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RESUMO Este trabalho visa a compreender uma política pública de equidade em saúde relativa
às sexualidades que se desviam da heterossexualidade compulsória, em um contexto de crise
democrática. Para isso, toma-se a teoria queer para analisar, à luz de categorias como poder,
resistência e transgressão, o que está por traz do contexto discursivo da política de atenção
à saúde da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (LGBT), produzindo uma
tensão entre norma, direito e participação social. É percebido que, em uma perspectiva queer,
a instabilidade das identidades e a compreensão das redes de poder no interior das práticas
de saúde podem fornecer condições de resistências mesmo em situações de crise do Estado
democrático.
ABSTRACT This work aims to understand a public policy of health equity related to sexualities
that deviate from compulsory heterosexuality in a context of democratic crisis. For this, queer
theory is used to analyze, in the light of categories such as power, resistance and transgression,
what lies behind the discursive context of the health care policies of the Lesbian, Gay, Bisexual,
and transgender (LGBT) population, producing a tension between norm, law, and social partici-
pation. It is perceived that, from a queer perspective, the instability of identity and the unders-
tanding of the networks of power within the health practices can provide conditions of resistance
even in situations of crisis of the democratic state.
1 Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), Escola
Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp),
Departamento de Ciências
Sociais (DCS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
inacio@ensp.fiocruz.br
DOI: 10.1590/0103-11042016S07 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 73-86, DEZ 2016
74 MOTTA, J. I. J.
diferença cultural como potência criadora na os escritos de Judith Butler. Essa autora
constituição de novas subjetividades, de novas provoca uma tensão permanente sobre o bi-
formas de ser e sentir o mundo e o outro. narismo de gêneros, apontando que:
Ao tomar a diferença como o lugar de
contraponto do que está dentro da norma, A hipótese de um sistema binário dos gêneros
portanto, constituindo a norma, ao mesmo encerra implicitamente a crença numa relação
tempo que se faz marginal, por não caber no mimética entre gênero e sexo, na qual o gêne-
espaço da norma, as diferentes sexualidades ro reflete o sexo ou é por ele restrito. Quan-
vêm sendo, ao longo da história humana, do o status construído do gênero é teorizado
objeto de injúrias, discriminação e violência, como radicalmente independente do sexo, o
muitas vezes sobre o manto do poder público. próprio gênero se torna um artifício flutuante,
Ao propor embaralhar o jogo das identidades, com a consequência de que ‘homem’ e ‘mas-
ao mesmo tempo que trazem à tona questões culino’ podem, com igual facilidade, significar
relativas a poder, resistência e transgressão, tanto um corpo feminino como um masculino,
os teóricos queer se tornam, a um só tempo, e ‘mulher’ e ‘feminino’, tanto um corpo mas-
uma forma radical de resposta às demandas culino como um feminino. (BUTLER, 2008, p. 24-25).
dos movimentos sociais por maior espaço de
inclusão social e cultural e uma oportunidade Os teóricos queer expressam uma luta em
de reconstruir as políticas de equidade que que, segundo Miskolci (2012), em sua perspecti-
ainda se ancoram em categorias que se origi- va política, ao invés de uma simples defesa da
nam em matrizes heteronormativas. homossexualidade, tal qual reivindicavam os
O termo queer pode ser traduzido como movimentos LGBT, preocupa-se com a crítica
estranho, excêntrico, raro, extraordinário, aos regimes de normalização, reafirmando não
ridículo. Ele passa a ser utilizado por um uma perspectiva de diversidade, mas, sim, de
grupo de teóricos que pensam as questões diferença. Ao mesmo tempo, fazem um con-
de gênero e sexualidade com base em uma traponto às concepções de poder centradas na
perspectiva pós-crítica. Para Miskolci (2009, função repressora, para denunciar suas formas
p. 151), a escolha desse termo para se autode- de disciplinamento e controle.
nominarem, ou seja, um xingamento que A preocupação queer é, portanto, não de
denota perversão e desvio, destaca um “com- fixar uma identidade, mas de admitir múlti-
promisso em desenvolver uma analítica da plas formas de identidade. Não apenas lutar a
normalização focada na sexualidade”. Dessa favor dessas múltiplas formas de identidade,
forma, passam a refletir sobre como a sexua- mas denunciar os mecanismos por meio dos
lidade é moldada e atravessada por discursos quais elas foram situadas como anormais.
