Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
trempeproducoes@gmail.com
Sobre o Autor
Adriano Marcena nasceu no Brasil. É escritor, dramaturgo, historiador e
Criativo e sem qualquer pudor quanto aos limites de sua imaginação, Marcena
é, talvez e sem exagero, um dos mais prolíficos dramaturgos brasileiros de
sua geração.
Luiz Felipe Botelho
(Arquiteto, dramaturgo, mestre em teatro e crítico teatral)
RASPANDO O TACHO
Introdução
1.1 Cangaço
3.2.2 Rapadura
4. Raspando o tacho
Conclusão
Referências
Agradecimentos:
Notas
RASPANDO O TACHO
Por Ésio Rafael
Introdução
Os sertões nordestinos do Brasil muitas vezes são vistos como lugares onde a
escassez de água reina a arrastar secas prolongadas, fazendo a fome imperar
de maneira perversa, debilitando a existência dos sertanejos. Neste contexto,
acredita-se que a geografia exerce importante domínio sobre a vida das
pessoas.
A região sertaneja do Nordeste brasileiro também é enxergada como lugar de
extrema penúria devido às sérias dificuldades sociais ocasionadas por
seculares problemas políticos e econômicos.
Sem muitas delongas, é sabido que a questão das secas nordestinas é uma
problemática antiga e muito mais de ordem política que geográfica. Basta
uma estiagem mais prolongada para evidenciar quão frouxos são os laços das
ações dos programas sociais implementados pelos governos para o combate
às secas.
Em meio a todos esses embaraços ocasionados pela alongada falta de chuvas,
um paradoxo se manifesta: como é possível um lugar, que muitos brasileiros
acreditam ser constantemente seco e miserável, eleger suas comidas como um
dos elementos mais fortes da sua identidade cultural?
Isso nos levaria à hipótese que, apesar das estiadas bem espichadas, os sertões
nordestinos não podem ser resumidos a seca e fome. O que e como comem os
sertanejos do Nordeste brasileiro? Quais influências históricas estão atreladas
à sua relação com o ato de comer?
Indo mais além, nos deparamos com o cangaço, vida nômade a perambular
por estreitas veias sociais e encompridadas artérias políticas dos sertões
nordestinos, em fins do século XIX e início do XX.
O vaguear cangaceiro se dava dentro de uma sociedade sedentária, em meio à
complexa rede de interesses sociais. Longe de querermos abordar as
estruturas ditas heroicas do cangaço, iremos deter nossas atenções na relação
dos cangaceiros com a comida e a bebida.
Como se davam as relações de aquisição, transporte, conservação e o preparo
dos alimentos entre os bandos? O que se comia na ‘cozinha cangaceira’? A
presença da mulher alterou a relação cangaceiro vs comida? Nesse ir e vir
multívago, os cangaceiros foram capazes de criar uma cozinha com feições
próprias?
Indubitavelmente, o ato de comer passa por aspectos socioculturais,
geográficos, históricos, econômicos e políticos.
Apesar de sabermos que o cangaço não se limita à figura de Virgolino
Ferreira da Silva, o Lampião, nossa abordagem dar-se-á através da interface
entre o universo do cangaço e de seu bando.
Abordaremos a relação dos cangaceiros com as comidas e as bebidas, tendo
como ponto de partida a etnogastronomia, para discutirmos comida como
referência identitária dentro das cozinhas nordestinas e se estendendo aos
[i]
vestígios do tacho andarilho do bando de Lampião.
Como quaisquer temas fartos em complexidade, o cangaço permite ao
pesquisador múltiplas opções de recortes temáticos e o emprego de várias
ferramentas metodológicas.
Nossa metodologia foi pautada em pesquisa bibliográfica, consultando obras
e artigos de referência na área dos estudos etnogastronômicos e do cangaço;
utilizamo-nos, também, da história oral, através dos depoimentos colhidos ou
transcritos de fontes primárias e secundárias, sempre que necessário
confrontando-os com fontes escritas.
Herdeiros de uma tradição alimentar que fundamenta as cozinhas sertanejas, o
nomadizar cangaceiro, a rasgar a escabrosidade do espaço sociogeográfico,
muitas vezes com a polícia nos calcanhares, teve que criar novas formas de
obter, transportar, conservar, preparar, ingerir os alimentos e não deixá-los
como pista para serem rastreados.
Oriundos de uma sociedade sedentária, como os cangaceiros passam a ter
relações com os alimentos em suas vidas de nômades? Seria pertinente
pensarmos em um exercício etnogastronômico no cangaço?
