, mas, como ressalta a autora, [...] o aparecimento
deveria estar sujeita ao marido, enquanto representa a união de Cristo com a Igreja e justifica
que ainda que a mulher tenha sido agredida, a continuidade do matrimônio deveria ser
assegurada: [...] Sendo certo que por quaisquer razões caseiras, e ainda por pancadas não
excedendo a devida moderação se não deve separar os casados daquela união santa o
Admite-se no período estudado que a correção engloba o castigo físico, contudo, este
deveria ser aplicado com moderação, sem que se defina com precisão um limite para os
sevícias, valendo-se inclusive das leis canônicas e civis. Em 1818 um advogado afirma que o
acusado é tido como um homem pacífico e que se fez valer de seus direitos para marido para
corrigir sua mulher, [...] e poria em ação os meios violentos, e coativos, que lhe são
Nos autos fica evidente a construção da imagem da mulher boa e frágil e do homem
forte e violento. Havia essa imagem sido construída para que se conseguisse com maior
facilidade o divórcio? É necessário se ater a esta questão para não correr o risco de
184
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p 239.
185
IDEM, p.240.
186
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n.677 apud COSTA,
R.R.L.D. da. Op.cit, p. 241.
187
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n.187.
77
Em alguns casos foi possível encontrar falsas sevícias nos autos, principalmente nos
depoimentos recolhidos das testemunhas. Raquel Costa exalta dois exemplos. No primeiro,
uma mulher, moradora do termo de São Paulo, consegue comprovar sua justificação de
sevícias frente ao Tribunal. Porém, em 1814, o escrivão comunica ao Vigário Geral que a
mulher não havia dado continuidade ao processo após conseguir a separação de corpos.
O escrivão decide então tomar providências e decreta que se a mulher não der
continuidade ao processo deve voltar para a companhia de seu marido. A mulher decide então
não dar continuidade ao processo e prefere voltar para o marido.188 No segundo, a esposa
inicia a justificação de sevícias contra o marido em 1809. Em 1814, o escrivão mais uma vez
chama a atenção do Vigário Geral, dizendo que a mulher iniciou a prova de justificação com
uma única testemunha e não se preocupou mais com assunto, vivendo inclusive ilicitamente
longe do marido. Foram tomadas providências contra ela. Mesmo assim, a mulher não
prosseguiu com o processo. O Vigário Geral decidiu então que ela fosse encontrada e presa no
aljube, até que decidisse voltar ao convívio de seu marido e manter a união matrimonial.189
Torna-se perceptível que nem sempre as sevícias eram de fato praticadas, sendo
Possivelmente havia outros motivos para que uma mulher optasse pelo divórcio, todavia, estes
motivos não eram aceitos pela Igreja como justificativa para um divórcio. As mulheres, por
sua vez, faziam uso de argumentos convincentes frente ao Tribunal, como as agressões
físicas. Um exemplo encontra-se em autos de 1816, na vila de Atibaia. Uma viúva, que vivia
de seus bens, foi procurada para casar. Aceitando a proposta de casamento, passou ao novo
marido uma escritura, onde garantia a ele a posse de seus bens. O marido, ao receber a
escritura, abandonou a mulher, deixando-a sem comida, dinheiro e roupas. A mulher descreve
188
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 09, n.142 apud COSTA, R. R.
L. D. da. Op.cit, p.250-1.
189
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 6, n. 96 apud COSTA, R. R.
L.D. da. Op.cit, p.251.
78
esta situação às autoridades e afirma ainda que o marido era agressivo [...] improperando-a
As sevícias, que a mulher alegou ter sofrido, não foram comprovadas pelas
testemunhas, que depõe somente com relação à subtração dos bens materiais da justificante e
afirmam não terem visto ou ouvido falar sobre as sevícias. Como a subtração dos bens não foi
considerada uma justificativa justa pela Igreja, o divórcio foi julgado improcedente.191 Em
1782 apresentou uma petição de divórcio juntamente com uma justificação de sevícias. Mas é
na inquirição das testemunhas que surgem fatos reveladores. As testemunhas afirmam que as
acusações lançadas contra o marido foram espalhadas pela mãe da justificante. O Vigário
Geral julga o processo improcedente, uma vez que, de acordo com as testemunhas, as
Outras ainda inventam sevícias. Em 1788, uma moradora do bairro Nossa Senhora do
Ó argumentou em sua petição que sofria maus tratos físicos, inclusive durante a gravidez, que
havia sido expulsa de casa pelo marido. Ela disse que passou três anos afastada do marido e,
quando voltou, foi por ele tratada como escrava, insultando-a e deixando ordens ao filho e a
Mas as testemunhas arroladas não confirmam sua versão. Uma senhora afirmou que a
justificante chegou em seu sítio pedindo ajuda e remédios, pois havia sido brutalmente
atacada pelo marido. A senhora, penalizada, a fez deitar e buscou remédios, [...] nessa mesma
occasião não viu ela testemunha nódoas nem pisadura alguma [...]. A testemunha ainda
contou que [...] passadas algumas horas, vieram buscar a dita justificante um irmão e um
negro [...] ela se levantou e os seguiu como se não tivesse moléstia alguma [...].194
190
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 9, n. 158.
191
IDEM.
192
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 39.
193
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 35, n. 458.
194
IDEM.
79
Um reverendo ainda desmente a mulher, dizendo que ela não faz qualquer serviço de
escrava, pelo contrário ele afirma que [...] tem visto e presenciado a justificante mandando
lavar roupa pela escrava Joana, na borda do Rio Tietê, e a justificante sempre vendo seu
serviço [...].195 Obviamente o divórcio foi negado, pois as justificativas da esposa foram
consideradas improcedentes pelo Juízo. Não fica claro desta forma porque a mulher pretendia
divorciar-se, o fato é que ela não trouxe fatos reais às autoridades eclesiásticas, por isso, não
Além disso, algumas mulheres também foram acusadas pelos maridos no Juízo. É
colocar em risco a vida de seus maridos de forma indireta, ou seja, a mulher contrata alguém
[...] Diz José Gabriel de Carvalho, que elle está casado a face da Igreja a
dezoito annos e sempre estimou e respeitou sua mulher, como Dna. Marida,
porém a doce para treze annos jamais podem se unir pelo forte gênio da dita
sua ulher Genoveva de Sousa Penna, de tal forma que já mandou matar José
da Costa, seo camarada, em occasião[...] achava presente Filisberto Antônio
dos Reis e o Capitão-mor Raimundo Felipe de Izabel chegou na mesma
occasião e ainda o achou ensangüentado e não perigou porque lhe acodiram
Felisberto [...] promete a dita sua mulher mandollo matar [...] 197
Com base no depoimento acima, destaca-se que um homem também poderia sofrer
consequências físicas a partir das atitudes femininas e precisa ser socorrido por terceiros.
Todavia, processos em que os maridos acusam as esposas de violência física são bastante
195
IBIDEM.
196
COSTA, R. R L. D. da. Op.cit, p. 213
197
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 9, n. 196.
80
Em Guaratinguetá, por volta de 1780, uma esposa foi acusada pelo marido de adultério
e feitiçaria. Segunda o marido, a esposa lhe ameaçou de morte [...] ainda que fosse por arte
Coincidência ou não, o homem pediu o divórcio quando já estava doente, e disse que a
esposa contratou um negro feiticeiro para que lhe fizesse [...] algum veneno para o matar e,
que quando soubesse que ele era morto, pagaria bem o seu trabalho [...]199, e ainda [...] lhe deu
para beber seo próprio mestruo para enlouquecer, e da mesma sorte vidro moído a fim de o
matar, de que se lhe originaram as gravíssimas moléstias que tem padecido [...]200.
Mulheres no Brasil201, Emanuel Araújo lembra que às mulheres cabia sujeitar-se ao homem,
pois era a figura masculina que deveria exercer autoridade sobre a mulher, nunca o contrário.
vigilância masculina constante sobre a mulher, pois, uma mulher ao [...] arrebentar as amarras
A figura masculina (avô, pai, tio, padrinho, irmão) era superior, portanto, deveria
exercer autoridade, já que mulheres não eram confiáveis, pois carregavam dentro de si a
essência manipuladora de Eva. São Paulo na Epístola aos Efésios aborda claramente: [...] As
mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor porque o homem é a cabeça da
198
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 38.
