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Ensaio | Essay 73

Sexualidades e políticas públicas: uma


abordagem queer para tempos de crise
democrática
Sexualities and public policies: a queer approach for times of
democratic crisis

Jose Inacio Jardim Motta1

RESUMO Este trabalho visa a compreender uma política pública de equidade em saúde relativa
às sexualidades que se desviam da heterossexualidade compulsória, em um contexto de crise
democrática. Para isso, toma-se a teoria queer para analisar, à luz de categorias como poder,
resistência e transgressão, o que está por traz do contexto discursivo da política de atenção
à saúde da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), produzindo uma
tensão entre norma, direito e participação social. É percebido que, em uma perspectiva queer,
a instabilidade das identidades e a compreensão das redes de poder no interior das práticas
de saúde podem fornecer condições de resistências mesmo em situações de crise do Estado
democrático.

PALAVRAS-CHAVE Política social. Sexualidade. Identidade de gênero.

ABSTRACT This work aims to understand a public policy of health equity related to sexualities
that deviate from compulsory heterosexuality in a context of democratic crisis. For this, queer
theory is used to analyze, in the light of categories such as power, resistance and transgression,
what lies behind the discursive context of the health care policies of the Lesbian, Gay, Bisexual,
and transgender (LGBT) population, producing a tension between norm, law, and social partici-
pation. It is perceived that, from a queer perspective, the instability of identity and the unders-
tanding of the networks of power within the health practices can provide conditions of resistance
even in situations of crisis of the democratic state.

KEYWORDS Public policy. Sexuality. Gender identity.

1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências
Sociais (DCS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
inacio@ensp.fiocruz.br

DOI: 10.1590/0103-11042016S07 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 73-86, DEZ 2016
74 MOTTA, J. I. J.

Introdução considera as minorias como atores subal-


ternizados e, portanto, à margem da ordem
O processo da Reforma Sanitária Brasileira social? Como os processos de educação no
inscreveu como princípios estruturantes do âmbito da saúde interferem nos processos de
Sistema Único de Saúde (SUS) as noções de subjetivação, revelando um novo sujeito? Por
equidade e integralidade. A integralidade, em outro lado, pode se configurar como um pa-
sua dimensão das práticas de saúde, obriga radoxo o fato de que os enunciados recentes,
a pensar o outro da relação de produção em inscritos nas políticas de saúde, apelam para
saúde como o outro diferente do que somos. a constituição de um novo sujeito autônomo,
Uma diferença com potencial de criativida- cuja subjetividade é considerada no ato da
de e exercício de alteridade. Sendo assim, as produção de saúde, enquanto a baixa capaci-
relações com o outro passam a ser mediadas dade dessas políticas é capaz de interferir no
pelos diferentes olhares que atravessam a cotidiano dos atores que se relacionam nos
relação, podendo interferir no acesso e na microespaços sociais. Essas questões, que,
qualidade do cuidado prestado. por si, já são complexas, tornam-se desafia-
O princípio da equidade se instaura nesse doras em contextos de crise democrática,
lugar onde há, notadamente, a presença de onde os lugares de interlocução do Estado
grupos vulneráveis e onde a vulnerabilida- com a sociedade civil se tornam mais nebulo-
de é inscrita a partir do lugar da diferença. sos, ao mesmo tempo que são exatamente os
O ponto de partida para se pensar a equi- grupos menos permeáveis à agenda de certos
dade, para além da compreensão de ser um grupos sociais (em especial, Lésbicas, Gays,
princípio de justiça social, é assinalar que Bissexuais e Transexuais – LGBT, ciganos
no campo da saúde as inequidades não se ou quilombolas) que passam a ser os formu-
limitam às diferentes posições sociais das ladores e implementadores das políticas pú-
pessoas em uma hierarquia econômica, al- blicas. A ascensão de grupos conservadores e
cançando determinações de gênero, sexuali- neoconservadores, em um contexto de crise
dade e diferentes grupos étnicos. política e fragilidade do Estado, turva as pos-
Gênero, sexualidade, raça e etnia sibilidades de interlocução.
compõem o conjunto das chamadas mi- Neste ensaio, procura-se compreender as
norias, que têm em comum não o fato de possibilidades de uma política de equidade
expressarem um menor contingente popu- para a população LGBT, à luz de um contexto
lacional, mas, sim, de representarem valores de crise, com o objetivo de tomar os aportes
que foram construídos ao longo da história, da Teoria Queer para revelar as possibilida-
como antagônicos a valores expressos como des de uma política pública de intervenção
superiores e desejáveis. Assim, a construção sobre a dinâmica das desigualdades cultu-
hegemônica do masculino é feita em oposi- rais, quando relativas às diferentes formas
ção à constituição inferior do feminino, a do de afeto e práticas homossexuais. Para con-
branco em oposição à do negro, e a do hete- textos de crise, propõe-se que as questões
rossexual em oposição à do homossexual. relativas a gênero e sexualidade possam ser
Aqui, começa a se descortinar uma série de miradas a partir da perspectiva dos teóricos
questões que apontam para respostas que não queer. Essa perspectiva adota como campo
são fáceis de achar. Aqui, pode-se, também, de análise os processos de normalização da
pensar em alguns paradoxos que estão, hoje, vida social, em especial, a heteronormativi-
no cenário dos processos de saúde e na dade, e considera que é no âmbito das redes
própria formação em saúde. Poder-se-ia per- de poder e resistência que se instalam as
guntar, por exemplo, como a saúde, em sua possibilidades de ruptura e transgressão dos
dinâmica de mudança nas práticas de saúde, processos heteronormativos.

