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SILVA, Denilson de Cássio. “Em História sou simplesmente poeta: Cecília Meireles e o
passado presente como escrita da história.” In: MARCELINO, Douglas Attila. (Org.).
Ritualizações do passado: a história como prática escrita e rememorativa. Curitiba:
Editora CRV, 2020, p. 47-74.
“O passado não é assim tão passado porque dele nasce o presente com que se faz o
futuro.”
Cecília Meireles, Diário de Notícias, 1933.
Fantasmas do passado
Ao participar das incertezas e inquietudes da “era dos extremos” (HOBSBAWM,
1994), Cecília Meireles, a exemplo de tantos de sua geração, tomou a história como ponto
cardeal para se situar, para levantar diagnósticos das confusões em curso e para emitir
prognósticos em defesa de seus ideais. Do Rio de Janeiro, então “capital irradiante”
(SEVCENKO, 1998, p. 516-620), onde nasceu e sempre residiu, lançou mão de liras e
de farpas (LAMEGO, 1996), com uma atenta perspectiva histórica.
Em 1919, o primeiro poema de seu livro inaugural, além de dar título à obra, servia
como uma espécie de cenário preparatório para o prosseguimento das composições. E
deixava entrever a magnitude do passado:
Espectros
Nas noites tempestuosas, sobretudo
2
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,
1
Acrescente-se que o terceiro poema, intitulado Brâmane, sinalizava que o interesse da autora pela cultura
oriental, em especial, a indiana, já fazia parte de seu horizonte de interesse e de investigação. Sobre a relação
de Cecília Meireles com a Índia, ver: REIS, 2019. Sobre a poética ceciliana, em geral, ver: GOUVÊA,
2008.
3
Do professor de História quis ela escutar a “opinião sobre as primícias poéticas do
seu talento juvenil”, vindo a dar mostras de “grande cultura”, “da antiguidade clássica e
da história medieva e moderna” (MAGALHÃES, 1919, p. 5). Descontadas as
formalidades e gentilezas do comentário, tem-se aí sinais do caminho formativo de
Cecília Meireles, de seu interesse pelo passado e de sua preocupação não somente com o
esmero da técnica literária, como também com o conhecimento dos elementos históricos.
Em outra resenha do opúsculo, Lincoln Souza admoestava a jovem a deixar
emergir mais seu lirismo, em detrimento da descrição de cenas e vultos da história
(SOUZA, 1920).2 Incidindo ou não tal conselho, fato é que, nas décadas seguintes, Cecília
produzirá versos, predominantemente, caracterizados por vozes e emoções pessoais, com
elevada carga subjetiva, distinguindo-se da tendência desse primeiro experimento
literário. A despeito disso, a presença desse passado que não passava será uma das
grandes permanências da poética e das ideias da escritora, um dos caracteres que fez de
Cecília sempre outra, porque sempre a mesma. Ou, em outros termos, como relataria em
1946: “[...] as transformações que em mim possa encontrar são apenas as de uma
continuação de mim mesma, através das experiências que o tempo nos oferece”
(MEIRELES, 1946, p. 3).3
Tensionando as relações entre livre criação literária e acatamento dos informes da
racionalidade histórica, Cecília Meireles realizou um exercício que, por um lado, por seu
contorno parnasiano, estaria cada vez mais distante dos passos seguintes e, por outro, ao
estabelecer diálogos entre literatura e história, demarcaria a centralidade dos problemas
do passado.
Há quase dois anos diplomara-se pela Escola Normal do Distrito Federal, onde
protagonizara um motim estudantil contra o autoritarismo da diretoria (O SÉCULO,
1915). Exercia o magistério na Escola Deodoro da Fonseca, da rede pública municipal,
bairro da Glória, Rio de Janeiro. Estava prestes a completar 19 anos de idade.
A inúmera
2
Após citar o poema Noite de luar, o crítico indagou: “Por que a jovem e encantadora poetisa não nos dá
um livro de joias líricas como essa?” (SOUZA, 1920).
