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Doi: 10.5212/Emancipacao.v.13i1.

0002

Ideologia, consciência social e hegemonia na obra


de Antonio Gramsci

Ideology, social conscience and hegemony in the


work of Antonio Gramsci

Adilson Aquino Silveira Júnior*

Resumo: Este artigo busca apreender as determinações teórico-metodológicas


contidas na obra de Antônio Gramsci para a análise das relações de hegemonia
entre as classes sociais. Nessa perspectiva, realiza uma revisão bibliográfica
abrangendo os Cadernos do cárcere (a obra mais importante do comunista italiano)
e as contribuições de importantes estudiosos da tradição marxista. Identifica que
Gramsci compreende as relações entre os aspectos material, político e espírito-
intelectual da sociabilidade em sua totalidade, com suas interações complexas e
com os processos de determinação recíproca próprios do movimento dialético. As
ideologias são consideradas momentos constitutivos das disputas hegemônicas
entre as classes, difundindo a consciência prática necessária aos processos
reprodutivos. Através da noção de Estado integral, conectada à categoria de bloco
histórico, as relações de hegemonia se evidenciam, demandando uma abordagem
das vinculações orgânicas e dialéticas entre sociedade civil e sociedade política,
consenso e coerção, intelectuais e partido, produção e reprodução social.
Palavras-chave: Ideologia.Consciência social. Hegemonia.
Abstract: This article aims to understand the theoretical-methodological
determinations in the work of Antonio Gramsci for the analysis of hegemony
relationships between social classes. To achieve this, a literature review covering
the Prison Notebooks (the most important work of the Italian communist) and the
contributions of important researchers of the Marxist tradition was conducted. It
also identifies that Gramsci understands the relationships between the material,
political and intellectual aspects of sociability in their totality, with its complex
interactions and processes of reciprocal determination of the dialectical movement.
Ideologies are considered as constitutive moments of the hegemony disputes of
classes, disseminating the practical conscience necessary to the reproductive
processes. Through the notion of Integral State, connected to the category of
historical block, the relationships of hegemony are evidenced, demanding an
approach of the organic and dialectical links between civil society and political
society, consensus and coercion, intellectual and political party, social production
and social reproduction.
Keywords: Ideology. Social conscience. Hegemony.

Recebido em: 01/03/2012. Aceito em: 08/08/2012.

* Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Serviço Social pela UFPE. Graduado em
Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: j_r1987@hotmail.com

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Adilson Aquino Silveira JÚNIOR

Introdução cipais elementos teórico-metodológicos para


a análise das relações de hegemonia entre as
A obra de Antônio Gramsci constitui uma classes sociais encontrados na obra de Gramsci.
das mais fecundas elaborações da tradição mar- Tal abordagem é mediada pela determinação da
xista produzidas no século XX. Nos Cadernos metodologia dialética utilizada por Marx para a
do cárcere – onde estão condensadas suas re- compreensão da sociedade burguesa.
flexões mais importantes –, o comunista italiano Para o alcance dos objetivos assumidos,
oferece um riquíssimo aparato categorial para o realizamos uma revisão bibliográfica abrangendo
tratamento dos vastos fenômenos sociopolíticos os Cadernos do cárcere, além da incorporação
analisados, aprofundando e ampliando – nos das contribuições teóricas de importantes estu-
limites postos pelas condições carcerárias – as diosos da tradição marxista que tratam da teoria
determinações teórico-metodológicas marxianas social marxiana e da obra gramsciana, dentre
para a compreensão das relações de hegemonia os quais se destacam István Mészáros, Ernest
constituídas no evolver das lutas de classes na Mandel e Christine Buci-Glucksmann. Nesse per-
sociedade burguesa – cuja amplitude temática curso, ideologia, consciência social e hegemonia
abrange desde a unificação italiana e o fascismo são as categorias privilegiadas, para as quais
até o americanismo e o fordismo. nosso esforço analítico busca lançar luzes, na
Evidentemente, os esforços teóricos tentativa de clarificar as determinações teóricas e
desse autor não estão marcados por qualquer metodológicas da obra fundamental de Gramsci1
neutralidade científico-epistemológica, mas se para a análise das relações de hegemonia entre
evidenciavam de forma organicamente orien- as classes sociais. Evidentemente, não temos
tada, por um lado, para a compreensão das a pretensão de esgotar a discussão proposta.
formas cambiantes e renovadas da dominação Pela dimensão monumental da obra em tela,
burguesa, e, por outro, para o aperfeiçoamento um conjunto de categorias e determinações
das estratégias necessárias às lutas revolucio- analíticas relacionadas ao nosso tema não pôde
nárias dos trabalhadores destinadas à suplan- ser tratado, o que não implica um impedimento
tação daquela dominação e à construção de decisivo sobre o alcance do objetivo principal
uma sociedade emancipada. Segue, assim, a assumido neste trabalho – apenas indica que
lição da conhecida décima primeira tese sobre uma aproximação sistemática mais abrangente
Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram e aprofundada demanda uma empreitada de
o mundo de diferentes maneiras; o que importa maior fôlego sobre a vida do autor, suas teorias,
é transformá-lo” (MARX, 2007, p. 535). Mais seu contexto histórico e a tradição teórica à qual
ainda, as indicações metodológicas da “crítica se vincula.
da economia política” marxiana (MARX, 2011)
são desenvolvidas através de um “historicismo
Determinações teórico-metodológicas para
absoluto” (Gramsci, 1989) articulado à perspec-
compreensão da perspectiva gramsciana
tiva da totalidade.
São apresentadas nos Cadernos con- Nossa tentativa de apresentar as contribui-
tribuições inestimáveis para uma abordagem ções mais fecundas da tradição marxista para
teórico-crítica das relações de hegemonia entre uma análise concreta das relações de hegemo-
as classes, tanto no que se refere ao arsenal de nia entre as classes sociais precisa considerar
categorias acionado quanto no que diz respeito a complexidade da metodologia dialética que
às determinações metodológicas evidenciadas
no estudo das formas de dominação de classe
do capitalismo no início do século XX. A apre- 1
Gramsci teve uma vida relativamente curta (1891-1937). Porém,
ensão desse legado constitui um momento viveu com intensidade eventos históricos de importância significa-
ineliminável da pesquisa social orientada para tiva no período em que as transformações no mundo capitalista
a compreensão das lutas hegemônicas concre- proporcionadas pelo advento do imperialismo obtinham contornos
expressivos, dentre os quais apontamos: a Primeira Guerra Mun-
tas que atravessam, na contemporaneidade, o dial, a Revolução Russa, os levantes operários na Europa, a for-
“capitalismo tardio” em crise (MANDEL, 1985). mação de grandes partidos políticos, a consolidação de regimes
Nessa perspectiva, visamos fornecer os prin- fascistas, a crise econômica de 1929 e a afirmação dos Estados
Unidos como potência hegemônica mundial (SEMERARO, 1997).

