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Regulação da glicólise

A glicólise fornece à célula diferentes moléculas importantes para o seu correcto


funcionamento. A principal é o ATP, o dador de energia química na maior parte dos nossos
processos. No entanto, fornece também vários precursores para outros processos, tais como
síntese de aminoácidos, por exemplo. Assim, torna-se fundamental haver uma regulação
rigorosa da glicólise, de forma a que a célula possa responder a diferentes necessidades de
ATP ou de outros metabolitos.

Durante os seus estudos acerca da fermentação da glucose por leveduras, Louis Pasteur
descobriu que a taxa e a quantidade de glucose consumida era superior em condições
anaeróbicas do que em condições aeróbicas! À primeira vista isto pode parecer estranho, pois
normalmente associa-se o metabolismo aeróbico a algo mais vantajoso para a célula. De facto,
a explicação bioquímica é simples: em condições anaeróbicas uma molécula de glucose gera
duas moléculas de ATP, mas em condições aeróbicas gera 30 ou 32 moléculas de ATP.
Simplificando o raciocínio, se pensarmos que em 5 minutos a levedura vai precisar de obter 30
ATP, isto significa que em condições aeróbicas só precisa de gastar uma molécula de glucose
nesse intervalo de tempo, enquanto que em condições anaeróbicas, como o processo é menos
rentável do ponto de vista energético, é necessário gastar 15 moléculas de glucose. Ou seja, o
fluxo de glucose através da via glicolítica é regulado em função dos níveis de ATP da célula
(bem como reservas adequadas de intermediários glicolíticos que desempenham papéis
biosintéticos).

Conforme já referi em posts anteriores, a glicólise possui 10 reacções, sendo que 3 delas são
pontos de regulação (reacções irreversíveis). As enzimas que as catalizam são a hexocinase
(reacção 1), PFK-1 (reacção 3) e piruvato cinase (reacção 10). Como estas reacções são os
passos limitantes da glicólise, alterações na velocidade de actuação das respectivas enzimas
vão alterar a velocidade global da via glicolítica.

Das 3 enzimas regulatórias, a principal é a PFK-1. Isto pode parecer estranho, pois realmente o
que era mais lógico era que a principal enzima regulatória fosse a primeira… Mais uma vez,
existe uma explicação muito simples para tal não ocorrer. O que se passa é que a hexocinase é
uma enzima comum também a outros processos metabólicos (síntese de glicogénio e via das
pentoses fosfato). Por outras palavras, apesar de ser uma enzima regulatória, não é exclusiva
da glicólise. Sendo assim, o principal ponto de regulação da glicólise terá que ser o segundo, ou
seja, a reacção catalisada pela PFK-1.

Uma coisa que eu costumo dizer aos meus alunos é que nesta parte da regulação é preferível
perceber porque é que determinadas moléculas activam e outras inibem a via metabólica,
evitando assim decorar listas infindáveis de moduladores… Claro que nem sempre é possível
fazer um raciocínio directo para perceber porque é que algumas moléculas funcionam como
activadores e outras como inibidores, mas sempre que for possível eu vou desenvolver essa
ideia… Vamos então passar a uma listagem dos principais moduladores da glicólise.
Activadores da hexocinase:

- Frutose-1-fosfato (fígado) – Compete com a frutose-6-fosfato para a proteína reguladora da


glucocinase, cancelando o seu efeito inibitório.

-  Fosfato inorgânico (Pi) – É um interveniente no processo glicolítico (intervém na reacção 6)


pelo que faz sentido que a ter um papel regulatório, seja um papel estimulador.

Inibidores da hexocinase:

- Glucose-6-fosfato (músculo) – Faz sentido que funcione como inibidor, pois é o produto da
reacção. Se temos muito produto, não vamos precisar de continuar a produzir mais…

- Frutose-6-fosfato (fígado) – É o produto da reacção seguinte (reacção 2), mas pode ser
interpretado da mesma forma que o anterior. Ou seja, se estamos a acumular o intermediário
formado a partir do produto da reacção, não adianta continuarmos a sintetizar mais produto.
Esta inibição ocorre através de uma proteína denominada proteína reguladora da glucocinase.

Activadores da PFK-1:

- Frutose-2,6-bisfosfato (fígado) – Regulador alostérico mais significativo da PFK-1, reduzindo a


sua afinidade para os inibidores ATP e citrato. É produzida em resposta à insulina e degradada
em resposta ao glucagon.
- Frutose-6-fosfato –É o substrato, portanto faz sentido que se temos muito substrato a enzima
seja activada.

- ADP e AMP – São produzidos quando se gasta ATP, ou seja, sinalizam um estado energético
em baixa. Sendo assim, faz todo o sentido que activem a glicólise, de forma a que a célula
possa repor os seus valores energéticos normais. Activam a enzima porque aliviam a inibição
causada pelo ATP.

