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Copyright

2015 © José Adriano Feitoza Apolinário (Adriano Marcena)

Raspando o Tacho : Comida e cangaço:

Relações etnogastronômicas entre nômades e sedentários nos sertões nordestinos (1922-1938)

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas


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quaisquer sem a autorização do autor. Reprodução proibida. Art. 184 do
Código Penal Brasileiro e Art. 30 da Lei 5.988/73.
Esta publicação é consequência do projeto nº 1956/13, incentivado pelo
Funcultura/SIC, Secretaria de Cultura, Governo de Pernambuco, através do
Edital 2012/2013, tendo como proponente José Adriano Feitoza Apolinário –
CPC Nº 278/03.
FICHA TÉCNICA:
Coordenação editorial: Adriano Marcena
Ilustrações: Carlos Newton Junior
Revisão ortográfica: Neilton Limeira
Criação das capas: Vicente Simas
Prefácio: Ésio Rafael
Projeto Digital: Gustavo Gonçalves

trempeproducoes@gmail.com

Minha gente, é Lampião que vai entrando:


amando, gozando e querendo bem.
Ele é bom como arroz doce,
estando calmo; zangado, é salamanda!
Arvoredo.

Para meus pais, José e Valdira.

Sobre o Autor
Adriano Marcena nasceu no Brasil. É escritor, dramaturgo, historiador e

professor. É autor do importante Dicionário da Diversidade Cultural


Pernambucana , obra construída em mais de doze anos de trabalho, e da


premiadíssima A Ópera do Sol: Odisséia nordestina no sertão pernambucano

– ópera-repente . Escreveu mais de 50 textos para o teatro, recebendo


menções honrosas e prêmios nacionais, muitos deles encenados, inclusive
fora do Brasil. Como pesquisador tem suas atenções voltadas para a história
da cultura e, recentemente, publicou estudos voltados para a história da
alimentação com as obras Mexendo o Pirão: Importância sociocultural da

farinha de mandioca no Brasil Holandês (1637-1646) e Raspando o Tacho –


Comida e cangaço: Relações etnogastronômicas entre nômades e sedentários


nos sertões nordestinos (1922- 1938). Participou das discussões do Plano


Nacional de Cultura do Brasil– PNC, 2008; foi membro titular da Comissão
Deliberativa de análise de Projetos Culturais do Fundo Pernambucano de
Cultura-Funcultura/SECUL-PE/Governo do Estado de Pernambuco
(2009/2010) e integrou, como representante da sociedade civil, a Comissão da
II Conferência Estadual de Cultura de Pernambuco, em 2013. Escreve artigos
para revistas e sites especializados, além de proferir palestras e oficinas em
seminários e encontros acadêmicos.

Depoimentos Sobre o Autor


O mínimo contato com a obra de Adriano Marcena provoca milhões de
perguntas em nós. Neste instante gostaria de destacar algumas: Quem disse
que não há, hoje, textos dramáticos de qualidade? Por que não há mais
incentivos para a nova dramaturgia? Por que não se fazem estudos mais
abertos ao novo? Será que o Brasil conhece seus novos escritores,
dramaturgos, poetas? Ou apenas aqueles que circulam em determinados
ambientes convenientes, que, geograficamente, tendem a se concentrar no
sudeste maravilhoso?
Robson Telles
(Mestre em Teoria Literária pela UFPE, professor da UNICAP)

A inquieta presença de Adriano Marcena no memorial do teatro


pernambucano é inquestionável. Para ele não há recesso criativo, ao contrário,
na crise, criar é seu modo de transfiguração, de mutação. No ato criativo ele
supera a inércia e a apatia, muitas vezes dominantes no cenário
pernambucano.
José Manoel Sobrinho
(Encenador e Coordenador da área de promoção cultural de Sesc-PE)

Criativo e sem qualquer pudor quanto aos limites de sua imaginação, Marcena
é, talvez e sem exagero, um dos mais prolíficos dramaturgos brasileiros de
sua geração.
Luiz Felipe Botelho
(Arquiteto, dramaturgo, mestre em teatro e crítico teatral)

Adriano Marcena tem-se revelado um dramaturgo ousado. Em seus textos


afloram aspectos sombrios da alma humana, bem como elementos que, apesar
de fazerem parte do nosso cotidiano, rara ou nenhuma vez têm sido abordados
na cena brasileira.
Marco Camarotti
Doutor em Teatro pela University of Warwick (Inglaterra)
Sumário
Sobre o Autor

Depoimentos Sobre o Autor

RASPANDO O TACHO

Introdução

Nas pegadas do cangaço

1.1 Cangaço

1.2 Pelos nomes

1.3 Alguns registros literários

Com os pés no chão… Pelo mundo

2.1 Nômades e Sedentários

Etnogastronomia: - Comida como resistência

3.1 Como comida como cultura

3.2 Tríade primordial: farinha, rapadura e carne assada

3.2.1 Farinha de mandioca

3.2.2 Rapadura

3.2.3 Carne Assada

4. Raspando o tacho

4.1 Acender fogo: no rastro da cozinha cangaceira

4.2 Os custos com os bandos: comida e bebida

4.3 Mulher, cangaço e cozinha

Conclusão

Referências

Agradecimentos:

Nossos Livros Na Amazon

Notas

RASPANDO O TACHO
Por Ésio Rafael

Este livro - RASPANDO O TACHO, do Adriano Marcena, representa a forma


que mais aproxima o leitor do texto, não só pela curiosidade do seu título,
mas pela contextura e riqueza de detalhes desenhadas e arquitetadas pelo
escritor, destinadas a quem deseja dar um mergulho no assunto recheado de
informações precisas, envolventes e sedutoras. Um composto de elementos
que preenche os espaços livres e necessários, para que se obtenha uma visão
mais consistente, do que teria acontecido na vida e na saga dos
CANGACEIROS (1922 a 1938) até calhar a posteriori nas mãos do polêmico
“guerrilheiro” famigerado e líder maior do cangaço - Virgolino Ferreira da
Silva, “Capitão Virgolino”, o – Lampião.
Titulados de párias, bandidos do sertão nordestino brasileiro, armados até os
dentes, nômades de fora, ou de dentro das terras prometidas, desesperados e
abandonados, sem rumo, aleatórios, invasores, criminosos, longe da
civilização, do poder constituído, “por conta do bode”. Habitantes de uma
região inóspita, propícia às intempéries que tinham o sol tremulante como
medida (até hoje, porque no semiárido nordestino, já temos sinais de
desertificação).
RASPANDO O TACHO – COMIDA E CANGAÇO é o veio condutor de uma
leitura sem interrupções, página a página, feito o agricultor que “bate estaca”,
uma atrás da outra, em um processo contínuo, até chegar ao outro lado da
“manga”, sem auto horário. Comida e alimentação caminham ombreadas,
prioritariamente, durante o percurso da leitura da obra literária do historiador
da alimentação Adriano Marcena. Configuram-se protagonistas por razões,
físico/espiritual e humana, em estado de prazer, ódio, luta e obstáculo. Junte
a isso, a seca, a fome, a violência e o jogo de xadrez com a morte.
A farinha de mandioca, de procedência indígena, migrou do litoral para o
sertão, “com o avanço das tropas lusas em busca das terras indígenas para a
criação de gado e a fundação das fazendas”. Tendo na sua composição amido,
cálcio, ferro, fósforo e vitaminas do complexo B, que serviu de alimento nas
suas variadas formas: pirão, mingau, beiju, bolinhos, farofa, além de ter sido
utilizada como unguento na cura dos ferimentos dos cangaceiros. Hoje, a
farinha é utilizada em todo o País, como parte da culinária brasileira e, até nas
composições musicais, como foram os casos de: Farofafá, e “farinha seca,
rapadura e carne assada” símbolo da gastronomia de norte a sul da Nação
brasileira.
Vejamos então as expressões do autor sociólogo retiradas do “RASPANDO O
TACHO” numa passagem poética do livro, que mais parece com a aridez de
um Graciliano Ramos, ou uma alusão ao Millôr Fernandes, o nosso filósofo
maior, ao dizer que “a moral do homem mora no estômago”:
“A ausência alongada das chuvas
Expõe ossos da terra
Descarna águas do rio
Empalidece plantações
Resseca tripas de animais
Verga desejos humanos
Diante da existência faminta”.
Na qualidade de sertanejo, de DNA pernambucano do Moxotó, Sertânia, não
me anima confirmar que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, conforme a
visão entusiasmada e por certo inoportuna, do Euclides da Cunha, autor do
livro clássico - OS SERTÕES.
O problema se encerra na certeza de que, quem escapou por aquelas bandas
foi porque teve de segurar a rapadura. Um bom e histórico alimento, presente
em RASPANDO O TACHO. No mais, é consultar as – MEMÓRIAS DE
ADRIANO e… boa leitura!

Introdução
Os sertões nordestinos do Brasil muitas vezes são vistos como lugares onde a
escassez de água reina a arrastar secas prolongadas, fazendo a fome imperar
de maneira perversa, debilitando a existência dos sertanejos. Neste contexto,
acredita-se que a geografia exerce importante domínio sobre a vida das
pessoas.
A região sertaneja do Nordeste brasileiro também é enxergada como lugar de
extrema penúria devido às sérias dificuldades sociais ocasionadas por
seculares problemas políticos e econômicos.
Sem muitas delongas, é sabido que a questão das secas nordestinas é uma
problemática antiga e muito mais de ordem política que geográfica. Basta
uma estiagem mais prolongada para evidenciar quão frouxos são os laços das
ações dos programas sociais implementados pelos governos para o combate
às secas.
Em meio a todos esses embaraços ocasionados pela alongada falta de chuvas,
um paradoxo se manifesta: como é possível um lugar, que muitos brasileiros
acreditam ser constantemente seco e miserável, eleger suas comidas como um
dos elementos mais fortes da sua identidade cultural?
Isso nos levaria à hipótese que, apesar das estiadas bem espichadas, os sertões
nordestinos não podem ser resumidos a seca e fome. O que e como comem os
sertanejos do Nordeste brasileiro? Quais influências históricas estão atreladas
à sua relação com o ato de comer?
Indo mais além, nos deparamos com o cangaço, vida nômade a perambular
por estreitas veias sociais e encompridadas artérias políticas dos sertões
nordestinos, em fins do século XIX e início do XX.
O vaguear cangaceiro se dava dentro de uma sociedade sedentária, em meio à
complexa rede de interesses sociais. Longe de querermos abordar as
estruturas ditas heroicas do cangaço, iremos deter nossas atenções na relação
dos cangaceiros com a comida e a bebida.
Como se davam as relações de aquisição, transporte, conservação e o preparo
dos alimentos entre os bandos? O que se comia na ‘cozinha cangaceira’? A
presença da mulher alterou a relação cangaceiro vs comida? Nesse ir e vir
multívago, os cangaceiros foram capazes de criar uma cozinha com feições
próprias?
Indubitavelmente, o ato de comer passa por aspectos socioculturais,
geográficos, históricos, econômicos e políticos.
Apesar de sabermos que o cangaço não se limita à figura de Virgolino
Ferreira da Silva, o Lampião, nossa abordagem dar-se-á através da interface
entre o universo do cangaço e de seu bando.
Abordaremos a relação dos cangaceiros com as comidas e as bebidas, tendo
como ponto de partida a etnogastronomia, para discutirmos comida como
referência identitária dentro das cozinhas nordestinas e se estendendo aos
[i]
vestígios do tacho andarilho do bando de Lampião.
Como quaisquer temas fartos em complexidade, o cangaço permite ao
pesquisador múltiplas opções de recortes temáticos e o emprego de várias
ferramentas metodológicas.
Nossa metodologia foi pautada em pesquisa bibliográfica, consultando obras
e artigos de referência na área dos estudos etnogastronômicos e do cangaço;
utilizamo-nos, também, da história oral, através dos depoimentos colhidos ou
transcritos de fontes primárias e secundárias, sempre que necessário
confrontando-os com fontes escritas.
Herdeiros de uma tradição alimentar que fundamenta as cozinhas sertanejas, o
nomadizar cangaceiro, a rasgar a escabrosidade do espaço sociogeográfico,
muitas vezes com a polícia nos calcanhares, teve que criar novas formas de
obter, transportar, conservar, preparar, ingerir os alimentos e não deixá-los
como pista para serem rastreados.
Oriundos de uma sociedade sedentária, como os cangaceiros passam a ter
relações com os alimentos em suas vidas de nômades? Seria pertinente
pensarmos em um exercício etnogastronômico no cangaço?
Sem querer esgotar o tema, este trabalho se limita a dar uma raspada rápida
no tacho cangaceiro para elucidar as relações entre cangaço e comida e seus
muitos desdobramentos simbólicos que marcaram as andanças conflituosas
dos cangaceiros, especificamente, de Lampião e seu bando pelos sertões
nordestinos entre 1922-1938.

Nas pegadas do cangaço


1.1 Cangaço
A ausência alongada das chuvas expõe ossos da terra, descarna águas dos rios,
empalidece plantações, resseca tripas de animais e verga desejos humanos
diante da existência faminta.
Em ano de estiagem prolongada, os planejamentos estratégicos do estado se
mostram inconsistentes, fazendo muita gente secar, literalmente, por dentro.
Isto porque, historicamente, a população rural do semiárido do Nordeste
[ii]
brasileiro vive da agropecuária. Esta constante relação com as intempéries
marca seu modo de vida e se desdobra, também, para a relação com os
alimentos.
Além dos longos períodos de estiagens, com secas a corromper as frágeis
atividades agropastoris, sem desconsiderar o fraco abastecimento de água,
outros fatores também contribuíram de forma intensa, durante décadas, para
que se estabelecesse um clima de revolta no seio de alguns fragmentos da
sociedade.
Com a debilidade da estrutura das instituições responsáveis pelo cumprimento
da lei, da ordem e da própria justiça, os que se sentiam injustiçados passavam
a confiar nas armas e na própria valentia, fortalecendo o surgimento de muitos
grupos armados no sertão que, posteriormente, fizeram surgir o que ficou
conhecido na nossa história como cangaço.
No Brasil, o que se entende por cangaço assumiu contornos de autenticidade
devido a diversos fatores pormenorizados. Seu aparecimento vai ser
alavancado pelos velhos problemas sociais que se arrastam desde o tempo da
fundação da América portuguesa, se tornando evento social de grande
complexidade.
De maneira geral, o cangaço pode ser entendido como vida nômade exercida
por homens e mulheres, sozinhos ou em bandos, armados, principalmente
pelo sertão do Nordeste brasileiro, atingindo seu auge entre o final do século
XIX e primeira metade do século XX.
Desde o século XVI que vários bandoleiros, então denominados bandidos ou
salteadores, faziam parte da paisagem social da capitania de Pernambuco.
No período da invasão holandesa às atuais terras do Nordeste brasileiro,
encontramos o “bandido caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros,
desertores das tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o
contingente mais expressivo que se mesclava aos aventureiros da própria terra
e aos negros fugitivos” . (MELLO, 2004, p. 93)

Na segunda metade do século XIX, o cangaceiro assumia características como


“malfeitor reunido em quadrilha, que infesta as estradas do interior atacando
os viajantes, e até mesmo as propriedades e povoados retirando-se com os
despojos das suas rapinas, e não raro deixando victimas das lutas travadas”
.
(COSTA, 1976, p. 183)

Inevitavelmente, eram vistos como “gente de má índole, pessoa estúpida,


perversa, presta-se […] as mais torpes perseguições e vinganças, e ainda,
reunidamente, em numerosos grupos armados, a intervenções nos comícios
políticos” . (COSTA, Op.cit. , p. 183)
O trecho final “intervenções nos comícios políticos”, por essa fonte, evidencia
as relações de alguns grupos de cangaceiros com os poderosos do local.
Parece-nos que tais relações ainda continuam vivas durante as eleições no
Brasil, apesar de sabermos que elas, evidentemente, não nasceram com o
advento do cangaço.
[iii]
As façanhas de Lampião e seus cabras não se deram de forma isolada, “pelo
contrário, fez parte de uma epidemia regional de banditismo, que começou
aproximadamente em 1900 e durou 40 anos” .
(CHANDLER, 2003, p. 15)

Para muitos jovens do sertão, entrar para o cangaço era uma das formas de
ascensão dentro da sociedade sertaneja, visto que o quadro social iniciado
desde a presença dos primeiros europeus no sertão não permitia que estes
indivíduos, mergulhados em grande carência material, ascendessem a
patamares socioeconômicos mais satisfatórios.
Alguns sertanejos, principalmente os mais jovens, passam a projetar suas
repressões sociais na figura do cangaceiro, visto que este desafiava as leis,
tinha dinheiro, matava policiais, era temido por todos e, acima de tudo, não
tinha patrão.
Inseridos em uma situação aparentemente licenciosa, os cangaceiros eram
vistos, em certos casos, como facínoras, a própria consolidação da
bestialização humana, o exercício da violação de todos os códigos que
norteiam a convivência social e humana (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008).

Contudo, contraditoriamente, o cangaceiro se apresenta como “o homem


livre, sem amarras, o homem pobre de cabeça erguida, a quem os poderosos
temem, admiram e respeitam, o homem que não precisa obedecer a ninguém”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, Op.cit. , 2008).