199
IDEM.
200
IBIDEM.
201
ARAÚJO, Emanuel. Sexualidade feminina na colônia in DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 45-77.
202
IDEM, p. 45.
81
mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as
determina:
[...] Quanto ás mulheres, que elas tenham roupas descentes, se enfeitem com
pudor e modéstia, nem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário
suntuoso, mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, com convém a
mulheres que se professam piedosas. Durante a instrução, a mulher conserve
o silêncio, com toda submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou
doutrine o homem. Que ela conserve pois, o silêncio. Porque primeiro foi
formado Adão e depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher
que, seduzida, caiu em transgressão. Entretanto, ela será salva pela
maternidade, desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na
santidade [...]204.
convicções:
[...] Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada
a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura
é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa
falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona a mente [...] São por
natureza mais impressionáveis e mais propensas a receberem influências do
espírito descorporificado [...] possuidoras de linguagem traiçoeira, não se
abstém de contar às suas amigas tudo que aprendem através das artes do mal
[...] Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres.205
Fica explícita a ligação entre a feitiçaria e a sexualidade feminina. Não é a toa que se
acreditava que os feitiços fabricados pelas bruxas eram muito úteis no campo afetivo-
loucura no marido, a administração de vidro moído na comida para levar á morte ou o filtro
203
IBIDEM, p. 46.
204
Op. Cit, p. 46.
205
ARAÚJO, Emanuel. Sexualidade feminina na colônia in DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 46-47.
82
do amor, que consistia em coar chá ou café nas peças íntimas e oferecer ao homem, na
num confronto direto entre as partes. Elas usavam meios indiretos para atingir os maridos, em
ações que podem ser feitas às escondidas. O que se procura nos autos é uma violência
marido.
O marido, por sua vez, poderia sentir-se menos atingido em sua honra se
apresentasse os fatos desta forma, desviando a atenção para atos diabólicos ou de feitiçaria,
Nos autos os homens foram acusados de envenenamento, mas não de bruxaria. Eles
buscavam usar produtos como mercúrio ou ervas consideradas venenosas, que apresentassem
perigo real à vida humana. Já a mulher fazia uso da superstição e do misterioso, através
Os homens também acusavam suas esposas por supostas traições. Todavia, enquanto
em suposições ou desconfianças.
por exemplo, se precisasse viajar e se ausentar por tempo considerável, voltava desconfiado
Em 1816, em São Paulo, um marido, sempre que viajava ou se ausentava por alguma
razão, voltava pra casa agressivo sempre demonstrando desconfiança em relação á esposa.
Uma das testemunhas afirma que o marido, sempre que voltava para casa após suas viagens,
206
Cf. FILHO, Lycurgo de Castro Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo: HUCITEC-EDUSP,
1997, v.1, p.207 in COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 227 e segs.
83
ameaçava a mulher [...] com facas de ponta aguda para que ela confessasse o que tinha feito,
Em outro caso, o marido demonstra ciúme por conta da atividade exercida por sua
esposa. A mulher, que não tinha, de acordos com os autos, qualquer ajuda do marido para sua
sobrevivência, possuía um botequim bastante freqüentado. O marido, que foi descrito pelas
contrário, dizem que a mulher era apenas gentil com seus fregueses e não desonesta ou infiel.
As acusações contra mulheres por adultério quase sempre mencionam relações entre
escravo foi mencionado. O homem acusava a esposa dizendo ao genro que ela [...] tinha saído
de noite para coabitar com o escravo Salvador [...]. O genro diz em seu testemunho que nunca
desconfiou da sogra e ainda tentou fazer o sogro rever o engano que estava cometendo. Mas
não, a fala do genro não teria surtido qualquer efeito sobre o homem, que continuou com suas
desconfianças, até que, no decorrer no processo, comprovou-se que eram apenas falsas
desconfianças208.
Se havia escravos na casa (escravos domésticos), percebe-se que a maioria dos que
tinham alguma relação mais direta com a intimidade das senhoras eram do sexo feminino, o
que viria a facilitar a infidelidade masculina. Raquel Costa julgou as acusações masculinas
como [...] frutos da irritação, simples desejo de ferir a esposa, do que resultado de fatos reais
[...]209.
Mas nos autos nota-se que os homens também vinham a dizer a verdade. Em
processo movido por um marido da vila de Santos, o homem apresentou sérias queixas quanto
O marido afirma que sua esposa seguia os maus conselhos de sua própria mãe, que
instigava a filha a se prostituir. Ele ainda afirma que sua cunhada também saia de casa durante
a noite [...] para maus fins [...] e que um dia chegou a sua casa e encontrou a esposa e a
cunhada sentadas na porta. Ele pediu às duas que entrassem, no que ambas se negaram. A
cunhada ainda chamou dois rapazes que passavam pela rua, e as duas saíram com os rapazes
precária do marido para se entregar de vez à prostituição, encarada pela mulher e por sua
família como uma forma de sobrevivência. Mas o homem, devido à sua saúde frágil, faleceu
movido pela esposa, uma petição acusando a mulher de adultério com um reverendo.
A mulher teria recebido autorização para viver em São Paulo, enquanto o marido
continuava vivendo num sítio, na Freguesia de Juquiri. Longe dos olhos do marido, a esposa
ainda reforçam a acusação, dizendo que a mulher era conduzida no lombo de um animal até a
chácara do padre. O marido não seguiu com o processo, apesar de a petição ter sido julgada
procedente, porque disse que perdoara a esposa e concordou em proceder com um processo de
eclesiástico, buscando livrar-se de maus tratos ou denunciar o marido que porventura estaria
210
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 5, n.75.
85
vivendo concubinado com uma escrava ou até mesmo uma índia, mas também poderiam estar
mascarando o verdadeiro motivo pelo qual não queriam mais viver com seus maridos. Podia
uma mulher simplesmente não querer mais viver com o marido e por isso pedir o divórcio?
Perante as autoridades eclesiásticas, não. Mas, em acordo com o marido, podia conseguir um
divórcio amigável.
Mas se o marido não quisesse se separar e o motivo pelo qual de fato a mulher
desejava se emancipar não se enquadrar nos fundamentos legais, talvez o último recurso fosse
alegar ser destratada pelo marido ou acusá-lo de ser infiel. Dna. Maria Francisca, mulher da
elite paulistana, casada pela segunda vez com um cirurgião-mor, é um exemplo de como a
mulher poderia usar a lei a seu favor. O que estimulou Dna. Maria Francisca a pedir o
divórcio foi a intromissão de seu segundo marido na administração da herança que o primeiro
marido havia deixado para ela, ou seja, seu motivo real era financeiro, material.
Contudo, os motivos por ela apresentados foram as supostas sevícias que o marido
teria praticado contra ela. Foi na defesa do marido e no depoimento de testemunhas que a
verdadeira razão para o divórcio veio à tona. É possível que o marido de Dna. Maria
Francisca a tenha ofendido com palavras ou até mesmo a agredido fisicamente, mas fica
tinham uma chance maior de serem verdadeiros, já que, na maioria das vezes, não havia muita
Claro que isso não significa que mulheres abastadas não fossem fisicamente e
moralmente maltratadas, mas quando se possui bens, boa educação e família localmente
importante existem muitos outros fatores que devem ser levados em consideração, enquanto a
percebe-se a teia de relações sociais e afetivas criadas por mulheres de todas as classes
sociais. Da mulher casada prostituída à injustamente acusada de ser adúltera, elas criaram
laços sociais que permitiam não apenas a vivência social como também a sobrevivência.
divórcio em São Paulo, presentes nos relatos de homens e mulheres e, principalmente nos
CAPITULO III
legislação, eram: ocorrência do crime de adultério; abandono do lar; não cumprimento das
Alguns aspectos gerais sobre os processos de divórcio devem ser compreendidos antes
de uma análise mais completa dos seus conteúdos. Ressalto que, em alguns processos
entre os casais não pôde ser determinado pela ausência de informações mais precisas. Ainda
assim, foi possível perceber que alguns destes casais viveram entre quatro e trinta anos juntos.