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

envolve a abordagem marxiana sobre a ideolo- ROS, 2008, p. 57). A referência às “condições
gia vista como forma específica de consciência materiais de vida” ocupa uma posição essencial
social operante no “sócio-metabolismo” (MÉSZÁ- no sistema marxiano, no sentido genético e es-
ROS, 2009a). Mais especificamente, é neces- trutural: tanto em relação à gênese histórica das
sário situar como Marx apreendeu e investigou formas mais complexas de intercâmbio humano
a qualidade das interações entre os aspectos como diante do fato de que as condições mate-
material e espírito-intelectual da reprodução riais constituem a precondição da vida humana
social do ordenamento burguês. No conjunto de estruturalmente necessária em todas as formas
ensaios publicados no livro Filosofia, ideologia concebíveis de sociedade. Todavia, essa deter-
e consciência social, István Mészáros (2008) minação examinada isoladamente é incapaz de
afirma que, embora os fundamentos econômicos explicar as complexidades do próprio desen-
da sociedade capitalista constituam em Marx volvimento social. Em verdade, com o evolver
os “determinantes fundamentais” do ser social histórico das forças produtivas humanas, o papel
das classes sociais, os mesmos são igualmen- da consciência e das formas ideológicas se torna
te – e de forma concomitante – “determinantes cada vez maior, podendo estas ser colocadas a
determinados”. Assim, os apontamentos sobre o serviço da vida alienada, da mesma forma que
significado ontológico da economia apenas ad- podem permitir visualizar a suplantação da alie-
quirem sentido considerando-se a capacidade de nação (MÉSZÁROS, 2008).
apreendermos a ideia de “interações complexas” Para Mészáros (2008), a dificuldade de
nos mais variados campos da atividade humana. alcançar as implicações analíticas mais vastas
As diversificadas manifestações institu- desse posicionamento reside também na multi-
cionais e espírito-intelectuais da vida social não dimensionalidade de seus conceitos, pois todas
se revelam simplesmente “construídas sobre” as categorias não são apenas estruturalmente
uma base econômica, mas também “estruturam inter-relacionadas, mas também cada uma delas
ativamente” essa base, por meio de seu estatuto é concebida como inerentemente histórica. Por-
próprio, imensamente intricado e “relativamente tanto, o desafio consiste em apreender de forma
autônomo”. As determinações econômicas não adequada o dinamismo histórico das categorias
existem fora do complexo historicamente mutável estruturalmente interligadas, que são partes cons-
de mediações sociais especificas. Portanto, a tituintes de um todo complexo. Destarte, as formas
consciência social, nas suas mediadas formas ideológicas, tal como as próprias classes que as
e manifestações, possui uma estrutura própria elaboram, apenas adquirem significado completo
“relativamente autônoma”, determinando, de como focos de uma multiplicidade de fenômenos
forma recíproca, as estruturas econômicas da sociais estrutural e dialeticamente interligados
sociedade, ao mesmo tempo que é determinada em determinação recíproca (MÉSZÁROS, 2008).
por essas últimas. Consequentemente, nenhum Essa relação de interação complexa entre as for-
dos aspectos econômicos faz sentido sem a mas ideológicas e a base socioeconômica, apre-
categoria historicamente mutável das “necessi- endida pela perspectiva marxiana, é evidenciada
dades humanas”, impossível de ser explicada de no prefácio à Contribuição à crítica da economia
maneira plausível em termos de determinações política, de 1859, no qual se encontra sintetizada
econômicas unilaterais (MÉSZÁROS, 2008, p. a posição analítica assumida pelo autor:
57).
[...] na produção social da própria existência,
O próprio conceito de consciência de
os homens entram em relações determinadas,
classe presente da obra marxiana é ininteligível necessárias e independentes de sua vontade;
apartado da visão de “causalidade social” que essas relações de produção correspondem a
lhe corresponde. Na abordagem de Marx, toda um grau determinado de desenvolvimento de
conquista humana introduz um elemento novo no suas forças produtivas materiais. A totalidade
conjunto complexo de interações que caracteriza dessas relações de produção compõe a base
a sociedade em qualquer tempo. Portanto, o que real sobre a qual se eleva uma superestrutu-
seria questão “no início”, possivelmente pode ra jurídica e política e à qual correspondem
não se manter como questão em um estágio formas sociais determinadas de consciência.
posterior do desenvolvimento histórico (MÉSZÁ- (MARX, 2008, p.45).

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Adilson Aquino Silveira JÚNIOR

Para Mészáros (2008), a estrutura eco- individuais e coletivas. A própria construção da


nômica da sociedade, assim analisada, não consciência das individualidades pessoais de
representa uma entidade material bruta, mas classe remete à categoria marxiana de “indivíduo
um conjunto de relações sociais historicamen- social” (MARX, 2008), pois a mesma não designa
te situadas, sujeitas a mudanças – mesmo a nenhuma coisa individual (e muito menos indi-
transformação mais radical proveniente de uma vidualizada), mas constitui o reflexo da fração
deliberação humana socialmente consciente da sociedade civil da qual o sujeito – desde sua
(socialista). O autor considera que os termos infância – participa, das relações sociais tal como
apresentados por Marx são incomparavelmen- se apresentam em sua família, na vizinhança, na
te mais complexos do que tradicionalmente se população etc. (GRAMSCI, 1986).
supõe. O conjunto dos conceitos articulados não A história da elaboração e da difusão da
define as formas de consciência social – e muito filosofia consiste nas tentativas e iniciativas
menos as ideias dos indivíduos – em relação ideológicas de uma determinada classe de
direta com a estrutura econômica (ou a base pessoas para mudar, corrigir e aperfeiçoar as
material), mas pela mediação (elo intermedi- concepções de mundo existentes em todas as
ário) da superestrutura legal e política, à qual épocas determinadas e para mudar as normas
“correspondem” no nível das ideias, mas sem de conduta que lhe são relativas e adequadas,
manter qualquer relação de identidade com a alterando a atividade prática em seu conjunto
mesma. Portanto, segundo Mészáros (2008), (GRAMSCI, 2011a). Assim, as ideologias não são
caracterizar uma relação de simples identidade arbitrárias, mas constituem fatos históricos reais.
entre a superestrutura legal e política e as for- O valor histórico-concreto das superestruturas
mas de consciência social comprometeria toda a revela-se na assertiva marxiana, presente do
concepção marxiana e acarretaria a obliteração prefácio de Contribuição à critica da economia
do papel ativo da superestrutura, pois a autono- política, de que “os homens adquirem consci-
mia das ideias vis-à-vis à superestrutura legal ência de sua posição social e de seus objetivos
e política é uma precondição necessária da pri- através das formas ideológicas” (MARX, 2008,
meira. A produção das formas ideológicas – para p. 46), evidenciando o nexo necessário e vital
além das restrições institucionais imediatas da destas com a estrutura social e sua capacidade
superestrutura legal e política – opera como um concreta de agir retroativamente na condição de
propulsor poderoso sobre a superestrutura, que, determinantes no sociometabolismo – seja para
por sua vez, afeta dinamicamente as funções a preservação das relações sociais estabeleci-
materiais da vida social. Apenas partindo de das, seja para sua eversão e superação por uma
tais indicações teórico-metodológicas, podemos dinâmica sociometabólica alternativa.
determinar – sem qualquer cientificismo econo- Para Mészáros (2008), a obra marxiana
micista ou politicismo voluntarista – o papel espe- mostra que a ideologia, como forma de consci-
cífico da ideologia no processo de ajustamentos ência social sui generis, possui características
estruturais necessários às condições mutáveis trans-históricas – porquanto persistem em for-
de dominação, observando que a reprodução mações sociais que se sucedem ao longo de
bem-sucedida dessas condições não pode ser um largo período da trajetória das sociedades
viabilizada na falta de uma intervenção ativa de humanas – que apenas podem ser entendidas
fatores ideológicos poderosos destinados à pre- no contexto da reprodução continuada de algu-
servação da ordem vigente (MÉSZÁROS, 2008). mas determinações estruturais vitais do tipo de
Em seus Cadernos, Gramsci (2011a) afir- sociabilidade da qual emergem. Na condição de
ma que o papel da filosofia consiste na criação forma específica de consciência social, a ideo-
de uma nova cultura, ou seja, consiste em ela- logia é inseparável das sociedades de classes,
borar e difundir uma concepção de mundo na constituindo a “consciência prática” necessária
consciência social, transformando-a em base às mesmas, vinculada à articulação dos conjun-
de ações vitais, em elemento de coordenação e tos de valores e estratégias rivais que objetivam
de ordem intelectual e moral, que se manifesta controlar o metabolismo social sob todos os seus
implicitamente na arte, no direito, na atividade principais aspectos. Com isso, os interesses so-
econômica, em todas as manifestações de vida ciais, que se mostram durante a história e que