1.2 Pelos nomes


O primeiro cangaceiro que se tem notícia foi Cabeleira , José Gomes, que agia
na zona canavieira de Pernambuco e Paraíba, executado em 1776, no Largo
das Cinco Pontas, no Recife, teve seu corpo esquartejado e depois pregado em
vários locais.
No século XIX, existiu cangaceiros como Adolfo Meia Noite, Lucas da Feira,
João Calangro e Jesuíno Brilhante, este último nascido no Rio Grande do
Norte, em março de 1844.
Jesuíno Brilhante , Jesuíno Alves de Melo Calado, foi quem primeiro
introduziu o canto no cangaço enquanto andava ou participava de combates.
Considerado cangaceiro gentil-homem, espécie de bandoleiro romântico, tipo
um Robin Hood adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos
anciões oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas. .
(CASCUDO, sd, p. 476)

Jesuíno Brilhante foi assassinado em uma emboscada, depois de forte tiroteio


em dezembro de 1879, com apenas 35 anos, na Paraíba.
Já no século XX, Antônio Silvino – Manuel Batista de Moraes – nascido em
Afogados da Ingazeira em 1875, quer dizer nascido na Paraíba e batizado em
Pernambuco. . Ingressa no cangaço, onde atuou entre 1900 e 1914,
(CASCUDO, Op.cit. , 91)

após o assassinato do pai em plena feira. Após um combate com as tropas de


Pernambuco, é ferido e em seguida se entrega, sendo preso e passando pouco
mais que 23 anos na Casa de Detenção do Recife, atual prédio da Casa da
Cultura da capital pernambucana. Antônio Silvino também praticava
agiotagem com o dinheiro que tomava de suas vítimas e tinha grande
envolvimento com prostitutas. Ficou conhecido como o rifle de ouro devido às
muitas invasões e saques às vilas, sítios e fazendas, acompanhado de
inúmeras mortes e vários roubos pelos sertões de Pernambuco, Paraíba e Rio
Grande do Norte. Morreu na Paraíba, em 1944, aos 69 anos.
Jararaca , José Leite de Santana, nasceu em Buíque, em 05 de maio de 1901.
Soldado do Exército, vindo a participar da revolta de 1924, em São Paulo.
Depois se tornou cangaceiro do bando de Lampião. Foi o primeiro chefe de
Corisco, além de ter sido responsável pelo seu treinamento. Durante o
combate à cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, em 1927, foi ferido
com dois tiros, tendo que se esconder nos arredores do município. No dia
seguinte, pede ajuda a um morador e é capturado e enterrado vivo. Seu
túmulo em Mossoró é um dos mais visitados.
Um cangaceiro curioso era Gitirana , Antônio Félix. Nasceu em Alagoas e
entrou para o cangaço em 1937 com o objetivo de vingar a morte do pai que
havia sido assassinado pela polícia. Curiosamente, não gostava de brigar.
Integrante do bando de Corisco, Gitirana era repentista e poeta. Em 1940,
entregou-se à polícia, vindo a falecer em seguida, vítima de tuberculose.
Outro cangaceiro imortalizado pelas suas façanhas foi Sinhô Pereira ,
Sebastião Pereira e Silva, nascido em Vila Bela, atual Serra Talhada, em 20 de
janeiro de 1896. Filho da tradicional família Pereira do Pajeú, inimiga dos
Carvalho e dos Nogueira, ingressa no cangaço em 1915, ao lado de Luís
Padre, seu primo. Ao participar de grandes combates, matando muita gente
para vingar seus familiares assassinados, fica conhecido como um dos mais
eficientes cangaceiros da história. Em 1922, decide abandonar o cangaço e
domiciliar-se no estado de Goiás. O comando do bando fica com um de seus
mais preparados cangaceiros, nada menos que Lampião.
O auge do cangaço deu-se na figura lendária de Lampião – Virgolino Ferreira
da Silva – natural de Vila Bela, atual Serra Talhada, nascido a 4 de abril de
1898. Lampião, provavelmente, introduziu no cangaço o excesso de enfeites
[iv]
nas armas e nas roupas; o praxaxá, cantiga de insulto entoada pelos
cangaceiros no intervalo das batalhas contra os soldados do governo, também
conhecido como canto de guerra , e o xaxado, dança divulgada pelos
cangaceiros. Grande estrategista e um dos melhores atiradores do bando,
[v]
recebeu, em 1926, a patente de Capitão do Batalhão Patriótico para combater
a Coluna Prestes, por influência do deputado federal do Ceará, Floro
Bartolomeu, com apoio do Padre Cícero. Incorporou a mulher dentro do
cotidiano do cangaço ao se apaixonar por Maria Bonita, recebendo críticas
por parte de alguns cangaceiros mais velhos pelo fato da presença feminina
poder desagregar o grupo. Poeta, compositor, desenhista, dançador, costureiro
e exímio bordador, Lampião recebeu a alcunha popular de Rei do cangaço e
foi morto em Sergipe, no ano de 1938.
Corisco , Cristino Gomes da Silva Cleto, nascido em 10 de agosto de 1907,
para uns em Alagoas e para outros na Bahia, foi um dos mais cruéis
cangaceiros da história, tendo iniciado sua vida de bandido matando, em
[vi]
Monteiro, Paraíba, um homem em um forró, por causa de uma mulher,
depois de ter desertado do Exército. Condenado a quinze anos de prisão
consegue fugir um dia antes do fuzilamento. Entra, em 1926, no grupo de
Lampião. Tempos depois, na tentativa de ressocializar-se, abandona o
cangaço e fixa residência em Monteiro, na Paraíba. Começa a trabalhar e
decide contrair núpcias com a filha do seu patrão. Corisco é descoberto pela
polícia que fora buscá-lo. Alertado pelo filho do seu patrão e futuro cunhado,
consegue se livrar da prisão. A partir daí, sem ter onde morar, regressa
definitivamente, para o cangaço, no bando de Lampião. Com a morte deste
em 1938, Corisco passa a ser o vingador de Virgolino Ferreira, até por ser o
último grande cangaceiro vivo. Corisco pratica crimes medonhos, macabros,
verdadeiros rituais de perversidade. O fato em Monteiro o faria, tempos
depois, cometer um dos crimes mais bárbaros do cangaço, em que a vítima
fora Herculano Borges, ex-delegado de Monteiro, na Paraíba, que antes,
tentara prendê-lo.
Em 22 de setembro de 1931, ao transportar uma carga de mercadorias,
Herculano é descoberto por Corisco. Os pedidos de desculpas do ex-delegado
não adiantaram. Corisco o escalpelou friamente.
Corisco foi baleado na Bahia, em 1940, pelas tropas de Zé Rufino, vindo a
falecer em seguida. Historicamente, o ciclo do cangaço terminara em 1940
[vii]
com a morte do Diabo Louro , como Corisco ficou conhecido.
Mulheres como Dadá, Sérgia Maria Ribeiro da Silva, (1915-1994)
companheira de Corisco; Maria Bonita, Maria Gomes de Oliveira (1915-
[viii]
1994), companheira de Lampião deixaram suas marcas no cangaço. Outras
mulheres compuseram a paisagem feminina do cangaço: Abília, Adélia,
Áurea, Cristina, Dória, Doninha ou Laura, Dulce, Durvinha, Eleonora,
Ernestina, Emília, Enedina, Eufrosina, Florência, Idalina, Inacinha, Iracema,
Liça, Lídia, Lili, Maria, Maria Cardoso, Maria da Conceição, Maria Ema,
Maria de Jesus, Maria Fernandes, Maria Juvina, Maria Adília, Maria Pancada,
Marina, Mariquinha, Moça, Neném, Otília de Jesus, Toinha, Sila, Verônica,
Zefinha dentre outras. O aparecimento das mulheres na vida dos bandos e
suas relações com a comida é abordado no subcapítulo mulher, cangaço e
cozinha .

1.3 Alguns registros literários


Dentro do quadro sintético da literatura brasileira, O Cabeleira , de Franklin
Távora, de 1876, envolvendo a temática do cangaço e costumes populares,
ficcionaliza a história do cangaceiro Zé Gomes (1751-1786) que aterrorizou o
Recife e alguns municípios de Pernambuco.
Ressaltamos que os vocábulos cangaço e cangaceiro não eram usados à época
de Zé Gomes, somente com a publicação do romance de Távora é que o termo
[ix]
cangaço aparece pela primeira vez associado ao sentido de bandoleiro.
Inicialmente, a acepção de cangaço, datada de 1789, apresentava significado
de ‘bagaço da uva depois de pisada; engaço’; em 1889, passa, também, a
receber a significação de ‘conjunto de armas conduzidas por malfeitor’.
Aos poucos, o cangaço, em meio a todas suas contradições, foi lentamente
sendo incorporado à cultura brasileira como um dos elementos identitários do
sertão nordestino, visto que já se encontrava devidamente enraizado em várias
expressões culturais da imaterialidade popular.
Nas capas dos primeiros folhetos de cordel não existiam desenhos, entretanto
já se trabalhava o tema cangaço.
O exemplo é o folheto de Leandro Gomes de Barros com dois temas: A Ira e a
Vida de Antônio Silvino e o Boi Mysterioso , publicado no Recife, sem
datação, mas provavelmente editado entre o final do século XIX e o início do
século seguinte, e o raríssimo folheto da autoria de Francisco das Chagas
Baptista, intitulado A Vida de Antônio Silvino , também publicado no Recife,
no ano de 1904.
Mas a temática do cangaço não se fixou apenas na literatura de cordel, na dita
poesia popular escrita, ela também caiu no gosto da nossa poesia erudita:
Essa marca se impõe devido ao interesse de natureza testemunhal que o
cangaço desperta nos poetas que lhe são contemporâneos; depois, com o
passar dos anos, de modo semelhante ao ocorrido com o nosso romance, tal
interesse começa a se transmudar em fascínio de gesta, um fascínio que ainda
hoje se faz notar em poetas da novíssima geração (NEWTON JÚNIOR, 2009, p. 13) .

A ficção prosaica ofertou várias obras literárias envolvendo a temática


cangaceira, indo para muito além do caminho iniciado com O Cabeleira .

Para exemplificar, seguem alguns títulos que abordam o tema do cangaço: Os


Brilhantes , (1895), de Rodolfo Teófilo; Luiza-homem (1903), de Domingos
Olímpio, Menino de Engenho (1932), Fogo morto ( 1943), Pedra Bonita (
1938) e Os Cangaceiros (1953), de José Lins do Rego; Coiteiros (1935), de
José Américo de Almeida; Seara Vermelha (1946) e Capitães de Areia (1937),
de Jorge Amado; Viventes das Alagoas ( 1962), de Graciliano Ramos;
Romance d’ A Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna; Sem Lei nem Rei
(1968), de Maximiano Campos; Lampião e os meninos (1990), de Cláudio
Aguiar; dentre muitos outros.
O cangaço ainda se debandou para o lado do artesanato, do teatro, da música,
da TV, do cinema nacional, além de ser tema contemplado em vários estudos
[x]
acadêmicos.

Com os pés no chão… Pelo mundo


[xi]
2.1 Nômades e Sedentários
Em sua vivência nomádica, o cangaço, de certa forma, era um mundo à parte
da sociedade sertaneja, mas isso não quer dizer que os bandos, girando em
torno das circunstâncias locais, deixassem de manter relação direta de
dependência social, simbólica e econômica com o modelo de sociedade
sedentária da qual eram oriundos.
Nômades, sempre a voltear as entranhas das sociedades do semiárido
nordestino do Brasil, seja para afirmá-la como padrão pernicioso do qual se
pode retirar inúmeras vantagens, seja para manter vivo o repúdio àquela
formatação social existente.
Ao se ausentarem das normas sociais fixadas no sertão, os bandos partiam
para constituir novas adaptações à paisagem que, aos olhos sedentários,
parecia imóvel e, com isso, tentavam os cangaceiros estabelecerem novos
sentidos para a realidade externa.
Apesar de estarem diretamente atrelados à sociedade sedentária e dependerem
dela, esta separação, espécie de andarilhar avulso pelas trilhas de um mundo
supostamente livre, se apresentava como bandeira intrépida a tremular pelos
ventos utópicos da liberdade.
A autonomia vivenciada pelo nomadismo cangaceiro gerava a necessidade de
um mergulho mais profundo nas novas formas de convivência entre os
membros do bando e o ambiente circunvizinho.
A perseguição policial era constante e se tornava mais implacável a depender
do período em que o estado apertava o cerco aos bandos. A questão é que os
cangaceiros sempre estavam na condição de perseguidos, quer fosse pelas
inimizades criadas que clamavam por vingança, quer pela justiça do estado
para que estes prestassem contas pelos crimes cometidos.
Bandoleiros jurados de morte e perseguidos pela polícia, além de foragidos
das obrigações para com a lei, era imprescindível assumir a condição de
nômade, pois assim o cangaceiro aumentava suas possibilidades de se manter
vivo. Quanto mais andarilho, menos perto da morte.
Dentre os indivíduos sedentários que formaram as fileiras do cangaço muitos
eram vaqueiros, cambiteiros, almocreves, trabalhadores agrícolas e da
pecuária, enfim, mantinham relações com atividades típicas da zona rural.
Uma vez fixados em suas residências, na condição de sedentários, estes
indivíduos conseguiam seus alimentos através do cultivo dos roçados e dos
produtos oriundos das criações domésticas, compra dos gêneros vendidos nas
feiras e nos mercados públicos e, também, da troca dos seus excedentes
agrícolas.
Feitos cangaceiros e, por extensão, nômades, o contexto mudava
radicalmente, a ponto de se criar novas formas de aquisição, transporte,
conservação, preparo dos alimentos e o desfazer dos vestígios do de-comer.
Uma vez nômade, como conseguir comida? As formas mais usuais eram os
saques em propriedades domésticas e comerciais; passando pelo fornecimento
da rede de coiteiros; pela compra direta com dinheiro roubado das vítimas ou
extorquido dos mais abastados; com o apresamento de animais silvestres e,
algumas vezes, não apenas a coleta de vegetais, mas a sua transformação em
comida.