Sem querer esgotar o tema, este trabalho se limita a dar uma raspada rápida
no tacho cangaceiro para elucidar as relações entre cangaço e comida e seus
muitos desdobramentos simbólicos que marcaram as andanças conflituosas
dos cangaceiros, especificamente, de Lampião e seu bando pelos sertões
nordestinos entre 1922-1938.
Para muitos jovens do sertão, entrar para o cangaço era uma das formas de
ascensão dentro da sociedade sertaneja, visto que o quadro social iniciado
desde a presença dos primeiros europeus no sertão não permitia que estes
indivíduos, mergulhados em grande carência material, ascendessem a
patamares socioeconômicos mais satisfatórios.
Alguns sertanejos, principalmente os mais jovens, passam a projetar suas
repressões sociais na figura do cangaceiro, visto que este desafiava as leis,
tinha dinheiro, matava policiais, era temido por todos e, acima de tudo, não
tinha patrão.
Inseridos em uma situação aparentemente licenciosa, os cangaceiros eram
vistos, em certos casos, como facínoras, a própria consolidação da
bestialização humana, o exercício da violação de todos os códigos que
norteiam a convivência social e humana (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008).
O cangaço, por ser originário do complexo cultural do sertão, não está fora
deste contexto, pois em suas andanças, quase inacabáveis, manteve o quanto
pode em suas refeições o que já estava entronizado no paladar de cangaceiros
e cangaceiras não apenas para ‘matar a fome’, mas, também, por questões que
passam pela afirmação de identidade que define o sertanejo.
3.2.2 Rapadura
Em definição rápida, a rapadura seria açúcar mascavo em tablete, feito com o
caldo de cana bastante aquecido e bem batido que é colocado em pequenos
moldes de madeira para esfriar.
Embalada em papel ordinário ou em fibra do tronco da bananeira, a rapadura
é mais que isso. Muito provavelmente, a rapadura foi o primeiro doce capaz
de constituir uma identidade nordestina que resistiu de maneira mais intensa
aos anseios das novas gerações e, dentre todos os existentes, incluem-se aí
alfenim, alfelô, doce de batata de umbu, de leite e o chouriço doce, é sem
dúvida um dos mais populares nos sertões do Nordeste do Brasil.
A rapadura é filha dos modestos engenhos de rapadura, outrora usuais nos
sertões, próprios para fins comerciais, diferente dos engenhos de produção de
açúcar mais próximos do litoral que a produziam para o consumo local.
Trazida pelos ibéricos, os espanhóis já a produziam nas Ilhas Canárias desde
o século XVI e a exportaram, a partir do século seguinte, para toda América
espanhola, sendo encontrada em Honduras, México, Cuba, Peru e Panamá.
Rapadura ou raspadura reinou absoluta durante muito tempo, sendo, hoje em
dia, preferida em alguns lares nordestinos, ainda com a nobre função de
merenda rápida, saboreada ao natural, como bom motivo para beber água ou
para adoçar café, coalhadas, frutas, ponches, doces e até bolos. Parece
estranho aos nossos hábitos, mas a rapadura, misturada com o tutano de boi,
era servida como sobremesa no Nordeste brasileiro.
A rapadura possui bons níveis de vitaminas A, C, D, E, vitaminas do
complexo B e PP, além de importantes minerais, como cálcio, ferro, fósforo,
potássio, cobre, zinco, manganês e magnésio. Os nutrientes oferecidos pela
rapadura têm ligações diretas com exercício físico, logo, é alimento
apropriado para repor o desgaste das longas andanças, sem contar com sua
densidade energética: cerca de 100g do produto fornece 132 Kcal e quase
80mg de sacarose.
A rapadura temperada , socada ou batida, é temperada com canela, erva doce,
diferenciando-se da tradicional, sem tempero algum.
A rapadura sofre forte discriminação em outras regiões do País, recebendo o
rótulo de alimento pobre, desprovido de requinte, comida de gente inferior
por estar associada aos nordestinos.
Caçadores levavam seus tacos de rapadura para mastigarem o tempo ao
ficarem à espera da caça. Viajantes sertanejos não as dispensavam em suas
longas travessias. O pequeno tablete de açúcar mascavo também constava nos
bornais cangaceiros que, além de ser saborosa, repunha as energias gastas nas
andanças do cangaço.
ou carne-do-sertão” (Idem).