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

se “entrelaçam de modo conflitante”, encontram fundamental, o qual deixa sua marca indelével
manifestações no plano da consciência social nas ideologias em conflito, surge do caráter
na grande diversidade do discurso ideológico, historicamente mutável das práticas produtivas
relativamente autônomo (embora nunca inde- e distributivas da sociedade e da necessidade
pendente), com seu impacto poderoso, mesmo correspondente de se questionar sua imposição
sobre os processos materiais mais tangíveis do continuada, à medida que as ideologias domi-
metabolismo social (MÉSZÁROS, 2008). nantes se tornam crescentemente enfraquecidas
As ideologias em luta de qualquer período ao longo do desenvolvimento histórico.
histórico constituem a consciência prática ne- Mészáros (2008) elenca as diferenças
cessária, por meio da qual as mais importantes entre três posições ideológicas fundamental-
classes da sociedade se relacionam e de certa mente distintas, que possuem consideráveis
forma até mesmo se confrontam abertamente, implicações para os tipos de conhecimento
ao articular sua visão de ordem social correta e compatíveis com cada uma delas: 1) aquela que
apropriada como um todo abrangente. Destarte, apoia a ordem estabelecida com uma atitude
a luta hegemônica mais importante em termos acrítica, adotando e glorificando a continuidade
estruturais – cujo objetivo consiste em preservar do sistema dominante como horizonte absoluto
ou, ao contrário, superar o sociometabolismo da própria vida social; 2) aquela que expõe as ir-
dominante – encontra suas manifestações ne- racionalidades da forma específica da sociedade
cessárias nas “formas ideológicas” orientadas de classe, que é rejeitada a partir de uma nova
para a prática, nas quais os homens se tornam posição de vantagem – mas sua crítica é viciada
conscientes desse conflito e buscam resolvê-lo pelas contradições de sua própria posição social;
(MARX, 2008; MÉSZÁROS, 2008). O que deter- 3) e aquela que questiona radicalmente a persis-
mina a natureza da ideologia é o imperativo de se tência histórica do próprio horizonte de classe,
tornar “consciente em termos práticos” do con- antevendo, como objetivo de sua intervenção
flito social fundamental – a partir dos pontos de prática consciente, a supressão de todas as for-
vista mutuamente excludentes das alternativas mas de antagonismo de classe. Por último, como
hegemônicas que se defrontam em determinada precondições teórico-metodológicas necessárias
ordem social – com o propósito de “resolvê- para o entendimento da natureza da ideologia, é
-los através da luta” (MARX, 2008, p. 46). As preciso que: 1) reconheçamos sua persistência
próprias elaborações gramscianas indicam que em diversas formações sociais que se sucedem
as diversas formas ideológicas de consciência e demonstremos a continuidade paradoxal da
social acarretam, em graus variáveis, direta ou reprodução ideológica ao longo do tempo; 2)
indiretamente, diversas implicações práticas na realcemos os parâmetros socioeconômicos con-
arte e na literatura, bem como na filosofia e na cretos, por meio dos quais se podem conceituar a
teoria social, não obstante a ancoragem socio- emergência histórica e o funcionamento contínuo
política das mesmas em posições progressistas da ideologia; 3) consideremos sempre o modo
ou conservadoras. de operação do discurso ideológico e as formas
Finalmente, devemos situar algumas im- institucionais/instrumentais exigidas para tornar
plicações analíticas propostas por Mészáros exequível o seu impacto; 4) identifiquemos o
(2008), a partir da obra de Marx. Inicialmente, o tipo de racionalidade operante nas formas ideo-
autor considera que as ideologias são circuns- lógicas (MÉSZÁROS, 2008). Essas indicações
critas em sentido duplo, em termos de época: revelam as condições para a análise das formas
primeiro, no sentido de que, como orientação de hegemonia, cujos elementos perpassam os
conflitante das várias formas de consciência aspectos materiais, ideólogos, políticos e ins-
social prática, sua característica proeminente titucionais, que assumem particularidade nas
persiste enquanto a sociedade for divida em formações sociais através de uma diversidade
classes, ou seja, a consciência prática de todas de mediações elaboradas pelas classes sociais.
essas sociedades não pode deixar de ser “ide-
ológica” em decorrência do caráter inexoravel-
mente antagônico de suas estruturas sociais;
segundo: o caráter específico do conflito social

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Ideologia e hegemonia em Gramsci sistema econômico mundializado, acompanha-


do com uma divisão internacional do trabalho
É a partir de tais pressupostos que po- que resulta numa hierarquização entre países
demos explicitar efetivamente a importância dominantes econômica e politicamente frente
teórico-metodológica e política da elaboração aos países subordinados. Importantes desen-
gramsciana para a compreensão da relação de volvimentos estavam se realizando no domínio
hegemonia entre as classes. A perspectiva da das tecnologias e das ciências naturais impulsio-
“filosofia da práxis” (como, sugestivamente, o au- nadas pelas demandas monopolistas. O próprio
tor dos Cadernos referia-se ao marxismo), para movimento operário obtém organização e poder
Gramsci (2011a, p. 295), não exclui a história político com expressividade até então não teste-
“ético-política”, mas, ao contrário, caracteriza- munhada, afetando de forma decisiva os rumos
-se precisamente na reivindicação do momento desse momento histórico – nesse contexto, não
de hegemonia social (da direção intelectual e podem ser menosprezados as consequências da
moral) como essencial para a articulação de sua Revolução Russa de 1917 e a criação da União
concepção de Estado. Isso significa enfatizar a Soviética, por um lado, e a expansão dos partidos
determinação ativa do “fato cultural”, da “ativi- de massa na Europa, por outro (HOBSBAWN,
dade cultural” e de uma “frente cultural” como 2009; NETTO e BRAZ, 2006).
necessária – ao lado das frentes estritamente Também ocorriam alterações importantes
econômicas e políticas –, tanto para as formas na natureza do fenômeno estatal, que assume
de dominação de classe vigentes quanto para a uma escala ampliada no âmbito do capital mono-
intervenção político-organizativa das lutas revo- polista. As situações históricas configuradas pelo
lucionárias do trabalho. Assim, a ênfase forneci- regime dos monopólios apresentam a necessida-
da ao momento da hegemonia social assinala a de de novas modalidades de intervenção estatal
preponderância que possui o “momento cultural” – necessários à “administração das crises” – que
também na atividade prática coletiva, na medida envolvessem as condições gerais de produção
em que todo ato histórico não pode deixar de ser e de acumulação, funcionando como esforços
realizado pelo “homem coletivo”. O ato histórico para assegurar uma valorização mais rápida do
pressupõe, portanto, a conquista de uma uni- capital excedente (MANDEL, 1985). Dentre as
dade “cultural-social” pela qual a multiplicidade características das modalidades de intervenção
de vontades desagregadas dos sujeitos sociais, estatal analisadas por Mandel (1985), destacam-
com fins heterogêneos, coaduna-se conjuntural- -se a ampliação geral da legislação social, que
mente na busca de um fim único, fundamentado assumiu um impulso particular no período impe-
numa idêntica e comum concepção de mundo rialista; a tendência ao planejamento econômico
(GRAMSCI, 2011a, p. 399). do Estado; a socialização estatal dos custos
Antes de prosseguir, precisamos sublinhar (riscos) e das perdas em um número crescente
que a obra gramsciana é configurada sob as de processos produtivos; e o desenvolvimento
determinações históricas de um novo estágio da de uma vasta maquinaria de manipulação ideo-
acumulação capitalista. A partir dos últimos trinta lógica para “integrar” o trabalhador a sociedade
anos do século XIX, começam a surgir grupos capitalista.
capitalistas nacionais controlando ramos indus- Retomando nossa argumentação – e
triais inteiros, empregando enorme contingente considerando as condições socioeconômicas e
de trabalhadores, constituindo gigantescos mo- políticas assinaladas, a partir das quais podemos
nopólios, extravasando as fronteiras nacionais elucidar as referências históricas de Gramsci –,
e estendendo sua dominação sobre enormes destacamos que, nos marcos da metodologia
regiões do globo. O surgimento dos monopólios dialética marxiana, as “condições objetivas” de
industriais é acompanhado pela monopolização uma ruptura com a ordem social estabelecida
também no âmbito do capital bancário. A fusão não podem ser definidas senão em termos
desses últimos constitui o capital financeiro, que da determinação recíproca do ser social e da
possui um papel decisivo no imperialismo, esse
novo estágio do modo de produção capitalista.
Esse processo articula-se à conformação de um