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Falando de diferença, que é, mas o que é só faz sentido quando


inscrevendo uma refere-se àquilo que não é. Logo, a identida-
de é sempre referente à construção da dife-
possibilidade queer rença. Nesse sentido, Woodward afirma que
a identidade para existir depende de algo
Em um primeiro estágio, as reflexões em fora dela; a saber, de outra identidade, de
torno da ideia de diferença, quando refletida uma identidade que ela não é que difere da
a partir do contexto brasileiro, remetem à identidade, mas que, entretanto, fornece as
noção do multiculturalismo como um pres- condições para que ela exista. A identidade é
suposto para se pensar políticas de equidade. assim marcada pela diferença “[...] a diferen-
Falar, todavia, em multiculturalismo é expli- ça é sustentada pela exclusão” (WOODWARD,
citar uma arena de conflitos tal qual indicam 2010, p. 9-10).
as palavras de Gonçalves e Silva: Assim, podemos compreender que as
identidades culturais são produzidas nas
Falar do multiculturalismo é falar do jogo das práticas sociais, por meio de um processo de
diferenças, cujas regras são definidas nas lu- produção da diferença. A dinâmica da for-
tas sociais por atores que, por uma razão ou mação da identidade refere-se à existência
outra, experimentam o gosto amargo da dis- de ‘um outro’, o que torna identidade e alteri-
criminação e do preconceito no interior das dade componentes inseparáveis. Woodward
sociedades em que vivem. (GONÇALVES; SILVA, (2010, p. 11) aponta que
2006, p. 9).
A identidade é marcada pela diferença, mas
Esse jogo, essa construção de identidades parece que algumas diferenças [...] são vistas
e diferenças, a possibilidade de considerar o como mais importantes que outras, especial-
outro na sua condição de diferente, assumin- mente em lugares particulares e em momen-
do a diferença como um valor de positivida- tos particulares.
de nos espaços de produção e reprodução de
conhecimento, têm a ver com a compreen- Tratar as diferentes sexualidades que
são dos processos e contextos históricos que escapam da norma heterossexual como infe-
propiciaram sua construção. Mais uma vez, riores, a partir de alguma suposta caracterís-
os autores citados nos lembram de que: tica natural ou biológica, não é simplesmente
um erro, mas a demonstração da imposição
[...] é muito difícil, se não impossível, com- de uma “eloquente grade cultural sobre uma
preender as regras desse jogo sem explici- natureza que, em si mesma, é – culturalmen-
tar os contextos sócio-históricos nos quais te falando – silenciosa” (SILVA, 2011, p. 145). As in-
os sujeitos agem, no sentido de interferir na terpretações biológicas são, antes de serem
política de significados em torno da qual dão biológicas, interpretações, isto é, elas não são
inteligibilidade a suas próprias experiências, mais do que a imposição de uma matriz de
construindo-se enquanto atores. (GONÇALVES; significação.
SILVA, 2006, p. 9). A marcação da diferença, que, segundo
Foucault (2010), é determinada historicamen-
Da ideia de diversidade e tolerância à com- te por meio de diferentes produções discur-
preensão da linguagem como um sistema sivas, dependerá de
que constrói o outro, a diferença se inscreve
a partir da construção social e histórica das inúmeros processos de exclusão, de vigilân-
noções de normal, desvio e identidade. cia de fronteiras, de estratégias de divisão
Pensar identidade é sempre pensar o que, em última análise, definem hierarquias,

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escalas valorativas, sistemas de categoriza- formas singulares de viver dos diferentes