4. Raspando o tacho
4.1 Acender fogo: no rastro da cozinha cangaceira
A ocupação humana dos sertões nordestinos do Brasil, antes da chegada dos
[xx]
europeus no século XVI, se deu pelos povos indígenas que haviam
[xxi]
convivido e dominado parte da geografia local ao longo de séculos.
Herdeiros de boa parte dos seus conhecimentos destes indígenas, os sertanejos
sempre detiveram um amplo saber geográfico ligado aos tipos de solo para
agricultura, conhecimento apurado das estações de chuva e das safras,
habilidades de plantio e colheita, de caça e pesca, além da seleção de animais
e vegetais que poderiam ser comidos diretamente e os quais deveriam passar
por transformações – assar ou cozer – para se tornarem comida.
Entretanto, não podemos reduzir a formação sertaneja apenas à herança do
índio ou dos elementos trazidos pela cultura lusa ou mesmo por alguns povos
africanos. É importante perceber que a construção cultural é consequência da
trituração contínua do tempo através das múltiplas reinvenções cotidianas
concebidas pelas gerações. Ao se fortalecer, essas reinvenções deixam
transparecer o que somos enquanto sujeitos simbólicos, além de expor a
fragilidade dos fios que nos conectam com as nossas origens.
O cotidiano cangaceiro era andante, bandos inteiros muitas vezes embreados
na caatinga a cruzar mormacentos lajedos e afiados espinhos da paisagem
inquieta e áspera de sol.
Os grupos seguiam em frente – carregados de armas, munição e apetrechos
[xxii]
diversos – fosse caminhando, montado em cavalos, jumentos ou muares por
léguas sem-fim pelas encompridadas veredas sertanejas.
Contudo, ao chegar a um coito seguro, permitia-se serenar os ânimos,
exercitar o lúdico, avaliar os combates, reabastecer estômagos e cartucheiras
para repor as forças perdidas nas longas refregas e andanças: “despreocupado,
em coitos de segurança, tratava de quebrar a monotonia do tempo com o
carteado – o 31 a dinheiro, com boca de até 1 conto de réis – a luta romana
entre recrutas e as brigas de cachorro” (MELLO, 1993, p. 90-91).
Como se vê, não era um cargo muito complicado de ser alcançado, mas as
consequências poderiam ser terrivelmente duras, pois “ser considerado um
coiteiro era motivo suficiente para ser perseguido pelas forças oficiais” (AMAURY e
FERREIRA, Op. cit. , p. 18).
Pelas brechas dos rincões do cangaço, fica evidente que a lida diária dentro de
um bando era repleta de alguns sacrifícios. Não são poucos os relatos de
alguns ex-integrantes que se referem ao tempo da cangaceirada como
‘sofrimento’, ‘perseguição’, ’não era cosia boa’.
A vigilância constante, em momentos de tensão, não permitia que os
cangaceiros comessem com tranquilidade. Permaneciam de pés, graças a um
punhado de farinha arremessado e uma ruída rápida na rapadura que, juntos a
um taco de carne já preparada, formavam uma espécie de bolo que remoia no
canto da boca, envolto em quantidades mínimas de líquido.
Em agosto de 1929, Lampião e seus cabras se desembestam na rudeza
inexaurível das areias do Raso da Catarina, área localizada na zona de
transição entre os climas árido e semiárido do sertão baiano.
A desertificação da paisagem é impiedosa à resistência humana, mas isso não
impediu que os cangaceiros avançassem diante das dificuldades do ambiente.
Apesar das cabaças estarem munidas de água até a boca, os cangaceiros
poupava-na e seguiam chupando um “taco de rapadura, evitando assim maior
sede” A sede era medonha e, para engolir farinha seca, era preciso
(MACIEL, 1987, p. 31).
O substantivo farta, usado no texto, deve ser entendido com certa reserva,
pois esse relato de Sila acontece ao fim de um longo dia de caminhada no
bando de Zé Sereno com doze bocas famintas.
Comer à vontade poderia se referir ao fato de não haver racionamento de
alimentos na hora daquela refeição, diferente dos momentos de andança em
que um punhado de farinha ou um taco de rapadura era oferecido ao longo da
jornada.
Após um banho em uma fonte a convite da cangaceira Neném, para tirar a
“poeira e o cansaço do corpo”, conforme lembra a própria Sila, todos
poderiam comer o que estivesse à disposição para ser comido na ocasião, o
que, provavelmente, justificaria o termo “ comemos à vontade ”, usado pela
ex-cangaceira.
Sila nos deixou outros relatos que abrangem cardápios e algumas práticas no
trato com o feitio da comida entre os cangaceiros.