A expressão [...] viveram juntos por muitos anos [...], ainda que não definisse com
convivência de muitos casais foi se tornando insuportável, fazendo com que os mesmos
buscassem no divórcio uma alternativa legal para a resolução de seus impasses conjugais.
211
GRAHAM, S. L. Op. cit, p. 12.
88
pessoas pouco ou nada abastadas como o pequeno agricultor, o alfaiate, o pintor, a fiandeira, o
importante para o poder eclesiástico, pois apontava para um maior conhecimento dos
pormenores da vida dos casais em questão, o que conferia segurança aos rumos que os
A freguesia era a de Cotia. O ano era 1801. Já haviam passado quatorze dias do mês
intenção de pôr fim ao seu casamento com Salvador Mariano de Camargo. A costureira, que
vivia com o marido em um sítio, contou às autoridades eclesiásticas que era muito maltratada
pelo marido.
perpétua. No depoimento das testemunhas se torna possível vislumbrar o dia a dia do casal.
Consta nos autos que Salvador, um curitibano tido como violento por quem o
conhecia, agredia a esposa diária e publicamente. Dava-lhe pancadas, jogava seus pertences
no fogo e a deixava passar por necessidades, obrigando a mulher a esmolar comida e ajuda
aos próprios escravos. Após um dos ataques à esposa, Salvador viajou para Curitiba. Bárbara
212
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
89
ficou muito machucada. Com a ausência do senhor, um dos escravos ajudou a mulher ferida a
fugir para a casa de um parente, onde ficou convalescendo de suas feridas. Uma testemunha
[...] lhe deu muitas pancadas e não contente com o que tinha feito ainda
mandou castigar pelos escravos [...] hum dos mesmos escravos,
compadecido pela miserável situação da justificante sua senhora, reabrio a
porta do quarto, Bárbara fugiu e se escondeu na casa de um parente seu,
onde esteve cuidando de suas feridas [...] e se continuasse a justificante a
viver mais tempo em companhia do justificado, seguramente perigaria sua
vida e talves a morte, visto que foi salva por um de seus escravos [...] estes
factos e acontecimentos todos públicos e notórios entre o povo daquela
freguesia [...]213.
Salva por um escravo, Bárbara corria risco de morte se fosse obrigada a viver com o
marido. Era preciso dar fim àquele casamento urgentemente. Perante o Juízo, as sevícias que
Bárbara afirmou ter sofrido são motivos consistentes para a obtenção do divórcio. Enfatizando
que o comportamento de seu marido defrontava-se contra as leis religiosas, a esposa tinha
como testemunhas seus escravos e alguns vizinhos. Todos confirmaram a versão da esposa,
contando às autoridades que viram ou ouviram falar dos maus tratos que Bárbara sofria,
Para dar início às discussões sobre religiosidade, vida social e familiar de mulheres e
escravos em São Paulo, desejo lembrar que se faz necessário analisar o conceito colonial de
historiografia faz dos arranjos familiares derivados das ligações entre os homens e as
213
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Gaveta 4, Estante 15, n. 58.
90
abordar o tratamento dado à família na obra de Freyre, considera que [...] se a colonização no
familiar foram [...] esquecidas as variações que ocorrem na organização da família em função
215
do tempo, do espaço e dos diferentes grupos sociais [...] , enquanto Sheila Faria ressalta a
especificidade da formação familiar no sudeste, uma vez que a estrutura da família paulista,
por exemplo, mostrou-se diferente daquela apresentada por Freyre na região de lavoura
canavieira no Nordeste216.
convivência na colônia.
214
CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal. In ALMEIDA, Maria S. Colcha de retalhos: Estudos
sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.20.
215
SAMARA, Eni de Mesquita. Tendências atuais da História da família no Brasil. In: A. M. et. al. (Orgs.).
Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
216
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
91
marido, que passava a ter a função de disciplinar a esposa e a prole. Com isso, o marido (e
também o pai), tinha legitimidade para os atos de violência contra a esposa e os filhos.
É relevante analisar a construção familiar, uma vez que as normas que seguem sua
Contudo é importante lembrar que o sentido do termo família, como casal e filhos, é
muito recente, como destaca Jean Louis Flandrin. Para Flandrin, o conceito de família, tal
considerar como família todos que viviam na mesma casa218, os parentes consangüíneos mais
217
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX - o olhar da historiografia. Revista
Brasileira de História. Vol. 23 n. 46. São Paulo, 2003.
218
Incluindo escravos, afilhados e até mesmo concubinos.
219
FLANDRIN, Jean-Louis. Famílias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Editorial
Estampa, 1995, p. 30-41.
220
COSTA, R. R. L. D. da. Op.cit, p. 5.
92
familiar, era necessário que houvesse mulheres brancas na colônia. Desde o início do processo
Portugal, dessa maneira, casar-se com mulheres nativas ou escravas não era o ideal. Certo
seria casar-se com mulheres da corte. Para tanto, era preciso trazer mulheres brancas para a
colônia.221
Poderiam ser órfãs ou meretrizes diziam os jesuítas. Pouco importava que essas
mulheres não fossem “de família”. O que importava é que fossem mulheres em condições de
contraírem casamento com os colonos que pertenciam a diferentes classes sociais. 222
como “virtuosos” e resultantes de um padrão moral imposto pela ação conjunta entre a Igreja
Católica e o Estado. As normas do Concílio de Trento (1545-1563) atuaram por todo período
colonial, não somente reforçando os valores da Igreja, como por exemplo, o sacramento do
matrimônio, mas também legitimando a condição posta como superior do homem em seu
papel de pai, marido ou padre. Tanto o Estado como a Igreja se apresentaram como instâncias
221
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial: São Paulo, Edusp, 1984.
Sobre a vinda dos colonos e as mudanças sociais e familiares advindas desse intercâmbio, ver Algranti, Leila Mazan.
Famílias e vinda doméstica In NOVAES, Fernando A. e SOUZA, Laura de Mello (Orgs). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 1, p. 83-153. Segundo Algranti,
[...] Nos primeiros séculos da colonização, a organização familiar e a vida doméstica não poderiam deixar de ser
influenciadas por alguns dos elementos que marcaram profundamente a formação da sociedade brasileira e o modo de vida de
seus habitantes. A distância da metrópole – que dividia muitas vezes os membros de uma família entre os dois lados do
Atlântico -, a falta de mulheres brancas, a presença da escravidão negra e indígena, a constante expansão do território, assim
como a precariedade de recursos e de toda sorte de produtos com os quais estavam acostumados os colonos no seu dia-a-dia,
são apenas alguns dos componentes que levaram a transformações de práticas e costumes solidamente constituídos no Reino,
tanto no que se refere à constituição das famílias como aos padrões de moradia, alimentação e hábitos domésticos[...], p.84-5.
222
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX. O olhar da historiografia. Revista Brasileira de
História. Vol.23 n.46. São Paulo, 2003.
223
Em 1545-1563, foi convocado o Concílio Ecumênico da Igreja Católica que iniciou uma redefinição de seus dogmas
essenciais. O Concílio foi inaugurado em Trento, norte de Itália, desenvolvendo-se em três fases. A primeira (1545-1547)
tratou dos temas colocados pelos protestantes, dedicando-se a justificá-los. A segunda (1551-1552) concentrou-se na questão
dos sete sacramentos. No período final (1561-1563), foram tratadas condições disciplinárias, frisando o problema da
residência episcopal, considerado, unanimemente, um assunto chave para a execução da Reforma. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/articles/4747/1/Um-Estudo-Sobre-O-Concilio-De Trento/pagina1.html#ixzz0t6mcDZUq>.
Acesso em: 25 set. 2009.
93
estabelecidas. Essas duas grandes instituições, produtoras de poder, buscavam agir como
esta colonização tinha como núcleo a família ou a família do senhor, (da pequena maioria,
portanto, e isto se esquece freqüentemente) a colonização ficou muito aquém da sua missão.