ção. (FURLANI, 2007, p. 273). grupos sociais, em especial, os grupos que,
em diferentes momentos e contextos da his-
Para Hall (2011), uma identidade tem a ver tória, foram definidos como aberrações, des-
não tanto com as questões ‘quem somos nós’ viantes e diferentes.
ou ‘de onde viemos’, mas muito mais com Em suma, a constituição da diferença a
as questões ‘como nós podemos nos tornar’ partir da delimitação da identidade cria uma
e ‘como nós temos sido representados’. A permanente zona de tensão e instabilidade.
questão que passa a ser central, então, é Essa tensão advém das redes de poder que
como essa representação sobre nós mesmos circulam nos polos de identidade e diferen-
afeta o nosso modo de andar a vida. ça. Isso pode ativar práticas de resistência,
A identidade e a diferença não podem que podem ser pensadas enquanto práticas
ser compreendidas, pois, fora dos sistemas discursivas e não discursivas contra estados
de significação nos quais adquirem sentido. de dominação e efeitos do poder.
Como afirma Silva (2011, p. 75), “não são seres Santos (2003) traz à tona a ideia de um ‘mul-
da natureza, mas da cultura e dos sistemas ticulturalismo emancipatório’, que reconhe-
simbólicos que a compõem”. Dizer isso não ce uma permanente tensão entre políticas
significa, entretanto, dizer que elas são de- de igualdade e políticas de diferença. Para
terminadas, de uma vez por todas, pelos sis- o autor, políticas de igualdade possuem um
temas discursivos e simbólicos que lhes dão pressuposto redistributivo, ou seja, é funda-
definição. Ocorre que a linguagem, entendi- mental que se dê uma redistribuição social,
da aqui de forma mais geral como sistemas nomeadamente, ao nível econômico. Dessa
de significação, é, ela própria, uma estrutura forma, assumimos a igualdade como um
instável. É exatamente isso que teóricos cha- princípio e uma prática. O problema aqui se
mados de pós-estruturalistas, como Derrida, assenta no fato de que a política de igualdade
vêm indicando em seus textos. baseada na luta contra as diferenciações de
Nesse sentido é que Derrida irá falar de classe deixou à margem outras formas de dis-
filosofias da diferença. Na compreensão de criminação, tais como étnicas, de gênero ou
Heuser (2005), a partir de uma síntese do pen- sexualidades. A política da diferença emerge
samento de Derrida: do campo de lutas e resistências das popula-
ções que passam por diferentes níveis de dis-
Às filosofias da diferença não se trata de su- criminação. Santos vai defender a ideia de que
perar ou de ultrapassar a tradição metafísica, uma política da diferença não se resolve pela
uma vez que é impossível nos desvencilhar- redistribuição, e, sim, pelo reconhecimento.
mos dela, de uma vez por todas. Trata-se de Aqui, o sentido não é o de uma colisão entre
interrogá-la; de pôr em questão os seus sen- igualdade e diferença, mas de assentar ‘os ob-
tidos e sem sentidos, seus paradoxos intrínse- jetivos da redistribuição social-econômica e
cos, as suas opressões; de compreender a me- do reconhecimento da diferença cultural’.
tafísica como um grande texto que está aberto Portanto, ao tomar a equidade em saúde,
a novas interpretações. (HEUSER, 2005, p. 73). que considere as determinações de gênero
e diferentes sexualidades, e, se essas deter-
A leitura de Derrida nos leva a compre- minações se constituem em diferenças rela-
ender o papel da linguagem na conformação tivas ao padrão cultural do branco europeu,
da diferença e sua alocação em posições de masculino e heterossexual, uma política de
subordinação e marginalidade, mas também equidade não deveria se traduzir apenas em
explicita a vida humana como um texto enunciados que pregam tolerância e diver-
aberto, onde não cabe a universalização das sidade, mas, sim, reconhecer e reafirmar a

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diferença cultural como potência criadora na os escritos de Judith Butler. Essa autora
constituição de novas subjetividades, de novas provoca uma tensão permanente sobre o bi-
formas de ser e sentir o mundo e o outro. narismo de gêneros, apontando que:
Ao tomar a diferença como o lugar de
contraponto do que está dentro da norma, A hipótese de um sistema binário dos gêneros
portanto, constituindo a norma, ao mesmo encerra implicitamente a crença numa relação
tempo que se faz marginal, por não caber no mimética entre gênero e sexo, na qual o gêne-
espaço da norma, as diferentes sexualidades ro reflete o sexo ou é por ele restrito. Quan-
vêm sendo, ao longo da história humana, do o status construído do gênero é teorizado
objeto de injúrias, discriminação e violência, como radicalmente independente do sexo, o
muitas vezes sobre o manto do poder público. próprio gênero se torna um artifício flutuante,
Ao propor embaralhar o jogo das identidades, com a consequência de que ‘homem’ e ‘mas-
ao mesmo tempo que trazem à tona questões culino’ podem, com igual facilidade, significar
relativas a poder, resistência e transgressão, tanto um corpo feminino como um masculino,
os teóricos queer se tornam, a um só tempo, e ‘mulher’ e ‘feminino’, tanto um corpo mas-
uma forma radical de resposta às demandas culino como um feminino. (BUTLER, 2008, p. 24-25).
dos movimentos sociais por maior espaço de
inclusão social e cultural e uma oportunidade Os teóricos queer expressam uma luta em
de reconstruir as políticas de equidade que que, segundo Miskolci (2012), em sua perspecti-
ainda se ancoram em categorias que se origi- va política, ao invés de uma simples defesa da
nam em matrizes heteronormativas. homossexualidade, tal qual reivindicavam os
O termo queer pode ser traduzido como movimentos LGBT, preocupa-se com a crítica
estranho, excêntrico, raro, extraordinário, aos regimes de normalização, reafirmando não
ridículo. Ele passa a ser utilizado por um uma perspectiva de diversidade, mas, sim, de
grupo de teóricos que pensam as questões diferença. Ao mesmo tempo, fazem um con-
de gênero e sexualidade com base em uma traponto às concepções de poder centradas na
perspectiva pós-crítica. Para Miskolci (2009, função repressora, para denunciar suas formas
p. 151), a escolha desse termo para se autode- de disciplinamento e controle.
nominarem, ou seja, um xingamento que A preocupação queer é, portanto, não de
denota perversão e desvio, destaca um “com- fixar uma identidade, mas de admitir múlti-
promisso em desenvolver uma analítica da plas formas de identidade. Não apenas lutar a
normalização focada na sexualidade”. Dessa favor dessas múltiplas formas de identidade,
forma, passam a refletir sobre como a sexua- mas denunciar os mecanismos por meio dos
lidade é moldada e atravessada por discursos quais elas foram situadas como anormais.
de normalização e, trazendo para o campo
da investigação, irão pensar “a dinâmica da
sexualidade e do desejo na organização das Exercitando uma reflexão
relações sociais” (2009, p. 150). por sobre a política de
Para Silva (2007, p. 105), o objetivo da teoria
queer é o de “complicar a questão da identi-
atenção integral à saúde da
dade e, indiretamente, também a questão da população LGBT: tecendo
identidade cultural e social”. A política queer fios, revelando textos,
consiste, assim, em perturbar os binários de olhando além do olhar
gênero. Nesse sentido, os teóricos queer serão
influenciados por uma vertente dos estudos Nosso campo de análise é a Política Nacional
culturais americanos, notadamente, alguns de Atenção Integral à População LGBT, que
estudos feministas. Entre eles, destacam-se surge como um reconhecimento à noção de