No primeiro, escreve ela que, após longa jornada, já no final da tarde, o grupo
liderado por Zé Sereno para próximo a uns juazeiros e ali passa a noite: “as
tralhas de cozinha foram retiradas do lombo do burro e logo o fogão
fumegava” . (Idem)
Percebe-se que por essa fonte, a comida não fora trazida devidamente pronta
pelo coiteiro, mas antes, preparada entre o bando. Isso pode indicar que os
cangaceiros traziam consigo os ingredientes para tais preparos (carnes, feijão,
café etc.) além de apetrechos de cozinha (espetos, panelas de barro, latas ou
marmitas).
A aparição da feijoada no cardápio deve ser saboreada com certa ressalva,
visto que não era prato muito comum nessas paragens, principalmente em
1938. Contudo, Lampião tinha fortes ligações com os coronéis que poderiam
apresentá-lo à iguaria e fornecê-lo os ingredientes necessários para seu feitio.
Precisaríamos saber o que o autor entende por feijoada, talvez um feijão
preparado com algumas linguiças e carnes de porco.
Hoje temos alguns pratos que remetem a uma suposta cozinha cangaceira,
feijão de cangaceiro ou c ozido do Lampião , porém muitos deles,
provavelmente, não faziam parte da ementa dos cangaceiros.
Trata-se de criações culinárias formadas a partir das bases sertanejas, que são
oferecidas nos cardápios de alguns restaurantes que anunciam trabalhar com
cozinha regional.
Estes menus inspirados na ‘comida de cangaceiro’, servem mais para consolar
o gosto turístico, ávido por novas experiências gustativas, que para fortalecer
uma cozinha especificamente cangaceira.
Todavia, em Poço Redondo - SE, nas proximidades da grota de Angico, três
interessantes pratos são atribuídos às reminiscências da culinária dos
cangaceiros e, provavelmente, têm mais conexões com o de-comer do
cangaço.
O primeiro é a Farofa cangaceira , à base de farinha de mandioca e outros
ingredientes, cuja receita, passada de geração a geração, não é revelada.
Doce de cacto é o segundo, feito à base de coroa-de-frade. Para quem o
experimentou, guarda sabor semelhante ao doce de mamão com coco e à
[xxxiii]
cocada mole.
O outro prato é a salada de urtiga que nada mais é que o caule da erva
[xxxiv]
No texto seguinte, talvez para ser mais preciso, apesar do discurso político
que o cangaceiro faz no final, Lampião sentencia que “tudo quanto tenho
adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as vultosas
despesas do meu pessoal – aquisição de armas, convindo notar que muito
tenho gasto, também, com a distribuição de esmolas aos necessitados” ( ). Ibid
Para manter a máquina financeira moendo seus lucros, Lampião e seu bando,
em 1938, atravessam o São Francisco e faz um ataque à Jirau-AL, na hora de
maior movimento da feira pública. Os cangaceiros, desejosos por ouro,
dinheiro e comida, causaram grande desespero na cidade: “os feirantes, que
haviam ficado, foram despojados de dinheiro e víveres, sempre alegando os
cabras que assim faziam porque necessitavam” (MACIEL, 1987a, p. 20).
vez ou outra, a compra por parte dos cangaceiros acontecia quando o bando
invadia uma vila e detinha o controle da ordem, não sendo preciso retirar seus
adornos característicos.
Para cobrir os custeios com a preservação do bando, o capitão Virgolino
utilizava seus famosos ‘bilhetes’ que, uma vez entregue ao destinatário, o
intimava a deferir as exigências do cangaceiro-mor.
As cartas podiam ser de advertência, de venda de proteção, de amizade e de
cobranças. Todas elas apresentavam texto claro, sem grandes rebuscamentos e
com mensagem direta para atender rapidamente aos propósitos do remetente.
As cartas de cobrança apresentavam teor semelhante. Abaixo, carta de
cobrança Lampião enviada a Antônio Mando, em 1926:
Ilmº Sr. Antônio Mando
Estimo suas saudações com todos. O fim desta para lhi
pedir dois contos di rs. Espero isso sem falta agora
alarmi e não mande que depois vae se sahir muito mal,
resposta pello mesmu portador sem mais, não falti olhi
olhi
Cap. Virgulino Ferreira
Vulgo Lampião (MELLO, 2004, p. 402).