Na visão de Caio Prado Jr, o papel que deveria ser exercido pela instituição familiar, como
formadora dos indivíduos e de seu caráter, deu lugar à promiscuidade com escravos [...] do
mais baixo teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais irregulares e
desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal disfarçada por uma hipócrita submissão,
Por esta razão, não se pode esperar dos mandamentos da Igreja ou do Estado um freio
sério à corrupção dos costumes. Como ouviu St. Hilaire do vigário de São João del-Rei, [...]
os brasileiros são naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além dos sentidos; e
quanto aos pastores, estes parecem considerar a ofensa e o perdão como simples funções
maquinais [...]226.
Nota-se que, à revelia das leis civis e eclesiásticas, os homens que vieram a povoar a
224
PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 354-5.
225
IDEM, p. 354-5.
226
IDEM, p. 352.
94
Igreja, os colonos deitavam-se com suas escravas e com as mulheres nativas. Ressalta também
Edgar Gomes, ao analisar algumas cartas jesuíticas do século XVI, faz as seguintes
considerações:
colônia. Para a execução desse projeto, a Igreja católica, a serviço do Estado, desenvolveu os
227
Cf. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2004, p. 366-573. Freyre dedicou dois
capítulos (Caps. IV e V) de sua obra à questão do escravo negro e a vida sexual e de família do brasileiro.
228
GOMES, Edgar da Silva; NÓBREGA, Manoel da: A Presença do Catolicismo na Fundação de São Paulo.
São Paulo: Paulinas, Revista de Cultura Teológica. Ano XII, n. 48, jul/set, 2004. p. 89-106.
229
GOLDSCHIMDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822).
São Paulo: Annablume, 1998, p.27.
230
BOSSY, John. Cristandade no Ocidente 1400-1700. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 18-19 apud
GOLDSCHIMDT, E. M. R. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822). São Paulo:
Annablume, 1998, p. 27.
95
Concílio Tridentino. Davam ordem às uniões carnais, muito embora, assim como as leis
civis, suas normas variassem entre os grupos sociais, as raças, o estatuto jurídico dos
O texto das Constituições pregava que o casamento era o único meio cristão de
dominar os corpos e legitimar as uniões naturais entre os sexos, buscando dominar o que
[...] E confessando sua culpa dentro, neste tempo da graça, disse que, sendo
ele de idade de nove ou dez anos, nesta cidade, em casa de Cristóvão de
Barros, ouviu dizer a Francisco Nunes, criado do dito Cristóvão de Barros,
que ora mostra ser de idade de vinte e dois anos, estando ambos sós, vindo a
falar no pecado da carne, que dormir homem com mulher não era pecado. E
isto lhe disse o dito Francisco Nunes, o qual é natural de Ilhéus e ele o tem
por cristão-velho e é irmão de Gaspar Fernandes, capelão desta Sé. E por ele
confessante cuidar que o dito Francisco Nunes lhe disse era verdade, que
dormir um homem com uma mulher não era pecado, assim teve para si por
espaço de alguns dias, e estando neste erro, isto mesmo disse a algumas
pessoas, até que o dito capelão Gaspar Fernandes emendou a ele confessante
deste erro em que estava, e lhe declarou como fazer o sobredito era pecado, e
231
NADER, Maria Beatriz. Casamento no Brasil: do século XVI ao XIX. O olhar da historiografia. Revista
Brasileira de História. Vol.23 no.46. São Paulo, 2003.
232
GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado na sociedade colonial paulista (1719-1822).
São Paulo: Annablume, 1998.p.17.
96
nunca mais disse a ninguém que o não era, como dantes tinha dito, e que
desta culpa pede perdão. E sendo mais perguntado, disse que o dito
Francisco Nunes, quando disse que dormir um homem e uma mulher não era
pecado, não lhe declarou mais outra qualidade alguma de solteira, solteiro ou
casado, mas simplesmente homem com mulher, e que não sabe o dito
Francisco Nunes está ainda hoje na dita falsa opinião, nem tem dele por
outra via resposta ruim [...]. 233
Contudo o pecado não era apenas uma construção intelectual, era motivo de tensão
entre os desejos individuais dos colonos e os ideais da Igreja e do Estado. Asunción Lavrin,
“Não existe pecado do lado de baixo do Equador”. O ditado que corria solto na Europa
no século XVII, e que se tornou verso do músico e compositor brasileiro Chico Buarque, faz
[...] Afinal, nosso clero aqui sempre foi escasso, a Igreja desorganizada e
muitos padres mal ligavam para seu ofício espiritual. Padres mal preparados
e poucos, com a excepção quase solitária dos jesuítas, vale insistir que
Gilberto Freyre chamou, com bom humor, de “donzelões intransigentes” –
incansáveis no propósito de propagar a fé e moralizar os costumes [...]236.
233
VAINFAS, Ronaldo (org). Confissões da Bahia: Santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia
das letras, 1997 – Retratos do Brasil. A Igreja diferenciava a fornicação simples (relações entre pessoas solteiras)
da fornicação qualificada (adultérios, concubinatos, relações com freiras, sodomia, bestialidade, etc.). O
monitório da visitação já incluía como heresia o dizer que não havia pecado na fornicação. p.130-1.
234
LAVRIN. Asunción. Sexuality and marriage in colonial Latin America. Nebraska: University of Nebraska
Press, 1989.
235
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História. Vol. 1, n. 1, 2003. p. 11-17.
236
IDEM, p. 12.
97
Mas será que teria sido assim? O pecado era parte da rotina na colônia enquanto a
O pecado fazia parte do dia a dia, assim como Deus e o Diabo. Religião e sexo
caminhavam juntos e faziam parte dos contornos das relações sociais já no século XVI:
[...] E confessando suas culpas, disse que haverá dez anos pouco mais ou
menos, sendo ela de idade de treze ou catorze anos, estando em casa de seu
pai nesta cidade, sendo donzela, veio ter um dia à sua casa outra moça do seu
próprio corpo então, e que parecia ser da sua própria idade então, sua
vizinha, com a qual costumava folgar muitas vezes, filha de um carpinteiro,
parecia-lhe que tinha por nome Francisca, moravam em uma rua que vai do
terreiro de Jesus para a horta do correeiro, onde mora Domingos d’Almeida,
a qual ora é casada com Gonçalo Gonçalves, mestre de açucar do engenho
de Antônio Francisco do Porto. E estando assim, ambas a sós em casa,
fecharam a porta por dentro e se deitaram sobre uma cama e tiveram ambas
o nefando ajuntamento carnal [...]. 238
confissões, surge a mistura entre as coisas da fé e o desejo. Vainfas, no artigo acima citado,
[...] certa mulher, flagelada por um temporal na Bahia, gritou que Deus
mijava sobre ela e a queria afogar e outra, de língua espanhola, na mesma
situação, bradou: Bendito sea el carajo de mi señor Jesu Christo que agora
237
IBIDEM, p. 13.
238
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo:
Companhia das letras, 1997 – Retratos do Brasil, p. 257-261.
98
mija sobre mi. Acusadas de blasfêmia, ouviram do visitador: Deus não mija,
que é coisa pertencente oa homem e não a Deus [...]. 239
eram comuns. Virgem Maria era mesmo virgem, antes, durante e depois do parto?
hábitos dos colonos, assim como também se enganariam aqueles que afirmam que a Igreja
não exercia considerável intervenção. Sem radicalismos, é preciso relativizar o alcance das
população que acabavam por resultar numa administração civil e eclesiástica mal aparelhada.
ou não – as regras; cada um à sua maneira. Seria impraticável medir o sentimento religioso
239
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História. Vol. 1, n. 1, 2003, p. 13.
240
IDEM, p. 13.
99
2. Vigilância Eclesiástica
A denunciação judicial é uma manifestação dos crimes, para que por meio
deles sejam castigados os que os cometerem em ordem à satisfação da
República, e da parte, se a houver.
[Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia].242
delação.243
Entre o fim do século XVIII e início do XIX, homens e mulheres que circulavam
diariamente pelas vias publicas paulistanas ainda viviam em clima de denúncia e envolvidos
As fontes pesquisadas dão conta de que era preciso não apenas evitar o pecado, mas
ter cautela e estar atento aos deslizes dos outros. Todos os envolvidos em um processo de
241
PRADO Jr. Op.cit, p.329.