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que saúde é um problema complexo e não e a produção de conhecimentos que gerem


apenas um evento biológico, portanto, é novas possibilidades relativas à constituição
também social e cultural. É uma política que de políticas públicas e aos seus processos de
almeja produzir ao menos três diferentes implementação e avaliação (CONSELHO NACIONAL
níveis de mudança, a saber: a) produção de DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004).
conhecimentos no e com base nos espaços de Devemos ressaltar que o Brasil Sem
trabalho, que sejam capazes de modificar a Homofobia destaca em seus capítulos V e
natureza das práticas de saúde; b) produção VI o direito à educação e o direito à saúde,
de relações sociais mais horizontais com po- consolidando atenção e tratamentos igua-
tência de interferir nos processos de subje- litários. O direito à saúde, por sua vez, terá
tivação dos sujeitos envolvidos na produção como desdobramento o lançamento, em
em saúde; c) diminuição ou modificação das 2010, pelo Ministério da Saúde, da Política
relações sociais e culturais marcadas por di- Nacional de Atenção Integral à População
ferenças e subalternidade. LGBT. Tem como fundamento a implemen-
A Política de Atenção Integral à População tação de ações para eliminar a discriminação
LGBT tem história recente. Origina-se do contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais
programa Brasil Sem Homofobia, uma ar- e travestis e afirma que
ticulação do governo federal e da socieda-
de civil, sob a coordenação da Secretaria este deve ser um compromisso ético-político
Especial de Direitos Humanos da Presidência para todas as instâncias do SUS, de seus ges-
da República, fazendo parte do Programa tores, conselheiros, de técnicos e de trabalha-
Nacional de Direitos Humanos. É lançada dores de saúde. (BRASIL, 2010, p. 3).
em 2004, tendo como objetivo mais geral
Ao lançar o programa, o Estado brasileiro
promover a cidadania de gays, lésbicas, tra- reconhece dois aspectos importantes da rea-
vestis, transgêneros e bissexuais, a partir da lidade nacional, sistematicamente negligen-
equiparação de direitos e do combate à vio- ciados pelo poder público. Primeiro, de que
lência e à discriminação homofóbicas, res- há ‘iniquidades e desigualdades em saúde’,
peitando a especificidade de cada um desses em especial, para alguns grupos populacio-
grupos populacionais. (CONSELHO NACIONAL DE nais específicos, como a população LGBT, os
COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004, p. 11). negros, quilombolas, ciganos, as prostitutas e
a população em situação de rua, entre outros.
O programa é constituído de três princí- Em segundo lugar, assume que os processos
pios básicos: a) inclusão da perspectiva de de exclusão e discriminação à população
não discriminação por orientação sexual e LGBT têm efeitos sobre os seus processos
de promoção dos direitos humanos LGBT saúde-doença-cuidado (BRASIL, 2010).
nas políticas públicas; b) produção de co- Aqui, não é possível deixar de reforçar
nhecimento para a elaboração, implantação que a experiência da injúria e da abjeção
e avaliação das políticas públicas voltadas vai se constituindo, ao longo do tempo, em
para o combate à violência e à discriminação diferentes marcas. De um lado, a população
por orientação sexual; c) reafirmação de que LGBT interioriza em sua experiência de
a defesa, a garantia e a promoção dos direitos abjeção, produzindo representações sobre si
humanos incluem todas as formas de discri- mesma, quase sempre se colocando em uma
minação e violência. Em torno desses princí- posição de inferioridade, vivendo em perma-
pios se inscrevem noções de direito, repúdio nente estado de tensão, como se o outro fosse
à violência gerada pela diferença relaciona- sempre uma ameaça a si mesmo. Do outro
da ao exercício da diversidade homoafetiva lado, as ações homofóbicas se sutilizam,