Para se ter ideia do montante pedido, com “dois contos di rs” se comprava um
automóvel zero-quilômetro, o que demonstra os altos custos para manter o
bando e, quiçá, justifique a ameaça no final da carta com o alerta “não falti
olhi olhi”.
Na carta de cobrança a J. D., Lampião escreve:
Ilmº Sr.
Suas Saudações com todos.
Lhe faço Esta somente para lhi pedir 3 conto, de reis apois seio qui osenhor
não Ignora Eu pedir i so peço a quem tem, por este mutivo espero sem falta.
aresposta entregue a seu Vaqueiro.
Agora faça poco, e alarmi a pulicia,
Resposta com toda Urgença.
Eu Capitão
Virgulino Ferreira, Lampião.
[xxxvi]
(MELLO, Op.cit. , p. 403).
No testemunho, o ex-cangaceiro afirma que, acampados em Angico, Lampião
chamou alguns cangaceiros e mandou “buscar leite”, pois tinha uma fazenda
que ficava a dois quilômetros, ou era três? Pra desmama. Naquele tempo, não
é como aqui não, tratava as vacas soltas dentro da caatinga, fazia a casa
dentro dos matos, aqui os fazendeiros tem cocheira, tem tudo, lá naquele
tempo não tinha não, no sertão não tinha cocheira não tinha nada tirava o leite
ali e soltava as vacas dentro do mato, da caatinga […] (CARVALHO, Op.cit., 2006, p. 12).
[xxxix]
Em Angico, em 1938, o coiteiro Pedro de Cândida, além da munição,
trouxe para Lampião vitualhas, frutas e uma garrafa de cachaça, pois era
bebida que o Capitão “gostava e tomou um trago pelo gargalo” . (MACIEL, 1987a, p. 39)
Outra fonte indica que, acoitado em Angico, julho de 1938, Lampião ordena
que comprem carne-de-sol ou carne-do-sertão e “um cantil e seis litros de
conhaque marca ‘Cavalinho’” . (MACIEL, 1987a, p. 36)
Na visita que fizera à tarde, o coiteiro Pedro, em pacto com João Bezerra,
teria levado “garrafas de vinho com estriquinina” para o coito de Angico
A hipótese do envenenamento de Lampião através da bebida
(CHANDLER, 2003, p. 294).
A crítica que muitos faziam à presença feminina nos bandos, também tinha
um pé muito forte na superstição popular. A mãe do ex-cangaceiro Balão, por
exemplo, o advertia: “– Meu filho, o dia que tu te ajuntá, tu vai ficá de corpo
aberto”
(MACIEL, 1987, p. 62).
[xlii]
mas não só isso, pois a mulher só cozinhava “se ela quisesse” .(Ibid)
Conclusão
Improvisada vida cangaceira e inconstante em seu ritmo diário, ainda assim
pode nos permitir afirmar que o cangaço instituiu uma cozinha se
entendermos esta como espaço que não se limita ao manuseio de utensílios,
ingredientes, temperos e técnicas de preparo dos alimentos, mas o que permite
aos comensais reforçarem os laços de sociabilidade e dos valores simbólicos
diante das comidas e bebidas.
Lembremos que o cangaceiro não comia sozinho, em estado de isolamento
social. Comer e beber eram práticas atreladas ao exercício comunitário que
migraram da sociedade sedentária às suas nomádicas.
Contudo, devemos ser cautelosos em afirmarmos que os cangaceiros
deixaram uma culinária genuína, típica do cangaço, entendendo culinária
como o conjunto de receitas usadas por uma coletividade que, através das
gerações, alteram constantemente não apenas a composição alimentar dos
pratos ofertados, mas a sua ressignifcação.
O comer andeiro do cangaceirismo poderia ser definido em farinha, rapadura
e carne assada, mas tal assertiva impõe vários riscos, pois em muitos
momentos, outras comidas eram lançadas à boca, constituindo, em algumas
ocasiões, certa variedade alimentar.
Os cangaceiros souberem sim fazer notável uso dos alimentos, tanto dos
saberes e fazeres no trato com a comida colocada diariamente para dentro dos
seus corpos, quanto da forma de transportá-los e prepará-los, com os devidos
ajustes às suas necessidades.
Cangaceiros e volantes usufruíram de uma mesa devidamente consolidada no
paladar dos sertanejos e que lateja cada dia mais revigorada e consolidada no
gosto dos que vivem no sertão do Nordeste brasileiro.
Os cangaceiros compunham-se como fragmento de uma coletividade
insaciada diante das injustiças, mas devidamente empedernida em suas
práticas sociais e políticas.