242
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo ofício da inquisição de Lisboa. São Paulo:
Companhia das letras, 1997 – Retratos do Brasil, p. 67.
243
GOLDSCHIMIDT, E. M. R. Op.cit, p.67
244
IDEM, p.68.
100
a sociedade.
Antônio Gonçalves de Oliveira, era um homem devasso, que não tinha qualquer compromisso
ambiente violento e perigoso, advogados faziam menção às violações contra as leis da Igreja.
escrava). Os sujeitos deviam ser, ainda que na teoria, honrosos e tementes às leis de Deus.
As qualidades mais comuns da justificante eram: “uma mulher honrosa”, “boa esposa”,
245
ACMSP Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
246
ACMSP Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
101
[...] Religiosa servindo a hum marido apezar de suas tiranias, com todo
amor e cuidado e em tudo cumprindo com seus deveres [...] ela sempre
serviu e obedeceu [...] Joaquim Vieira de Brito, casado, natural da Vila de
Santo Amaro e morador de São Roque de idade que dice ser de quarenta e
três annos, que vive de sua lavoura e do trato de animais [...] testemunha em
razam de próprio e verdadeiro conhecimento e por terem ouvido na
visinhança [...] Testemunha que o justificado dava muitas pancadas em sua
esposa [...]. Comportada e cheia de toda honra, saúde e paz no Senhor que de
todos hé verdadeiro remédio, lus e salvação [...]. Que a justificante hé casada
e recebida em face da Igreja [...] obedecendo-lhe, servindo-o e amando-o
como praticão as mulhes honradas [...] ser a mesma comportada, quieta e
pouco ficando pela vizinhança [...]247.
Neste contexto os espaços da família e da religião podem ser vistos ao mesmo tempo
como locais da materialização do poder seja de classe, seja de gênero. Trata-se de espaços de
As relações sociais, apesar de seu caráter hierárquico, também eram marcadas por
Gertrudez acusava seu marido de espancá-la e viver concubinado com uma mulata forra de
nome Caetana, moradora do bairro São Bento. Rosa Francisca, uma preta forra vinda de
[...] Rosa Francisca, preta forra de naçam de Guiné e moradora nesta cidade,
de idade que dice ser de trinta annos, que vive do trabalho de suas mãos de
lavar e fiar algodam testemunha, por presencear na própria caza, digo na sua
própria caza248, onde se veio a justificante recolher no tempo das bexigas,
vindo a justificante com ella de seu sítio com seu marido, e filhos, [...] por
não ter onde morar, dando assim ella testemunha este abrigo [...] o marido da
247
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 122.
248
Erro do escrivão. A intenção era escrever: “por precencear na sua própria caza”, mas acabou escrevendo: “por
precencear na própria caza”. Para reaver o erro ele recorre ao “digo”. Assim lê-se: “por precensear na própria
caza, digo, na sua própria caza”.
102
Neste depoimento estão presentes diversos aspectos da vida social e conjugal dessa
mulher paulistana. Rosa Francisca, uma preta forra que vivia do trabalho de suas mãos,
corrobora as afirmações da amiga, a branca livre Gertrudez. Afirma que Luis estava
concubinado com a mulata forra Caetana e era na casa da mulata que ele passava os dias e as
Rosa também abrigou a amiga com o marido Luis e os filhos durante um surto de
varíola. Nesse período, Caetana foi à casa de Rosa para encontrar Luis, às vistas de Gertrudes.
Nota-se que a preta forra ficou muito revoltada com o fato de que Luis não pediu para
Caetana se retirar, chamando-o de “ordinário”. Ao que parece, Rosa tinha apreço pela amiga
Gertrudes, e afirmou saber dos fatos não apenas por presenciá-los, mas porque eram “públicos
e notórios”. Ou seja, a vida conjugal de Gertrudes perambulava pelas ruas da cidade como as
tropas de muar e os carros de boi. O falatório e o burburinho quanto à vida alheia são
[...] Anna Maria de Moraes, solteira, natural desta cidade e nella moradora,
de idade que dice ser de quarenta annos, que vive do trabalho de suas mãos
testemunha a quem o Revendíssimo Senhor Doutor Vigário Geral e
governador deste bispado Paulo de Souza Rocha [...] Ouviu e lhe contou
Rosa Francisca, preta forra desta cidade, que tudo quanto a justificante
padece com o predicto seu marido provem de andar e viver concubinado hà
muitos annos com uma mulata de nome Caetana, com quem comete
adultério e vive de dia e de noite na caza desta mesma concubina,
desamparando por isso a justificante e seus filhos, tratando-a com sevícias,
chegando a tal excesso que estando a justificante prenhe, tendo dado coices
249
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 3, n. 45.
103
no ventre e ver se periga ella na sua vida e pode abortar. Dice mais ella
testemunha que indo à caza de Dna. Caetana, moradora na Rua Sam Bento
desta mesma cidade, esta mesma Dna. Caetana dice a ella testemunha,
falando sobre a justificante e o estado miserável em que esta vive com seu
marido, que este maltrata muito de sevícias a justificante: o que tudo dice
ella testemunha, não só por lhe diserem, como por ser nesta cidade público e
notório e ainda mais por dizer ella testemunha a mesma justificante algumas
vezes que foi à sua caza, chorando e lamentando seu lastimoso estado [...]250.
Assim sendo, a preta forra Rosa ouviu dizer que Gertrudes padecia frente ao desprezo
e a violência do marido; contou para Anna, que por sua vez, foi até a casa da mulata forra
Caetana na Rua São Bento, de quem ouviu que os boatos eram verdadeiros; Luis traía
Na trama social paulista, esboçava-se uma rede afetiva e moral tecida com
trabalhadores livres, sitiantes das redondezas e pequenos comerciantes das vilas. Esta rede era
compostas de pai, mãe, filhos, escravos e agregados não eram numericamente predominantes.
Samara afirma que o mais comum em São Paulo eram famílias com estruturas mais
eram apenas uma das formas de organização familiar e não chegavam a representar 26% dos
domicílios. Nos demais, ou seja, 74% das casas predominavam outros tipos de composição, o
população.251
[...] O fato é que nos domicílios com estrutura mais complexa, as ligações de
trabalho eram determinantes. Por isso, é mais comum encontrarmos escravos
250
IDEM.
251
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.17-18.
104
São Paulo que, nas últimas décadas do XVIII e ao princípio do XIX, era voltada, em sua
açúcar para exportação. Os processos de divórcio mostram que um grande número de pessoas,
não apenas em São Paulo, mas também nas vilas, ainda viviam de sua lavoura. Na petição,
envolvendo Salvador e Bárbara, já citada no início deste capítulo, todos os envolvidos viviam
de suas lavouras:
[...] Petiçam por parte de Bárbara de Oliveira e Moraes [...] para efeito de
justificar neste superior juízo [...] contra seu marido Salvador Marianno
Camargo, morador na Freguesia de Cutia, que vive de sua lavoura.
Testemunha 1.
Geraldo José da Silva, casado, natural desta cidade de São Paulo e morador
na Freguesia de Cutia, de idade que deve ser de quarenta annos, que vive de
sua lavoura [...].
Testemunha 2.
Manuel Joaquim da Silveira, casado, natural e morador da Freguesia de
Cutia deste Bispado, de idade que dice ser de trinta e cinco annos, que vive
de suas lavouras [...].
Testemunha 3.
José Fernandes França, casado, natural da Freguesia de Santo Amaro e de
presente morador na Freguesia de São Roque, de idade que deve ser de
sessenta e oito annos, que vive de suas lavouras [...]. 254
252
IDEM, p.34-36. Agregados são aqui descritos como indivíduos que nada possuem de seu, por isso se abrigam
na moradia alheia. Eni Samara discorre sobre agregados ligados às famílias locais, ficando difícil explicar
economicamente sua presença em domicílios onde, teoricamente, representam mais despensas do que lucros. Os
exemplos vão desde agregados velhos doentes que viviam da caridade particular, como mulheres que viviam
maritalmente com homens solteiros sem que isso resultasse em uniões definitivas. Muitas vezes, a agregada era
concubina do dono da casa, quadro este que, embora reduzido, não deixa de recompor parte da imagem típica
das famílias brasileiras do período colonial.