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tornando-se quase sempre um elemento da É possível, portanto, olhar essas políticas


identidade masculina, uma ‘guardiã do dife- como férteis territórios para a inscrição de
rencialismo sexual’ (BORRILO, 2010). processos pedagógicos que, considerando
Nesse sentido, é possível pensar em uma as ideias de autonomia e emancipação, re-
‘política de identidade’ para a população conheçam a diferença e, em particular, a
LGBT, mesmo em um sistema de saúde de diferença produzida desde os princípios da
natureza universal como o SUS. Assume-se, heterossexualidade compulsória e da he-
aqui, a tensão entre a afirmação constitucio- teronormatividade como espaços fecundos
nal de que ‘saúde é um direito de todos e um de criação e produção de conhecimento, no
dever do Estado’ e a realidade cotidiana dos interior das relações de trabalho em saúde.
sujeitos, realidade atravessada por inúmeros Seguiremos uma trilha que toma a políti-
processos históricos e culturais que confor- ca de atenção integral à saúde da população
mam discursos de verdade, que legitimam a LGBT desde suas práticas discursivas, que
exclusão e, no limite, até a ameaça física de enunciam ações ou intenções referentes às
parcelas da população. relações entre educação, conhecimento e
Nesse sentido, a política tem por finali- direito.
dade enfrentar as ‘repercussões e as con- Nosso olhar por essa trilha será condu-
sequências’ dos preconceitos e das ações zido por conceitos centrais à perspectiva
homofóbicas. Reconhece que a reorganiza- queer, tais como a heteronormatividade, as
ção dos serviços de saúde é uma tarefa mais relações entre poder, resistência, liberdade
fácil do que a desconstrução do preconceito, e transgressão, em um contexto em que a
posicionando-se da seguinte forma: noção de sujeito é fortemente atravessada
pela relação entre identidade e diferença.
Os desafios na reestruturação de serviços, Devemos ressaltar, ainda, que, como são
rotinas e procedimentos na rede do SUS se- discursos contidos em enunciados políticos,
rão relativamente fáceis de serem superados. tomaremos a ideia que Mainardes (2006, p. 50),
Mais difícil, entretanto, será a superação do assume desde sua leitura do ciclo de políti-
preconceito e da discriminação que requer, de cas proposto por Ball. O autor afirma que
cada um e do coletivo, mudança de valores
baseados no respeito às diferenças. (BRASIL, a análise da política deveria incidir sobre a for-
2010, p. 14). mação do discurso da política e sobre a inter-
pretação ativa que os profissionais que atuam
A política toma como objetivo a promoção no contexto da prática fazem para relacionar
da saúde integral de lésbicas, gays, bissexu- os textos da política à prática.
ais, travestis e transexuais,
O autor aponta três contextos principais
eliminando a discriminação e o preconceito em que se estrutura o ciclo de políticas: o
institucional, contribuindo para a redução das contexto da influência, o da produção de
desigualdades e para a consolidação do SUS textos e o da prática. Destaca que são con-
como sistema universal, equânime. (BRASIL, textos que estão inter-relacionados e não
2010, p. 16). possuem uma dimensão temporal ou sequen-
cial. Como nossa trilha segue o percurso das
Para dar respostas a seus objetivos e fina- linhas traçadas pelo discurso, iluminaremos
lidades, estruturam-se ações que vão desde em nosso trajeto o contexto da produção
qualificar a rede de serviços de saúde, pas- de textos, sem, contudo, desconsiderar os
sando por processos educacionais, educação demais contextos.
permanente e produção de conhecimento. O contexto da produção de textos é

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80 MOTTA, J. I. J.