Malgrados as asperezas a qual estavam entranhados em seus eternos vagares,
realidade também imposta a muitos brasileiros, tornaram-se uma espécie de
caldo ancestral da brutalidade humana.
Se em vários momentos a bestialidade enraizou-se em seus desejos humanos,
ao menos os cangaceiros não se desumanizaram diante do ato de comer e
beber, apesar de serem muitas vezes mastigados pelos valores de uma
sociedade que marcou a faminta paisagem social do Brasil.
Nas primeiras horas da manhã de 28 de julho de 1938, em Angico, onze
indivíduos, cangaceiros e cangaceiras, não chegaram a ter contato com o
primeiro repasto daquela manhã. Seus estômagos ocos envoltos no ressoar das
tripas pulsantes lhes impuseram um morrer faminto, como se a memória do
cangaço engolisse viva a própria fome social sertaneja.
Muitos dos que tombaram no chão de Angico não tiveram a oportunidade de
quebrar o jejum das suas dúvidas eternas, nem muito menos de raspar o tacho
dos seus sonhos andarilhos: foram devorados pela fome da existência.
Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Lampião e a invenção do
Nordeste. Entrevista a Pedro Rocha. O Povo, 19/07/2008. In <
/2008/07/19/noticiasjornalvidaearte,805579/lampiao-e-a-
http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte
Agradecimentos:
Academia Brasileira de Letras - ABL
Academia Pernambucana de Letras - APL
Academia de Letras do Jaboatão dos Guararapes - ALJG
Adriana Oliveira
Adriano Portela
Alberto Amaral
Alberto Penaforte
Alexandre Santos
Álvaro Severo
Ana Maria Apolinário
Ana Paula Apolinário
Ana Luísa Calado
Ariano Suassuna ( in memorian )
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano-PE
Bruno Albertim
Cariri Cangaço
Carlos Newton Júnior
Centro Cultural Vital Corrêa de Araújo
Domingo com Poesia
Edilson Fernandes de Souza
Ésio Rafael
Estúdio Via Brasil
Feliciano Felix
Filipe Marcena
Flavio Brayner
Frederico Pernambucano de Melo
Frederico Toscano de Oliveira
Funcultura-PE
Fundação Cultural Cabras de Lampião
Gabinete da Presidência da República do Brasil
Gustavo Gonçalves
Jetro Gomes
Jonathas Eduardo Luna Malta
Kleber Kyrillos
Lívio Meireles Capeleto
Lua Serviços Gráficos e Editoriais
Lucas Apolinário
Luciana Santos
Luciano Siqueira
Manoel Severo
Marcelino Granja
Márcia Souto
Melchíades Montenegro
Neilton Limeira
Paesano Restaurante e Pizzaria
Patrícia Breda
Paulo Lins
Plínio Victor
Raul Lody
Roberto Numeriano
Rogério Generoso
Sandi Maia
Sandra Marinho
Sandra Veríssimo
Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco
Sérgio Carvalho
Sociedade Brasileira dos Estudos do Cangaço - SBEC
Sonia Carvalho
Stephan Hitzelberger
RecifePromo Comunicação e Live Marketing
Teca Carlos
Tomás Marcena
Tony Apolinário
TT Catalão
União Brasileira de Escritores - UBE
Vanessa Campos
Vicente Simas
Vladimir Rodrigues da Costa (Barraca)
Will Albuquerque
Mais um produto
trempeproducoes@gmail.com.br
Notas
[i]
Tacho: “1 Recipiente de ferro, cobre, alumínio, barro etc., com asas ou de
cabo, usada especialmente para fins culinários; tacha 2 por extensão ( da
acepção 1 ) B Nordeste vasilha grande, de cobre ou ferro, com duas alças,
usada nos engenhos para cozimento e transformação do caldo de cana em
açúcar; caldeira. (HOUAISS; VILLAR, 2001).
[ii]
Os termos Nordeste ou Nordeste brasileiro e nordestino serão usados no
decorrer deste trabalho, apesar de sabermos que se trata de recorte espacial
inapropriado, configurando-se tais usos como anacronismo. Salientamos que
seus empregos dar-se-ão, exclusivamente, para fins didáticos, visto que o
termo Nordeste – e seus desdobramentos semânticos – somente é oficializado,
pelo IBGE, em 1940.
