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* Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Serviço Social pela UFPE. Graduado em
Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: j_r1987@hotmail.com
envolve a abordagem marxiana sobre a ideolo- ROS, 2008, p. 57). A referência às “condições
gia vista como forma específica de consciência materiais de vida” ocupa uma posição essencial
social operante no “sócio-metabolismo” (MÉSZÁ- no sistema marxiano, no sentido genético e es-
ROS, 2009a). Mais especificamente, é neces- trutural: tanto em relação à gênese histórica das
sário situar como Marx apreendeu e investigou formas mais complexas de intercâmbio humano
a qualidade das interações entre os aspectos como diante do fato de que as condições mate-
material e espírito-intelectual da reprodução riais constituem a precondição da vida humana
social do ordenamento burguês. No conjunto de estruturalmente necessária em todas as formas
ensaios publicados no livro Filosofia, ideologia concebíveis de sociedade. Todavia, essa deter-
e consciência social, István Mészáros (2008) minação examinada isoladamente é incapaz de
afirma que, embora os fundamentos econômicos explicar as complexidades do próprio desen-
da sociedade capitalista constituam em Marx volvimento social. Em verdade, com o evolver
os “determinantes fundamentais” do ser social histórico das forças produtivas humanas, o papel
das classes sociais, os mesmos são igualmen- da consciência e das formas ideológicas se torna
te – e de forma concomitante – “determinantes cada vez maior, podendo estas ser colocadas a
determinados”. Assim, os apontamentos sobre o serviço da vida alienada, da mesma forma que
significado ontológico da economia apenas ad- podem permitir visualizar a suplantação da alie-
quirem sentido considerando-se a capacidade de nação (MÉSZÁROS, 2008).
apreendermos a ideia de “interações complexas” Para Mészáros (2008), a dificuldade de
nos mais variados campos da atividade humana. alcançar as implicações analíticas mais vastas
As diversificadas manifestações institu- desse posicionamento reside também na multi-
cionais e espírito-intelectuais da vida social não dimensionalidade de seus conceitos, pois todas
se revelam simplesmente “construídas sobre” as categorias não são apenas estruturalmente
uma base econômica, mas também “estruturam inter-relacionadas, mas também cada uma delas
ativamente” essa base, por meio de seu estatuto é concebida como inerentemente histórica. Por-
próprio, imensamente intricado e “relativamente tanto, o desafio consiste em apreender de forma
autônomo”. As determinações econômicas não adequada o dinamismo histórico das categorias
existem fora do complexo historicamente mutável estruturalmente interligadas, que são partes cons-
de mediações sociais especificas. Portanto, a tituintes de um todo complexo. Destarte, as formas
consciência social, nas suas mediadas formas ideológicas, tal como as próprias classes que as
e manifestações, possui uma estrutura própria elaboram, apenas adquirem significado completo
“relativamente autônoma”, determinando, de como focos de uma multiplicidade de fenômenos
forma recíproca, as estruturas econômicas da sociais estrutural e dialeticamente interligados
sociedade, ao mesmo tempo que é determinada em determinação recíproca (MÉSZÁROS, 2008).
por essas últimas. Consequentemente, nenhum Essa relação de interação complexa entre as for-
dos aspectos econômicos faz sentido sem a mas ideológicas e a base socioeconômica, apre-
categoria historicamente mutável das “necessi- endida pela perspectiva marxiana, é evidenciada
dades humanas”, impossível de ser explicada de no prefácio à Contribuição à crítica da economia
maneira plausível em termos de determinações política, de 1859, no qual se encontra sintetizada
econômicas unilaterais (MÉSZÁROS, 2008, p. a posição analítica assumida pelo autor:
57).
[...] na produção social da própria existência,
O próprio conceito de consciência de
os homens entram em relações determinadas,
classe presente da obra marxiana é ininteligível necessárias e independentes de sua vontade;
apartado da visão de “causalidade social” que essas relações de produção correspondem a
lhe corresponde. Na abordagem de Marx, toda um grau determinado de desenvolvimento de
conquista humana introduz um elemento novo no suas forças produtivas materiais. A totalidade
conjunto complexo de interações que caracteriza dessas relações de produção compõe a base
a sociedade em qualquer tempo. Portanto, o que real sobre a qual se eleva uma superestrutu-
seria questão “no início”, possivelmente pode ra jurídica e política e à qual correspondem
não se manter como questão em um estágio formas sociais determinadas de consciência.
posterior do desenvolvimento histórico (MÉSZÁ- (MARX, 2008, p.45).