Entre 1936 e 1938, últimos anos do bando do Capitão, mesmo na condição de


cangaceiro, Lampião tinha uma vida mais sedentária que nômade, isso quer
dizer já não enfrentava com o mesmo vigor a andante paisagem atroz dos
anos inicias.
Para alguns, tal fato se dera devido à incorporação das mulheres no cangaço,
levando o comportamento do bando a uma sedentariedade discordante da
ideia de cangaço, então associado à guerrilha. (MELLO, Op.cit. , p. 149).
Etnogastronomia: - Comida como resistência
Não são poucos os elementos que identificam o sertanejo do Nordeste
brasileiro: linguagem diária, musicalidade, religiosidade, o modo de festejar,
rixas familiares, relação com a ríspida região do semiárido, trato com os
animais e, sobretudo, sua comida.
Paradoxalmente, os sertões nordestinos simbolizam seca, fome e miséria e,
por outro lado, apresentam cozinhas ricas e inventivas que permanecem vivas
na memória e no de-comer diário, pulsando nos roçados, mercados públicos e
feiras livres, e animando o comer diário e nutrindo as festividades da
população.
Em seus vagares cortantes pelo caatingal, os cangaceiros mantiveram vivas
suas relações etnogastronômicas oriundas da sociedade sertaneja. Tais
afeiçoamentos gustativos, devidamente arraigados na subjetividade daqueles
indivíduos, permitiram reforçar os lanços com a sociedade sedentária, na qual
seus nomadismos estavam embrenhados, através, dentre outros aspectos, da
ligação entre comida e cangaço.
O de-comer dos indivíduos sertanejos, como em muitos agrupamentos sociais,
é um dos componentes mais fortes de suas representações simbólicas, o que
confere forte vigor identitário e, logo, pode ser percebida como parte do
patrimônio da brasilidade.
A severa paisagem do semiárido não é imutável, logo, não mantém sua
rispidez durante todo o ano, salvo em períodos de seca, com longas estiagens,
em que a aridez se encomprida sacrificando relações agricultáveis e da
pecuária.
Com a regularidade do ciclo das chuvas, o solo do sertão nordestino oferta
[xii]
riqueza e traz fartura às mesas sertanejas. No período da seca verde se pode
plantar milho, feijão, mandioca, macaxeira, inhame, batata-doce etc.
A pastagem para os animais também pode ser facilmente encontrada, assim
como as frutas das estações, a exemplo do umbu, que se faz presente tanto nas
fruteiras das casas quanto nos tabuleiros das feiras públicas.
Os grupos de cangaceiros interagiam constantemente com esse espaço
geográfico, o qual não se apresentava sempre coberto por intensa rudeza, ou
seja, ausência total da verdejante paisagem e do murmúrio vivífico das águas
intrépidas de rios e riachos.
A comida nordestina tem fragrâncias e coloração próprias, exala perfumes e
revela cores que evidenciam os traços da sua invenção histórica e, como
qualquer outra partícula cultural, ainda se encontra em efervescente
ressignificação.
Com bases bem fincadas na memória gustativa dos seus habitantes, as
cozinhas dos sertões nordestinos possuem, em sua caminhada histórica, uma
invenção que ainda permite o fervilhar contínuo do que se come e do que se
bebe dentro do semiárido nordestino.
A base ainda é a mesma: feijão que pode ou não levar piqui, farinha de
mandioca, arroz comum ou do tipo vermelho, paçoca, rubacão ou baião de
dois, carne de charque, carne de gado, de bode ; buchada, rabada, poucos
legumes, algumas hortaliças e o cuscuz que serve de acompanhamento
matinal, passando pelo almoço e se estendendo até o jantar.
No sertão há uma relação muito forte com a caça, herança indígena ou não, o
sertanejo ainda faz caçada seja por lazer ou por necessidade para saborear
pacas, tejus, espécies de cobras e até pássaros. Hábito este que alguns grupos
cangaceiros, principalmente os menos prestigiados política e
economicamente, também praticavam em suas longas caminhadas.
Nas feiras e mercados públicos das cidades do sertão pode se saborear o
famoso manguzá salgado – preparado com milho e feijão, e que não tem nada
de semelhante ao manguzá doce, com leite de coco, das capitais.
A ingestão de cachaça, queijo de coalho, umbuzada, rapadura, manteiga de
gado (manteiga de garrafa), mel, doces, leite, ainda se faz forte entre os
sertanejos, bem como o hábito de se preparar comida, em alguns lugares, em
panela de barro e fogo à lenha.
Bolacha, pão, queijo e doce de batata-doce, de batata de umbu ou chouriço,
eram conseguidos nas vendas e bodegas dos povoados e arruados invadidos
pelos bandos.
Mas em suas paradas, certamente, apreciavam carne de sol e carne de bode
assadas na brasa, moqueadas ou fritas em óleo e também guisadas; cuscuz e
macaxeira ou batata-doce cozidas; arroz vermelho e até mesmo a umbuzada.
Os bandos não estavam à margem desse processo, pois o de-comer dos
cangaceiros impregnava-se dessa fusão de técnicas, utensílios, cores, aromas
e sabores que marcam o processo de formação das cozinhas nordestinas,
porém com aspectos bem específicos nas mesas sertanejas.
A ligação do cangaço com essa culinária não se dava somente pela forma
secular de se preparar os alimentos, também pela praticidade de revigorar a
comestibilidade identitária.
No cangaço, pensar no de-comer durante as longas travessias pelas veredas
sertanejas era estratégico e podia, em certos casos, ser determinante para a
permanência de alguns bandos.
Apesar de constarem no cardápio de muitas regiões do Nordeste brasileiro,
são iguarias que nos remetem ao sólido patrimônio culinário dos sertões
nordestinos.
A etnogastronomia, neste trabalho, é entendida como práticas alimentares
com características próprias de um povo ou comunidade, desenvolvidas com
intencionalidade relacionada a processos educativos de tradição e resistência,
e que permitem a patrimonialização do ato de comer entre os comensais.
Tratando-se do sertão nordestino, ter comida durante os períodos de estiagem
significa armazenar alimentos fundamentais para enfrentar as intempéries. Tal
prática anual tornou-se corrente entre os sertanejos da zona rural. Milho,
feijão, farinha de mandioca e rapadura, além de animais como galinhas,
bodes, cabras e vacas recebem cuidados especiais para enfrentarem as
espichadas ausências de chuva.
O fato é que a presença relativamente constante das secas na paisagem
cultural dos sertanejos não conseguiu provocar uma mudança determinante na
relação das populações dos sertões nordestinos com suas comidas
entronizadas. Apesar de muitos roçados minguarem e boa parte dos animais
morrerem sedentos, os sertanejos, principalmente da zona rural, não
substituíram de maneira definitiva suas iguarias mais representativas pelas
comidas prontas, industrializadas que, em muitas cidades, já existem em
abundância e com preço relativamente acessível àqueles que são
contemplados com os programas sociais de transferência de renda.
A comida devorada pelas gerações sertanejas ao longo dos séculos tem bases
bastante antigas e recebe novas ressignificações como consequência da
própria dinâmica cultural, sendo acrescidos novos elementos, enquanto tantos
outros perdem parte da sua forçar, sem, contudo, desaparecer por completo.
3.1 Como comida como cultura
Através da etnogastronomia podemos promover o saber, a valorização e o
reconhecimento das cozinhas sertanejas na perspectiva do manuseio pelos
grupos de cangaceiros.
É sabido que valorizar a memória nos humaniza ainda mais e, no tocante ao
[xiii]
cozinhar , reafirmamos que tal iniciativa cultural é uma das manifestações
que mais nos distingue dos demais animais. Cozinhar é transformar a
natureza, pensá-la, reinventá-la e criar novos significados, logo, cozinhar é
constituir cultura.
O ato de deixar o alimento preparado para depois comê-lo nos possibilitou
estabelecer novas dinâmicas de planejamento com o tempo, sobretudo no
incremento das tarefas cotidianas, nas relações com o ócio, na ligação com as
divindades e com a própria noção de existência.
Ao prepararmos a comida dos nossos mortos, permitíamos que matassem sua
fome após o despertar da longa jornada dentro da morte, crendo, assim, que a
comida elaborada entre nós também serviria para alimentar aqueles que se
foram desta vida e já não são mais humanos.
Outra ação que nos permite incrementar a relação entre o sagrado e a comida
se dá ao cozinharmos para as nossas divindades. Ao se rematerializarem na
[xiv]
condição temporária de vivente, muitas entidades solicitam cardápios
específicos para se refestelarem espiritualmente. Neste caso, nutrimos as
divindades puramente da perspectiva simbólica, pois a comida, nestas
situações, assume aspectos revigorantes, capaz de possibilitar nos seres
dotados apenas de espírito, o reencontro com as sensações da matéria
humana. Em diversas culturas, o alimento já preparado serve para representar
a presença viva das nossas divindades, a exemplo do vinho e do pão na
cultura ocidental.
O ato de ingerir alimentos nos parece algo exclusivo dos seres animados,
visto que comemos para nos mantermos cheios de vivaciade e, assim,
suprirmos nossas carências nutricionais.
Percebendo-nos assim, até parece que somos meras baterias recarregáveis a
encher de energias nossas células através dos alimentos ingeridos. Da
perspectiva nutricional e médica, somos exatamente isso. Entretanto,
raspando o tacho pela ótica da cultura, as coisas mudam radicalmente.
A primeira questão é que a comida é um dos elementos mais fortes da cultura,
pois fortalece símbolos e estabelece identidades. Em nossas mesas estão
cores, cheiros, sabores, sons, texturas, formas, ingredientes e temperos que
nos relacionam às nossas escolhas, ou seja, à nossa formação cultural.
O simples ato de ingerir alimentos carrega em si muitos indícios que
permitem identificar um indivíduo ou uma coletividade em seu contexto
cultural, visto que nessa relação nos sentimos parte integrante do que
comemos e assim, pertencemos aquele complexo que nos acompanha desde
os primeiros anos de vida, com suas respectivas incorporações, e nos reafirma
enquanto sujeitos sociais e simbólicos. (MARCENA, 2012, p. 63).

Olhar atentamente o que comemos e, sobretudo, o que somos impedidos de


comer por questões econômicas, de saúde ou religiosas, é um exercício que
possivelmente nos permitirá uma visualização mais aclarada dos nossos traços
sociais, culturais e históricos. Assim, revelam-se os aspectos das nossas
relações hierárquicas cotidianas, pois, somos o que comemos. (MARCENA, Op.cit. , p. 63).

Sob o véu abrasante da simplicidade rústica, embalado por um humor festivo


e alegremente revestido de sol, o comer dos sertanejos é um dos cartões
postais mais fortes de sua cultura, verdadeiro elemento da sua identidade
cultural que se transforma em atrativo turístico e se apresenta aos visitantes
como um retrato da personalidade sertaneja. Tal personificação vai desde a
seleção dos alimentos, passando pelo modo de prepará-los, até a maneira de
comê-los.
O comer dos habitantes do sertão nordestino não se destina a agradar olhos e
bocas curiosas que visitam a região, ao contrário, são alimentos consumidos
diariamente pela população, com notória vivacidade identitária ao revelar
uma das faces da essência da vida individual e coletiva dos sertanejos.
Quando comemos no sertão, muitas vezes somos obrigados a concordar que a
comida é mais ‘gostosa’ quando está mais próxima da natureza que da
ciência.
Os europeus que se aventuraram pelos bravios sertões – caçando índios e
africanos, em busca de mão de obra escrava e de ouro ou transportando a
gadaria – tiveram que criar novas formas para conseguir os alimentos que,
muitas vezes, se apresentavam bastante diferente do que estavam
acostumados a comer.
Em suas idas e vindas pelos sertões, esses europeus aos poucos foram
plantando novos sabores na culinária da região – sabores de produtos por eles
conhecidos e trazidos para a América – que se fundiram com a prática
culinária existente através da tradição dos grupos indígenas que ocupavam o
interior do Nordeste.
A distância geográfica que o sertão se encontra das regiões portuárias, somada
às dificuldades em se transitar pelas precárias vias de acesso, permitiu a
manutenção dos costumes que foram estabelecidos desde os primórdios da
‘invenção’ do Brasil. O que temos nos sertões nordestinos é uma boa
ressignificação de múltiplos aspectos das culinárias ibéricas e indígenas.
Não obstante, esses costumes que envolviam confrontos entre indígenas do
interior e ibéricos do além-mar, fincados no âmago da sociedade sertaneja ao
longo da nossa formação, permitiram o nascimento de uma cozinha com
traços peculiares dentro do território nacional.
Apesar da troca cultural que se intensificou na segunda metade do século XX
com a forte presença dos produtos oriundos da indústria da comida, a
alimentação dos sertanejos, sobretudo das zonas rurais, não teve suas bases
alteradas. Contudo, é evidente a presença de novos ingredientes, enlatados,
temperos e técnicas inéditas no modo de preparar os alimentos, além do
surgimento de novos sentidos simbólicos para tais apropriações dos de-
comeres.
Isso vem a calhar com o processo da dinâmica cultural de uma população ou
de um determinado grupo que, apesar de se apresentar de forma fixa, sofre
alterações no seu existir cotidiano.
O não desmantelamento das bases do padrão culinário dos sertões nordestinos
nos permitiria pensar em uma possível resistência identitária por parte dos
sertanejos, mantendo seu patrimônio gustativo como uma das suas mais
expressivas referências simbólicas.
Finalmente, existe uma culinária no sertão nordestino que apresenta bases
sólidas? Sim. Isso não implica em negar sua constante recriação, sua
autonomia mutável através da reinvenção da população em criar novos
significados para o que vai às bocas em suas múltiplas vivências sociais.
No cangaço também vai prevalecer os conceitos de alimento (necessidade
biológica) e comida (identidade cultural, pertencimento) em diversas festas e
[xv]
comemorações após batalhas vencidas contra as forças das volantes.
Os cangaceiros consumiam uma culinária herdada do amálgama
etnogastronômico que se dispersa e se intensifica pelas cozinhas brasileiras.
Em suma, a cozinha nordestina traz a marca do seu processo histórico e
cultural revelando as diferenças do que se come no litoral e de partes da zona
da mata.
Entendemos que a geografia do semiárido contribuiu, porém não determinou
o que consta no cardápio sertanejo, todavia, é evidente que a questão
geográfica do sertão estabeleceu em suas bases a ausência de alimentos
oriundos do mar e dos manguezais, com isso, peixes de água salgada,
crustáceos e alguns moluscos não constam na mesa sertaneja com o mesmo
fervor litorâneo.
Sendo a cozinha um microcosmo da sociedade e uma fonte inesgotável de
saberes históricos, é importante que algumas das suas produções sejam
consideradas como patrimônio gustativo da sociedade ( SANTOS, 2011, p. 103).

O cangaço, por ser originário do complexo cultural do sertão, não está fora
deste contexto, pois em suas andanças, quase inacabáveis, manteve o quanto
pode em suas refeições o que já estava entronizado no paladar de cangaceiros
e cangaceiras não apenas para ‘matar a fome’, mas, também, por questões que
passam pela afirmação de identidade que define o sertanejo.

3.2 Tríade primordial: f arinha, rapadura e carne assada


Seria possível, apesar de todos os riscos que corremos em tal afirmação,
sugerir uma tríade primordial que envolvia a alimentação entre os
cangaceiros? E que esta estaria fincada na farinha de mandioca, na rapadura e
na carne assada? Importante salientar que tal asserção não descarta a presença
de alimentos no cardápio andante dos cangaceiros.
Referente ao ‘encontro’ ou desencontro nas terras que originaram o Brasil, o
índio entra com a farinha de mandioca e suas técnicas de preparo de carne no
moquém ou diretamente no fogo, e os europeus com a rapadura, e também
com seus modos de preparar carnes e vegetais. O cangaço, como fruto da
sociedade sedentária, também beberá do caldo desta fusão culinária.

3.2.1 Farinha de mandioca


Criada inicialmente pelos povos indígenas, a farinha de mandioca foi trazida
do litoral para as terras do sertão nordestino. Sua aclimatação se deu
lentamente, mas uma vez consolidada, enraizou-se nos hábitos culinários da
população que se formava com o avanço das tropas lusas em busca das terras
indígenas para a criação de gado e a fundação das fazendas.
Mandioca (Manihot esculenta ), da família das euforbiáceas, é arbusto que
apresenta raiz com alto valor energético, visto que cada 100 gramas possui em
média 150 calorias, além de sais minerais como cálcio, ferro e fósforo, e
vitaminas do Complexo B.
Rica em amido, mais com pouco teor de proteína, os derivados da mandioca
nutriram tanto as populações indígenas com cauim, mingaus, farinha de
mandioca e beijus quanto parte da população brasileira ao acrescer à lista
tapiocas, bolinho de mandioca, bolos, farofas e pirões.
Vale salientar que nas regiões Nordeste e Norte brasileiros, quando se fala em
farinha está se referindo à farinha de mandioca e não farinha de trigo, com
exceção dos profissionais como padeiros, pasteleiros, confeiteiros e boleiras
que manuseiam diariamente como ingrediente para seus preparos
profissionais.
Mas não se fazia farinha apenas da mandioca, mas também à base de coroa-
[xvi]
de-frade que, ralada, obtinha-se o farináceo. Presente na paisagem do
semiárido, a transformação da coroa-de-frade em farinha evidencia uma
prática corrente na zona rural sertaneja no decurso das grandes estiagens que,
possivelmente, fora adotada pelos cangaceiros. Contudo, em uma ocasião de
fome intensa, a coroa-de-frade in natura também era engolida.
Lembremos que em grandes períodos de estiagem o mandacaru ( Cereus
jamacaru ) é retirado, passado rapidamente no fogo para queimar o espinho e
depois tem a polpa extraída para servir de comida. Em algumas regiões do
sertão nordestino o mandacaru se transforma em ingrediente para fabricação
de doce.
A farinha de mandioca, além de alimento indispensável para os cangaceiros,
era utilizada como emplastro, ou seja, unguento, para tratamento de tumores.
Muitos cangaceiros faziam a chamada cataplasma de farinha , que consistia
em colocar a farinha de mandioca quente sobre as feridas dos cangaceiros
[xvii]
lesados em combates.
Dadá, mulher do cangaceiro Corisco, fez uso de um emplasto com farinha de
mandioca na tentativa de curar um abscesso no braço do marido, ferido por
bala em 1939. Neste caso, a farinha de mandioca quente, “funcionava como
um vaso dilatador local, possibilitando uma maior irrigação sanguínea e
chegada de células de defesa que ao liberar moduladores químicos
contribuiriam para a resolução do quadro” (ALMEIDA, 2006, p. 115).

3.2.2 Rapadura
Em definição rápida, a rapadura seria açúcar mascavo em tablete, feito com o
caldo de cana bastante aquecido e bem batido que é colocado em pequenos
moldes de madeira para esfriar.
Embalada em papel ordinário ou em fibra do tronco da bananeira, a rapadura
é mais que isso. Muito provavelmente, a rapadura foi o primeiro doce capaz
de constituir uma identidade nordestina que resistiu de maneira mais intensa
aos anseios das novas gerações e, dentre todos os existentes, incluem-se aí
alfenim, alfelô, doce de batata de umbu, de leite e o chouriço doce, é sem
dúvida um dos mais populares nos sertões do Nordeste do Brasil.
A rapadura é filha dos modestos engenhos de rapadura, outrora usuais nos
sertões, próprios para fins comerciais, diferente dos engenhos de produção de
açúcar mais próximos do litoral que a produziam para o consumo local.
Trazida pelos ibéricos, os espanhóis já a produziam nas Ilhas Canárias desde
o século XVI e a exportaram, a partir do século seguinte, para toda América
espanhola, sendo encontrada em Honduras, México, Cuba, Peru e Panamá.
Rapadura ou raspadura reinou absoluta durante muito tempo, sendo, hoje em
dia, preferida em alguns lares nordestinos, ainda com a nobre função de
merenda rápida, saboreada ao natural, como bom motivo para beber água ou
para adoçar café, coalhadas, frutas, ponches, doces e até bolos. Parece
estranho aos nossos hábitos, mas a rapadura, misturada com o tutano de boi,
era servida como sobremesa no Nordeste brasileiro.
A rapadura possui bons níveis de vitaminas A, C, D, E, vitaminas do
complexo B e PP, além de importantes minerais, como cálcio, ferro, fósforo,
potássio, cobre, zinco, manganês e magnésio. Os nutrientes oferecidos pela
rapadura têm ligações diretas com exercício físico, logo, é alimento
apropriado para repor o desgaste das longas andanças, sem contar com sua
densidade energética: cerca de 100g do produto fornece 132 Kcal e quase
80mg de sacarose.
A rapadura temperada , socada ou batida, é temperada com canela, erva doce,
diferenciando-se da tradicional, sem tempero algum.
A rapadura sofre forte discriminação em outras regiões do País, recebendo o
rótulo de alimento pobre, desprovido de requinte, comida de gente inferior
por estar associada aos nordestinos.
Caçadores levavam seus tacos de rapadura para mastigarem o tempo ao
ficarem à espera da caça. Viajantes sertanejos não as dispensavam em suas
longas travessias. O pequeno tablete de açúcar mascavo também constava nos
bornais cangaceiros que, além de ser saborosa, repunha as energias gastas nas
andanças do cangaço.