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

consciência social.2 O próprio Gramsci incorpora induzidos a endossar consensualmente valores


tal perspectiva à sua concepção, conformando e diretrizes práticas que são, na realidade, total-
um processo social em sua totalidade, ou seja, a mente adversos aos seus interesses vitais. Disso
reforma intelectual e moral exigida no processo resulta que a posição das ideologias conflitantes
de conquista da hegemonia de classe pode se é decididamente assimétrica.
constituir apenas se organicamente vinculada Em Gramsci (2011a, p. 339), a conquista
a um programa de reformas econômicas. Mais da hegemonia de classe possui uma dimensão
precisamente, o programa de reforma econômica “ético-política” constitutiva e fundamental, assu-
necessário é apreendido como o modo pelo mindo necessariamente a condição de “relação
qual se apresenta qualquer reforma intelectual pedagógica”, ou seja, de uma determinada
e moral. Mais ainda, a relação de hegemonia “prática educativa”, que não se limita às relações
pressupõe indubitavelmente que a classe que a especificamente “escolares”, mas opera
exerce considere os interesses e as tendências
[...] na sociedade em seu conjunto e em todo
das classes e camadas dirigidas, formando um
indivíduo com relação a outros indivíduos, en-
“equilíbrio de compromisso”, ou seja, pressupõe tre camadas intelectuais e não intelectuais,
que o grupo dirigente realize sacrifícios de entre governantes e governados, entre diri-
natureza econômico-corporativa (GRAMSCI, gentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos
2007, p. 48). A hegemonia ultrapassa sua do exercito (GRAMSCI, 2011a, p. 339).
própria base para estender-se a classes e
camadas de classe submetidas ao bloco social Nessa abordagem, a educação existe na
dominante. Entretanto, levando em conta o nexo luta contra os instintos ligados às funções bioló-
essencial entre estrutura e superestrutura, é gicas elementares, uma luta contra a natureza,
igualmente indubitável que aqueles sacrifícios para dominá-la e criar o “homem ‘atual’ de sua
e o compromisso existente não podem envolver época” (GRAMSCI, 2011b, p. 62), bem como
os interesses materiais essenciais da classe para conformar as subjetividades por meio de
hegemônica, pois, “se a hegemonia é ético- formas ideológicas, para a construção dos tipos
política, não pode deixar de ter seu fundamento humanos adequados à pratica sócio-histórica
na função decisiva que o grupo dirigente exerce dos processos reprodutivos exigidos. Assim, a
no núcleo decisivo da atividade econômica” educação visa à conformação das subjetividades
(GRAMSCI, 2007, p. 48). Com isso, as principais segundo as exigências prático-sociais apresenta-
ideologias dominantes carregam a marca da das no interior da reprodução da formação social
formação social da qual pertencem e cujas determinada. Segundo Gramsci (2011a, p. 94),
práticas produtivas assumem como quadro limite pela própria concepção de unidade, os indivíduos
de referência. sociais pertencem sempre a um determinado
Devemos pontuar, no entanto, que na dinâ- grupo, precisamente o de todos os elementos
mica da disputa pela hegemonia – como observa sociais que compartilham um mesmo modo de
István Mészáros, em sua obra O poder da ideo- pensar e de agir – são “conformistas de algum
logia (2004) –, a ideologia dominante possui um conformismo”. E a luta pela hegemonia é a luta
poder incontestavelmente enorme, considerando entre dois conformismos, originada de uma crise
dois aspectos principais: sua esmagadora capa- da sociedade civil – entre um conformismo im-
cidade material e o equivalente arsenal político- posto e um conformismo proposto (desde baixo)
-cultural à disposição das classes dominantes; e (GRAMSCI, 2011a).
o fato de que esse poder ideológico apenas pode Para Christine Buci-Glucksmann, em sua
prevalecer devido à preponderância da mistifica- obra clássica Gramsci e o Estado (1980), o
ção, através da qual os dominados podem ser conceito de hegemonia, enquanto desencade-
amento de mecanismos que asseguram o con-
senso das massas para uma política de classes
– apoiando-se, por outra parte, na “força” ou
2
Como nos indicam várias passagens – apenas para citar os tex-
tos mais conhecidos – da Crítica à Filosofia do direito de Hegel: “coerção” (GRAMSCI, 2011a) –, não pode ser
introdução (2010), de 1843, do Manifesto comunista (2008b), de reduzido à noção marxista vulgar de “ideologia
1848, da Ideologia alemã (2007), de 1864 e da Contribuição à
crítica da economia política (2008a) de 1859.
dominante” totalizadora, ou a uma problemática

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weberiana de “mecanismos de legitimidade” sociabilidade burguesa, com o desenvolvimento