se “entrelaçam de modo conflitante”, encontram fundamental, o qual deixa sua marca indelével
manifestações no plano da consciência social nas ideologias em conflito, surge do caráter
na grande diversidade do discurso ideológico, historicamente mutável das práticas produtivas
relativamente autônomo (embora nunca inde- e distributivas da sociedade e da necessidade
pendente), com seu impacto poderoso, mesmo correspondente de se questionar sua imposição
sobre os processos materiais mais tangíveis do continuada, à medida que as ideologias domi-
metabolismo social (MÉSZÁROS, 2008). nantes se tornam crescentemente enfraquecidas
As ideologias em luta de qualquer período ao longo do desenvolvimento histórico.
histórico constituem a consciência prática ne- Mészáros (2008) elenca as diferenças
cessária, por meio da qual as mais importantes entre três posições ideológicas fundamental-
classes da sociedade se relacionam e de certa mente distintas, que possuem consideráveis
forma até mesmo se confrontam abertamente, implicações para os tipos de conhecimento
ao articular sua visão de ordem social correta e compatíveis com cada uma delas: 1) aquela que
apropriada como um todo abrangente. Destarte, apoia a ordem estabelecida com uma atitude
a luta hegemônica mais importante em termos acrítica, adotando e glorificando a continuidade
estruturais – cujo objetivo consiste em preservar do sistema dominante como horizonte absoluto
ou, ao contrário, superar o sociometabolismo da própria vida social; 2) aquela que expõe as ir-
dominante – encontra suas manifestações ne- racionalidades da forma específica da sociedade
cessárias nas “formas ideológicas” orientadas de classe, que é rejeitada a partir de uma nova
para a prática, nas quais os homens se tornam posição de vantagem – mas sua crítica é viciada
conscientes desse conflito e buscam resolvê-lo pelas contradições de sua própria posição social;
(MARX, 2008; MÉSZÁROS, 2008). O que deter- 3) e aquela que questiona radicalmente a persis-
mina a natureza da ideologia é o imperativo de se tência histórica do próprio horizonte de classe,
tornar “consciente em termos práticos” do con- antevendo, como objetivo de sua intervenção
flito social fundamental – a partir dos pontos de prática consciente, a supressão de todas as for-
vista mutuamente excludentes das alternativas mas de antagonismo de classe. Por último, como
hegemônicas que se defrontam em determinada precondições teórico-metodológicas necessárias
ordem social – com o propósito de “resolvê- para o entendimento da natureza da ideologia, é
-los através da luta” (MARX, 2008, p. 46). As preciso que: 1) reconheçamos sua persistência
próprias elaborações gramscianas indicam que em diversas formações sociais que se sucedem
as diversas formas ideológicas de consciência e demonstremos a continuidade paradoxal da
social acarretam, em graus variáveis, direta ou reprodução ideológica ao longo do tempo; 2)
indiretamente, diversas implicações práticas na realcemos os parâmetros socioeconômicos con-
arte e na literatura, bem como na filosofia e na cretos, por meio dos quais se podem conceituar a
teoria social, não obstante a ancoragem socio- emergência histórica e o funcionamento contínuo
política das mesmas em posições progressistas da ideologia; 3) consideremos sempre o modo
ou conservadoras. de operação do discurso ideológico e as formas
Finalmente, devemos situar algumas im- institucionais/instrumentais exigidas para tornar
plicações analíticas propostas por Mészáros exequível o seu impacto; 4) identifiquemos o
(2008), a partir da obra de Marx. Inicialmente, o tipo de racionalidade operante nas formas ideo-
autor considera que as ideologias são circuns- lógicas (MÉSZÁROS, 2008). Essas indicações
critas em sentido duplo, em termos de época: revelam as condições para a análise das formas
primeiro, no sentido de que, como orientação de hegemonia, cujos elementos perpassam os
conflitante das várias formas de consciência aspectos materiais, ideólogos, políticos e ins-
social prática, sua característica proeminente titucionais, que assumem particularidade nas
persiste enquanto a sociedade for divida em formações sociais através de uma diversidade
classes, ou seja, a consciência prática de todas de mediações elaboradas pelas classes sociais.