resultante de uma arena de disputas polí- incorporação de uma analítica queer à leitura
ticas, resultando que os “textos políticos de uma política de equidade nos ajuda a com-
normalmente estão articulados com a lin- preender os limites e as potências dessa po-
guagem do interesse público mais geral”. lítica. Alguns elementos estratégicos de uma
Para o autor, “tais textos não são, necessa- analítica queer podem ser assim enunciados:
riamente, internamente coerentes e claros, a) a textualidade e seus significados e signifi-
e podem também ser contraditórios”. Os cantes produzem e constituem sujeitos; b) os
textos políticos são o resultado de disputas espaços cotidianos onde se dão as práticas de
e acordos, pois os grupos que atuam dentro educação e de saúde devem ser desestabili-
dos diferentes lugares da produção de textos zadores de um status quo normalizador; c) as
competem para controlar as representações vozes locais, as pequenas narrativas devem
da política (MAINARDES, 2006, p. 52). ocupar um espaço essencial na desconstru-
É claro que as políticas são intervenções ção da diferença.
textuais, cuja resposta pode ter consequên-
cias reais. É no contexto das práticas que é
possível perceber suas consequências, seus Norma e cidadania: sou ou
limites e suas possibilidades. Para o autor: não sou cidadão?
O contexto da prática é onde a política está Considera-se que as ideias de normal e
sujeita à interpretação e recriação e onde a correto são construções históricas perpetu-
política produz efeitos e consequências que adas como verdades por meio da linguagem
podem representar mudanças e transfor- e tendo como resultado, no tempo presente,
mações significativas na política original. O sua legitimação social. Isso nos coloca frente
ponto chave é que as políticas não são sim- a um enorme desafio, o de supor que o dito
plesmente implementadas dentro desta are- normal e correto, socialmente aceito, passa a
na (contexto da prática), mas estão sujeitas ser o padrão de referência à ideia de direito.
à interpretação e, então, a serem recriadas. A ideia de direito, por sua vez, não pode
(MAINARDES, 2006, p. 53). ser pensada ao largo da noção de poder. O
poder se exerce, penetra e age nas institui-
Sabemos que os contextos que envolvem ções, nas desigualdades econômicas, na lin-
práticas sociais, como a saúde e a educa- guagem, no corpo. Aqui deve se ressaltar a
ção, em geral, constituíram-se ao longo da noção de poder soberano e poder relacional.
história em contextos de práticas normali- Essa distinção pode ser bem vista em Araujo:
zadoras da vida dos sujeitos. A sexualidade
tem sido normalizada desde a construção de A hipótese repressiva do poder o situa no eixo
uma sociedade heterossexista, em que a he- do poder soberano de legislar por meio de
teronormatividade tem sido o espaço de le- contrato. As teorias políticas são elaboradas
gitimação de uma ordem sexual excludente. a partir desse poder para qual é pertinente à
Ora, seria ingênuo imaginar que o contexto questão dos direitos e dos deveres. Já para
da produção de textos políticos, formulando o poder relacional analisado por Foucault, o
enunciados com potência de tencionar essa direito não legitima o poder e sim põe para
ordem, seria suficiente para produzir rup- funcionar procedimentos de sujeição. (ARAUJO,
turas nessa mesma ordem excludente. Os 2012, p. 28).
sujeitos em seus cotidianos de trabalho, em
geral, movimentam-se por meio dessa ordem Assim, a noção de direito pode estar no
naturalizada em seus interiores. meio de um entrecruzamento tenso entre o
Em contextos de crise, reafirma-se que a poder soberano e o poder relacional. Dessa

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forma, as políticas se inscrevem com base em Logo, as políticas necessitam operar em


mecanismos assentados no poder soberano, uma dupla hélice: de um lado, relativizar, do
mas ganham materialidade no âmbito do ponto de vista epistemológico, o normal e
poder relacional. o correto como indutores da construção da
Por outro lado, se aceita-se que há o normal noção de direito; e, do outro, desconstruir
e o correto, é porque, igualmente, aceita-se essa mesma noção nos sujeitos envolvidos
que há algo ou alguém fora da norma, tido na produção em saúde.
como incorreto. E se há esse algo ou alguém, A política de atenção integral à saúde
tem-se que admitir que esse possa estar LGBT, em sua apresentação, vem incorpo-
vivendo à margem do que poderia ser con- rando em seu discurso, ao menos de forma
siderável razoável, naquilo que socialmente geral, o conjunto de reivindicações dos mo-
pode ser assumido como um ‘bom estado de vimentos sociais LGBT. Assim, em seu texto,
se viver a vida’. há uma clara incorporação desses enuncia-
Aqui, poder-se-á estar frente a uma espécie dos, assim traduzidos:
de paradoxo, em que a ideia de direito pode
ser construída com base em referências do De modo geral, a demanda dos movimentos
que socialmente se legitimou como normal organizados LGBT envolve reivindicações nas
e correto, logo, como um dever de todos áreas dos direitos civis, políticos, sociais e hu-
aqueles vinculados a um poder soberano. manos, o que exige atuação articulada e coor-
Ao mesmo tempo, exclui do direito quem denada em todas as áreas do Poder Executivo.
ficou fora do que foi considerado normal ou Para o atual governo, cuja diretriz é eliminar a
correto, ou seja, exclusão por processo de su- discriminação e a marginalização, consonan-
jeição advindo do poder relacional. te com os Princípios de Yogyakarta, a Política
Se há excluídos, há necessidade de LGBT representa mais um passo na mudança
trazê-los para o campo da inclusão. de posição histórica a qual estas pessoas es-
Estratégias de inclusão são fortemente an- tão submetidas na sociedade brasileira. (BRA-
coradas nas formulações políticas que, por SIL, 2010, p. 7).
sua vez, são originárias de um possível con-
senso, ainda que provisório, advindo dos Nesse sentido, há um discurso que não só
atores que circulam na arena política. Logo, assume essas demandas, mas, também, que
encontra-se, mais uma vez, a intersecção reconhece que sua resposta só é possível se
entre poder soberano e poder relacional. O baseada em uma articulação intersetorial.
indivíduo passa a ser efeito e ponto de apoio Isso coloca as ações no interior do setor
das relações de poder (ARAUJO, 2012). saúde como potencial protagonista dessas
Esse paradoxo entre uma noção de direito articulações intersetoriais. O discurso ins-
advinda do que socialmente foi considerado crito na política aponta como horizonte a ser
como normal e correto ao longo da história e a alcançado os Princípios de Yogyakarta. Esses
exclusão desses direitos por aqueles que não se princípios são a resultante de um trabalho
ajustam aos padrões de normal e correto pode elaborado por 29 juristas internacionais e
ser aprofundado quando colocamos nosso versam sobre a aplicação da legislação inter-
olhar no mundo das relações do trabalho em nacional de direitos humanos com relação à
saúde. Os sujeitos do trabalho se constituíram orientação sexual e à identidade de gênero.
quer por meio da educação formal, quer por A política nacional, ao colocar no horizon-
meio de suas vivências cotidianas como su- te os princípios de Yogyakarta, assume que:
jeitos que introjetaram as ideias de normal e
correto e assentiram que o direito é quase um Violações de direitos humanos que atingem
sinônimo do que é percebido como correto. pessoas por causa de sua orientação sexual