que complementam a violência para fins de das mais amplas e, ao mesmo tempo, refinadas
integração social. Na identificação imediata da mediações (ideológicas, políticas, organizacio-
hegemonia à ideologia dominante, ou a um “me- nais, econômicas etc.) viabilizadoras da repro-
canismo de legitimidade”, desaparece a distinção dução social –, como as grandes organizações
gramsciana das formas de consenso, cedendo populares de tipo moderno, consideradas suas
lugar a uma identidade simples entre ideologia, “trincheiras e casamatas” permanentes (GRA-
cultura e linguagem. Entretanto, os efeitos da MSCI, 2007, p. 262).4
hegemonia são mais que contraditórios. Quanto Em Gramsci, a relação entre Estado e
mais uma classe é autenticamente hegemônica, hegemonia é orgânica. Em sua concepção, a
mais deixa às classes adversárias a possibilida- partir do momento em que as classes subalternas
de de se organizarem e de se constituírem em tornem-se realmente autônomas e hegemônicas,
força política autônoma. De modo que não pode suscitando um novo tipo de Estado, é inaugurada
existir uma teoria da hegemonia sem teoria de concretamente a exigência de se constituir uma
crise da hegemonia, chamada “crise orgânica”3 nova ordem intelectual e moral abrangente. A
(GRAMSCI, 2011a). Não pode existir análise fundação de uma classe dirigente (isto é, de
da integração das classes subordinadas a uma um Estado) equivale à criação de uma Weltans-
classe dominante sem teoria dos modos de au- chauungen, uma concepção de mundo (de uma
tonomização e de constituição das classes que ideologia, em sentido mais amplo). O próprio
permitem que uma classe antes subordinada se princípio teórico-prático da hegemonia possui
torne hegemônica. Não pode existir extensão de um alcance gnosiológico, pois a realização de
uma concepção do Estado sem redefinição de um “aparelho” hegemônico, enquanto cria uma
uma perspectiva estratégica nova, a chamada reforma nas consciências, modifica substancial-
“guerra de posição”, a partir da qual (e em arti- mente os próprios métodos de conhecimento. E
culação com a “guerra de movimento”) a classe a exigência do desenvolvimento de uma hege-
operária luta pela formação de um novo Estado monia emancipatória das classes subalternas
e de uma “sociedade regulada” (GRAMSCI, significa a radical modificação dos fundamentos
2007). A própria premissa pela recorrência à dos modos pelos quais a produção do conheci-
“guerra de posição” na política (relacionada ao mento se realiza, ou seja, uma nova concepção
conceito de hegemonia) apenas pode nascer (e a sua correspondente concreção) da relação
depois do advento de determinadas premissas entre ontologia, processo gnosiológico e método,
sócio-históricas (de acordo com o que havíamos a efetivação da unidade entre teoria e prática
assinalado) – ou seja, com a complexificação da (GRAMSCI, 2011a).
O compromisso com a construção de
uma hegemonia emancipatória das classes
3
Segundo Gramsci (2007), nos momento de crise orgânica che- subalternas demanda, portanto, a crítica
gam à maturidade contradições insanáveis na estrutura e as for-
ças políticas que atuam positivamente para conservar e defender radical às pretensões, convergentes com o
a própria estrutura esforçam-se para saná-las dentro de certos li- ponto de vista do capital – como nos mostra
mites – e para superá-las. A crise orgânica ocorre no momento em Mészáros (2009b) –, de neutralidade científico-
que as “contradições insanáveis na estrutura”, corolário do des-
compasso entre o avanço revolucionário das forças produtivas e epistemológica, que implicam a tendência
a conservação de antigas relações sociais de produção, não são ao formalismo mistificador da conflitualidade
mais contidas dentro dos limites impostos pela superestrutura.
Os laços entre estrutura e superestrutura são rompidos, e o blo-
social e da historicidade inerentes ao sócio-
co histórico ameaça desagregar-se completamente, abrindo um metabolismo do capital. A própria reorientação
período histórico de convulsões políticas, econômicas e sociais. marxiana do método é operada através da
Gramsci busca evidenciar que uma crise orgânica não direciona
mecanicamente o horizonte sócio-reprodutivo para a superação
das relações de dominação vigentes pela via do desenvolvimento
deterministicamente considerado de uma hegemonia alternativa 4
Neste ponto, temos uma relação importante a ser considerada
das classes subalternas: “pode-se excluir que, por si mesmas, entre crise orgânica, revolução passiva e guerra de posição. A
as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; Revolução Passiva refere-se às formas de vida implícitas e suas
podem apenas criar um terreno mais favorável à difusão de deter- relações que ainda podem ser desenvolvidas para a manutenção
minados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões que do domínio de classe burguês no contexto de crise orgânica –
envolvem todo o curso subsequente da vida estatal” (GRAMSCI, aqui as classes dominantes se utilizam do sistema de fortalezas e
2007, p.44). casamatas possíveis da vida estatal (BRAGA, 1996).

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

inseparabilidade dos aspectos metodológicos concretos dela, resultados de forças contrastan-


dos problemas encontrados em sua dimensão tes em contínuo movimento, sempre irredutíveis
substantiva, ou seja, com o abandono de a quantidades fixas – a própria possibilidade de
qualquer separação especulativa e formalista do previsão assumida existe apenas na medida em
método em relação aos aspectos complexos e que os sujeitos sociais intervêm politicamente,
contradições da vida social. Na época do capital, em que aplicam um esforço voluntário e, dessa
a determinação social do método assumida forma, contribuem concretamente para criar o
pela crítica revolucionária orienta-se na direção resultado previsto (GRAMSCI, 2011a).
totalmente contrária ao procedimento que Assim, essa abordagem evita, no campo
consiste em eternizar as relações de troca do da análise histórica das lutas hegemônicas, a
sócio-metabolismo imperante – historicamente tendência própria da racionalidade da produção
estabelecidas e necessariamente transitórias capitalista – impregnada nas mais mediadas
em termos de época – e estabelecer o culto do atividades humanas, desde as econômicas e
indivíduo isolado em consonância com esses políticas até as mais refinadamente “espirituais”:
elementos. Observando a própria necessidade a burocratização, que ocorre quando determi-
de transformação intransigente da ordem social nados procedimentos práticos são coagulados,
estabelecida em sua totalidade, a definição formalizados e repetidos mecanicamente, empo-
marxiana da ciência (e a gramsciana presente brecendo a atividade humana, que é, com isso,
nos Cadernos) assume uma inseparabilidade desligada de sua relação, tanto com a realidade
da mais radical intervenção prática no curso das (transformada pela práxis burocrática em simples
mudanças qualitativas envolvidas, indicando que objeto de manipulação), quanto com suas fina-
qualquer explicação teórica isolada não poderia lidades (cuja racionalidade ou irracionalidade a
oferecer as soluções requeridas nesse âmbito. práxis burocrática não questiona) (COUTINHO,
O trabalho de Gramsci (2011a) aponta para 2010). É evidente, ainda, a recusa de se conce-
a exigência de apreensão da base histórica do ber o conflito de classes como simples conflito
Estado, que articula Estado e “bloco histórico” entre duas forças fundamentais (burguesia e
no contexto das “relações de forças”5 presentes. proletariado), buscando ponderar sobre a inter-
Tal bloco apresenta-se organizado em torno da venção das camadas, forças auxiliares e apoios,
dominância e da primazia de uma classe, ou suas posições de classe em relação ao Estado
de uma fração de classe em equilíbrio instável, e a uma conjuntura determinada.
permanentemente minado por contradições po- A ação estatal possui um papel estratégico
tenciais. Na crítica ao cientificismo que busca e essencial na própria formação da classe e na
a previsibilidade dos acontecimentos históricos conquista da hegemonia. A análise gramsciana
por meio da aplicação estreita dos métodos das do Risorgimento (unificação italiana) mostra que a
ciências naturais no campo das disputas sociais, unificação histórica das classes dirigentes está no
nosso autor afirma que é possível prever cienti- Estado e sua história é essencialmente a história
ficamente apenas a luta, mas não os momentos dos Estados e dos grupos dos Estados. A unida-
de referida assume concretude como resultado
das relações entre Estado e sociedade civil. Por
5
Para a análise das “relações de forças” Gramsci (2011a, p.41) outro lado, tal unificação não se produziu para as
afirma que precisamos distinguir três momentos ou graus das classes subalternas, que apresentam uma história
mesmas: a “relação das forças sociais” ligadas à estrutura econô-
mica, fundadas no grau de desenvolvimento das forças materiais
entrelaçada com a história da sociedade civil, na
de produção; a “relação das forças políticas”, que se refere ao condição de uma fração desagregada. A trajetória
grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização al- da unificação das classes dominantes é o próprio
cançados pelas classes e grupos sociais; e a “relação das forças
militares”, ligadas aos aparatos técnicos e políticos coercitivos de processo de sua conquista da hegemonia. Nas no-
dominação. Esses momentos condicionam-se reciprocamente tas do cárcere, vemos que a burguesia, conside-
para a configuração das “relações de forças” no exercício de uma rando o evolver da unificação italiana, conquistou
dada hegemonia. O autor considera que o desenvolvimento his-
tórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momen- o poder lutando contra determinadas forças; para
to, com a mediação do segundo. A configuração da “consciência unificar-se em Estado, buscou eliminar umas e
política” existente na dinâmica das “relações de forças políticas”
possui uma posição importante na própria orientação que o de-
obter o consentimento ativo ou passivo de outras
senvolvimento histórico assume. (GRAMSCI, 1984b).