3.2.3 Carne Assada


A milenar técnica de moquear carnes de caça e peixes já era utilizada pelos
povos indígenas para assar lentamente carnes sobre grelha de paus, bem
acima do fogo, com a finalidade de desidratá-las.
O peixe moqueado, pilado com farinha de mandioca, se transformava em
farinha de guerra que os indígenas chamavam paçoca . Esta simples invenção
culinária lhes permitia repor as energias durante os combates com as tribos
rivais.
Pereira da Costa registra que a paçoca era “comida sertaneja feita de carne
secca ou de sol, assada, e pisada ao pilão com farinha de mandioca, e servido
à mesa com banana” . Outra mistura interessante, registrada em
(COSTA, Op.cit. , p. 564)

Afogados da Ingazeira, era “rapadura, carne de bode e paçoca” (Idem).

Inicialmente, o açúcar vigorou nas terras do litoral, da mata e do agreste


nordestinos, demorando a chegar ao sertão, local reservado às fazendas de
[xviii]
criação de gado para o fornecimento de carne.
Devido às dificuldades apresentadas para a implementação inicial do cultivo
da mandioca e do milho, a ocupação da gadaria nos sertões nordestinos
possibilitou que o leite e a carne de gado ocupassem lugar de destaque na
base da alimentação da sociedade sertaneja que se formava . Nascia a
(DÓRIA, 2014, p. 83)

relação entre carne de gado e carne de bode entre os sertanejos.


A carne poderia ser conservada no sal, procedimento trazido da Europa pelos
ibéricos, permitindo que, enquanto estivesse crua, demorasse mais para
apodrecer, contudo, uma vez assada, além de estar pronta para o consumo
imediato, teria maior durabilidade.
[xix]
A carne de charque ou simplesmente charque , é carne de gado não muito
macia, porém sem osso, cortada em mantas que são salgadas e colocadas para
secar, com muita apreciação nas mesas dos sertões.
É específica para vários preparos culinários e figura como ingrediente do
feijão diário ao lado do jerimum, na famosa dupla jerimum com charque, com
uma multidão de apreciadores. Mas a charque também está presente no
cozido de carnes, conferindo um sabor próprio ao prato.
Apenas frita no óleo tem grande uso como acompanhamento para cuscuz,
batata-doce, inhame, cará e macaxeira, este último forma o clássico macaxeira
com charque .
A carne de sol, outrora denominada carne do sertão , é pedaço de carne macio,
em média com um quilo, que recebe alguns talhos horizontais para a
penetração do sal que, depois, era pendurada para secar ao sol.
A técnica inicial de desidratá-la ao sol raramente é utilizada nos dias de hoje,
isso se deve a inúmeros fatores que vão desde os aspectos sanitários até a
necessidade de vigilância constante do produto exposto. Há anos que se
desenvolveu um controle mais preciso da fabricação da carne de sol que são
salgadas e deixadas em abrigos ventilados para secarem gradativamente.
Carne de sol acompanhada de feijão, arroz, farofa – que pode ser à base de
jerimum – macaxeira frita, molho verde, algumas fatias de queijo coalho frito
e uma manteiga de garrafa para realçar o sabor, é imbatível no almoço de
alguns sertanejos. No jantar, se serve carne de sol acompanhada de macaxeira,
cuscuz, batata-doce ou inhame e, ao derramar o óleo de sua fritura sobre os
outros componentes já colocados no prato, realça-se todo o sabor da refeição.
Tudo indica que diante do grande número de cangaceiros e cangaceiras no
coito de Angico, em 1938, foi muito alto, pois “somente bodes foram 36!”
. Lampião também encomendou uma boa manta de “carne-de-sol
(MACIEL, 1987a, p. 36)

ou carne-do-sertão” (Idem).

O consumo diário de carne entre os sertanejos não se limita às


tradicionalíssimas carnes de sol e de charque, com preços sempre mais
salgados que as próprias, mas à carne de gado ao natural, carne verde , bem
temperada, guisada ou assada. Aliás, em algumas partes dos sertões chama-se
carne assada aquela frita em óleo ou assada em brasa e não a preparada no
forno como é mais comumente denominada perto das pancadas do mar.
Os indivíduos do cangaço encontravam na carne sua principal fonte de
reposição protéica. Uma vez assada ou mesmo guisada, esta última menos
frequente nas andanças cangaceiras, era lentamente mastigada no canto da
boca para absorver o precioso caldo, ligeiramente intrincado com o sal, que
interagia com a farinha de mandioca formando um bolo alimentar que era
quebrado pelo acréscimo do rapaduresco doce.
No nosso imaginário gustativo de nordestinos, a carne de sol somente é boa
em sabor se for produzida em cidade do interior, preferencialmente sertaneja.
Esta crença soa como sentença da tradição, sendo válida, também, para a
carne de bode, farinha de mandioca, doces, queijos coalho, manteiga e raspa
de tacho, e uma infinidade de iguarias.
Esses valores simbólicos são tão enraizados na cultura nordestina que ao nos
defrontarmos com um restaurante que se intitula regional e não oferece carne
de sol em seu cardápio beira à ofensa.
Ao acreditarmos em tal assertiva, conferimos ao sertão um possível status de
resistência através da permanência de algumas comidas, assim, os sertanejos
do Nordeste brasileiro seriam uma espécie de guardiões da nossa memória
festiva do que comemos.

Farinha de mandioca, rapadura e carne assada são comidas que apresentam


algumas características favoráveis para o cotidiano cangaceiro: fáceis de
transportar, cabendo nos bornais; prontas ao consumo imediato, neste caso
evitando cessar a caminhada para preparar o de-comer; conservam-se por
grande período de tempo, evitando a deterioração repentina; repõem os
nutrientes necessários aos humanos, além de estarem devidamente
consolidadas nos quatro cantos da memória do gosto sertanejo.

4. Raspando o tacho
4.1 Acender fogo: no rastro da cozinha cangaceira
A ocupação humana dos sertões nordestinos do Brasil, antes da chegada dos
[xx]
europeus no século XVI, se deu pelos povos indígenas que haviam
[xxi]
convivido e dominado parte da geografia local ao longo de séculos.
Herdeiros de boa parte dos seus conhecimentos destes indígenas, os sertanejos
sempre detiveram um amplo saber geográfico ligado aos tipos de solo para
agricultura, conhecimento apurado das estações de chuva e das safras,
habilidades de plantio e colheita, de caça e pesca, além da seleção de animais
e vegetais que poderiam ser comidos diretamente e os quais deveriam passar
por transformações – assar ou cozer – para se tornarem comida.
Entretanto, não podemos reduzir a formação sertaneja apenas à herança do
índio ou dos elementos trazidos pela cultura lusa ou mesmo por alguns povos
africanos. É importante perceber que a construção cultural é consequência da
trituração contínua do tempo através das múltiplas reinvenções cotidianas
concebidas pelas gerações. Ao se fortalecer, essas reinvenções deixam
transparecer o que somos enquanto sujeitos simbólicos, além de expor a
fragilidade dos fios que nos conectam com as nossas origens.
O cotidiano cangaceiro era andante, bandos inteiros muitas vezes embreados
na caatinga a cruzar mormacentos lajedos e afiados espinhos da paisagem
inquieta e áspera de sol.
Os grupos seguiam em frente – carregados de armas, munição e apetrechos
[xxii]
diversos – fosse caminhando, montado em cavalos, jumentos ou muares por
léguas sem-fim pelas encompridadas veredas sertanejas.
Contudo, ao chegar a um coito seguro, permitia-se serenar os ânimos,
exercitar o lúdico, avaliar os combates, reabastecer estômagos e cartucheiras
para repor as forças perdidas nas longas refregas e andanças: “despreocupado,
em coitos de segurança, tratava de quebrar a monotonia do tempo com o
carteado – o 31 a dinheiro, com boca de até 1 conto de réis – a luta romana
entre recrutas e as brigas de cachorro” (MELLO, 1993, p. 90-91).

Mas os coitos não permitiam que os bandos se estendessem em suas estadas,


pois uma vez parados por muito tempo, tornavam-se vulneráveis aos ataques
da polícia.
Era prática de Lampião não se demorava nos coitos e, no terminante coito de
Angico, lugar onde o Capitão marcara uma reunião para encontrar com seus
subgrupos, “os cangaceiros tinham a intenção de ficar somente poucos dias,
pois a prudência os levava a se mudarem freqüentemente, para evitar a
captura” Mas, a demora em Angico foi fatal.
(CHANDLER, 2003, p. 288).

Aliás, os coitos, rede de apoio providenciada pelos coiteiros para abrigar os


bandos durante seus deslocamentos, exerciam importante papel no cangaço,
pois possibilitavam aos bandos um local de descanso, abrigo, esconderijo,
acesso a comidas mais elaboradas, obtenção de munição e de alimentos para
estoque, informações sobre a posição das volantes e dinheiro.
Havia tanto os coiteiros ricos quanto os menos abastados. Os primeiros eram
formados por “grandes fazendeiros, negociantes e chefes políticos abastados,
alguns oficiais da polícia; e os pobres, formados por vaqueiros, agricultores,
pequenos fazendeiros, negociantes e outras pessoas que tinham pouca
influência” (VIEIRA, 2012, p. 36).

Na relação com os coiteiros mais ricos, exceto os policiais, Lampião vendia


seus serviços de proteção às propriedades e recebia em troca dinheiro, isso
quando mandava pedir, além do fornecimento de alimentos ).
(VIEIRA, Op. cit. , p. 30

Um dos confessores de Lampião, o padre José Kherle, lembra que o


cangaceiro-mor era protegido dos chefes políticos e dos grandes donos de
terra que, em troca dos serviços prestados, recebia “armas e mantimentos” (MELLO,
2004, p. 384).

Em entrevista ao médico Octacílio Macêdo, em 1926, no Ceará, Lampião


refere-se aos coiteiros como protetores e assinala que “por toda parte com
bons amigos, que me facilitam tudo e me consideram eficazmente quando me
acho muito perseguido pelos governos” (MACÊDO, 1926).

Mas como uma pessoa simples podia se tornar um coiteiro de Lampião? O


que se exigia para que um indivíduo passasse a assumir um dos cargos mais
importantes na dinâmica do cangaço, no período de Lampião: “um indivíduo
podia passar a ser conhecido como coiteiro apenas por ter dado uma caneca
de água a um cangaceiro” (AMAURY e FERREIRA, 1997, p. 18).

Como se vê, não era um cargo muito complicado de ser alcançado, mas as
consequências poderiam ser terrivelmente duras, pois “ser considerado um
coiteiro era motivo suficiente para ser perseguido pelas forças oficiais” (AMAURY e
FERREIRA, Op. cit. , p. 18).

A depender do poder econômico e político que os indivíduos tivessem, eles


não sofreriam perseguições das forças do governo, mas caso fossem pobres e
sem prestígios nenhum “estavam sempre sujeitos a terríveis castigos físicos e
até a serem mortos pelas forças oficiais” . (Ibid)

Como quase tudo no cangaço é dicotômico, a figura do coiteiro não poderia


escapar ilesa. Percebe-se que os coiteiros aparentemente só queriam ajudar os
cangaceiros e tirar proveito de suas causas, mas uma visão oposta os remete à
figura dos grandes traidores do cangaço.
Em 1944, o ex-cangaceiro Cacheado, preso na Penitenciária de Salvador-BA,
juntamente com Volta Seca, Ângelo Roque, Saracura, Deus te Guie e Caracol,
diz em entrevista a Joel Silveira que “quase todo dono de fazenda era coiteiro.
Os coiteiros sempre foram a nossa perdição. Eles nos davam dinheiro, comida
e munição. E eram sempre eles que nos entregavam aos macacos (policiais)”
(VIEIRA, Op. cit. , p. 30).

Os coitos tanto permitiam que os cangaceiros recebessem alimentos


preparados direito das cozinhas dos coiteiros, como acendessem fogo e
preparassem seus de-comeres. O coito seguro permitiria práticas de
sociabilidades mais tranquilas, sobretudo, no que diz respeito à comida.
Quando a comida era pouca, se dividia a porção de uma refeição entre dois ou
mais cabras do bando. Cangaceiro não comia sozinho, em profundo regozijo
do ego gustativo, mas em grupo, dividindo o comer e mastigando lentamente,
aquele momento social. Nada mais que a reprodução de práticas da sociedade
sedentária. O próprio Lampião, por exemplo, em certa fase do cangaço,
“repartia sua comida com o cangaceiro Volta-Seca” (CHANDLER, 2003, p. 213).

Apesar de andejo, o cangaceirismo não permitia uma relação direta com a


agricultura, quer dizer, plantar na ida para colher na vinda . Não havia rota fixa
nem muitos menos caminhos instituídos na cartografia cangaceira, mas sim
uma diversificação de rumos, múltiplos atalhos que pareciam infindáveis por
trilhas repentinas que muitas vezes se tornavam inesperadas, embora
findassem no local desejado.
O exercício da técnica agrícola de plantar e colher era incompatível com o
andarilhar cangaceiro. Uma vez cangaceiros, os indivíduos, ainda que não
plantassem, não perdiam suas ligações com as dinâmicas da zona rural,
grande centro de produção alimentar.
[xxiii]
Um dos episódios mais conhecidos dos ‘meninos’ de Lampião envolve o
ato de comer. Trata-se da reclamação de um cangaceiro, recém-chegado ao
grupo, denunciando que a comida que fora servida ao bando por uma senhora
estava insossa. Após a reclamação, Lampião pediu todo o sal que havia na
casa e o obrigou a comê-lo.
Em uma das versões, o Capitão, após o cangaceiro se empanturrar de sal sem
ter o direito de beber água, o expulsa do bando, ameaçando, inclusive, matá-
lo se o encontrasse novamente.
Em outra versão, além de ter obrigado cangaceiro a ingerir grande quantidade
de sal, o capitão o leva à morte após forçá-lo a abraçar várias vezes uma
árvore repleta de espinhos. Conta-se que alguns cangaceiros também sentiram
que a comida estava muito insossa, inclusive o próprio Lampião.
Apesar de não haver comprovação documental do incidente do sal na
historiografia do cangaço, pelo menos até o momento, a passagem está
presente na tradição oral, o que não deixa de ter grande importância, e é
reinventada pelo imaginário popular cada vez que recebe uma pitadinha de
sal.
O acontecido, dessa forma, evidencia a falta de humildade do jovem
cangaceiro, além do desrespeito à senhora que oferecera sua casa como apoio
para o bando e ofertara alimentos aos famintos cangaceiros.
Também serve para demonstrar o princípio de justiça presente no caráter de
Lampião ao punir o cangaceiro de forma exemplar.
A comida que consta no cardápio do fato, às vezes, é uma galinha e, outras,
um bode e, até mesmo um caldeirão de sopa. Em certos causos, é acrescido
[xxiv]
um punhado de sal e não todo o sal da casa.
O sal, inicialmente conservante e depois tempero, quando ausente no preparo
de uma comida, revela sua importância, pois preparar um prato destituído de
sal é desprovê-lo de um dos ingredientes que forma nossa memória gustativa,
[xxv]
além de negar suas propriedades organolépticas.
Para nós, nordestinos, comida sem sal, insípida, não consta na memória
festiva do gosto, porque comida insossa é refeição de ‘doente’ que deve
ingeri-la por necessidade terapêutica. É lembrança entediante do estado
enfermiço que acompanha, muitas vezes, os menus tristonhos dos hospitais.
Longe de querermos fechar a questão, lembremos alguns itens: Lampião,
provavelmente não mataria um de seus homens por ter reclamado de um
acepipe insosso. Uma boa lição de moral seria o suficiente para deixar claro
quem mandava no grupo.
Possivelmente, Lampião não comeria em casa que não conhecesse e, além do
mais, pouca gente se atreveria a oferecer-lhe uma preparo culinário destituído
de um tempero equilibrado para os paladares sertanejos.
Se o sal estava ausente da comida oferecida, em outra passagem, seu excesso
levou os cangaceiros a se encher de água. Certa vez, em 1921, Sinhô Pereira
conversava com Optato Gueiros, sargento da volante pernambucana, na casa
de dona Sinhá Pereira, prima do cangaceiro.
No meio da conversa, um dos integrantes do bando de Sinhô Pereira explicou
o motivo dos cangaceiros estarem sedentos e tomarem vários canecos d’água:
“matamos um veado, comemos com muito sal, desandamos a lapear e o
resultado é esta sêde danada…” . (MACÊDO, 1970, p. 46)

Algumas passagens registram a forma como os bandos agiam em busca da


comida. Sinhô Pereira resume o cotidiano dos bandos ao afirmar que eram
feitas “travessias fortes, navegando de um lado para o outro, a fome e a sede
inseparáveis, eis a vida no cangaço” . Nessas situações, se
(MELLO, 2004, p. 148)

alimentavam precariamente: “afinal, tratava-se de vida longamente exposta ao


desgaste da alimentação irregular, do sono escasso e entrecortado de sonhos
intranqüilos, do bom beber e do fumar desatado” . (MELLO, Op.cit. , p. 324)

Por volta de 1927, pouco depois do fracassado ataque a Mossoró-RN,


Lampião enfrentava graves problemas com o bando, visto que alguns foram
mortos em combate, outros feridos e tantos outros debandaram.
Após caminharem até meia-noite, em busca de um abrigo seguro, os
cangaceiros “cansados e famintos, receosos de dormir, descansaram durante
algumas horas” .
(CHANDLER, 2003, p. 131)

Antes do amanhecer, ainda estavam em um atalho, mas, poucas horas depois,


acharam um lugar onde puderam montar acampamento. . (CHANDLER, Op. cit. , p. 131)
O bando, sem fazer barulho e sem acender fogo, permaneceu ali por todo o
dia e se estendeu pela noite. Após encontrarem um vaqueiro, Lampião o
obrigou a servir de guia para o bando que seguissem para um lugar chamado
Vaca Morta, ainda na bacia do rio Jaguaribe . Passaram o dia seguinte em
(Ibid)

vigilância e com estômagos em ruínas, pois só tinham encontrado um pouco


de farinha, queijo e peru, com que tiveram de saciar a fome de todo o bando
.
(Ibidem, p. 132)

Pelas brechas dos rincões do cangaço, fica evidente que a lida diária dentro de
um bando era repleta de alguns sacrifícios. Não são poucos os relatos de
alguns ex-integrantes que se referem ao tempo da cangaceirada como
‘sofrimento’, ‘perseguição’, ’não era cosia boa’.
A vigilância constante, em momentos de tensão, não permitia que os
cangaceiros comessem com tranquilidade. Permaneciam de pés, graças a um
punhado de farinha arremessado e uma ruída rápida na rapadura que, juntos a
um taco de carne já preparada, formavam uma espécie de bolo que remoia no
canto da boca, envolto em quantidades mínimas de líquido.
Em agosto de 1929, Lampião e seus cabras se desembestam na rudeza
inexaurível das areias do Raso da Catarina, área localizada na zona de
transição entre os climas árido e semiárido do sertão baiano.
A desertificação da paisagem é impiedosa à resistência humana, mas isso não
impediu que os cangaceiros avançassem diante das dificuldades do ambiente.
Apesar das cabaças estarem munidas de água até a boca, os cangaceiros
poupava-na e seguiam chupando um “taco de rapadura, evitando assim maior
sede” A sede era medonha e, para engolir farinha seca, era preciso
(MACIEL, 1987, p. 31).

ajudá-la a descer com alguns goles d’água (MACIEL, Op.cit. , p. 31).