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ou identidade de gênero, real ou percebida, Devemos aqui fazer duas distinções. De


constituem um padrão global e consolidado um lado, está o direito como uma ascensão
que causa sérias preocupações. O rol dessas a um lugar negado às homossexualidades,
violações inclui execuções extra-judiciais, tor- como a união civil e o reconhecimento das
tura e maus tratos, agressões sexuais e estru- famílias homoparentais. Do outro lado, está
po, invasão de privacidade, negação de opor- o direito como direitos humanos, que apro-
tunidades de emprego e educação e sérias xima a ‘cidadania sexual’ de outras formas
discriminações em relação ao gozo de outros de cidadania historicamente discriminadas,
direitos humanos. (CLAM, 2007, p. 7). nomeadamente, as minorias étnicas e raciais.
Essa distinção faz retornar o paradoxo
Há aqui uma clareza nos discursos que mencionado anteriormente entre a noção de
conformam não só a ideia de que os temas direito advinda da construção do normal e
referidos a gênero e sexualidade são uma do correto. Assim, teóricos queer irão ques-
questão de direitos humanos (o que remete tionar esse direito com algo que faz referên-
a uma anterior violação dos mesmos), como, cia a uma categoria da heteronormatividade.
também, reafirmam a existência de uma Logo, em que pese à reconstituição de um
identidade de gênero. Esse tema será posto ‘direito’ negado às relações homoafetivas, ou
sob tensão pelos teóricos queer ao assumi- seja, ‘a união civil’ e toda a gama de efeitos
rem ser a identidade uma categoria instável, sociais oriundos dessa condição, há uma rea-
ainda que possam, de alguma forma, como firmação de um pressuposto construído com
apontado na reflexão conceitual realizada base nas relações heterossexuais e com fins
neste artigo, ser balizas para a construção de de reprodução.
políticas sociais mais inclusivas. Aqui, não há Em um contexto de fundo está o posicio-
por parte dos teóricos queer um desconhe- namento queer, em que poder, resistência e a
cimento dos graves problemas dos direitos crítica a essa relação são tarefas interminá-
humanos relacionados à população LGBT, veis. Estar na fronteira, recusar a classifica-
mas, sim, um alerta para que os direitos não ção, investir no híbrido, no não conhecimento
eliminem, por si só, a base heteronormati- são formas de expressão da resistência como
va de sua constituição. Aqui, a ideia não é sobrevivência, no movimento da vida como
assumir um papel de tolerância, mas, sim, de ilimitado. Assim, há sempre uma posição
compreender que a diferença é parte da exis- potencialmente desestabilizadora na pers-
tência humana e deve ser respeitada como pectiva queer. Para Ferrari, Almeida, Dinali:
diferença e não tolerada.
Ainda na trilha da articulação da políti- O queer, ao construir outro lugar também tira
ca com uma noção de direito, há uma clara do lugar o que está a sua volta, o que se rela-
posição da mesma com referência a algumas ciona com ele. Isso porque o queer só é cons-
agendas dos movimentos sociais. Dessa truído em relação. Numa relação, quando um
forma, o texto da política vai se posicionando: altera o seu lugar também altera o lugar do
outro. (FERRARI; ALMEIDA; DINALI, 2010, p. 115).
É neste contexto que questões como a união
civil, o reconhecimento das famílias homopa- Esse lugar desestabilizador é, ao mesmo
rentais, a redução da violência, a garantia dos tempo, campo de força em cenários de
direitos sexuais e reprodutivos, entre outras crise e baixa capacidade de consensos.
situações de desigualdades de direitos, pas- Desestabilizar significa, também, a potência
sam a compor o conjunto das agendas políti- de deslocar, de se produzir novos processos
cas Governamentais. (BRASIL, 2010, p. 7). de subjetivação nos ambientes de trabalho.
É focar a ação cuidadora como um território