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Adilson Aquino Silveira JÚNIOR

Buci-Glucksmann (1980) identifica que o Essa função serve para compreender melhor o
conceito de “aparelho de hegemonia” de Gra- problema ético, que busca, na prática, a cor-
msci qualifica e precisa a hegemonia, entendida respondência “espontânea e livremente aceita”
como hegemonia política e cultural das classes entre os atos e as omissões de cada indivíduo,
dominantes. Conjunto complexo de instituições, entre a conduta de cada indivíduo e os fins que
ideologias práticas e agentes (entre os quais os a sociedade se impõe como necessários. Essa
“intelectuais”), o “aparelho de hegemonia” ape- correspondência é “coercitiva”, na esfera do
nas encontra sua unificação por meio da análise direito positivo tecnicamente entendido, e é “es-
da expansão de uma classe. Uma hegemonia pontânea e livre” (mais especificamente, “ética”)
não se unifica como “aparelho”, a não ser por naquelas áreas em que a coação não é estatal,
referência à classe que se constitui em e através mas do ambiente moral. As ações de coerção e
da mediação de múltiplos “subsistemas”: apare- consentimento referem-se às dimensões domi-
lho escolar (da escola à universidade), aparelho nante e dirigente da hegemonia de classe. Assim,
cultural (dos museus e bibliotecas), organização para que uma classe possa tornar-se hegemô-
da informação, do meio ambiente, do urbanismo nica (constituir-se em classe “dirigente”, em Es-
e dos aparelhos eventualmente herdados de tado), devem ser atendidas concomitantemente
um modo de produção anterior (Igreja e seus condições determinadas nos campos econômico,
intelectuais, por exemplo). político e cultural (GRAMSCI, 1984a).
Nas conhecidas elaborações de Gramsci
(2000) sobre o Americanismo e fordismo, fica Apontamentos sobre Estado e sociedade
evidente a perspectiva de totalidade na análise da civil
busca pela hegemonia na experiência da indústria
fordista norte-americana. Hegemonia que “nasce Conforme as indicações desenvolvidas
na fábrica”, buscando desenvolver um novo “tipo até agora, observamos que para um aprofunda-
humano”, conforme o novo “tipo de trabalho e de mento da concepção da relação de hegemonia
processo produtivo” da indústria fordizada. Essa em Gramsci é decisiva uma incursão nas suas
análise das mediações institucionais, organizacio- principais elaborações sobre as relações entre
nais e ideológicas (tanto persuasivas quanto coer- Estado e sociedade civil. Nesses termos, as
citivas) desenvolvidas por Henry Ford na busca da funções estatais, identificadas na esfera da
construção de um “nexo psicofísico” do trabalho superestrutura, operam essencialmente sobre
profissional adequado às exigências produtivas, as forças econômicas. No desenvolvimento das
possui como pressuposto a concepção de que funções estatais “se reorganiza e se desenvolve
“los nuevos métodos de trabajo son indisolubles o aparelho de produção econômica, se inova a
de un determinado modo de vivir, de pensar y de estrutura” (GRAMSCI, 2007, p. 28). Em tal con-
sentir la vida: no se pueden obtener éxitos en un cepção, os fenômenos da superestrutura não
campo sin obtener resultados tangibles en el otro” podem ser abandonados a si mesmos, ao seu
(GRAMSCI, 2000, p. 81). desenvolvimento espontâneo, a uma germinação
Portanto, é preciso salientar que o exercí- causal esporádica; devem ser conectados à
cio “normal” da hegemonia – que Gramsci (2007, estrutura econômica da sociedade. O Estado é
p. 95) localiza no terreno “clássico” do regime concebido como organismo de um grupo destina-
parlamentar – caracteriza-se pela combinação do a propiciar as condições econômicas, políticas
da “força” e do “consenso”, que se equilibra de e culturais favoráveis a sua expansão máxima.
modo variado, sem que a força suplante muito Tais agrupamentos sociais formam-se com base
o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer no grau de desenvolvimento das forças materiais
com que a força pareça apoiada no consenso da de produção. Cada um dos quais representa
maioria. Desse modo, o Estado busca criar um uma função e ocupa uma posição determinada
“conformismo social” útil ao desenvolvimento do na própria produção (GRAMSCI, 2007).
grupo dirigente. Como exemplo, o autor aborda A partir da perspectiva de Estado integral
a função geral do direito – referindo-se tanto à (ou orgânico), o autor dos Cadernos desenvolve
atividade puramente estatal ou governamental suas considerações acerca da natureza das re-
quanto às áreas da moralidade e dos costumes. lações entre sociedade civil e sociedade política.

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

Na crítica às análises que identificam o Estado Gramsci (apud BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p.