O de-comer era formado basicamente por farinha de mandioca, rapadura e


carne assada, desidratada no fumeiro ou conservada em sal, como a carne de
bode, de gado ou carne de sol muitas vezes preparada na batata do umbuzeiro.
[xxvi]

Os exemplos acima servem para ilustrar a inconstância alimentar que marcava


[xxvii]
as duras andanças cangaceiras pelos sertões nordestinos.
Os rastros deixados pelo cangaço, muitos deles orais, sejam em depoimentos
de cangaceiros, dos membros das volantes, dos moradores ou dos coiteiros,
[xxviii]
relevam a relação dos bandos com o conseguimento dos alimentos.
Se o cangaceiro morava debaixo do chapéu de couro, os bornais e as cabaças
eram seus compartimentos para armazenar mantimentos, espécies de
despensas ambulantes e pessoais que muitas vezes se apresentavam providas
de víveres, e os cantis, tornavam-se suas jarras, bilhas ou quartinhas de água.
Tais detalhes possibilitam um olhar atento ao encontro cotidiano entre a vida
andeja do cangaço e sua relação com o ato de comer.
O fato dos cangaceiros carregarem, encangados no corpo, o que precisavam
para suas sobrevivências diárias, não significava, necessariamente, que
estavam impossibilitados de consumirem outros gêneros alimentícios que não
constavam em seus bornais. Em muitas situações, a mesa se apresentava farta
e segura e, ao invés de esvaziarem seus farnéis ao consumir as comidas
armazenadas, os enchiam cada vez mais ou, como acontecia muitas vezes,
conseguiam dinheiro para reabastecê-los quando necessário.
Ao rasgar os sertões em espichadas caminhadas, a cangaceirada fazia grande
uso da rapadura, da farinha de mandioca e da carne assada. Eram itens
alimentares suficientes para repor parte da energia perdida nas andanças
constantes e fugas repentinas.
Chupada ou roída, a rapadura deglutida, adoçava os escabrosos caminhos
ainda a ser percorridos pela vastidão sertaneja. Remoer um pedaço de carne
no canto da boca, na tentativa de sorver-lhe o suco, em insistente mascar
contínuo, juntamente com um punhado de farinha de mandioca arremessado
no céu da boca, permitia a formação de um bolo protéico que também servia
de consolo ao gosto.
Colocar uma panela no fogo para preparar alimentos é prática comum em
vários agrupamentos humanos há milênios, todavia, entre os cangaceiros essa
experiência exclusivamente humana não era praxe cotidiana. Lembremos que
acender fogo para cozinhar a céu aberto deixava vários indícios dentro do
mato, que iam desde a fumaça denunciante até os vestígios residuais dos
alimentos consumidos. Era prato cheio para a polícia.
Como em qualquer grupo humano, a alimentação recebia atenção especial e,
por mais inesperado que se apresentasse o cotidiano cangaceiro, o que
municiaria as bocas merecia cuidado especial.
Cauteloso, Lampião designava cangaceiros para se dedicar à preparação dos
alimentos existindo uma espécie de rodízio entre os mais hábeis no trato com
,

o preparo da comida, pois sabemos que com fome os bandos tornavam-se


vulneráveis e viravam presas fáceis das volantes. Poderiam até não temerem a
morte, mas a fome era prenúncio que ela estava sempre à espreita.
Um dos preparos que se acredita ter integrado a culinária cangaceira é o Bode
enterrado e, segundo depoimentos orais, fora utilizado pelo bando de
Lampião.
O modo de constituir o prato envolve interessante técnica de cozimento, então
utilizada pelos cangaceiros para evitar deixar rastros fumacentos e vestígios
da sua preparação.
O prato inicia com a retirada das vísceras e do sangue do animal. Em seguida,
[xxix]
cortam-se as carnes com ossos e tempera-se com sal. Depois, se envolvem
as carnes com ossos no bucho, ou seja, no estômago do animal, para deixá-lo
em formato de uma trouxa com sequência de dobras que permita desenterrá-lo
sem entrar em contato com a areia. Acende-se fogo em toras de madeira de
aroeira ou jurema, lenhas que produzem queima lenta e grande dispersão de
calor, e cava-se um buraco com 40 cm de profundidade. Forra-se o fundo do
buraco com as primeiras três pás de brasa, depois uma camada de terra, o
estômago envolto na pele, uma camada de terra, mais brasa e a camada final
de terra. Para finalizar, faz-se uma fogueira sobre o buraco fechado para
camuflar o preparo culinário e o deixa por 12 horas até completar o
cozimento. Abre-se o buraco, retira-se o bode que estará pronto para ser
comido. O Bode enterrado é, literalmente, preparado na ida e comido na volta.
Caso o tempo esfrie ou a chuva se faça presente no local, o tempo de
[xxx]
cozimento terá que ser aumentado devido à umidade na terra.
Percebe-se que precisava de certo tempo disponível para a feitura do bode
enterrado , não podia ser comida pensada em dias de grandes correrias, com
as volantes nos calcanhares.
Sinhô Pereira, primeiro chefe de Lampião, em entrevista, declara: “raro o dia,
na caatinga, em que podíamos nos dar o luxo de uma xícara de café.
Cangaceiro não levava café. Rapadura, farinha, carne, sim, que era o
[xxxi]
essencial” .
(MELLO, Op.cit. , p. 148)

É corrente uma versão em parte do sertão, confirmada por ex-cangaceiros,


sobre a forma como Lampião e seu bando faziam café em meio às
perseguições da polícia e a falta de ferramentas apropriadas para seu preparo.
Estava longe de ser o velho café coado tão comum em muitas mesas do
Brasil:
Faziam um fogo em um buraco e colocavam um seixo para aquecer. Em uma
caneca ou copo juntavam o pó do café, o açúcar e o a água em temperatura
ambiente. Quando o seixo ficava aquecido, lançava-o, de imediato, dentro da
caneca, aquecendo a água. Frio, o seixo era retirado, a caneca era mexida para
adoçar o café e em seguida se bebia. O buraco era fechado para evitar o
rastro.
(MARCENA, 2015, p. 206).

Em nossas andanças pelas terras da etnia Xukuru, Pesqueira-PE, ouvimos


vários depoimentos do café esquentado no seixo , tradição vivida pelos
antepassados dos índios, não sendo, provavelmente, uma criação do cangaço,
mas antes, uma incorporação dos hábitos ameríndios.
Um dos documentos curiosos é a gravação realizada por Benjamim Abrahão
do bando de Lampião, em 1936.
Apesar de estarem simulando algumas ações do cotidiano do cangaço, eles
comem, exibem seus pratos e utilizam colheres; se pega água no riacho em
um pote de barro e se abastecem as cabaças; abate-se um carneiro e Lampião
[xxxii]
penetrar a lâmina do seu punhal no pescoço do animal.
Os bandos pareciam incansáveis e não mediam esforços, dia e noite, em busca
de um abrigo seguro e, antes de chegarem à segurança oferecida pelos
coiteiros, armavam guaridas no meio do mato noturnal, montava-se vigilância
e ali permaneciam até o entreabrir do sol.
Para minimizar os efeitos do cansaço em seu bando, Lampião costumava
caminhar à noite, devido ao clima, que provocaria menos desgaste físico e,
acrescente a isto, o fato das forças volantes estarem, normalmente, em
repouso noturno.
Durante o período das grandes estiagens, em que a secura da terra se torna
impiedosa, Lampião procurava “locais mais favorecidos, principalmente na
região san-franciscana (sic) de Sergipe, onde a sêca custa a chegar” (LUNA, 1963, p.108).

Quando arranchados e sem perseguição, “aí sim, preparavam uma terceira


[refeição], o almoço” (OLIVEIRA, 2002, p. 63).

Antes de atravessarem o São Francisco para se dirigirem à fatídica grota de


Angico, isso em julho de 1938, Lampião e seu bando desfruta de mesa farta
em derradeiro jantar na fazenda Bonito: “pirão de farinha de mandioca
mexido com ovos cozinhados moles e peixe d’água doce, seguido de
suculentas tapiocas de coco e café” […] A variedade de comidas
(MACIEL, 1987a, p. 28).

disponíveis indica que são preparos característicos de um coito.


Em 1937, ao ser levada pelo bando de Zé Sereno, subgrupo de Lampião, Ilda
Ribeiro de Souza , conhecida como Sila, ainda mocinha e muito aflita com o
rapto inesperado, caminhou por longo período no primeiro dia, juntamente
com o grupo de cangaceiros e Neném, a única cangaceira.
Perto do meio-dia eles pararam: “assaram carne e a comeram com farinha de
mandioca. Eu não me alimentei; não tinha fome, estava desolada” . (SOUZA, 1997, p. 29)

Depois da primeira noite com o bando de Zé sereno, Sila descreve, pouco


depois do amanhecer, que o bando parou em uma fazenda e lá os cangaceiros
prepararam a comida.
Neném, mulher do cangaceiro Luís Pedro, a chamou e disse: “– Menina
venha comer, que assim, andando, sem se alimentar, ficará fraca e vai
adoecer… coma alguma coisa” . Aqui, ficamos sem saber o que fora
(Ibid)

preparado para ser comido.


Contudo, em uma passagem à frente, Sila registra que durante uma longa
caminhada sob a inclemência do sol, Zé Sereno vez ou outra se aproximava
dela e oferecia-lhe “um cantil com água, ora um pedaço de rapadura ou um
punhado de farinha” . (Ibidem, p. 31)

Em suas memórias, a ex-cangaceira lembra, também, que certo dia,


“comemos à vontade, pois a comida era farta e a pinga saborosa” . (Ibidem, p. 32)

O substantivo farta, usado no texto, deve ser entendido com certa reserva,
pois esse relato de Sila acontece ao fim de um longo dia de caminhada no
bando de Zé Sereno com doze bocas famintas.
Comer à vontade poderia se referir ao fato de não haver racionamento de
alimentos na hora daquela refeição, diferente dos momentos de andança em
que um punhado de farinha ou um taco de rapadura era oferecido ao longo da
jornada.
Após um banho em uma fonte a convite da cangaceira Neném, para tirar a
“poeira e o cansaço do corpo”, conforme lembra a própria Sila, todos
poderiam comer o que estivesse à disposição para ser comido na ocasião, o
que, provavelmente, justificaria o termo “ comemos à vontade ”, usado pela
ex-cangaceira.
Sila nos deixou outros relatos que abrangem cardápios e algumas práticas no
trato com o feitio da comida entre os cangaceiros.
No primeiro, escreve ela que, após longa jornada, já no final da tarde, o grupo
liderado por Zé Sereno para próximo a uns juazeiros e ali passa a noite: “as
tralhas de cozinha foram retiradas do lombo do burro e logo o fogão
fumegava” . (Idem)

Na descrição seguinte, encontramos não apenas o que se comia, mas a


finalidade de se comer aqueles preparos e, naquela ocasião, quem preparava
as refeições:
O café ficou pronto. Arroz tropeiro, rapadura, farinha e um pedaço de bode constituíam a refeição matinal. Preparavam-se para longa caminhada a pé e só esperavam comer na segunda metade
do dia . (Idem).

O menu do café da manhã registrado por Sila parece-nos bastante


diversificado, visto que era preciso acumular calorias para enfrentar longas
caminhadas e intensos combates. Sila ficou aproximadamente dois anos no
cangaço.
Vê-se que farinha de mandioca, rapadura e carne formavam um tripé com
grande equilíbrio alimentar: proteína, carboidratos e glicose.
Após fixarem o coito em Angico, isso em julho de 1938, o bando do Capitão
Virgolino inicia suas tarefas rotineiras concernentes à cozinha:
trempes de pedra com o fogo de lenha palpitando no cozinhado de feijoadas
gostosas dentro de panelas de barro… no assado de carnes chiando nos
espetos… no aquecimento de água em latas ou marmitas de flandres para
fazer café… (MACIEL, 1987a, p. 34).

Percebe-se que por essa fonte, a comida não fora trazida devidamente pronta
pelo coiteiro, mas antes, preparada entre o bando. Isso pode indicar que os
cangaceiros traziam consigo os ingredientes para tais preparos (carnes, feijão,
café etc.) além de apetrechos de cozinha (espetos, panelas de barro, latas ou
marmitas).
A aparição da feijoada no cardápio deve ser saboreada com certa ressalva,
visto que não era prato muito comum nessas paragens, principalmente em
1938. Contudo, Lampião tinha fortes ligações com os coronéis que poderiam
apresentá-lo à iguaria e fornecê-lo os ingredientes necessários para seu feitio.
Precisaríamos saber o que o autor entende por feijoada, talvez um feijão
preparado com algumas linguiças e carnes de porco.
Hoje temos alguns pratos que remetem a uma suposta cozinha cangaceira,
feijão de cangaceiro ou c ozido do Lampião , porém muitos deles,
provavelmente, não faziam parte da ementa dos cangaceiros.
Trata-se de criações culinárias formadas a partir das bases sertanejas, que são
oferecidas nos cardápios de alguns restaurantes que anunciam trabalhar com
cozinha regional.
Estes menus inspirados na ‘comida de cangaceiro’, servem mais para consolar
o gosto turístico, ávido por novas experiências gustativas, que para fortalecer
uma cozinha especificamente cangaceira.
Todavia, em Poço Redondo - SE, nas proximidades da grota de Angico, três
interessantes pratos são atribuídos às reminiscências da culinária dos
cangaceiros e, provavelmente, têm mais conexões com o de-comer do
cangaço.
O primeiro é a Farofa cangaceira , à base de farinha de mandioca e outros
ingredientes, cuja receita, passada de geração a geração, não é revelada.
Doce de cacto é o segundo, feito à base de coroa-de-frade. Para quem o
experimentou, guarda sabor semelhante ao doce de mamão com coco e à
[xxxiii]
cocada mole.
O outro prato é a salada de urtiga que nada mais é que o caule da erva
[xxxiv]

cortado em pequenos pedaços, depois da retirada das folhas e dos espinhos.


Acredita-se, pelo menos no discurso, que o bando de Lampião fazia uso
destes preparos.
A urtiga, apesar de causar queimaduras em contato com a pele, tem uso
medicinal diurético. Fora utilizada desde os gregos, quer seja como
antialérgico quer seja para aliviar as dores consequentes das inflamações.
Além do seu provável atrativo medicinal, os alimentos ingeridos denunciam o
uso dos ingredientes disponíveis e a escassez de comida entre os bandos.
Raros são os estabelecimentos na área de alimentos que oferecem a
umbuzada, espécie de vitamina feita com o umbu.
Em dias de secas prolongadas, o umbuzeiro (Phytolacca dióica , Spondias
purpurea ) árvore da família das fitolacáceas, comum nas paisagens
sertanejas, oferece os aquosos umbus, chupados na hora ou levados como
lanche vindouro; água retirada da batata do umbu , ou seja, das raízes e as
próprias cascas da raiz raspada que poderiam servir de utensílio para alguns
preparos devido a sua resistência.
Para obtenção mais precisa da água oriunda das raízes da árvore, faz-se uma
fogueira no solo, à altura das raízes, para torná-las mais aquosas e facilitar a
remoção da água ao serem espremidas em pedaços de panos.
Adicionando leite aos frutos esmagados, prepara-se a umbuzada, espécie de
vitamina bastante encorpada que manteria os cangaceiros alimentados por um
bom tempo.