de normalização e, trazendo para o campo
da investigação, irão pensar “a dinâmica da
sexualidade e do desejo na organização das Exercitando uma reflexão
relações sociais” (2009, p. 150). por sobre a política de
Para Silva (2007, p. 105), o objetivo da teoria
queer é o de “complicar a questão da identi-
atenção integral à saúde da
dade e, indiretamente, também a questão da população LGBT: tecendo
identidade cultural e social”. A política queer fios, revelando textos,
consiste, assim, em perturbar os binários de olhando além do olhar
gênero. Nesse sentido, os teóricos queer serão
influenciados por uma vertente dos estudos Nosso campo de análise é a Política Nacional
culturais americanos, notadamente, alguns de Atenção Integral à População LGBT, que
estudos feministas. Entre eles, destacam-se surge como um reconhecimento à noção de
resultante de uma arena de disputas polí- incorporação de uma analítica queer à leitura
ticas, resultando que os “textos políticos de uma política de equidade nos ajuda a com-
normalmente estão articulados com a lin- preender os limites e as potências dessa po-
guagem do interesse público mais geral”. lítica. Alguns elementos estratégicos de uma
Para o autor, “tais textos não são, necessa- analítica queer podem ser assim enunciados:
riamente, internamente coerentes e claros, a) a textualidade e seus significados e signifi-
e podem também ser contraditórios”. Os cantes produzem e constituem sujeitos; b) os
textos políticos são o resultado de disputas espaços cotidianos onde se dão as práticas de
e acordos, pois os grupos que atuam dentro educação e de saúde devem ser desestabili-
dos diferentes lugares da produção de textos zadores de um status quo normalizador; c) as
competem para controlar as representações vozes locais, as pequenas narrativas devem
da política (MAINARDES, 2006, p. 52). ocupar um espaço essencial na desconstru-
É claro que as políticas são intervenções ção da diferença.
textuais, cuja resposta pode ter consequên-
cias reais. É no contexto das práticas que é
possível perceber suas consequências, seus Norma e cidadania: sou ou
limites e suas possibilidades. Para o autor: não sou cidadão?
O contexto da prática é onde a política está Considera-se que as ideias de normal e
sujeita à interpretação e recriação e onde a correto são construções históricas perpetu-
política produz efeitos e consequências que adas como verdades por meio da linguagem
podem representar mudanças e transfor- e tendo como resultado, no tempo presente,
mações significativas na política original. O sua legitimação social. Isso nos coloca frente
ponto chave é que as políticas não são sim- a um enorme desafio, o de supor que o dito
plesmente implementadas dentro desta are- normal e correto, socialmente aceito, passa a
na (contexto da prática), mas estão sujeitas ser o padrão de referência à ideia de direito.
à interpretação e, então, a serem recriadas. A ideia de direito, por sua vez, não pode
(MAINARDES, 2006, p. 53). ser pensada ao largo da noção de poder. O
poder se exerce, penetra e age nas institui-
Sabemos que os contextos que envolvem ções, nas desigualdades econômicas, na lin-
práticas sociais, como a saúde e a educa- guagem, no corpo. Aqui deve se ressaltar a
ção, em geral, constituíram-se ao longo da noção de poder soberano e poder relacional.
história em contextos de práticas normali- Essa distinção pode ser bem vista em Araujo:
zadoras da vida dos sujeitos. A sexualidade
tem sido normalizada desde a construção de A hipótese repressiva do poder o situa no eixo
uma sociedade heterossexista, em que a he- do poder soberano de legislar por meio de
teronormatividade tem sido o espaço de le- contrato. As teorias políticas são elaboradas
gitimação de uma ordem sexual excludente. a partir desse poder para qual é pertinente à
Ora, seria ingênuo imaginar que o contexto questão dos direitos e dos deveres. Já para
da produção de textos políticos, formulando o poder relacional analisado por Foucault, o
enunciados com potência de tencionar essa direito não legitima o poder e sim põe para
ordem, seria suficiente para produzir rup- funcionar procedimentos de sujeição. (ARAUJO,
turas nessa mesma ordem excludente. Os 2012, p. 28).
sujeitos em seus cotidianos de trabalho, em
geral, movimentam-se por meio dessa ordem Assim, a noção de direito pode estar no
naturalizada em seus interiores. meio de um entrecruzamento tenso entre o
Em contextos de crise, reafirma-se que a poder soberano e o poder relacional. Dessa
de produção de um novo devir, de uma nova outro diferente nas relações de cuidado.
possibilidade criadora. Aqui, não há um ato Tomam-se neste artigo os textos da políti-
de inclusão, mas seguidas possibilidades de ca tal qual a ideia apresentada por Foucault,
inclusão. de que o discurso sempre se produziria em
Da mesma forma, a inscrição da norma razão das relações de poder, ainda que haja
como um caminho a se chegar ao direito um mútuo condicionamento entre as práti-
estará sempre e potencialmente submetida cas discursivas e as não discursivas. Assim,
a esses deslocamentos, de tal forma que a podemos considerar que, quanto mais gené-
noção de direito possa se esvaziar de senti- ricos são os enunciados políticos, mais eles
dos, quando em referência a sujeitos fora da nos informam sobre os discursos que não são
norma ou incorretos do ponto de vista de um ditos, não posicionados, e cada vez mais eles
projeto de sociedade. Pois o horizonte aqui se configuram como práticas não discursivas.