somente com a noção de “governo”, Gramsci 36) considera que o mesmo tem sido
(2007, p. 224) informa que:
[...] ordinariamente entendido como socieda-
[...] estamos sempre no terreno da identifica- de política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo
ção entre o Estado e Governo, identificação para adaptar as massas populares ao tipo de
que é, precisamente, uma representação da produção e à economia de uma dada época),
forma econômico-corporativa, isto é, da con- e não um equilíbrio entre sociedade política e
fusão entre sociedade civil e sociedade políti- a sociedade civil (ou hegemonia que um gru-
ca, uma vez que se deve notar que na noção po social exerce sobre a sociedade nacional
geral de Estado entram elementos que devem inteira, por meio de organizações pretensa-
ser remetidos à noção de sociedade civil (no mente privadas, como a Igreja, os sindicatos,
sentido, seria possível dizer, de que Estado as escolas).
= sociedade política + sociedade civil, isto é,
hegemonia couraçada de coerção). Na referida definição, o autor questiona
qualquer explicação estritamente de ordem jurídi-
O Estado, assim analisado, possui um co-coercitiva do Estado, ou que o identifique ex-
sentido “orgânico e mais amplo”, que comporta clusivamente ao aparelho governamental. Esse
a sociedade política e a sociedade civil, com- último refere-se exclusivamente ao campo da
preendendo, além do “aparelho de governo”, o sociedade política, compreendida como o con-
aparelho “privado” de hegemonia, que corres- junto dos aparelhos repressivos, dos quais são
ponde à sociedade civil. É concebido como “[...] exemplos as instituições jurídicas, penais, mili-
todo complexo de atividades práticas e teóricas tares etc., que exercem a coerção e o domínio.
com as quais a classe dirigente não só justifica Para Buci-Glucksmann (1980), distinguem-se
e mantém seu domínio, mas consegue obter o dois conceitos ou dois momentos da articulação
consenso ativo dos governados” (GRAMSCI, do campo estatal na obra de Gramsci: o Estado
2007, p. 331) No significado integral do Estado, em um sentido estreito (unilateral) e em sentido
encontramos, concomitantemente, o momento amplo (integral). O Estado no sentido estreito
da “ditadura de classe” e o da “hegemonia” se identifica com o governo, com o aparelho de
(GRAMSCI, 2007). ditadura de classe. Possui funções coercitivas e
A superestrutura é composta por socieda- econômicas e exerce a dominação de classe por
de civil e sociedade política, ambas incorporadas, meio do aparelho de Estado em sentido clássico
numa vinculação orgânica e dialética, à noção de (exército, polícia, administração, burocracia etc.).
Estado integral ou orgânico. Existe em Gramsci Entretanto, tal função coercitiva é inseparável de
uma equivalência entre aparelhos “privados” certo papel adaptativo-educativo do Estado, que
de hegemonia e sociedade civil. Essa, por sua procura realizar uma adequação entre aparelho
vez, reveste-se de uma dupla dimensão: uma produtivo e moralidade das massas populares.
econômica e outra política. Nesse ponto, a re- Essa definição exclui, assim, qualquer modelo
missão à noção de “bloco histórico” nos parece mecanicista excessivamente esquemático. Na
fundamental, pois evita os desvios economicis- medida em que qualquer Estado desenvolve,
tas, de um lado, e as noções que superestimam paralelamente ao funcionamento da coerção,
o momento ideológico, de outro, pois se refere à um funcionamento no nível da ideologia e da
unidade entre “natureza e espírito, entre estrutu- economia, o aprofundamento dos laços entre
ra e superestrutura”, uma unidade dialética, como força e o aparelho de produção passa pelo
síntese dos contrários e dos distintos (GRAMSCI, campo complexo das superestruturas. O próprio
2007, p. 26). Da mesma forma, a noção de “Es- Gramsci (2007, p. 284) afirma:
tado integral” não pode ser confundida com uma
concepção unitária e homogênea dos indivíduos [...] o que de mais sensato se pode dizer a
propósito do Estado ético e de cultura é o
e grupos sociais que o compõe, que o sintetizam
seguinte: todo Estado é ético na medida em
numa correlação de forças evidentemente hete- que uma de suas funções mais importantes
rogêneas e diversificadas. Ao discutir o conceito é elevar a grande massa da população a um
de Estado, numa carta de setembro de 1931, determinado nível cultural e moral, nível (ou

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tipo) que corresponde às determinadas ne- Numa abordagem que apreende de forma mais
cessidades de desenvolvimento das forças abrangente essa dimensão, Acanda (2006)
produtivas e, portanto, aos interesses das compreende que o conceito de sociedade civil
classes dominantes [...] para este fim tende em Gramsci é utilizado para designar, além das
uma multiplicidade de outras iniciativas e ati-
relações associativas, contratuais e voluntárias,
vidades chamadas privadas, que formam o
aparelho de hegemonia política e cultural das
entre pessoas, o conjunto de todas as relações
classes dominantes. sociais produtoras de sentido.
Por outro lado, a relação de hegemonia
O Estado integral corresponde ao aparelho que se expressa na ação estatal, em sentido “in-
de ditadura de classe e ao conjunto dos meios de tegral”, deve indicar a função que os intelectuais
direção intelectual e moral de uma classe sobre assumem nesse âmbito. A atividade intelectual
a sociedade. O domínio de uma classe ou grupo cumpre o papel de fornecer homogeneidade e
social por meio do Estado se manifesta de duas consciência – nos campos econômico, social
maneiras articuladas, como domínio (coerção) e e político – da função da classe social a que
como direção intelectual e moral (hegemonia). se vincula, por meio da produção e da difusão
Portanto, o Estado é compreendido como um das ideologias correspondentes. Os intelec-
instrumento essencial para expansão do poder tuais são concebidos como os “empregados
da classe dominante e, simultaneamente, como especializados” (GRAMSCI, 2011b, p. 15) do
uma força repressiva, conformada na sociedade grupo dominante para o exercício das funções
política, que mantém os grupos subordinados subalternas da hegemonia social e do governo
fracos e desorganizados (CARNOY, 1990). político: do consenso “espontâneo” fornecido
O Estado orgânico também compreende pela grande massa da população à orientação
indissoluvelmente o aparelho “privado” de he- fornecida pelas classes dominantes à vida social;
gemonia, a “sociedade civil”. Os sentidos de e do aparelho de coerção estatal que assegura
sociedade civil que Gramsci (2007) estabelece “legalmente” a disciplina das classes dominadas
nos Cadernos são os de “hegemonia política e (GRAMSCI, 2011b). Da mesma forma, o partido
cultural de um grupo social sobre toda a socie- – na condição de “ideologia geral, superior aos
dade”; “conteúdo ético do Estado”; “aparelho de vários agrupamentos mais imediatos” (GRA-
hegemonia do grupo dirigente”; “organização MSCI, 2011a, p. 421) – cumpre uma função no
intelectual e moral”. O Estado necessita de con- exercício da hegemonia, na medida em que: por
senso e “educa” esse consenso por meio das um lado, representa o modo pelo qual determi-
associações políticas e sindicais, que são orga- nados grupos sociais elaboram sua categoria de
nismos privados deixados à iniciativa privada da intelectuais orgânicos; e, por outro, é o mecanis-
classe dirigente. Na sociedade civil, inscreve-se mo que realiza, na sociedade civil, uma função
o conjunto dos aparatos, tais como escolas, igre- correspondente àquela desempenhada pelo
jas, sindicatos, meios de comunicação etc. (inclu- Estado na sociedade política, de proporcionar
sive organizações econômicas), que exercem o a “soldagem” entre os intelectuais orgânicos do
consenso sobre a sociedade e estabelecem uma grupo dominante e os intelectuais “tradicionais”
direção moral e política (GRAMSCI, 2007). Por (GRAMSCI, 2011b, p. 24). Assim, o partido,
meio desses, é difundida a ideologia dominante em Gramsci, possui como função fundamental
e obtida a adesão e o consentimento das classes transformar os elementos de um grupo social
subalternas para o projeto de classe que é domi- nascido e desenvolvido no “campo econômico”
nante no Estado. Na análise de Buci-Glucksmann em intelectuais políticos qualificados, dirigentes,
(1980), o conceito gramsciano de sociedade civil organizadores de todas as atividades e funções
é captado por uma rede que define seu funciona- inerentes ao desenvolvimento orgânico da uma
mento, cuja natureza apresenta dois momentos: sociedade (civil e política) (GRAMSCI, 2011b).
o das condições materiais de vida, pois não A esfera da sociedade civil também
pode haver sociedade civil sem a determinação compreende o espaço no qual as classes
das relações de produção, que constituem seu sociais confrontam seus projetos ético-políticos
fundamento; e os aparelhos ideológico-culturais e disputam o predomínio hegemônico. Nela,
de hegemonia, o aspecto educador do Estado. estruturam-se as lutas políticas por projetos