4.2 Os custos com os bandos: comida e bebida


A manutenção de um grupo de cangaceiros envolvia uma série de estratégias
que exigia muita habilidade para se atingir os resultados e, se tratando de um
bando numeroso como o de Lampião, antes do fim de 1929, as despesas
aumentavam de forma considerada.
O próprio Lampião afirmou em entrevista que desejava andar sempre
acompanhado de numeroso grupo: “se não o organizo conforme o meu desejo
é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a
manutenção do grupo – roupa, alimentação, etc.” Gastos com
(MACÊDO, 1926).

equipagem bélica, pagamento de coiteiros e espiões, fardamento e


alimentação do bando tornavam os grupos onerosos.
Isso talvez explique as palavras de Lampião na referida entrevista ao falar
sobre a forma como obtinha dinheiro para manter o bando: “consigo meios
para manter meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando à força aos
usuários que miseravelmente se negam de prestar-me auxílio” . (Ibid)

No texto seguinte, talvez para ser mais preciso, apesar do discurso político
que o cangaceiro faz no final, Lampião sentencia que “tudo quanto tenho
adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as vultosas
despesas do meu pessoal – aquisição de armas, convindo notar que muito
tenho gasto, também, com a distribuição de esmolas aos necessitados” ( ). Ibid

Mas a aparente bondade do cangaceiro esconde o grande negócio financeiro


que era o cangaço, pois “a agiotagem andou sempre de braços com o
cangaceirismo profissional” .
(MELLO, 2004, p. 71)

Muitas ações operadas pelos bandos não envolviam apenas a necessidade de


se cobrir os custos da empreitada cangaceira. Havia outro lado da moeda, bem
mais rentável, que incluía negociatas e expressivas somas de dinheiro:
“Lampião, além de avaro, reconhecidamente um bom financista, diz-se ter
brigado com o coronel José Pereira, de Princesa, Paraíba, por este ter-lhe
[xxxv]
aplicado mal o capital levantado no saque de Souza, em 1924” . (Ibidem, p. 72)

Para manter a máquina financeira moendo seus lucros, Lampião e seu bando,
em 1938, atravessam o São Francisco e faz um ataque à Jirau-AL, na hora de
maior movimento da feira pública. Os cangaceiros, desejosos por ouro,
dinheiro e comida, causaram grande desespero na cidade: “os feirantes, que
haviam ficado, foram despojados de dinheiro e víveres, sempre alegando os
cabras que assim faziam porque necessitavam” (MACIEL, 1987a, p. 20).

Em 1937, o bando de Lampião já não fazia grandes excursões pelos sertões


nordestinos como o fizera no início de suas andanças. Limitava seus ataques a
Sergipe e áreas fronteiriças de Alagoas e Bahia “para extorquir dinheiro”
(CHANDLER, 2003, p. 257).

O volume de dinheiro que se arrecadava com ‘doações’, rendimentos


financeiros e saques, muitas vezes não garantia uma tropa bem nutrida. Isso
implica em dizer que, de alguma maneira, era preciso pensar nas várias
formas de se conseguir comida.
O alimento se fazia presente entre os cangaceiros pela intermediação da rede
de coiteiros; através dos saques em pequenos comércios ou propriedades
rurais como fazendas; pelo acolhimento de alguns coronéis que recebiam os
bandos em suas propriedades; por via da coleta na natureza; raras capturas de
algumas pequenas caças ou pela compra direta feita pelos cangaceiros.
Todavia, esta última, era prática bem menos comum por colocá-los em grande
exposição, a não ser quando se livravam dos seus trajes inerentes: “depois de
tirar todos os enfeites característicos dos cangaceiros, para esconder sua
identidade, conseguiu comprar queijo numa fazenda” Mas,
(CHANDLER, 2003, Op.cit. , p. 131).

vez ou outra, a compra por parte dos cangaceiros acontecia quando o bando
invadia uma vila e detinha o controle da ordem, não sendo preciso retirar seus
adornos característicos.
Para cobrir os custeios com a preservação do bando, o capitão Virgolino
utilizava seus famosos ‘bilhetes’ que, uma vez entregue ao destinatário, o
intimava a deferir as exigências do cangaceiro-mor.
As cartas podiam ser de advertência, de venda de proteção, de amizade e de
cobranças. Todas elas apresentavam texto claro, sem grandes rebuscamentos e
com mensagem direta para atender rapidamente aos propósitos do remetente.
As cartas de cobrança apresentavam teor semelhante. Abaixo, carta de
cobrança Lampião enviada a Antônio Mando, em 1926:
Ilmº Sr. Antônio Mando
Estimo suas saudações com todos. O fim desta para lhi
pedir dois contos di rs. Espero isso sem falta agora
alarmi e não mande que depois vae se sahir muito mal,
resposta pello mesmu portador sem mais, não falti olhi
olhi
Cap. Virgulino Ferreira
Vulgo Lampião (MELLO, 2004, p. 402).
Para se ter ideia do montante pedido, com “dois contos di rs” se comprava um
automóvel zero-quilômetro, o que demonstra os altos custos para manter o
bando e, quiçá, justifique a ameaça no final da carta com o alerta “não falti
olhi olhi”.
Na carta de cobrança a J. D., Lampião escreve:
Ilmº Sr.
Suas Saudações com todos.
Lhe faço Esta somente para lhi pedir 3 conto, de reis apois seio qui osenhor
não Ignora Eu pedir i so peço a quem tem, por este mutivo espero sem falta.
aresposta entregue a seu Vaqueiro.
Agora faça poco, e alarmi a pulicia,
Resposta com toda Urgença.
Eu Capitão
Virgulino Ferreira, Lampião.
[xxxvi]
(MELLO, Op.cit. , p. 403).

Quando as exigências não eram atendidas, uma nova correspondência


reiterava a cobrança, conforme carta de Lampião reenviada a J. D.:
Ilmº Sr.
Suas Saudações com Os Seus, faço-lhe esta devido a Uma carta qui ja lhi
mandei e não tivi resposta portanto lhi faço esta outra para ter a serteza penço
aqui Osenhor não faz duvida apois o qui lhe tracto E pedir-lhe 3 conto penço
que VSª não faz duvida. resposte logo, com toda Urgença.
Mandi botar na sua fasenda,
Espero e confio do Sempri
[xxxvii]
Cap. Lampião. (Ibid).
As cartas de Lampião intimidavam quem as recebia e, por serem instrumentos
muito eficientes, começaram a ser falsificadas por outras pessoas para
extorquirem dinheiro dos poderosos. Para se livrar de tal situação, o capitão
mandou fazer cartões de visita com a foto de Lampião foram reproduzidas
pelo fotógrafo Ademar Albuquerque, de Fortaleza, sob encomendas
sucessivas e cada vez mais avultadas do próprio Lampião ao mascate
Benjamim Abraão, o ‘Turco‘ […] (MACIEL, 1987a, p. 17).
Não obstante todas as artimanhas para apossar-se do dinheiro de fazendeiros e
grandes comerciantes, não havia regra nem muito menos constância na
alimentação dos cangaceiros: “passavam dias sem comer e, quando comiam,
eram feitas duas refeições diárias: o desjejum, ao amanhecer e a ceia, ao
anoitecer” (OLIVEIRA, 2002, p. 63).

Quando acampados no mato sob os cuidados do coiteiro, muitas vezes tinham


acesso às comidas prontas, já cozidas ou assadas sem precisar ir acender fogo
para seu preparo.
Sem grandes contatos com uma alimentação centrada na gordura, rica em
molhos e graxas de muitos animais, o cangaceiro “conservava o organismo
em condições de resistir às constantes perdas de energias, que as suas ingentes
atividades provocavam” (LUNA, 1963, p.108).

Inegavelmente, a fadiga mostrava suas garras e, apesar de esguios, os


cangaceiros, além de carecerem de repouso, precisavam obter alimentos ricos
em nutrientes e que fornecessem a reposição das calorias perdidas com o
desgaste diário do corpo.
O ato de comer nos bandos envolvia muitas coisas, dentre elas, a praticidade
em transportar alimentos prontos para o consumo, como farinha de mandioca,
rapadura e carne assada, o valor nutricional, a rapidez no preparo dos
alimentos e a forma como se desfazia das sobras. O que não significa dizer
que os bandos jamais acendessem fogo , ou seja, cozinhassem.
Uma vez conquistados os alimentos para estocar, estes eram transportados em
bornais e cabaças. Tais ferramentas eram importantes peças, não somente para
o transporte, mas para a conservação dos alimentos.
Evidente que outros alimentos entravam no cardápio andarilho, como o queijo
de coalho, por exemplo, entretanto, a constância da tríade farinha, rapadura e
carne assada era à base de sustentação, ao que parece de todos os grupos em
seus períodos de andanças.
Em depoimento a Sonia Carvalho, em Buíque, cidade do agreste
pernambucano, aos 19 de janeiro de 2006, o Sr. Manoel Dantas de Melo, Tio
Né, que pertenceu ao bando de Lampião sob a alcunha de Candeeiro, fez o
seguinte comentário sobre o queijo de coalho:
Eu nunca fiz queijo de coalho, quem fazia era minha irmã Maria José, botava
o coalho dentro {do leite} de bode. Vendia a um velho que levava para os
Agrestes de Garanhuns […] Na época de Lampião, quando não tinha carne,
mandava buscar queijo. Comia queijo com rapadura, farinha… Faltou carne,
aí levou dez quilos {de queijo de coalho} como era muita gente, num instante
acabou… (CARVALHO, 2006, p. 12).


No testemunho, o ex-cangaceiro afirma que, acampados em Angico, Lampião
chamou alguns cangaceiros e mandou “buscar leite”, pois tinha uma fazenda
que ficava a dois quilômetros, ou era três? Pra desmama. Naquele tempo, não
é como aqui não, tratava as vacas soltas dentro da caatinga, fazia a casa
dentro dos matos, aqui os fazendeiros tem cocheira, tem tudo, lá naquele
tempo não tinha não, no sertão não tinha cocheira não tinha nada tirava o leite
ali e soltava as vacas dentro do mato, da caatinga […] (CARVALHO, Op.cit., 2006, p. 12).

Percebe-se, através do depoimento do ex-cangaceiro Candeeiro, que o queijo


de coalho se fez presente no bando de Lampião quando da ausência de carne,
conforme episódio narrado.
Evidencia-se, também, que em alguns momentos, os cangaceiros se
aproveitavam das ofertas alimentares já prontas para o consumo, como o
queijo de coalho e o leite das vacas.
No tocante às bebidas alcoólicas, incluir ou excluí-las do consumo é parte
integrante do padrão culinário de todas as coletividades. No caso do cangaço,
a utilização da bebida à base de álcool era banida por Lampião no início das
suas andanças. Entretanto, apesar da determinação do chefe, ela constava em
vários momentos ao longo das andadas do Capitão com seus cabras,
figurando com mais robustez nos últimos anos de existência do bando.
Se a comida alimentava o corpo, cabe bem aqui o lugar-comum que a bebida
inebriava o espírito, espécie de elixir para aliviar a bruta realidade. Apesar de
alguns autores afirmarem que Lampião mantinha a relação cangaceiro &
bebida sob rédeas curtas, a ponto de punir “severamente os que se excediam”
, o uso da bebida não nos parece assumir cunho irrevogável, pois em
(LUNA, 1963, p.107)

vários momentos constava entre os atrativos da diversão cangaceira .

Ao entrar em Carria - SE, em 1929, os cangaceiros “ficaram na cidade


algumas horas, bebendo, cantando e fazendo visitas” (CHANDLER, 2003, p. 151).

Em outra oportunidade, por dentro dos sertões, o bando se refestelou com as


vísceras do cabrito ou do carneiro, as quais “preparavam as deliciosas
‘buchadas’, que comiam acompanhadas de alguns tragos de aguardente, copos
de vinho e cerveja quando encontravam” (LUNA, 1963, p.107).

No povoado de Calumbi, em 1930, o bando de Corisco manteve como refém


a família de Luís Matos, usineiro, enquanto este pegava na cidade a quantia
de dinheiro pedida pelo Diabo Louro. Ao regressar na manhã seguinte,
acompanhado por civis armados e um destacamento da polícia, encontrou os
cangaceiros “bebendo e tocando música” ( Com um ataque bem
CHANDLER, 2003, p. 168).

sucedido no alvorecer, os cangaceiros dispersaram-se.


Diante do pequeno povoado de Mirandela, distrito de Pombal - BA, dia de
Natal, Lampião enviou um recado ao chefe da polícia pedindo permissão
“para entrar na cidade e beber” ( Apesar de ter pequeno
CHANDLER, Op.cit. , p. 163).

contingente, os soldados receberem reforços de civis que ajudaram a expulsar


os cangaceiros da cidade após intensa refrega com vítimas fatais e alguns
feridos.
De maneira geral, uma vez controlada a ordem nos locais invadidos pelos
bandos e realizado o recolhimento do dinheiro, parece-nos que os cangaceiros
aproveitavam para vivenciar a face festiva do cangaço, com a bebida
alcoólica a lubrificar os desejos. Mas não se pode descartar a possibilidade
dos cangaceiros realizarem alguns ataques embalados pelo efeito da bebedeira
alcoólica.
Comandado por Meia-noite, um grupo de cangaceiros ataca a vila de São José
da Lagoa Tapada - PB, em 26 de julho de 1924. Logo após, se juntam a Chico
Pereira, na fazenda Jacu: “foi uma noite regada a muita cachaça com carne de
bode, de maneira que durante o ataque alguns cangaceiros se mostravam
completamente embriagados” Ao atacarem a cidade de Sousa - PB,
(OLIVEIRA, 2009, p. 64).

na manhã seguinte, registram-se muitos cangaceiros ainda em estado de


embriaguez.
[xxxviii]
José Rufino, da volante baiana, depois de matar Mariano e dois cabras do
seu subgrupo, seguia no encalço de Lampião, isso em fins de 1936. Ao chegar
a Poço Redondo - SE, se deparou com uma festa de casamento de um
sargento da polícia. Após intimidar um coiteiro, soube que os cangaceiros
estavam arranchados perto do povoado e que “os celebrantes estavam
mandando bebidas para o acampamento dos cangaceiros” (CHANDLER, 2003, p. 256).

Depois de saquear o comércio e ficar com o dinheiro que estava sendo


angariado para os festejos natalinos da cidade, Lampião recebeu o convite de
Umbelino Santanna, dono de uma mercearia que havia contribuído para os
festejos de Natal, para beber “uma mistura de vermute e refrigerante” (CHANDLER,
Op.cit. , p. 160).

Não cremos que todos os cangaceiros entrassem em estado de embriaguez


festiva, pois não se podia descuidar da guarda. Alguns homens eram
escalados para manter a vigilância do bando enquanto os outros se divertiam
sob o efeito do álcool.
Deve-se observar que os cangaceiros não bebiam quando tivessem vontade.
Era preciso esperar o momento certo. Em situações que exigiam cautela, o
chefe aplicava-lhes um puxavão nas rédeas a ponto de frear-lhes o desejo
etílico, já que a ingestão de álcool prejudicaria os reflexos do grupo a ponto
de comprometer toda a segurança. Bebida entre os cangaceiros de Lampião,
só em ocasiões apropriadas e sem abrir mão da vigilância, sempre pronta para
agir.
Certa vez, em Capela - SE, após arrecadar avultada importância de vinte
contos de reis de comerciantes, fazendeiros e usineiros, em troca de uma
entrada pacífica na cidade, o bando de Lampião ficou “pra lá e pra cá,
fazendo compras, bebendo nos botequins, aproveitando-se do meretrício, mas
sempre prevenido” (MACIEL, 1987a., p. 42).

A estada em um coito seguro propiciava saborear os efeitos da bebida


alcoólica, oferecendo mais oportunidade para celebrar o espírito festivo do
cangaço com menos risco para o grupo. Antônio Pequeno, coiteiro de Corisco
e do Capitão, como gostava muito de Lampião e Luís Pedro, “passava horas
no acampamento, conversando e bebendo com eles” ( CHANDLER, Op.cit. , p. 226).

[xxxix]
Em Angico, em 1938, o coiteiro Pedro de Cândida, além da munição,
trouxe para Lampião vitualhas, frutas e uma garrafa de cachaça, pois era
bebida que o Capitão “gostava e tomou um trago pelo gargalo” . (MACIEL, 1987a, p. 39)

A prática de coiteiros e cangaceiros bebericarem era, de certo modo, comum,


visto que fortalecia os lanços de confiança, facilitava as conversas sobre as
negociações com as autoridades locais e também com a polícia, além de
demonstrar certo grau de intimidade. Alguns estudiosos acreditam que a
morte de Lampião e de parte do seu bando se deu por ligações entre o coiteiro
Pedro de Cândida e João Bezerra, oficial da polícia alagoana.
Nos dois anos finais de vida, Lampião havia desenvolvido gosto por bebidas
mais sofisticadas e, quando podia, saboreava conhaque Macieira e uísque
White Horse. Para os cabras, a velha cachaça e o vinho quinado. Para os
chefes, Old Tom Gin. . Já a cerveja “atendia
(LINS, 1997, p. 28), (MELLO, 2004, p. 301)

democraticamente o gosto de todos” . No tocante ao conhaque Macieira


(Ibid)

“exigia que tivesse ‘5 Estrelas’” (OLIVEIRA, 2002, p. 64).