[iii]
Cabra: “[…] 4. No final de século XIX, nas terras dos grandes coronéis do
sertão, era o morador comum que em troca de trabalho e proteção se
comprometia a defender o proprietário em todas as ocasiões. Diferenciava-se
do jagunço, espécie de guarda-costas dos coronéis, que fazia com que suas
decisões fossem cumpridas em suas propriedades. O cabra também era
denominado de cangaceiro manso” (MARCENA, 2015, p. 189). No contexto
do cangaço, cabra era o sujeito que integrava o bando de cangaceiros.
[iv]
Lembremos que foi Dadá “quem inventou os bordados dos tecidos e as decorações dos chapéus dos cangaceiros nos anos de 1930 […]. JASMIN, Élise. Cangaceiros . São Paulo: Terceiro
Nome, 2006. p.141.
[v]
Segundo Érico de Almeida tratava-se do Batalhão Patriótico do Juazeiro
(B.P.J.). Cf. ALMEIDA, 1996, p. 55.
[vi]
Aqui entendido como espaço social animado por música, dança e bebida
alcoólica, onde homens e mulheres se encontravam para diversão.
[vii]
Entre os anos 50 e 60 do século XX, houve um cangaço denominado ‘pós-
lampiônico’. Não se tratava de grupos com grandes contingentes de cabras,
mas agrupamentos reduzidos, como o do capitão Floro da Ribeira do
Ipanema, Floro Gomes Novais, seguido por cinco homens fazendo desordem
entre Pernambuco e Alagoas. Cf. Entrevista ao Jornal do Brasil , edição de 26
de fevereiro de 1969. In MELLO, 2004. p. 148).
[viii]
Em registros de Frederico Pernambucano de Mello, Maria Déa Oliveira.
[ix]
Apenas em 1899 é que a palavra cangaceiro ( cangaço + -eiro ) vai ser
registrada na língua portuguesa como “malfeitor fortemente armado que
andava em bando pelos sertões do Nordeste”. Antônio Houaiss salienta que
“semanticamente, a acepção de cangaço como ‘quadrilha de cangaceiros’ teria
se desenvolvido a partir do substantivo cangaceiro. Antonio Geraldo da
Cunha afirma que o termo cangaço só é explicável como regressivo de
cangaceiro. (HOUAISS; VILLAR, 2001) . Para Billy Jaynes Chandler “as
palavras cangaceiro e cangaço, aparentemente começaram a ser usadas na
década de 1830, e se relacionava à ‘canga’ ou ‘cangalho’, isto é, o jugo dos
bois. Talvez o cangaceiro fosse assim chamado porque carregava seu rifle nas
costas, como o boi carrega sua canga. A princípio, significava um grupo de
homens armados a serviço de um fazendeiro, mas a partir de 1900, os
cangaceiros começaram a operar independentemente. Só daí em diante é que
a palavra ‘cangaceiro’ começou a ser usada” (CHANDLER, 2003, p. 15).
[x]
Em classificação elaborada por Federico Pernambucano de Mello há três tipos de cangaço, aqui apresentados de forma sintética: Cangaço-meio de vida “o banditismo por profissão, que tem
como principais representantes Lampião e Antônio Silvino”; Cangaço de vingança “tipo de ocorrência relativamente menos freqüente, embora suas características de banditismo sertanejamente
ético tenham emprestado à imagem genérica do cangaço grande destaque, especialmente literário. Seus principais representantes são Jesuíno Brilhante e Sinhô Pereira; Cangaço Refúgio “Tipo de
pequena expressão. Diferentemente dos tipos anteriores, este se caracteriza pela riqueza de estratégia defensiva. Como representante máximo, poderíamos apontar o cangaceiro Ângelo Roque”
(MELLO, Op.cit. , p. 140).
[xi]
Nômades aqui são aqueles que não têm habitação fixa, que vivem
permanentemente mudando de lugar por oposição ao sedentário. Em uma
sociedade globalizada os novos nômades são, de maneira genérica, pessoas
que não dependem de locais fixos, como escolas, empresas e clubes, para
realizar atividades sociais (trabalhar, por exemplo). Computador móvel,
celular e conexão sem fio à Internet são ferramentas indispensáveis aos novos
nômades. Nômade vem do latim nomas,ădis ‘pastor’, do grego nomás,ádos ‘o
que pasta, o que muda de pasto; o que vai de um lugar para outro’ (HOUAISS; VILLAR, 2001)
[xx]
Os nativos pertenciam à família cariri – quiriri ou kiriri . Também
denominados tarairiú e, após a chegada dos europeus, tapuia . Estes nativos
pertenciam ao tronco linguístico macro-jê.