essas sociedades não pode deixar de ser “ide-
ológica” em decorrência do caráter inexoravel-
mente antagônico de suas estruturas sociais;
segundo: o caráter específico do conflito social
Buci-Glucksmann (1980) identifica que o Essa função serve para compreender melhor o
conceito de “aparelho de hegemonia” de Gra- problema ético, que busca, na prática, a cor-
msci qualifica e precisa a hegemonia, entendida respondência “espontânea e livremente aceita”
como hegemonia política e cultural das classes entre os atos e as omissões de cada indivíduo,
dominantes. Conjunto complexo de instituições, entre a conduta de cada indivíduo e os fins que
ideologias práticas e agentes (entre os quais os a sociedade se impõe como necessários. Essa
“intelectuais”), o “aparelho de hegemonia” ape- correspondência é “coercitiva”, na esfera do
nas encontra sua unificação por meio da análise direito positivo tecnicamente entendido, e é “es-
da expansão de uma classe. Uma hegemonia pontânea e livre” (mais especificamente, “ética”)
não se unifica como “aparelho”, a não ser por naquelas áreas em que a coação não é estatal,
referência à classe que se constitui em e através mas do ambiente moral. As ações de coerção e
da mediação de múltiplos “subsistemas”: apare- consentimento referem-se às dimensões domi-
lho escolar (da escola à universidade), aparelho nante e dirigente da hegemonia de classe. Assim,
cultural (dos museus e bibliotecas), organização para que uma classe possa tornar-se hegemô-
da informação, do meio ambiente, do urbanismo nica (constituir-se em classe “dirigente”, em Es-
e dos aparelhos eventualmente herdados de tado), devem ser atendidas concomitantemente
um modo de produção anterior (Igreja e seus condições determinadas nos campos econômico,
intelectuais, por exemplo). político e cultural (GRAMSCI, 1984a).
Nas conhecidas elaborações de Gramsci
(2000) sobre o Americanismo e fordismo, fica Apontamentos sobre Estado e sociedade
evidente a perspectiva de totalidade na análise da civil
busca pela hegemonia na experiência da indústria
fordista norte-americana. Hegemonia que “nasce Conforme as indicações desenvolvidas
na fábrica”, buscando desenvolver um novo “tipo até agora, observamos que para um aprofunda-
humano”, conforme o novo “tipo de trabalho e de mento da concepção da relação de hegemonia
processo produtivo” da indústria fordizada. Essa em Gramsci é decisiva uma incursão nas suas
análise das mediações institucionais, organizacio- principais elaborações sobre as relações entre
nais e ideológicas (tanto persuasivas quanto coer- Estado e sociedade civil. Nesses termos, as
citivas) desenvolvidas por Henry Ford na busca da funções estatais, identificadas na esfera da
construção de um “nexo psicofísico” do trabalho superestrutura, operam essencialmente sobre
profissional adequado às exigências produtivas, as forças econômicas. No desenvolvimento das
possui como pressuposto a concepção de que funções estatais “se reorganiza e se desenvolve
“los nuevos métodos de trabajo son indisolubles o aparelho de produção econômica, se inova a
de un determinado modo de vivir, de pensar y de estrutura” (GRAMSCI, 2007, p. 28). Em tal con-
sentir la vida: no se pueden obtener éxitos en un cepção, os fenômenos da superestrutura não
campo sin obtener resultados tangibles en el otro” podem ser abandonados a si mesmos, ao seu
(GRAMSCI, 2000, p. 81). desenvolvimento espontâneo, a uma germinação
Portanto, é preciso salientar que o exercí- causal esporádica; devem ser conectados à
cio “normal” da hegemonia – que Gramsci (2007, estrutura econômica da sociedade. O Estado é
p. 95) localiza no terreno “clássico” do regime concebido como organismo de um grupo destina-
parlamentar – caracteriza-se pela combinação do a propiciar as condições econômicas, políticas
da “força” e do “consenso”, que se equilibra de e culturais favoráveis a sua expansão máxima.
modo variado, sem que a força suplante muito Tais agrupamentos sociais formam-se com base
o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer no grau de desenvolvimento das forças materiais
com que a força pareça apoiada no consenso da de produção. Cada um dos quais representa
maioria. Desse modo, o Estado busca criar um uma função e ocupa uma posição determinada
“conformismo social” útil ao desenvolvimento do na própria produção (GRAMSCI, 2007).
grupo dirigente. Como exemplo, o autor aborda A partir da perspectiva de Estado integral
a função geral do direito – referindo-se tanto à (ou orgânico), o autor dos Cadernos desenvolve
atividade puramente estatal ou governamental suas considerações acerca da natureza das re-
quanto às áreas da moralidade e dos costumes. lações entre sociedade civil e sociedade política.
tipo) que corresponde às determinadas ne- Numa abordagem que apreende de forma mais
cessidades de desenvolvimento das forças abrangente essa dimensão, Acanda (2006)
produtivas e, portanto, aos interesses das compreende que o conceito de sociedade civil
classes dominantes [...] para este fim tende em Gramsci é utilizado para designar, além das
uma multiplicidade de outras iniciativas e ati-
relações associativas, contratuais e voluntárias,
vidades chamadas privadas, que formam o
aparelho de hegemonia política e cultural das
entre pessoas, o conjunto de todas as relações
classes dominantes. sociais produtoras de sentido.