Outra fonte indica que, acoitado em Angico, julho de 1938, Lampião ordena
que comprem carne-de-sol ou carne-do-sertão e “um cantil e seis litros de
conhaque marca ‘Cavalinho’” . (MACIEL, 1987a, p. 36)

Apesar de assinalar que Lampião reduziu a ingestão de bebida alcoólica por


temer ser assassinado, Bismarck Martins de Oliveira, de certa forma, reafirma
a predileção do Capitão por alguns tipos de bebidas mais refinadas, isso nos
dois últimos anos de vida: “Lampião passou a beber muito pouco, com medo
de ser traído e assassinado por algum cangaceiro ávido pela sua fortuna (OLIVEIRA,
2002, p. 64).

Tanto a comida quanto a bebida abriam possibilidades para se envenenar o


Capitão. Em Angico, 1938, segundo Frederico Bezerra Maciel, Zé Sereno
desconfiou das bebidas que circulavam no coito, pois “deu uma ‘dormideira’
estranha nos cangaceiros que tomaram bicadas” e logo tratou de fazer uma
inspeção nas garrafas: “na primeira que pegou, de conhaque, encontrou um
furo de agulha hipodérmica na cápsula de chumbo que envolvia a parte
superior do gargalho” . (MACIEL, 1987a, p. 40)

Na visita que fizera à tarde, o coiteiro Pedro, em pacto com João Bezerra,
teria levado “garrafas de vinho com estriquinina” para o coito de Angico
A hipótese do envenenamento de Lampião através da bebida
(CHANDLER, 2003, p. 294).

divide a opinião dos estudiosos do tema e abre inúmeras possibilidades de


interpretações para o episódio de Angico.
Aqui, nos limitamos a mostrar que o hábito de consumir bebida alcoólica
entre os cangaceiros manteve-se vivo. Em alguns momentos, o uso da bebida
foi mais comedido por questões inerentes à vida cangaceira, mas em tantos
outros, serviu para exercitar a efusividade social e subjetiva da vida nômade,
função esta já devidamente enraizada nas práticas sedentárias.
Outros alimentos se estendiam para além da sua função nutricional, servindo
inclusive de remédio. A pimenta malagueta seca, por exemplo, ao lado da
aguardente e da água oxigenada serviam para tratar ferimento à bala, sendo
introduzida através do orifício onde o projétil entrara (ARAÚJO; FERNANDES, 2005, p. 92).

Misturada com sal e cinzas, a pimenta formava a base de uma medicação


utilizada na assepsia de castração: “Lampião, por exemplo, sangrava uma
pessoa como o jovem fazia para matar um bode. Quando o bando castrou um
de seus inimigos, a assepsia foi a mesma aplicada aos animais: cinza, sal e
pimenta” . (MELLO, 1998)
Mas a pimenta apenas mastigada também era usada para tratar de ferimento à
bala. Em carta do ex-cangaceiro Marcos Passarinho, preso na penitenciária
estadual da Paraíba, relata que o cangaceiro Ciço (Cícero Costa) mastigou
“um punhado de pimenta, butô nos buracos de bala e ahi brigô mermo pras
moça vê”
(ALMEIDA, 1996, p. 73).
[xl]

4.3 Mulher, cangaço e cozinha


Na sociedade sertaneja do início do século XX, a junção mulher e cangaço se
apresentava como algo dicotômico, verdadeiro tabu instituído pelas leis do
padrão moral vigente.
Acreditava-se que o cangaço era forma de vida exclusiva para homem que,
por si só, se bastava em seu universo de intensa brutalidade, cabendo à
mulher, em sua suposta fragilidade e delicadeza conferidas pela sociedade
sertaneja, a função de simples passadio em dias de diversão cangaceira ou de
pobres vítimas dos estupros feito pelos cangaceiros, atos que “deveriam ser
compreendidos sob a lógica da honra e da vingança inerentes à cultura
sertaneja” .
(LINS, 1997, p. 24)

Isso porque alguns justificaram tais procedimentos como estratégia guerreira


do bando: “violar era vingar… pois que o inimigo fugia, sua prole deveria
pagar pelos seus crimes” . Neste caso, mulheres e crianças se tornavam
(Ibid)
[xli]
alvos fáceis para as ditas vinganças dos cangaceiros.
Em 1930, Lampião decide incorporar a mulher no cotidiano do cangaço. Para
tal, foi buscar Maria Bonita, casada com o sapateiro Zé de Neném, em Santa
Brígida - BA, que também fazia consertos em produtos feitos à base de couro.
Quando Lampião soube que Maria se encantava com suas histórias, então
contadas por Luís Pedro, cangaceiro responsável por levar os apetrechos de
couro para os reparos de Zé de Neném, decidiu buscá-la.
Impulsionado por seu espírito transgressor, Lampião decide fazer vistas
grossas ao tabu sertanejo e à advertência de Sinhô Pereira: “meu filho, afaste-
se das mulheres, elas deixam o guerreiro mole” (Ibid).

O Capitão, do mesmo modo, não levou em consideração a declaração do


Padre Cícero, seu mentor espiritual: “Lampião será invencível enquanto não
houver mulher no bando” (Ibid).

Pinto Ribeiro, capitão de volante, também tinha a mesma impressão sobre a


participação das mulheres nos bandos: “cangaceiro, enquanto não se pega
com mulher, enquanto não ama, é difícil de vencer; porém, quando ama,
derrota-se, fica fácil de cair” (BEZERRA, 1940, p. 171).

A crítica que muitos faziam à presença feminina nos bandos, também tinha
um pé muito forte na superstição popular. A mãe do ex-cangaceiro Balão, por
exemplo, o advertia: “– Meu filho, o dia que tu te ajuntá, tu vai ficá de corpo
aberto”
(MACIEL, 1987, p. 62).
[xlii]

A opinião de Balão parece seguir os conselhos da mãe: “se o cangaceiro tem


uma relação sexual, perde o poder da oração (uma espécie de amuleto), e seu
corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa” (Realidade, 1973).
Ao incorporar Maria Bonita no vaivém cangaceiro, Lampião não apenas viola
as leis do tabu da sociedade sertaneja, como abre precedente para que os
meninos do bando procedessem do mesmo modo.
A permanência das mulheres no cangaço durava, em média, de dois a três
[xliii]
anos. Mortes, prisões, fugas e assassinatos levaram-nas a findar seus dias
como cangaceira. Exceções foram Dadá, que permaneceu 13 anos no cangaço
e Maria Bonita, 8 anos (MACIEL, 1987, p. 68).

Alguns estudiosos acreditam que as mulheres criaram um tipo de disputa


entre elas e as armas, desviando os homens da atenção guerreira e, com isso,
teriam contribuído para o fim do cangaço: “enquanto não apareceu mulher no
cangaço, o cangaceiro brigava até enjoar”, disse Balão em entrevista
(Realidade, 1973).
Aprofundando o assunto, Frederico Pernambucano de Mello assinala que a
convivência das mulheres nos bandos propicia o “início de decadência
guerreira que tenderia nos últimos anos a um retraimento quase completo e a
uma sedentariedade incompatível com a idéia de cangaço, de guerrilha, em
geral” (MELLO, 2004, p. 149).

Os depoimentos contrários à vinda da mulher para o cangaço nos levam a


perceber que sua presença no dia-a-dia dos bandos alterou alguns aspectos da
rotina cangaceira.
Eram precisos novos arranjos na locomoção do bando, nas estratégias de
combate e nas acomodações no mato ou nos coitos mais seguros.
Salientamos, como é de se esperar, que as características da natureza feminina
não desapareceram pelo fato delas ingressarem no cangaço. Em períodos com
mulheres apresentando incômodas menstruações ou gravidezes mais
delicadas, provavelmente os bandos precisavam de alguns ajustes em suas
rotinas que garantissem o restabelecimento temporário ou definitivo da
cangaceira.
Em entrevista de 1969, Sinhô Pereira deu o seguinte depoimento: “no meu
tempo não havia mulheres no bando. Mulher só podia trazer as
conseqüências, dividindo o homem, fazendo o grupo brigar por ciúme ou por
outro motivo qualquer. Eu fiquei muito admirado quando soube que Lampião
havia consentido que mulheres ingressassem no cangaço. Eu nunca permiti,
nem permitiria” ( Jornal do Brasil , 1969).

Ao fechar os ouvidos às críticas dos descontentes e abrir o coração do


cangaço para Maria, Lampião inaugura uma nova fase no cangaço-meio de
vida, possibilitando que as mulheres passassem a fazer parte da paisagem
[xliv]
cangaceira.
Uma vez inseridas diretamente no cotidiano do cangaço, como as mulheres se
relacionavam com as atividades cotidianas que envolviam as práticas da
cozinha cangaceira?
Sila é categórica ao escrever suas memórias: “no cangaço havia o costume de
os homens cozinharem, e às mulheres cabia a costura de roupas, de bornais e
outras peças” . Pela descrição da ex-cangaceira, poderíamos pensar
(SOUZA, 1997, p. 32)

que o cangaço desprezava a ordem dos papeis sociais da coletividade


sedentária ao instituir o costume “de os homens cozinharem”, visto que, de
guerreadores perversos, dedicavam-se, nestes momentos, a atividades
[xlv]
culturalmente atreladas às mulheres.
Dadá, em entrevista, expõe o mesmo teor descrito por Sila, ao dizer que, no
cangaço, era um grande equívoco pensar que a mulher assumia tarefas ligadas
à cozinha, pois era o homem que “cozinhava, panhava água, lavava e brigava”
Contudo, Dadá também diz que “as mulheres não cozinhavam. Só se
( O Pasquim , 1988).

ela quisesse” . ( O Estado de São Paulo , 1996)

Mais à frente, a ex-cangaceira afirma que cada dia um cangaceiro cozinhava,


outro ficava responsável pela lavagem das panelas: “não tinha isso de ‘não
faço’. Chamava, era seu dia, tinha de fazer. Tudo limpinho, ajeitado, acabava
de comer a gente dividia, mas mulher não ia para a beira do fogo” . (Ibid)

Ali, não obstante, diante da presença de mulheres inseridas no bando, os


homens trocavam punhais, munição e fuzis truculentos pelos amenos
utensílios de cozinha, armas com as quais perseguiam e matavam friamente
um dos maiores inimigos: a fome.
Esta aparência dicotômica – guerreiro vs cozinheiro – perpassa o universo do
cangaço já que muitos cangaceiros, além de cozinharem, também tocavam
instrumentos musicais, costuravam e faziam delicados bordados à mão, a
exemplo do próprio Lampião.
Os cachorros não estavam ausentes da paisagem cangaceira. Alimentá-los,
fazia parte das preocupações do bando.

Voltemos ao que diz a companheira de Corisco que, curiosamente, deixa
escapar um detalhe contraditório em seu depoimento, que pode ser entendido
como o envolvimento feminino no preparo culinário, pois a mulher não
apenas “lavava tudo, botava tempero e entregava para eles cozinharem”, (Ibid)

mas não só isso, pois a mulher só cozinhava “se ela quisesse” .(Ibid)

Pela declaração da ex-cangaceira, as mulheres mantinham uma relação com


algumas etapas dos preparativos culinários dos bandos, inclusive cozinhar se
estivesse com vontade de encarar as panelas. Poderia não ser constante e nem
de fato ir para a beira do fogo, mas suas presenças certamente interferiam na
organização dos tratos com a comida.
Havia discordância entre algumas cangaceiras no tocante às suas ligações
com os aprontamentos dos alimentos. Inacinha, companheira do cangaceiro
Gato, por exemplo, afirmava que “as mulheres não participavam dos
combates, mas cozinhavam e lavavam as roupas dos cangaceiros” (GRUNSPAN-JASMIN, 2006,
[xlvi]
p.134).

Ao comentar sobre as tarefas ligadas à feitura das comidas no coito em


Angico, em julho de 1938, Frederico Bezerra Maciel confirma o que Inacinha
assinalou ao escrever que o “trabalho de cozinha cabia inteiramente às
mulheres, que também tinham os cuidos da lavagem das roupas e consertos
das mesmas” .
(MACIEL, 1987a, p. 34)

No coito montado em Angico, aqui nos guiamos pela fonte abaixo, um


detalhe nos permite entender que as mulheres desenvolviam algumas práticas
domésticas, visto que “tinham conseguido arranjar uma máquina de costura e
trouxeram para o acampamento, para Maria Bonita, que, na paz e quietude do
local, podia devotar seu tempo a suas tarefas domésticas”
(CHANDLER, 2003, p. 288).
[xlvii]
Poderíamos entender que a presença da máquina de costura no coito
possibilitaria que Maria Bonita costurasse para si e não especificamente para
Lampião ou para outros cangaceiros.
Élise Grunspan-Jasmin, baseada nos relatos de Dadá, escreve que a presença
das mulheres entre os cangaceiros, “não mudou em nada nem a organização
do grupo nem a distribuição de tarefas que se estabelecera antes: eram os
[xlviii]
homens que, em regime de revezamento, cozinhavam” .
(2006 , p. 133)

Para melhor compreensão desses depoimentos contraditórios acerca das


cangaceiras cozinharem ou não nos bandos, é importante entender que, por
volta de 1929, Lampião cria subgrupos com seis a dez cangaceiros, como
estratégia nova para os combates.
Tal iniciativa tinha por objetivo permitir uma movimentação mais rápida dos
pequenos bandos, o que vinha a dificultar as ações das Forças Volantes. Uma
vez divididos, os subgrupos agiam de forma independente e, evidentemente,
tinham suas próprias regras no tocante à execução das tarefas do bando,
fazendo com que em alguns deles, as mulheres assumissem alguns funções
diárias atreladas aos preparos dos alimentos.
O manuseio culinário dentro do cangaço, antes da presença feminina, por
mais que fosse tarefa reservada às mulheres no âmbito doméstico, cabia aos
cangaceiros. Uma vez integrado ao bando, o cangaceiro que não dominasse
certas práticas cotidianas, precisaria rapidamente desenvolver tais habilidades
e, uma delas, certamente era cozinhar.
Lembremos que nos lares sedentários, os homens sabiam e podiam até
cozinhar em alguns momentos, mas, normalmente, não encaravam o fogão
como uma tarefa do seu cotidiano.
Todavia, cremos que a vinda das mulheres para dentro dos bandos,
possivelmente alterou de alguma forma as relações já devidamente enraizadas
entre a cangaceirada quando estes ainda não as recebiam como companheiras.
Apesar dos depoimentos expostos pelas fontes se contradizerem, parte das
alterações provocadas pelas mulheres se dava nas relações referentes ao de-
comer cangaceiro. Afirmar que o ingresso feminino nos bandos não provocou
alterações importantes no cotidiano do cangaço é, no mínimo, uma atitude
imponderável.
Evidente que tais mudanças não determinaram o surgimento de novas
configurações na execução das tarefas, mas alguns ajustes certamente
aconteceram, por exemplo, no manejo com os elementos que envolvem o ato
de cozinhar.

Conclusão
Improvisada vida cangaceira e inconstante em seu ritmo diário, ainda assim
pode nos permitir afirmar que o cangaço instituiu uma cozinha se
entendermos esta como espaço que não se limita ao manuseio de utensílios,
ingredientes, temperos e técnicas de preparo dos alimentos, mas o que permite
aos comensais reforçarem os laços de sociabilidade e dos valores simbólicos
diante das comidas e bebidas.
Lembremos que o cangaceiro não comia sozinho, em estado de isolamento
social. Comer e beber eram práticas atreladas ao exercício comunitário que
migraram da sociedade sedentária às suas nomádicas.
Contudo, devemos ser cautelosos em afirmarmos que os cangaceiros
deixaram uma culinária genuína, típica do cangaço, entendendo culinária
como o conjunto de receitas usadas por uma coletividade que, através das
gerações, alteram constantemente não apenas a composição alimentar dos
pratos ofertados, mas a sua ressignifcação.
O comer andeiro do cangaceirismo poderia ser definido em farinha, rapadura
e carne assada, mas tal assertiva impõe vários riscos, pois em muitos
momentos, outras comidas eram lançadas à boca, constituindo, em algumas
ocasiões, certa variedade alimentar.
Os cangaceiros souberem sim fazer notável uso dos alimentos, tanto dos
saberes e fazeres no trato com a comida colocada diariamente para dentro dos
seus corpos, quanto da forma de transportá-los e prepará-los, com os devidos
ajustes às suas necessidades.
Cangaceiros e volantes usufruíram de uma mesa devidamente consolidada no
paladar dos sertanejos e que lateja cada dia mais revigorada e consolidada no
gosto dos que vivem no sertão do Nordeste brasileiro.
Os cangaceiros compunham-se como fragmento de uma coletividade
insaciada diante das injustiças, mas devidamente empedernida em suas
práticas sociais e políticas.
Malgrados as asperezas a qual estavam entranhados em seus eternos vagares,
realidade também imposta a muitos brasileiros, tornaram-se uma espécie de
caldo ancestral da brutalidade humana.
Se em vários momentos a bestialidade enraizou-se em seus desejos humanos,
ao menos os cangaceiros não se desumanizaram diante do ato de comer e
beber, apesar de serem muitas vezes mastigados pelos valores de uma
sociedade que marcou a faminta paisagem social do Brasil.
Nas primeiras horas da manhã de 28 de julho de 1938, em Angico, onze
indivíduos, cangaceiros e cangaceiras, não chegaram a ter contato com o
primeiro repasto daquela manhã. Seus estômagos ocos envoltos no ressoar das
tripas pulsantes lhes impuseram um morrer faminto, como se a memória do
cangaço engolisse viva a própria fome social sertaneja.
Muitos dos que tombaram no chão de Angico não tiveram a oportunidade de
quebrar o jejum das suas dúvidas eternas, nem muito menos de raspar o tacho
dos seus sonhos andarilhos: foram devorados pela fome da existência.