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Ideologia, consciência social e hegemonia na obra de Antonio Gramsci

diversos de sociedade. Na sociedade civil, teóricas fragmentadas ou autonomizadas; deve


ocorrem as tentativas de estabelecimento de uma ser inserida no conjunto de sua obra e remetida
direção geral na economia, na política e na cultura, à unidade do seu pensamento.7 Esses breves
articulando-se, conflitiva e contraditoriamente, apontamentos constituem apenas algumas
interesses estruturalmente desiguais.6 Desse indicações principais que se evidenciaram no
modo, a sociedade civil encontra-se atravessada, desenvolvimento do texto.
do plano econômico ao ideológico, pelas lutas Nosso artigo buscou identificar as
de classes (SEMERARO, 1997). As tentativas determinações teóricas e metodológicas que
de construção do consenso e da consolidação a obra gramsciana apresenta para a análise
de uma direção intelectual e moral promovida das relações de hegemonia entre as classes
no Estado integral não se expressa apenas sociais na sociedade burguesa. Assumimos
como lugar de enraizamento do sistema como pressuposto que Gramsci aprofunda
hegemônico de dominação, mas igualmente e desenvolve os elementos heurísticos mais
como o espaço a partir do qual esse sistema significativos da postura metodológica (e as
é desafiado. Se alguns de seus componentes articulações categoriais constitutivas) da teoria
conformam uma perspectiva político-pedagógica social marxiana. Evidencia um posicionamento
da aceitação da subordinação, outros inauguram de historicidade absoluta do trato das lutas
espaços geradores de dissenso e transgressão. sociais desenvolvidas no curso da reprodução
Finalmente, podemos evidenciar que a teoria desse metabolismo social antagonisticamente
gramsciana encontra seu alicerce teórico e sua estruturado. Pela mesma via, apreende a
referência ético-política na dialética de unidade- qualidade das relações entre os aspectos
e-distinção da sociedade civil e da sociedade material, político e espírito-intelectual presentes
política (ACANDA, 2006; NOGUEIRA, 2003). na sociabilidade do capital no contexto da
A sociedade civil é parte orgânica do Estado, totalidade sócio-histórica em questão, com
âmbito dotado de especificidade, mas apenas suas interações complexas e processos de
inteligível se integrado a uma totalidade social. determinação recíproca próprios do movimento
A distinção entre sociedade política e sociedade dialético. As formas ideológicas são consideradas
civil é de ordem “metodológica” e não “orgânica”, momentos constitutivos e fundamentais das
visto que o próprio Gramsci (2007, p. 47) sinaliza: disputas hegemônicas, porquanto elaboram e
“sociedade civil e Estado se identificam na difundem a consciência prática necessária para
realidade dos fatos”. a conformação da dinâmica sócio-metabólica
de acordo com os interesses das classes. É por
Considerações finais meio da noção de Estado integral (ou orgânico)
– conectada, por outra parte, à categoria de
Nessas indicações finais, cabe fazer uma bloco histórico – que suas considerações sobre
remissão aos elementos centrais extraídos do a hegemonia se evidenciam de forma abrangente
estudo proposto. A unidade entre teoria e mé- e complexa, corroborando a necessidade de
todo identificada nas elaborações gramscianas uma postura que trate das vinculações orgânicas
indica que qualquer síntese analítica do seu e dialéticas entre sociedade civil e sociedade
pensamento deve manter a vinculação orgânica política, consenso e coerção, intelectuais
entre suas categorias teórico-ontológicas e as e partido, cultura e economia, produção e
determinações metodológicas corresponden- reprodução social.
tes, sempre fundadas em sua historicidade. A
riqueza do legado teórico gramsciano não per-
mite sua redução esquemática em assertivas 7
Para Coutinho (2011), a unidade do pensamento de Gramsci
estaria hipotecada à centralidade que as reflexões sobre a po-
lítica assumem na obra deste autor: “Gramsci examina todas as
esferas do ser social partindo da relação entre elas e a políti-
6
Portanto se, por um lado, sociedade civil é um conceito com- ca. [...] Nesse sentido, parece-me justa a afirmação do pensador
plexo e sofisticado com o qual se pode entender a realidade con- católico A. R. Buzzi: ‘É a política que forma o núcleo central do
temporânea, por outro, é também um projeto político abrangente pensamento de Gramsci, o que fornece o sentido e a articulação
e igualmente sofisticado com o qual se pode transformá-la (NO- de todas as suas investigações históricas e reflexões filosóficas’”
GUEIRA, 2003; WOOD, 2003). (COUTINHO, 2011, p. 108).

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Adilson Aquino Silveira JÚNIOR

Existe uma crítica contundente ao cienti- Referências


ficismo na investigação das disputas hegemô-
ACANDA, J. L. Sociedade civil e hegemonia. Rio
nicas, que leva à recusa de uma abordagem
de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
economicista. Do mesmo modo, as assertivas
que assinalam a necessidade da apreensão da BRAGA, R. A restauração do capital: um estudo
dinâmica socioeconômica (e do grau de desen- sobre a crise contemporânea. São Paulo: Xamã
volvimento das forças produtivas) caminham (1996).
na direção contrária à das tendências volunta- BUCI-GLUCKSMANN, C. Gramsci e o Estado. Rio
ristas (ou politicistas). Tal posicionamento, em de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
conformidade com a perspectiva da totalidade
concreta, distancia-se do tipo de racionalidade CARNOY, M. Estado e teoria política. 3.ed. São
dominado pela produção capitalista, que con- Paulo: Papirus, 1990.
siste na burocratização do próprio processo da COUTINHO, C. N. De Rousseau a Gramsci: ensaios
pesquisa social. Nesses termos, evidencia-se de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011.
uma crítica radical às pretensões de neutrali-
dade científico-epistemológica que conduzem ______. O estruturalismo e a miséria da razão.
à racionalidade formal abstrata mistificadora da 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
conflitualidade social e da historicidade inerentes GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução
às disputas hegemônicas no interior da sociabili- ao estudo da filosofia e a filosofia de Benedetto
dade burguesa. Esse posicionamento apresenta Croce. 5.ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho com
como inviável qualquer separação especulativa a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco
e formalista do método em relação aos aspectos Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Civilização
complexos e contradições da vida social. Além Brasileira, 2011a, v.1.
disso, vincula a análise concreta das relações de ______. Concepção dialética da história. Rio de
forças à própria necessidade de transformação Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
intransigente da ordem social estabelecida em
sua totalidade. ______. Cadernos do cárcere: Os intelectuais. O
Esperamos que essas remissões teóricas princípio educativo. Jornalismo. 6.ed. Trad. Carlos
Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio
tenham explicitado como Gramsci posiciona-se
Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro:
teórica e metodologicamente para a análise
Editora Civilização Brasileira, 2011b. v.2.
das concretas e historicamente determinadas
lutas hegemônicas que perpassam a sociedade ______. Cadernos do cárcere: notas sobre o Estado
de classes, suas relações com a ideologia e e a Política. Trad. Carlos Nelson Coutinho com a
as formas de consciência social, sendo estas colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco
mediações necessárias (ativamente atuantes) Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Civilização
para a reprodução continuada do metabolismo Brasileira, 2007, v.3.
social. Entretanto, esse trabalho constitui apenas ______. Cuadernos de la cárcel. Edición crítica del
o ponto de partida, tanto para aqueles que visam Instituto Gramsci a cargo de Valentino Gerratana.
a uma investigação mais profunda da obra de Puebla: Ediciones Era, 2000 (Tomo 6).
Gramsci, quanto para os que buscam empregar
______. Cuadernos de la cárcel. Edición crítica del
as categorias teóricas e os elementos analíticos
Instituto Gramsci a cargo de Valentino Gerratana.
fornecidos por seu legado na pesquisa de situ- Puebla: Ediciones Era, 1986 (Tomo 4).
ações concretas.
______. Cuadernos de la cárcel. Edición crítica del
Instituto Gramsci a cargo de Valentino Gerratana.
Puebla: Ediciones Era, 1984a (Tomo 3).

______. Cuadernos de la cárcel. Edición crítica del


Instituto Gramsci a cargo de Valentino Gerratana.
Puebla: Ediciones Era, 1984b (Tomo 2).

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