253
IBIDEM, p.35. Em dados fornecidos pela autora, dentre os proprietários com escravos predominavam aqueles
com pequeno número: 10% tinham apenas 1 escravo; 32,4% tinham até 10; e somente 1 proprietário possuía
mais de 50 escravos. A presença de escravos e agregados é explicável pela necessidade de mão de obra, já que
esses indivíduos desempenhavam múltiplas funções como serviços domésticos, ajudantes, aprendizes, lavradores
etc.; ainda que muitas vezes exercessem atividades econômicas independentes, com recursos pessoais e escravos
próprios.
254
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 4, n. 58.
105
[...] Na Capitania de São Paulo a pequena lavoura não foi eliminada pela expansão do
açúcar [...]255, como fica claro no estudo demográfico realizado por Luna e comentado acima,
era relevante o número de produtores de gêneros alimentícios para abastecimento interno que
possuíam, em média, um a cinco escravos. E foi neste contexto, nas idas e vindas das grandes
familiares.
3. Família Escrava
uma nova perspectiva de apresentação do escravo enquanto sujeito histórico ativo, ao invés de
libertos. 256
histórias de gente sem história, o início dos anos 1980 viu o surgimento de uma série de
estudos publicados sobre a história de homens e mulheres que foram negligenciados pela
255
SILVA, M.B. N. (Org.). História de São Paulo colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 162.
256
ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da
Unicamp, 2004, p. 36.
257
Ver MACHADO, Maria Helena P. T. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social
da escravidão. Revista Brasileira de História, Vol. 8, n. 16, 1988. In: ROCHA, C. M. História de famílias
escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004. p. 37-38.
106
interpretação. Complexa, sua formação em São Paulo passa pela constituição e o início da
tentativa de buscar esses indivíduos em documentos que, produzidos à sua época, exigem um
José Flavio Motta, em seu trabalho sobre posse de cativos e família escrava em
Bananal nas três primeiras do século XIX, observa que uma primeira aproximação à temática
Quase um terço (32,1%) dos escravos de Lorena na faixa etária dos 15 aos
59 anos eram casados ou viúvos; em Bananal o percentual correlato chaga a
39,8%. Computando-se conjuntamente as duas faixas etárias, a participação
dos casados ou viúvos alcança um terço em Lorena (33,3%) e supera
ligeiramente os dois quintos em Bananal (40,4%). Verifica-se pois, em uma
abordagem ainda pouco refinada, consideradas apenas três grandes faixas
etárias, que a participação dos casados ou viúvos aumenta com a idade dos
cativos, não obstante haver, em termos globais, largo predomínio dos
solteiros”.258
Em artigo escrito em co-autoria, Iraci Del Nero da Costa, Robert Slanes e Stuart B.
Lorena para o ano de 1801. 259 Constatou-se que, naquela localidade e naquele ano, 53% dos
escravos tinham família e que a incidência de casamentos entre escravos não pertencentes ao
258
MOTTA, J. F. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-
1829). São Paulo: Annablume, 1999, p. 231.
259
COSTA, Iraci Del Nero da, Slenes; Robert W.; Schwartz, Stuat B. A família escrava em Lorena (1801).
Revista de Estudos econômicos, Vol. 17, número 2, São Paulo, mai/ago, 1987. In: ROCHA, C. M. Histórias de
famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004, p. 38. A autora Cristiany Rocha
ressalta que, diferentemente da maioria das listas nominativas de censos antigos feitos entre o final do século
XVIII e a década de 1840 para toda a Província de São Paulo, as listas utilizadas pelos autores acima citados,
contêm a indicação das relações familiares entre escravos.
260
Os autores adotaram um percentual de 10,3% do total das uniões. Desejo ressaltar que, em nenhum dos
documentos analisados para este trabalho, encontrou-se uniões entre escravos não pertencentes ao mesmo
senhor.
107
onde os dois cônjuges são escravos e a segunda, onde um é escravo e outro é forro, como no
caso da parda forra Antônia Maria, que apresentou às autoridades eclesiásticas uma petição
residia na Freguesia de Vila Izabel e foi obrigada pelo seu senhor enquanto era cativa, a casar-
se com um escravo deste mesmo senhor, chamado Francisco. Segue a história como descrita
nos autos:
[...] Diz Antônia Maria parda forra, residente em Vila Izabel deste bispado,
que sendo ella cazada obrigatoriamente, com Francisco escravo do Capitão
Antônio Caettano de Sousa, de quem também era a suplicante captiva, antes
de se libertar foi a suplicante obrigada pelo mesmo a recebê-lo em face da
Igreja com o escravo Francisco, que por ter a suplicante Legal conhecimento
da pécima condussão daquele escravo, porém pellas amarras que lhe fazia o
seu senhor, via-se a suplicante contudo obrigada a recebê-lo, devendo o
senhor seu marido tratá-la estimada como mulher própria, o contrário tem
praticado, ultrajando-a de pancadas, maltratando-a com bofetadas,
arrancando facas para com ellas por em esicução a sua maldade puxando
continuamente outras armas ofensivas para matá-la, que por imensias veses
setemvisto [...] fazendo author impropérios não mesmo dignos de
consideração, apesar da suplicante obdecê-lo, trata-lo afim de viverem
empas o que nunca conseguiu [...] valeu-se do senhor do dito escravo para
que impedice a semelhantes procedimentos, dando as nessesarias
providencias atantas desordens [...] Este pelo contrário se insitou contra ella,
dando-lhe muita pancada, vendo por isso obrigada a fugir para o matto e
ultimamente se recolheu na casa de seu pai, onde athé o presente reside [...] a
supplicante veio a esta cidade procurar meios de se divorciar, que elle jamais
quer ter escravos despozados vendo-se assim a suplicante desvalida e
destituída [...] que ella suplicante, mulher forra, cazada com Francisco,
escravo do Capitam Antônio Caettano de Sousa, moradora da Freguesia de
Santa Izabel, termo de Mogi das Cruzes [...] tem justificado várias sevícias
contra o dito seu marido, e como se segue propôs contra o mesmo a causa do
divórcio [...] mas como o dito marido hé escravo, se faz preciso que seu
senhor authorize para estar em juízo ou para o defender [...] e porque
naquella freguesia, não há oficiais de justiça eclesiástica, a supplicante não
pode com as despesas de hir hum oficial desta cidade para hisso [...]261.
sob pretextos considerados inconsistentes mesmo para a ótica da época, com o indefectível
Embora com muitas acusações paralelas ao lado dos motivos legais, são as agressões
físicas, as sevícias propriamente ditas, as que mais se destacam nos autos, e não poderia ser
Antônia Maria, a parda forra que deseja emancipar-se de seu marido, aparece, em sua
petição de divórcio, como uma mulher presa não somente à escravidão como a uma união
forçada com um marido violento, além de espancamentos e xingamentos, por vezes públicos,
Ao tomar contato com este processo, não pude deixar de notar que, de fato, a história
de Antônia Maria sensibiliza o leitor. Fica bastante evidente no processo que muitas pessoas
na vila de Santa Izabel tinham conhecimento da situação de Antônia. Uma das testemunhas,
que disse conhecer Antônia Maria e seu marido Francisco, sabia que os dois eram casados há
mais ou menos sete anos, e sempre ouviu dizer sobre os maus tratos aplicados contra Antônia,
citando inclusive alguns nomes como [...] Antônio do Prado e Alexandre de tal, sabe que a
justificante por ameaças de seu senhor em tempo que delle era escrava foi obrigada a casar
com o justificado seu marido e por ser público sabe que este a tem maltrado com pancadas
[...]262.
Todas eram pessoas livres, que viviam de seus ofícios, como pintor e sapateiro, e todas são
unânimes em afirmar que Antônia Maria era maltratada pelo marido escravo, com a
262
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n.245.
109
O pintor Alexandre José Pedroso, casado, com aproximadamente vinte e três de idade,
contou que o fato de Antônia ser espancada pelo marido era de conhecimento dos moradores
daquela vila e ainda afirma ter testemunhado um dos ataques sofridos pela mulher. [...] em
huma occasiam estando elle testemunha de noite dormindo em casa do dito Capitam, foi
acordado pela justificante afim de lhe acodir, que seu marido lhe ameaçava [...]263.