Referências
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Grandes mulheres.
VIEIRA, Erivan Felix. Coronealismo e cangaço no imaginário social .
Sirinhaém, PE: Ed. do Autor, 2012.

Agradecimentos:
Academia Brasileira de Letras - ABL
Academia Pernambucana de Letras - APL
Academia de Letras do Jaboatão dos Guararapes - ALJG
Adriana Oliveira
Adriano Portela
Alberto Amaral
Alberto Penaforte
Alexandre Santos
Álvaro Severo
Ana Maria Apolinário
Ana Paula Apolinário
Ana Luísa Calado
Ariano Suassuna ( in memorian )
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano-PE
Bruno Albertim
Cariri Cangaço
Carlos Newton Júnior
Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo
Domingo com Poesia
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Estúdio Via Brasil
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Frederico Pernambucano de Melo
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Gabinete da Presidência da República do Brasil
Gustavo Gonçalves
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Notas

[i]
Tacho: “1 Recipiente de ferro, cobre, alumínio, barro etc., com asas ou de
cabo, usada especialmente para fins culinários; tacha 2 por extensão ( da
acepção 1 ) B Nordeste vasilha grande, de cobre ou ferro, com duas alças,
usada nos engenhos para cozimento e transformação do caldo de cana em
açúcar; caldeira. (HOUAISS; VILLAR, 2001).
[ii]
Os termos Nordeste ou Nordeste brasileiro e nordestino serão usados no
decorrer deste trabalho, apesar de sabermos que se trata de recorte espacial
inapropriado, configurando-se tais usos como anacronismo. Salientamos que
seus empregos dar-se-ão, exclusivamente, para fins didáticos, visto que o
termo Nordeste – e seus desdobramentos semânticos – somente é oficializado,
pelo IBGE, em 1940.
[iii]
Cabra: “[…] 4. No final de século XIX, nas terras dos grandes coronéis do
sertão, era o morador comum que em troca de trabalho e proteção se
comprometia a defender o proprietário em todas as ocasiões. Diferenciava-se
do jagunço, espécie de guarda-costas dos coronéis, que fazia com que suas
decisões fossem cumpridas em suas propriedades. O cabra também era
denominado de cangaceiro manso” (MARCENA, 2015, p. 189). No contexto
do cangaço, cabra era o sujeito que integrava o bando de cangaceiros.
[iv]
Lembremos que foi Dadá “quem inventou os bordados dos tecidos e as decorações dos chapéus dos cangaceiros nos anos de 1930 […]. JASMIN, Élise. Cangaceiros . São Paulo: Terceiro
Nome, 2006. p.141.

[v]
Segundo Érico de Almeida tratava-se do Batalhão Patriótico do Juazeiro
(B.P.J.). Cf. ALMEIDA, 1996, p. 55.
[vi]
Aqui entendido como espaço social animado por música, dança e bebida
alcoólica, onde homens e mulheres se encontravam para diversão.
[vii]
Entre os anos 50 e 60 do século XX, houve um cangaço denominado ‘pós-
lampiônico’. Não se tratava de grupos com grandes contingentes de cabras,
mas agrupamentos reduzidos, como o do capitão Floro da Ribeira do
Ipanema, Floro Gomes Novais, seguido por cinco homens fazendo desordem
entre Pernambuco e Alagoas. Cf. Entrevista ao Jornal do Brasil , edição de 26
de fevereiro de 1969. In MELLO, 2004. p. 148).
[viii]
Em registros de Frederico Pernambucano de Mello, Maria Déa Oliveira.
[ix]
Apenas em 1899 é que a palavra cangaceiro ( cangaço + -eiro ) vai ser
registrada na língua portuguesa como “malfeitor fortemente armado que
andava em bando pelos sertões do Nordeste”. Antônio Houaiss salienta que
“semanticamente, a acepção de cangaço como ‘quadrilha de cangaceiros’ teria
se desenvolvido a partir do substantivo cangaceiro. Antonio Geraldo da
Cunha afirma que o termo cangaço só é explicável como regressivo de
cangaceiro. (HOUAISS; VILLAR, 2001) . Para Billy Jaynes Chandler “as
palavras cangaceiro e cangaço, aparentemente começaram a ser usadas na
década de 1830, e se relacionava à ‘canga’ ou ‘cangalho’, isto é, o jugo dos
bois. Talvez o cangaceiro fosse assim chamado porque carregava seu rifle nas
costas, como o boi carrega sua canga. A princípio, significava um grupo de
homens armados a serviço de um fazendeiro, mas a partir de 1900, os
cangaceiros começaram a operar independentemente. Só daí em diante é que
a palavra ‘cangaceiro’ começou a ser usada” (CHANDLER, 2003, p. 15).
[x]
Em classificação elaborada por Federico Pernambucano de Mello há três tipos de cangaço, aqui apresentados de forma sintética: Cangaço-meio de vida “o banditismo por profissão, que tem
como principais representantes Lampião e Antônio Silvino”; Cangaço de vingança “tipo de ocorrência relativamente menos freqüente, embora suas características de banditismo sertanejamente
ético tenham emprestado à imagem genérica do cangaço grande destaque, especialmente literário. Seus principais representantes são Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira; Cangaço Refúgio “Tipo de
pequena expressão. Diferentemente dos tipos anteriores, este se caracteriza pela riqueza de estratégia defensiva. Como representante máximo, poderíamos apontar o cangaceiro Ângelo Roque”
(MELLO, Op.cit. , p. 140).

[xi]
Nômades aqui são aqueles que não têm habitação fixa, que vivem
permanentemente mudando de lugar por oposição ao sedentário. Em uma
sociedade globalizada os novos nômades são, de maneira genérica, pessoas
que não dependem de locais fixos, como escolas, empresas e clubes, para
realizar atividades sociais (trabalhar, por exemplo). Computador móvel,
celular e conexão sem fio à Internet são ferramentas indispensáveis aos novos
nômades. Nômade vem do latim nomas,ădis ‘pastor’, do grego nomás,ádos ‘o
que pasta, o que muda de pasto; o que vai de um lugar para outro’ (HOUAISS; VILLAR, 2001)

. Sedentário aqui é entendido como agrupamento social humano que tem


habitação fixa, em oposição ao nômade.
[xii]
Paisagem verde exuberante, barragens e reservatórios plenos de água,
porém com sol e calor intensos.
[xiii]
O domínio do fogo foi imprescindível para os humanos cozinharem.
[xiv]
Seres espirituais que é objeto de culto. (HOUAISS; VILLAR, 2001).
[xv]
“Tropa ligeira, que não transporta artilharia nem bagagem”. In VOLANTE.
(Houaiss; Villar, 2001). Eram grupos formados por policiais que perseguiam
os cangaceiros. Pejorativamente recebiam, de alguns bandos de cangaceiros, a
alcunha de ‘macacos’ e o coletivo ‘macacada’. Os cangaceiros gostavam de
limpeza “para não ficarem fedendo à inhaca de macaco, como os soldados (e
daí o apelido ‘macaco’)” […] (MACIEL, 1987a, p. 35).
[xvi]
Coroa-de-frade ( Melocactus bahiensis ) é planta da “família das cactáceas,
nativa do Brasil, geralmente encontrada na caatinga, de caules angulosos, e os
ápices recobertos de pêlos híspidos” (HOUAISS; VILLAR, 2001).
[xvii]
Para o substantivo cataplasma Antônio Houaiss registra “papa
medicamentosa feita de farinhas, polpas ou pó de raízes e folhas que se aplica
sobre alguma parte do corpo dolorida ou inflamada”. (HOUAISS; VILLAR,
2001).
[xviii]
Durante a América portuguesa, o termo Gado graúdo ( gado bovino ) se
referia a vacas, bois, touros, novilhos, jumento, burros, ou seja, bovinos,
equinos, e asininos, dentre outros, todos os animais de grande porte.
Destinava-se aos serviços de tração, transporte e alimentação, oferecendo
couro (vaca, boi e touro), matéria-prima de grande utilidade, principalmente
no interior, onde constituiu vários produtos. O Gado graúdo pertencia aos
grandes proprietários de terra, latifundiários, fazendeiros, cultura que se
mantém viva até os dias atuais. O Gado miúdo se referia a porcos, galinhas,
cabras, bodes entre outros animais de pequeno porte. O gado miúdo ( gado
caprino ), sobretudo no interior, destinava-se, principalmente à alimentação,
ofertando ovos, carne, vísceras e leite e, algumas espécies como o bode e o
carneiro, o couro. Do gado miúdo, mais utilizado pelos pobres que não
podiam possuir gado graúdo, se aproveitava quase tudo do animal, além de se
reproduzir mais rápido e em quantidade muito maior e, por isso, uma melhor
oferta de alimento em menor tempo que o gado graúdo. Também chamado
miúça (MARCENA, 2015, p. 482).
[xix]
Carne de charque é conhecida em alguns lugares do Brasil como carne seca . Hoje se charqueia carnes como cupim, colchão mole e até a língua do boi.

[xx]
Os nativos pertenciam à família cariri – quiriri ou kiriri . Também
denominados tarairiú e, após a chegada dos europeus, tapuia . Estes nativos
pertenciam ao tronco linguístico macro-jê.
[xxi]
Para a Geografia, o sertão no Brasil corresponde à vastíssima zona

interiorana, que começou a ser penetrada ainda no Século XVI, logo depois
da chegada dos colonizadores, quando as fazendas de gado foram separadas
das fazendas agrícolas, particularmente na Região Nordeste. Enquanto a
produção agrícola, principalmente a cana-de-açúcar, ficava basicamente
restrita à faixa litorânea, a criação de gado se estendia para as remotas
paragens do interior do continente. A restrição a sua marcha era somente os
cursos d’água mais caudalosos ou as serranias mais formidáveis. (ANTONIO
FILHO, 2011, p.85) […] De qualquer forma, mesmo admitindo que a palavra
“sertão” apresenta uma origem multivariada, o seu significado converge para
um só sentido. O ‘locus’ cujo sentido é o interior das terras ou do continente,
pode ou não vir implicitado à ideia de aridez ou de área despovoada (Op.cit.,
p.87).
[xxii]
Acredita-se que um cangaceiro carregava, em média, 30 a 45 kg.
[xxiii]
Esclarece Daniel Lins que “é importante observar como, ao nomear
individualmente cada cangaceiro, Lampião chamava-o pelo nome, mas,
quando se referia ao bando, no seu conjunto, exclamava carinhosamente:
‘meus filhos’ ou, ainda, ‘meninos’” (LINS, 1997, p. 33).

[xxiv]
Esse fragmento oral está presente em uma das cenas do filme O Cangaceiro
, de Lima Barreto, produzido em 1953, pela Companhia Cinematográfica Vera

Cruz, o que ajudou a consolidar o episódio no imaginário popular.


[xxv]
FISL que possui propriedades que atuam sobre os sentidos e/ou órgãos.
(HOUAISS; VILLAR, 2001).
[xxvi]
Com batata do umbuzeiro também se mata a sede.
[xxvii]
Lampião, entre os anos de 1936 e 1938, “mostrava-se bem mudado.
Trocara a jornada de penitente pelo conforto quase sedentário de bem
aparelhados coitos ribeirinhos em Sergipe […] Beirando os quarenta anos
adquiria requintes de burguês bem-sucedido” (MELLO, Op. cit., p. 300-301).
[xxviii]
Aquele que oferecia coito, ou seja, abrigo aos cangaceiros. Eram pagos
para fornecer munição, alimento e informações sobre a movimentação das
tropas volantes.
[xxix]
Na Fazenda Barreiros, Serra Talhada-PE, o prato é temperado com sal,
alecrim do mato e folhas de umbuzeiro para marinar, o que, provavelmente,
não acontecia durante os preparos cangaceiros.
[xxx]
Acompanhamos a feitura do prato e também o experimentamos na Fazenda
Barreiros, zona rural de Serra Talhada, onde o prato fora reconstituído a partir
dos depoimentos de Dona Celestina – afilhada de fogueira do cangaceiro
Lampião – e Teófilo, ex-integrante da volante da Bahia. A reconstrução do
prato teve coordenação técnica de Alessandra Vasconcelos, técnica do Senar e
Álvaro Severo, proprietário da fazenda.
[xxxi]
Entrevista de Sinhô Pereira ao Jornal do Brasil , edição de 26 de fevereiro
de 1969. Durante um assalto aos feirantes de São Caetano, povoação em
Pernambuco e, após cometer alguns assassinatos, Lampião ordena “o preparo
de um café, depois de cortarem as orelhas ao infeliz” (ALMEIDA, 1996, p.
62). São Caetano, à época, segundo a fonte citada, ficava entre o Moxotó e o
Pajeú.
[xxxii]
Gravação das imagens do bando de Lampião nas caatingas, filmado por
Benjamim Abrahão com apoio de Adhemar Bezerra de Albuquerque para a
Aba-Film, em 1936. Disponível in <http: //www.youtube.com/watch?
v=QUYOp_jONiM>.
[xxxiii]
Cacto vira doce na terra dos Cangaceiros . Disponível em
<http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2008_10_01_archive.html>. Acesso
em: 02 de nov. de 2008.
[xxxiv]
Urtiga: Urtica urens é erva da família das urticáceas.
[xxxv]
Classificação dos tipos de coronéis: “a) Coronel latifundiário ou fazendeiro
– possuía léguas e léguas de terra, geralmente oriundas de herança de antigos
sesmeiros, além de muitos empregados e serviçais; b) Coronel comerciante –
existia nas cidades maiores do interior nordestino. […] Era quem comprava as
produções agrícolas e pecuárias; c) Coronel de batina – deste tipo, mais raro
que os outros, tinha mais poder político. Sob sua proteção, coronéis
fazendeiros ou comerciantes exerciam a plenitude de seus poderes, pagando-
lhe a sua parte. O exemplo mais clássico é o Padre Cícero Romão Batista”
(OLIVEIRA, 2002, p. 40).
[xxxvi]
Carta sem datação.
[xxxvii]
Carta sem datação.
[xxxviii]
Mariano (Mariano Laurindo Granja) era subchefe de Lampião.
[xxxix]
Pedro Rodrigues Rosa, também recebe o registro de Pedro Cândido e Pedro de Cândida.

[xl]
A referida carta, provavelmente escrita entre os anos de 1924/25.

[xli]
Daniel Lins escreve que a forma de proceder do bando também pode ter sofrido “contaminação das práticas dos poderosos locais e regionais, donos do corpo e da consciência de outrem”
(LINS, 1997, p. 24).

[xlii]
Nota nº 6.
[xliii]
“Quando morria um companheiro, a viúva tinha de arranjar novo par. Por duas vezes isso não deu certo e a saída foi executar as mulheres. Rosinha e Cristina foram assassinadas para não
ameaçar o grupo. Outro drama era o adultério. Lídia e Lili morreram por trair seus companheiros” ( Super Interessante , 1997). Lídia, mulher de Zé Baiano, por exemplo, após acusação de traição
com o cangaceiro Bem-te-vi, cabra do grupo de Corisco, recebeu sentença do próprio Lampião para ser morta, depois de muita paulada.

[xliv]
As mulheres somente encontraram espaço na vida cangaceira, através do cangaço-meio de vida, pois “nos grupos que se dedicavam verdadeiramente ao cangaço de vingança não havia lugar
para mulheres e sim para tremendas privações materiais e afetivas” (MELLO, 2004, p. 147).

[xlv]
Em matéria intitulada Lampião volta como dândi do cangaço , o jornal Folha de São Paulo atribui o seguinte depoimento a Daniel Lins: “os efeminados apenas se tornavam cozinheiros e
eram obrigados a casar com as mulheres feias” ( Folha de São Paulo , 1995).

[xlvi]
Nota 22.
[xlvii]
A máquina de costura citada pode ser visualizada na fotografia que expõem
as cabeças dos cangaceiros na escadaria da prefeitura de Piranhas-AL, em
1938.
[xlviii]
Nota 22.

Table of Contents
Sobre o Autor
Depoimentos Sobre o Autor
RASPANDO O TACHO
Introdução
Nas pegadas do cangaço
1.1 Cangaço
1.2 Pelos nomes
1.3 Alguns registros literários
Com os pés no chão… Pelo mundo
2.1 Nômades e Sedentários
Etnogastronomia: - Comida como resistência
3.1 Como comida como cultura
3.2 Tríade primordial: farinha, rapadura e carne assada
3.2.1 Farinha de mandioca
3.2.2 Rapadura
3.2.3 Carne Assada
4. Raspando o tacho
4.1 Acender fogo: no rastro da cozinha cangaceira
4.2 Os custos com os bandos: comida e bebida
4.3 Mulher, cangaço e cozinha
Conclusão
Referências
Agradecimentos:
Nossos Livros Na Amazon
Notas
[i]
[ii]
[iii]
[iv]
[v]
[vi]
[vii]
[viii]
[ix]
[x]
[xi]
[xii]
[xiii]
[xiv]
[xv]
[xvi]
[xvii]
[xviii]
[xix]
[xx]
[xxi]
[xxii]
[xxiii]
[xxiv]
[xxv]

Você também pode gostar