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Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer para tempos de crise democrática 83

de produção de um novo devir, de uma nova outro diferente nas relações de cuidado.
possibilidade criadora. Aqui, não há um ato Tomam-se neste artigo os textos da políti-
de inclusão, mas seguidas possibilidades de ca tal qual a ideia apresentada por Foucault,
inclusão. de que o discurso sempre se produziria em
Da mesma forma, a inscrição da norma razão das relações de poder, ainda que haja
como um caminho a se chegar ao direito um mútuo condicionamento entre as práti-
estará sempre e potencialmente submetida cas discursivas e as não discursivas. Assim,
a esses deslocamentos, de tal forma que a podemos considerar que, quanto mais gené-
noção de direito possa se esvaziar de senti- ricos são os enunciados políticos, mais eles
dos, quando em referência a sujeitos fora da nos informam sobre os discursos que não são
norma ou incorretos do ponto de vista de um ditos, não posicionados, e cada vez mais eles
projeto de sociedade. Pois o horizonte aqui se configuram como práticas não discursivas.
é um caminho de permanente busca de li- Inscrever nos enunciados políticos práticas
berdade, e o sentido da liberdade, no espaço não discursivas significa o risco de ter como
queer, é a permanente ruptura da norma. efeito algo contrário àquilo que se espera. Ao
invés de se produzirem ações, o que se gera
é o silêncio. Nessa dinâmica, é importante
Considerações finais compreender as relações de poder que per-
meiam processos de silenciamento. Como
Apesar dos enunciados da política nacio- afirma Salih,
nal formatarem uma carta de intenções de
caráter mais geral, há um forte estímulo para se o poder, como afirma Foucault, em vez de
que os movimentos sociais LGBT ocupem proibitivo, é produtivo, então os censores da
cada vez mais os espaços de controle social sociedade podem estar envolvidos na geração
do sistema nacional de saúde. Isso, se de e na proliferação dos discursos e das repre-
fato acontecer, cria espaços importantes na sentações que eles se propõem a banir. (2012,
arena política onde se inscreve o contexto p. 139).
de produção de textos, assim como pode
influenciar os atores locais que executam as Mesmo em instâncias de silenciamento,
políticas a tencionar processos de ruptura ou constituído com base em efeitos de poder, há
esvaziamento da política. sempre, para Butler (2008), uma relação entre
Considerar que os movimentos sociais reconhecimento, resistência e intensidade da
LGBT possam cada vez mais assumir vida. Para a teoria queer, o reconhecimento
espaços importantes nos fóruns de definição diz respeito à construção do que é humano.
de políticas é importante na luta por direi- O não reconhecimento também é a negação
tos, mas, sob o ponto de vista adotado neste do próprio ser. Aquele que não é reconheci-
artigo, com base na reflexão queer, torna-se do não é um ser possível. Para Ferrari:
mais importante ainda por dois aspectos:
a) propiciar o exercício da alteridade como As normas de reconhecimento estão postas
condição para transformar a diferença, não num mundo cultural já organizado quando
em uma força negativa, mas como agente de chegamos, quando nascemos, o que não sig-
novas possibilidades criadoras na produção nifica que não possam ser modificadas. Des-
do cuidado e na gestão em saúde; b) propiciar construídas e reconstruídas, sobretudo aque-
que o princípio da integralidade do cuidado las que dizem respeito ao que se considera
em saúde, de fato, contemple um novo olhar como reconhecível como humano. Nossa pró-
sobre o processo saúde-doença-cuidado pria capacidade de persistência está relacio-
e novas possibilidades de acolhimento do nada ao que está fora de nós e é exatamente

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nas relações que somos capazes de estabele- de estar no mundo, mas, também, como uma
cer com esse fora que é a base da nossa resis- potência de se (re) inventar as formas de
tência e da nossa capacidade de resistência. estar no mundo.
(FERRARI, 2010, p. 115). Compreendemos que, em tempos de crise
democrática, algo tão radicalmente anuncia-
Pode-se compreender, nesse primeiro dor de espaços de resistência, como a teoria
campo de análise, que a teoria queer embara- queer, não só traz à tona a discussão sobre
lha as noções de direito e cidadania quando a constituição dos sujeitos da sexualidade,
se refere a normas que sustentam os princí- como, também, sobre os próprios limites
pios de heteronormatividade e heterossexu- daqueles modelos de construção de conhe-
alidade compulsórias. Isso não significa uma cimentos, onde o sexo está confinado à sua
recusa a enunciados que vão nessa direção, percepção biológica, responsável por deli-
mas, sim, a compreensão de que há sempre mitar a fronteira entre os sujeitos masculi-
um estado de tensão no interior das rela- no/feminino, heterossexual/homossexual e
ções inscritas no contexto das práticas. Essa normal/anormal.
tensão, por sua vez, produz processos de Ao se considerar que a política de atenção
subjetivação, gerando novas subjetividades integral à saúde da população LGBT está
com base em deslocamentos na relação com estruturada em eixos que se organizam em
o outro. torno de processos educacionais concernen-
Reconhece-se, aqui, uma clara preocupa- tes à população de um território e aos pro-
ção no âmbito dessas políticas em articular fissionais de saúde, a organização de novas
ações que propiciem autonomia dos sujeitos práticas de saúde e a produção de conheci-
e rompam com o estigma da abjeção. Ainda mentos, a teoria queer e uma pedagogia queer
que sejam enunciados demasiadamente ge- são capazes de propiciar a constituição de
néricos, eles acabam por se constituir em um novos modos de vida e existência, chamando
roteiro para possíveis intervenções educa- a atenção para as experiências de não captura
cionais que considerem o outro e sua dife- e contraconduta em relação ao corpo, ao
rença como espaço não só de novas formas desejo e as práticas sexuais e sociais. s

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Sexualidades e políticas públicas: uma abordagem queer para tempos de crise democrática 85

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