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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS “TRAUMAS” COMO

GERADORES DE DIFICULDADES COMPORTAMENTAIS,


EMOCIONAIS E AFETIVAS1

HÉLIO JOSÉ GUILHARDI

Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento


Campinas – SP

Parece-me ser um equívoco priorizar eventos comportamentais chamados de


“traumáticos” como causa das dificuldades comportamentais, emocionais e afetivas
apresentadas posteriormente pela pessoa. Eventos “traumáticos” podem ser definidos como
episódios intensamente aversivos a que a pessoa foi exposta, durante os quais não pôde emitir
comportamentos de fuga-esquiva funcionalmente eficazes. São exemplos de tais episódios:
sequestros, estupros, abusos físicos, restrições extremas, acidentes naturais (tais como
terremotos, inundações...), perdas de pessoas significativas, acidentes de trânsito, mutilações
etc. Note que a definição de um evento traumático deve ser funcional, não fenotípica. Assim,
uma pessoa pode ficar presa num elevador e nunca vir a apresentar qualquer fobia de elevador;
por outro lado, uma pessoa que nunca passou por uma experiência “traumática” em elevador
pode ter dificuldades, até mesmo impossibilidade de entrar num elevador. A evidência
apresentada neste exemplo pode ser generalizada para quaisquer outras situações: a vítima de
um estupro pode não vir a ter dificuldades na sua vida sexual, nem afetiva, enquanto outra, sem
ter passado por tal experiência, pode ter sérias dificuldades nas interações sexuais e afetivas;
uma pessoa que foi vítima ou autora de um acidente de trânsito pode continuar a dirigir e a
viajar de carro sem ansiedades, enquanto outra – sem ter vivenciado situações tão extremas –
recusa-se a aprender a dirigir ou até mesmo a viajar de carro etc.

Está subjacente à noção de que uma experiência “traumática” determina padrões


comportamentais, emocionais e afetivos “neuróticos”, “patológicos” (para manter termos
usuais) ou déficits e excessos comportamentais em contextos equivalentes (para nomear as
dificuldades em linguagem comportamental), o modelo mecanicista de causação. Assim, para
ocorrer um determinado efeito (comportamentos apresentados numa queixa, por exemplo) há
necessidade de uma causa suficiente e necessária que o antecede (e o produz). Adicionalmente,
atribui-se à causa “traumática” algumas propriedades estranhas ao mundo físico-químico: a de
influenciar eventos temporalmente muito distantes entre si (um evento que se inicia e termina
na infância mantém seu efeito causador até e durante a idade adulta, por exemplo) e a de
influenciar efeitos fenotipicamente diversos (um acidente de trânsito pode “causar”
dificuldades nas interações sociais, por exemplo). Tais sugestões causais exigem notável dose
de arbitrariedade e de imaginação para propor interações de causa-efeito que não encontram

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Novembro/2016.
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apoio em evidências empíricas (crença não é evidência empírica) e que não são passíveis de
teste empírico-experimental.

O modelo explicativo analítico-comportamental é empírico e contextual. De tal modelo


deriva, então, a proposta de que os eventos traumáticos são parte da história de contingências
de reforçamento e interagem com outros eventos dessa história. Assim, por exemplo, um
incidente tal como ficar preso dentro de um elevador ou passar pela experiência de um elevador
que despenca por vários andares pode estar relacionado (não ser causa de) com claustrofobia,
com fobia de elevador e reações equivalentes; como, por outro lado, pode ser simplesmente um
episódio comportamental a mais na vida da pessoa, não produzindo isoladamente nenhuma
dificuldade específica para ela. Pelo contrário, pode ser uma ocorrência que suscita narrativas
pitorescas, de coragem etc. Os comportamentos e sentimentos atuais das pessoas são instalados
e mantidos por uma teia de contingências de reforçamento que se influenciam reciprocamente
e que se estende sem interrupção durante todo o desenvolvimento da pessoa, passando por
processos de instalação, diferenciação, enfraquecimento e fortalecimento de respostas,
discriminação, generalização, relações de equivalência de estímulos etc. produzidos por
procedimentos comportamentais, tais como modelagem, fading in e out, encadeamento de
respostas, punição, reforçamento diferencial, imitação, controle de estímulos etc. Atribuir a
eventos traumáticos, de modo privilegiado, a função de “causas” de dificuldades
comportamentais, emocionais e afetivas é simplificação influenciada – e, o que é pior, de modo
equivocado – pelo modelo explicativo mecanicista.

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