Este depoimento fornece uma informação considerável: Antônia Maria ainda morava
na casa de seu antigo senhor, junto com seu marido escravo. Obviamente, Antônia visava
deixar os domínios de seu ex-senhor para trás, bem como sua união com Francisco. Contudo,
este fato não anula as sevícias que a parda forra afirmou ter sofrido, o fato é que as marcas de
facadas em seu corpo, somadas aos testemunhos, convenceram os membros do Juízo, que
permitiram que Antônia fosse morar com o pai. Infelizmente, não encontrei outras
informações sobre o pai de Antônia, apenas seu nome: Garcia Ribeiro Leal264.
para alcançar a obtenção do divórcio, mas descoberto com o depoimento das testemunhas.265
do casal, mais verossímil seria seu depoimento, como foi discutido no capítulo anterior. Para
este capítulo, acredito ser importante observar que os depoimentos das testemunhas revelam
que conhecer e ser reconhecido, ou ainda, ouvir falar de alguém conhecido são fatores
263
IDEM.
264
IBIDEM.
265
Cf. COSTA, R. R. L D.da. Op.cit, p. 203-224.
110
Afirmações do tipo: [...] sei disso por ser vizinho [...] e [...] afirma conhecer muito
justificante e justificado por ser seu compadre [...], exemplificam tal proposição. Volto a
4. Compadrio
apadrinhamento ritual.
Escolher padrinhos e madrinhas para batizar uma criança ligava as famílias a redes
caso de ausência, morte ou qualquer tipo de incapacidade dos pais em exercer suas funções, as
obrigações recaíam sobre os padrinhos. Estes tinham o dever sério e sancionado pela Igreja de
266
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 16, n. 245.
111
guiar o bem-estar espiritual de uma criança. Não contente apenas com o cuidado material das
recomendado veementemente aos pais que não esperassem muito tempo para batizarem seus
filhos, pois os bebês corriam o risco de deixarem esta vida e perderem a salvação por toda
eternidade, tendo em vista que é no batismo que reside o perdão ao pecado original.268
injustos” da relação entre senhores e índios, independentemente destes terem sido batizados
ou não.269 Ainda que o sacramento do batismo não alterasse a situação dos índios, por
exemplo, a Igreja contestava o uso de gentios para trabalhos escravos. O mesmo não
baianas preocupavam-se apenas com os [...] escravos brutos e boçais [...] e de língua não
sabida, [...] como são os que vêm da Mina, e muitos de Angola [...]270.
Contudo, admitindo que muitos deles morriam ainda jovens devido às duras
267
GRAHAM, S. L. Op. cit. p. 69.
268
GOLDSCHMIDT. E. M. R. Op.cit, p. 27. Segundo a autora, recém nascidos que tivessem suas vidas
ameaçadas deveriam receber o batismo ainda no ventre materno, o batismo seria realizado em qualquer parte do
corpo da criança que estivesse aparecendo; podendo ser as mãozinhas, pés ou cabeça. As que nasciam saudáveis,
de acordo com o “costume universal” português deveriam ser batizadas até oito dias depois de nascidas.
269
IDEM, p. 28.
270
IBIDEM, p. 28.
271
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. Liv. I, Tit. XIV, § 50-51.
112
com o trabalho de Stuart Schwartz sobre a zona açucareira baiana, que embora descreva uma
região geograficamente distante e uma economia diferente numa época anterior, continua a
ser um dos estudos mais detalhados na historiografia brasileira. Stephen Gudeman e Stuart
contradição com a igualdade que supostamente advinha do parentesco ritual e por ela
ameaçada. Eles viram nisso uma explicação para um padrão persistente: na década de 1780,
em quatro paróquias, nenhum escravo teve seus senhores como padrinhos. 272
Nos engenhos da São Paulo colonial o padrão se repetiu como mostra Alida
Metcalf273, que encontrou somente um caso em que o senhor assumiu o papel de padre e
batizou um bebê escravo agonizante. Esses casos são raros, possivelmente pela
troca, como em todas as relações de clientelismo, o compadrio não era somente a concessão
de favores de cima para baixo, mas também uma promessa recíproca de serviço, deferência,
obediência e lealdade. Em suma, essas alianças eram construídas entre companheiros novos
272
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 70. A respeito das práticas de apadrinhamento, ver Stephen Gudeman e Stuart
Schwartz. Cleansing original sin: godparenthood and the baptism of slaves in eighteenth-century Bahia, In
SMITH, Raymond T. (Org.). Kinship ideology and pratice in Latin America. Chapel Hill: University of North
Carolina press, 1984, p. 406-412.
273
METCALF, Alida. C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santana de
Paraíba, Brazil, 1720-1820. Texas: University Microfilms Internacional, 1983.
113
demonstrava uma estratégia para encontrar uma saída aos difíceis problemas sociais e
Dada a importância social do batismo para ricos e pobres indistintamente, ter um padrinho
influente era também uma forma de ser bem aceito socialmente.275 Baseado em variada trama
padrinhos e afilhados:
[...] Declaro que criei desde pequena a parda Joana Batista do Nascimento,
afilhada do meu marido, e pelo muito amor que lhe tenho, vivendo sempre
em minha companhia, ajudando-me no meu trabalho e sempre obediente, e
tratando-me com respeito, assim como a meus criolos Benedito e sua irmã
Henriqueta, Ana e sua irmã Virgínia, os quais já eram forros por morte de
meu marido, com a condição de ficarem sujeitos a mim durante a minha
vida, e por minha morte ficam livres e forros de toda a escravidão, de modo
que a dita Joana Benedita e os ditos meus quatro criolos são os meus
herdeiros [...]276.
afilhados foram sempre lembrados. Beneficiar os afilhados nas partilhas era uma prática
comum em todas as classes sociais, pouco importando quanto fosse o montante de bens do
testador. Quando existiam herdeiros legítimos naturalmente deveriam se contentar com uma
lista de benefícios que um afilhado poderia receber em testamento constam pequenas quantias
274
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 75.
275
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 32
276
IDEM, p. 33
114
em dinheiro, objetos de prata, peças do mobiliário, imagens religiosas, jóias de ouro, escravos
Os escravos, por sua vez, costumavam escolher para padrinhos pessoas livres ou de
escalões mais baixos da sociedade livre. Todavia, escolher outros escravos também era
comum e podia ser vantajoso. O maior dos benefícios seria manter laços de compadrio com
indivíduos cativos na mesma senzala, pois estes seriam mais confiáveis e presentes,
escravos, uma vez que, através dele, eles redimensionariam seu espaço social e cotidiano,
pelos registros de batismos dos escravos da família do Capitão Camillo Xavier Bueno da
Silveira, Rocha menciona, por mais de uma vez, casos de escravinhos batizados por escravos
para encontrar uma saída aos difíceis problemas cotidianos. Os laços de apadrinhamento
perversa, em especial quando interesses materiais entravam em jogo. A grande maioria dos
277
IBIDEM, p. 34
278
ROCHA, C. M. Op.cit, p. 121
279
IDEM, p. 121-123.
280
GRAHAM, S. L. Op.cit, p. 69-75
115
crimes cometidos no âmbito da família refere-se a pessoas aparentadas num grau próximo e
por afinidade (cunhados, sogros e genros). Interesses econômicos, ao que parece, formavam
um poderoso pólo de tensões, sendo motivo de discordâncias entre irmãos, pais, filhos e
afilhados. Com isso, testamentos e inventários prolongavam-se, não raramente, por disputas
intermináveis.281
relações um tanto quanto frágeis e provisórias, estas dependências afetivas não eram sólidas,
ao contrário, eram voláteis o suficiente para agudizar tensões latentes, facilmente traduzidas
em violência.
281
CAMPOS, A. L. de A. Op.cit, p.459.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para estas páginas finais, quero ressaltar que escravos e mulheres, na construção e
de suas histórias.
que mulheres brancas da elite para pôr fim ao casamento. A escrava Caetana acusou o marido
de maltratá-la e fazer-lhe ameaças, bem como Dna. Maria Francisca, mulher da elite, acusou o
distintos. Enquanto a escrava buscava livrar-se de um homem por quem alimentava repulsa, a
senhora branca, por trás das acusações de sevícias, intencionava libertar-se do casamento
porque seu marido não permitia que ela usufruísse de forma plena da herança deixada por seu
primeiro marido.