Por outro lado, a relação de hegemonia
O Estado integral corresponde ao aparelho que se expressa na ação estatal, em sentido “in-
de ditadura de classe e ao conjunto dos meios de tegral”, deve indicar a função que os intelectuais
direção intelectual e moral de uma classe sobre assumem nesse âmbito. A atividade intelectual
a sociedade. O domínio de uma classe ou grupo cumpre o papel de fornecer homogeneidade e
social por meio do Estado se manifesta de duas consciência – nos campos econômico, social
maneiras articuladas, como domínio (coerção) e e político – da função da classe social a que
como direção intelectual e moral (hegemonia). se vincula, por meio da produção e da difusão
Portanto, o Estado é compreendido como um das ideologias correspondentes. Os intelec-
instrumento essencial para expansão do poder tuais são concebidos como os “empregados
da classe dominante e, simultaneamente, como especializados” (GRAMSCI, 2011b, p. 15) do
uma força repressiva, conformada na sociedade grupo dominante para o exercício das funções
política, que mantém os grupos subordinados subalternas da hegemonia social e do governo
fracos e desorganizados (CARNOY, 1990). político: do consenso “espontâneo” fornecido
O Estado orgânico também compreende pela grande massa da população à orientação
indissoluvelmente o aparelho “privado” de he- fornecida pelas classes dominantes à vida social;
gemonia, a “sociedade civil”. Os sentidos de e do aparelho de coerção estatal que assegura
sociedade civil que Gramsci (2007) estabelece “legalmente” a disciplina das classes dominadas
nos Cadernos são os de “hegemonia política e (GRAMSCI, 2011b). Da mesma forma, o partido
cultural de um grupo social sobre toda a socie- – na condição de “ideologia geral, superior aos
dade”; “conteúdo ético do Estado”; “aparelho de vários agrupamentos mais imediatos” (GRA-
hegemonia do grupo dirigente”; “organização MSCI, 2011a, p. 421) – cumpre uma função no
intelectual e moral”. O Estado necessita de con- exercício da hegemonia, na medida em que: por
senso e “educa” esse consenso por meio das um lado, representa o modo pelo qual determi-
associações políticas e sindicais, que são orga- nados grupos sociais elaboram sua categoria de
nismos privados deixados à iniciativa privada da intelectuais orgânicos; e, por outro, é o mecanis-
classe dirigente. Na sociedade civil, inscreve-se mo que realiza, na sociedade civil, uma função
o conjunto dos aparatos, tais como escolas, igre- correspondente àquela desempenhada pelo
jas, sindicatos, meios de comunicação etc. (inclu- Estado na sociedade política, de proporcionar
sive organizações econômicas), que exercem o a “soldagem” entre os intelectuais orgânicos do
consenso sobre a sociedade e estabelecem uma grupo dominante e os intelectuais “tradicionais”
direção moral e política (GRAMSCI, 2007). Por (GRAMSCI, 2011b, p. 24). Assim, o partido,
meio desses, é difundida a ideologia dominante em Gramsci, possui como função fundamental
e obtida a adesão e o consentimento das classes transformar os elementos de um grupo social
subalternas para o projeto de classe que é domi- nascido e desenvolvido no “campo econômico”
nante no Estado. Na análise de Buci-Glucksmann em intelectuais políticos qualificados, dirigentes,
(1980), o conceito gramsciano de sociedade civil organizadores de todas as atividades e funções
é captado por uma rede que define seu funciona- inerentes ao desenvolvimento orgânico da uma
mento, cuja natureza apresenta dois momentos: sociedade (civil e política) (GRAMSCI, 2011b).
o das condições materiais de vida, pois não A esfera da sociedade civil também
pode haver sociedade civil sem a determinação compreende o espaço no qual as classes
das relações de produção, que constituem seu sociais confrontam seus projetos ético-políticos
fundamento; e os aparelhos ideológico-culturais e disputam o predomínio hegemônico. Nela,
de hegemonia, o aspecto educador do Estado. estruturam-se as lutas políticas por projetos