Inibidores da PFK-1:

- Glucagon (fígado) – Esta hormona é produzida numa situação de hipoglicemia e tem como
objectivo elevar a concentração de glucose no sangue. Portanto, faz todo o sentido que iniba a
glicólise, pois este processo gasta glucose, o que vai acentuar ainda mais a reduzida
concentração sanguínea de glucose. Conforme referido anteriormente, o glucagon diminui os
níveis de frutose-2,6-bisfosfato.

- ATP – O principal objectivo da glicólise é produzir energia (ATP). Portanto, se a célula já tiver
ATP, faz todo o sentido que a glicólise seja inibida, impedindo assim um gasto desnecessário
de um combustível metabólico tão precioso como a glucose! O ATP inibe a PFK-1 porque
diminui a afinidade da enzima para o seu substrato, a frutose-6-fosfato.

- Citrato – Acentua o efeito inibitório do ATP. Esta molécula é o primeiro intermediário do


passo seguinte do catabolismo aeróbico, o ciclo de Krebs. Portanto, se se estão a acumular
intermediários do ciclo de Krebs, não adianta continuar a efectuar glicólise.

- Fosfoenolpiruvato – É um intermediário da glicólise formado na penúltima reacção. Ora, se


está a acumular-se este intermediário, as reacções anteriores têm que ser inibidas, de forma a
impedir uma acumulação ainda maior dessa molécula.

- H+ – Esta enzima é particularmente sensível a alterações de pH, funcionando como um


“interruptor” que se desliga, por exemplo, quando efectuamos uma fermentação láctica
(produz H+) exagerada, impedindo uma acumulação de H + ainda maior.
Activadores da piruvato cinase:

- ADP – O motivo é o mesmo que já foi referido para a PFK-1, ou seja, é um indicador de um
défice energético, pelo que vai levar a uma activação da glicólise.

- Frutose 1,6-bisfosfato – É um intermediário da glicólise formado numa reacção anterior à


catalisada pela piruvato cinase. Sendo assim, se se estão a acumular intermediários numa fase
anterior, temos que activar esta enzima, de forma a contrariar essa acumulação (é como
quando uma barragem acumula muita água, e para repor os valores normais é necessário abrir
a comporta…).

- Desfosforilação (fígado) – Induzida, por exemplo, pela insulina, o que faz todo o sentido,
tendo em conta que a insulina é produzida numa situação de excesso de açúcar no sangue
(hiperglicemia) e vai activar os processos (um deles é a glicólise!) que consumam glucose, de
forma a baixar a concentração sanguínea de glucose.

Inibidores da piruvato cinase:

- ATP – É um transportador de energia química e um dos produtos finais da glicólise, logo, se


existir já não é preciso efectuar a degradação da glucose. Diminui a afinidade da enzima para o
fosfoenolpiruvato.

- Acetil-coA – É a molécula na qual o produto desta reacção (piruvato) é convertido, no caso do


catabolismo aeróbico. Portanto, se se acumula acetil-CoA, não fazia sentido continuar a
sintetizar piruvato, pelo que a enzima é inibida.

- Ácidos gordos de cadeia longa.

- Fosforilação (fígado) – Induzida, por exemplo, por acção do glucagon, que, conforme referi
anteriormente, vai ter como principal função elevar os níveis de glucose no sangue. Para tal,
inibe, por exemplo, a glicólise.

- NADH – Conforme iremos ver mais em detalhe quando eu falar da respiração celular, o NADH
tem potencial para originar moléculas de ATP, pelo que sinaliza um estado energético em alta
da célula. Nessa situação, não é preciso recorrer à glicólise para obter mais energia.

- Alanina – Este aminoácido (um dos 20 aminoácidos standard) pode originar piruvato (produto
da reacção da piruvato cinase!) por remoção do seu grupo amina. Portanto, se existe uma
molécula que pode originar directamente piruvato, não precisamos de estar a gastar glucose
para o produzir.

Resumindo, é possível fazer algumas generalizações acerca da regulação das vias metabólicas,
que irão ser úteis para perceber a regulação dos restantes processos.

Primeiro, moléculas energéticas, tais como o ATP, ou potencialmente energéticas, tais como
o NADH são, de uma maneira geral, inibidores do catabolismo. Isto é muito fácil de perceber
se pensarmos que o principal objectivo do catabolismo é produzir energia. Se a célula já tiver
essa energia, não precisa de degradar mais nutrientes para produzir energia! O raciocínio
oposto aplica-se ao ADP, AMP e NAD+, pois qualquer uma destas moléculas sinaliza um défice
energético na célula (lembrem-se que quando gastamos ATP obtemos ADP ou AMP, e quando
gastamos NADH obtemos NAD+…), pelo que será necessário repor os níveis energéticos, e para
tal activa-se o catabolismo.

Segundo, o produto da reacção, ou intermediários formados a partir deste (produtos de


reacções seguintes à reacção a considerar) são inibidores. Por outro lado, o substrato, ou
intermediários que irão originar o substrato (formados em reacções anteriores à reacção que
se está a considerar), são activadores.

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