[xxi]
Para a Geografia, o sertão no Brasil corresponde à vastíssima zona
“
interiorana, que começou a ser penetrada ainda no Século XVI, logo depois
da chegada dos colonizadores, quando as fazendas de gado foram separadas
das fazendas agrícolas, particularmente na Região Nordeste. Enquanto a
produção agrícola, principalmente a cana-de-açúcar, ficava basicamente
restrita à faixa litorânea, a criação de gado se estendia para as remotas
paragens do interior do continente. A restrição a sua marcha era somente os
cursos d’água mais caudalosos ou as serranias mais formidáveis. (ANTONIO
FILHO, 2011, p.85) […] De qualquer forma, mesmo admitindo que a palavra
“sertão” apresenta uma origem multivariada, o seu significado converge para
um só sentido. O ‘locus’ cujo sentido é o interior das terras ou do continente,
pode ou não vir implicitado à ideia de aridez ou de área despovoada (Op.cit.,
p.87).
[xxii]
Acredita-se que um cangaceiro carregava, em média, 30 a 45 kg.
[xxiii]
Esclarece Daniel Lins que “é importante observar como, ao nomear
individualmente cada cangaceiro, Lampião chamava-o pelo nome, mas,
quando se referia ao bando, no seu conjunto, exclamava carinhosamente:
‘meus filhos’ ou, ainda, ‘meninos’” (LINS, 1997, p. 33).
[xxiv]
Esse fragmento oral está presente em uma das cenas do filme O Cangaceiro
, de Lima Barreto, produzido em 1953, pela Companhia Cinematográfica Vera
[xl]
A referida carta, provavelmente escrita entre os anos de 1924/25.
[xli]
Daniel Lins escreve que a forma de proceder do bando também pode ter sofrido “contaminação das práticas dos poderosos locais e regionais, donos do corpo e da consciência de outrem”
(LINS, 1997, p. 24).
[xlii]
Nota nº 6.
[xliii]
“Quando morria um companheiro, a viúva tinha de arranjar novo par. Por duas vezes isso não deu certo e a saída foi executar as mulheres. Rosinha e Cristina foram assassinadas para não
ameaçar o grupo. Outro drama era o adultério. Lídia e Lili morreram por trair seus companheiros” ( Super Interessante , 1997). Lídia, mulher de Zé Baiano, por exemplo, após acusação de traição
com o cangaceiro Bem-te-vi, cabra do grupo de Corisco, recebeu sentença do próprio Lampião para ser morta, depois de muita paulada.
[xliv]
As mulheres somente encontraram espaço na vida cangaceira, através do cangaço-meio de vida, pois “nos grupos que se dedicavam verdadeiramente ao cangaço de vingança não havia lugar
para mulheres e sim para tremendas privações materiais e afetivas” (MELLO, 2004, p. 147).
[xlv]
Em matéria intitulada Lampião volta como dândi do cangaço , o jornal Folha de São Paulo atribui o seguinte depoimento a Daniel Lins: “os efeminados apenas se tornavam cozinheiros e
eram obrigados a casar com as mulheres feias” ( Folha de São Paulo , 1995).
[xlvi]
Nota 22.
[xlvii]
A máquina de costura citada pode ser visualizada na fotografia que expõem
as cabeças dos cangaceiros na escadaria da prefeitura de Piranhas-AL, em
1938.
[xlviii]
Nota 22.
Table of Contents
Sobre o Autor
Depoimentos Sobre o Autor
RASPANDO O TACHO
Introdução
Nas pegadas do cangaço
1.1 Cangaço
1.2 Pelos nomes
1.3 Alguns registros literários
Com os pés no chão… Pelo mundo
2.1 Nômades e Sedentários
Etnogastronomia: - Comida como resistência
3.1 Como comida como cultura
3.2 Tríade primordial: farinha, rapadura e carne assada
3.2.1 Farinha de mandioca
3.2.2 Rapadura
3.2.3 Carne Assada
4. Raspando o tacho
4.1 Acender fogo: no rastro da cozinha cangaceira
4.2 Os custos com os bandos: comida e bebida
4.3 Mulher, cangaço e cozinha
Conclusão
Referências
Agradecimentos:
Nossos Livros Na Amazon
Notas
[i]
[ii]
[iii]
[iv]
[v]
[vi]
[vii]
[viii]
[ix]
[x]
[xi]
[xii]
[xiii]
[xiv]
[xv]
[xvi]
[xvii]
[xviii]
[xix]
[xx]
[xxi]
[xxii]
[xxiii]
[xxiv]
[xxv]