é um caminho de permanente busca de li- Inscrever nos enunciados políticos práticas
berdade, e o sentido da liberdade, no espaço não discursivas significa o risco de ter como
queer, é a permanente ruptura da norma. efeito algo contrário àquilo que se espera. Ao
invés de se produzirem ações, o que se gera
é o silêncio. Nessa dinâmica, é importante
Considerações finais compreender as relações de poder que per-
meiam processos de silenciamento. Como
Apesar dos enunciados da política nacio- afirma Salih,
nal formatarem uma carta de intenções de
caráter mais geral, há um forte estímulo para se o poder, como afirma Foucault, em vez de
que os movimentos sociais LGBT ocupem proibitivo, é produtivo, então os censores da
cada vez mais os espaços de controle social sociedade podem estar envolvidos na geração
do sistema nacional de saúde. Isso, se de e na proliferação dos discursos e das repre-
fato acontecer, cria espaços importantes na sentações que eles se propõem a banir. (2012,
arena política onde se inscreve o contexto p. 139).
de produção de textos, assim como pode
influenciar os atores locais que executam as Mesmo em instâncias de silenciamento,
políticas a tencionar processos de ruptura ou constituído com base em efeitos de poder, há
esvaziamento da política. sempre, para Butler (2008), uma relação entre
Considerar que os movimentos sociais reconhecimento, resistência e intensidade da
LGBT possam cada vez mais assumir vida. Para a teoria queer, o reconhecimento
espaços importantes nos fóruns de definição diz respeito à construção do que é humano.
de políticas é importante na luta por direi- O não reconhecimento também é a negação
tos, mas, sob o ponto de vista adotado neste do próprio ser. Aquele que não é reconheci-
artigo, com base na reflexão queer, torna-se do não é um ser possível. Para Ferrari:
mais importante ainda por dois aspectos:
a) propiciar o exercício da alteridade como As normas de reconhecimento estão postas
condição para transformar a diferença, não num mundo cultural já organizado quando
em uma força negativa, mas como agente de chegamos, quando nascemos, o que não sig-
novas possibilidades criadoras na produção nifica que não possam ser modificadas. Des-
do cuidado e na gestão em saúde; b) propiciar construídas e reconstruídas, sobretudo aque-
que o princípio da integralidade do cuidado las que dizem respeito ao que se considera
em saúde, de fato, contemple um novo olhar como reconhecível como humano. Nossa pró-
sobre o processo saúde-doença-cuidado pria capacidade de persistência está relacio-
e novas possibilidades de acolhimento do nada ao que está fora de nós e é exatamente
nas relações que somos capazes de estabele- de estar no mundo, mas, também, como uma
cer com esse fora que é a base da nossa resis- potência de se (re) inventar as formas de
tência e da nossa capacidade de resistência. estar no mundo.
(FERRARI, 2010, p. 115). Compreendemos que, em tempos de crise
democrática, algo tão radicalmente anuncia-
Pode-se compreender, nesse primeiro dor de espaços de resistência, como a teoria
campo de análise, que a teoria queer embara- queer, não só traz à tona a discussão sobre
lha as noções de direito e cidadania quando a constituição dos sujeitos da sexualidade,
se refere a normas que sustentam os princí- como, também, sobre os próprios limites
pios de heteronormatividade e heterossexu- daqueles modelos de construção de conhe-
alidade compulsórias. Isso não significa uma cimentos, onde o sexo está confinado à sua
recusa a enunciados que vão nessa direção, percepção biológica, responsável por deli-
mas, sim, a compreensão de que há sempre mitar a fronteira entre os sujeitos masculi-
um estado de tensão no interior das rela- no/feminino, heterossexual/homossexual e
ções inscritas no contexto das práticas. Essa normal/anormal.
tensão, por sua vez, produz processos de Ao se considerar que a política de atenção
subjetivação, gerando novas subjetividades integral à saúde da população LGBT está
com base em deslocamentos na relação com estruturada em eixos que se organizam em
o outro. torno de processos educacionais concernen-
Reconhece-se, aqui, uma clara preocupa- tes à população de um território e aos pro-
ção no âmbito dessas políticas em articular fissionais de saúde, a organização de novas
ações que propiciem autonomia dos sujeitos práticas de saúde e a produção de conheci-
e rompam com o estigma da abjeção. Ainda mentos, a teoria queer e uma pedagogia queer
que sejam enunciados demasiadamente ge- são capazes de propiciar a constituição de
néricos, eles acabam por se constituir em um novos modos de vida e existência, chamando
roteiro para possíveis intervenções educa- a atenção para as experiências de não captura
cionais que considerem o outro e sua dife- e contraconduta em relação ao corpo, ao
rença como espaço não só de novas formas desejo e as práticas sexuais e sociais. s
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