Enquanto a escrava implorou pela benevolência de seu senhor, e por vezes foi
esposas utilizaram justamente esse argumento para conseguir o divórcio. Ser boa mãe, mulher
distinta e honrada lhe concedia o direito de não aceitar os maus tratos dos companheiros. Fica
claro também que algumas delas utilizaram este discurso para lançarem dúvidas sobre o
comportamento de seus maridos, ainda que essas acusações não fossem verdadeiras.
Foi possível concluir ainda que escravas e senhoras poderiam vir a ocupar, na prática,
uma o lugar da outra, ao passo que esposas legítimas reclamam da proximidade dos maridos
casa, enquanto, não raras vezes, esposas afirmavam serem obrigadas a fazer o serviço da casa
Senhoras atacadas pelos maridos esmolavam ajuda aos escravos. Acredito ser
pertinente ressaltar que o laço construído entre senhoras e escravos em alguns casos, deu-se
de maneira tão significativa, que despertou desconfiança nos maridos, como foi citado nos
autos do processo de divórcio requerido por marido da vila de Bragança em 1814, discutido
Ao indeferir uma petição de divórcio requerido por uma esposa de São Paulo em
[...] muitas pessoas procuram este Juízo para saírem do poder de seus
maridos pretextando o ser por meios competentes com o fim de se
divorciarem; e logo que conseguem [...] nunca mais cuidam em promover os
termos do divórcio; e despótica e arbitrariamente [...] viverem
desenfreadamente [...]282.
282
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 7, n. 111.
118
A colocação do promotor indica que esta era uma prática freqüente, o que significa
não só que os fundamentos da lei não acorrentaram os colonos em seu discurso, como
autos analisados. Violência esta que, quando comprovada no depoimento das testemunhas,
masculinos foram violentos a tal ponto, que um milagre salvou a esposa da morte, como se
Em 1821, uma esposa conseguiu um resultado positivo para sua petição após provar
ás autoridades que viver com seu marido podia levar á morte. No depoimento das testemunhas
são evidentes a ira violenta do marido e a presença dos vizinhos como fator decisivo para
[...] indo elle testemunha do lugar onde reside como de visita à casa da
supplicante no dia 14 de Setembro do ano próximo passado, e vindo a
supplicante recebe-lo, o dito marido com um modo tão extraordinário
principiou logo a dar repetidas pancadas na supplicante, que denegriu-lhe o
rosto, quase lhe furou o olho esquerdo, fez-lhe ferimentos pela cabeça,
quebrou-lhe um braço e não contente com tudo isto puxou uma faca que
trazia para a matar, que se não acudissem os vizinhos armados para tão
grande desordem certamente o dito marido mataria a supplicante [...]283.
mais freqüente que encontrei nos autos, seguida pela infidelidade de um dos cônjuges.
como Dna. Maria Francisca; pude concluir que de fato a criação de laços sociais, familiares e
conjugais construídos por escravos e mulheres sujeitos protagonistas não somente deste
283
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 224.
119
trabalho como de suas histórias, constituiu-se como fator relevante para a vivência,
convivência e sobrevivência destes sujeitos; bem como os conflitos que emergiam desta densa
encontrei histórias que me levaram ao meu primeiro objetivo: evidenciar que os escravos
semelhantes aos experimentados por homens brancos livres da sociedade senhorial paulista,
frente ás autoridades eclesiásticas; ainda que fique em aberto para discussão o porquê de
tantos senhores terem obrigado seus escravos a se casarem ou até mesmo permitido que seus
usar os fundamentos da lei a seu favor, do que acusaram e do que foram acusadas.
cotidianos e os limites da vigilância eclesiástica. Acredito desta forma, que alcancei meus
objetivos principais para este trabalho, possibilitando, do mesmo modo, discussões diversas
FONTES E BIBLIOGRAFIAS
FONTES:
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 03, n. 38.
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 03, n. 39.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 04, n. 58.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 04, n. 62.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n. 75.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n. 84.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 05, n. 90.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 06, n. 96.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 07, n. 111.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 07, n. 122.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 07, n. 123.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimînio. Estante 15, Gaveta 08, n. 135.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 08, n. 139.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 09, n.142.
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 09, n. 158.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 09, n. 196.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 161.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 162.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 163.
121
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 10, n. 170.
ACMSP. Processos de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n 182.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 11, n.187.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 12, n. 193.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 220.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 221.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n.222.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 14, n. 224.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n. 233.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 15, n.245.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 21, n. 291.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 29, n. 385.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 35, n. 458.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n.677.
ACMSP. Processo de divórcio e nullidade de matrimônio. Estante 15, Gaveta 53, n. 678.
BIBLIOGRAFIA GERAL
ALBERIGO, G. (Org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.
ARAÚJO, Emanuel. Sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORI, Mary (org);
BASSANESI Carla (coord. de texto). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
2006.
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial: caminhos e
descaminhos. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
122
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: a escravidão no sudeste do século
XIX. São Paulo: Nova Fronteira, 1993.
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
FILHO, Lycurgo Santos. História geral da medicina brasileira. São Paulo: HUCITEC-
EDUSP, vol. 1, 1977.
FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e
tráfico atlântico, Rio de Janeiro (1790-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
_____. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. São Paulo: Global, 2008.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001; t.I, v.2.
KUSNESOF, Elizabeth Anne. Social mobility and immobility in urban change. São Paulo:
1765 to 1820. American Historical Association, 1974.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
123
LOPES, Eliane Cristina. O revelar do pecado: os filhos ilegítimos na São Paulo do século
XVIII. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 1998.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista. São Paulo:
Hucitec, 2000.
MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
METCALF, Alida C. Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in
Santana de Paraíba, Brazil, 1720-1820. Texas: University Microfilms Internacional, 1983.
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava
em Bananal (1801- 1829). São Paulo: Annablume, 1999.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e
experiências de urbanização - São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.
PRADO Jr, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998.
SAINT-HILAIRE, A. de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo
(1822). Trad. Regina Regis Junqueira. São Paulo: Edusp, 1974
_____. Viagens pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Belo Horizonte/São
Paulo. Itatiaia: EDUSP, 1975.
SAMARA, Eni de Mesquita. Tendências atuais da História da família no Brasil. In: A. M. et.
al. (Orgs.). Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço
e Tempo, 1987.
SANT’ANNA, Nuto. São Paulo no século XIX. Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia –
Conselho Estadual de Cultura, 1977.
124
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (Org.). História de São Paulo colonial. São Paulo: Editora
Unesp, 2009.
______. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa:
Estampa, 1993.
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo ofício da inquisição de Lisboa. São
Paulo: Companhia das letras, 1997.
REVISTAS
ASSUNÇÃO, Paulo de. A cidade de São Paulo no século XIX: ruas e pontes em
transformação. Revista do AESP, n. 10, maio/2006.
COSTA, Iraci Del Nero da, Slenes; Robert W. Schwartz, Stuart B. A família escrava em
Lorena (1801). Revista de Estudos econômicos, Vol. 17, número 2, São Paulo, mai/ago, 1987.
In: ROCHA, C. M. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. São Paulo: Editora
da Unicamp, 2004.
DIAS, Maria Odila da Silva Leite. Mulheres sem história. Revista de História, n. 114, jan/jun,
1983, p. 31-45.
LUNA, Francisco Vidal. Características demográficas dos escravos de São Paulo (1777-
1829). Revista Estudos Econômicos, São Paulo, 22 (3): 443-483 set/dez 1992.
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no século XIX.
Caderno de pesquisa, São Paulo, (37): 17-25, Mai/ 1981.
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História. Vol. 1, n. 1, 2003,
p. 11-17.
DISSERTAÇÕES
SANTOS, Dayse Lúcide Silva. Entre a norma e o desejo: estudo das tensões na vida
conjugal diamantinense de 1863 a 1933. Minas Gerais/ UFMG. Dissertação de Mestrado,
2003.