3
Cecília referia-se à divisão de sua obra em duas partes, antes e depois de 1938, quando, enfim, obteve
consagração com o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, com o volume Viagem, lançado no
ano seguinte pelo Editorial Império, de Lisboa. Cf. MEIRELES, 1946.
4
Esse imaginário integrado por espectros ou fantasmas, a atenção para essa
presença do passado, intercruzando autobiografia e processo histórico, manifestou-se
também nas décadas seguintes. Figuras políticas consagradas e proezas militares e
bíblicas, contudo, foram cedendo espaço para uma história entroncada na própria
existência da autora, em sua genealogia e em personagens anônimos ou explorados. Em
trabalho de 1927, já casada com o artista plástico português Fernando Correia Dias, dentre
vinte e seis cânticos, testemunhava o
XXIV
5
Depois, vieram os santos e os bardos.
Os santos, cobertos de espinhos.
Os poetas, cingidos de cardos (MEIRELES, 2001a, p. 323).4
4
Sobre a referida polêmica, ver: RICARDO, 1939. Agradeço a Ana Amélia Neubern Batista pelo
compartilhamento dessa fonte.
6
Andam arados, longe, em minh’alma.
5
Mais recentemente, a expressão a história vista de baixo, atuará para “convencer aqueles de nós nascidos
sem colheres de prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.”
(SHARPE, 1992, p. 39-62).
7
Cecília Meireles parecia comungar desses questionamentos sobre um
historicismo, atado à ideologia do progresso, ao enaltecimento do Estado nacional, dos
grandes chefes, batalhas e feitos políticos. Seu interesse pela cultura popular e pelo
folclore, igualmente, derivaria dessa concepção (MEIRELES, 1952; MEIRELES, 1950).
Ela própria, nascida e criada em família de parcas posses materiais (O SÉCULO, 1915;
MEIRELES, 1998a, p. 13), viria a se distinguir como intelectual e a ascender socialmente,
por meio de sua dedicação aos estudos (O SÉCULO, 1915). Ela, a “inúmera”, a anônima,
aquela que, diante da tumultuada assembleia de criação da “Legião da Mulher Brasileira”,
se declarara “livre pensadora” (MEIRELES, 1920)6, projetar-se-ia como nome
reconhecido nos meios culturais e traria à tona histórias de outros tantos desfavorecidos
ou incompreendidos.
6
Citação feita primeiramente em: LAMEGO, 2018. Agradeço a Carolina de Oliveira Silva Othero pelo
compartilhamento desse artigo.
7
Segundo testemunho de Andrade Murici, um dos principais articuladores da publicação, “[...] Fora na
casa de nossa grande amiga [Cecília Meireles], na rua de São Cláudio, na entrada do Morro de São Carlos,
que Festa foi estruturada, com o auxílio do eminente ilustrador Correia Dias” (MURICI, 1971, p. 228).
8
O engajamento de Cecília Meireles por meio do Diário de Notícias foi analisado em: LAMEGO, 1996.
9
Como Cecília, Nóbrega da Cunha foi signatário do Manifesto pela Educação Nova, além de assinar artigos
em defesa desse movimento. Cf. AZEVEDO et al., 2010.
10
“A minha atividade na imprensa é muito antiga e em vários setores. Reputo a mais importante que exerci
entre os anos 1930 e 34, no Diário de Notícias e depois em A Nação, porque aí tive a ocasião de servir às
ideias de melhoramento do homem brasileiro pela compreensão mais séria da educação, atendendo a todos
os problemas que o afligem, com as soluções que um plano geral de educação, devidamente orientado,
comporta. [...]” (MEIRELES, 1945, p. 11).
8
problemas culturais, políticos, sociais e econômicos, valendo-se, não raro, de um
horizonte histórico crítico, propício ao fortalecimento de suas análises. Dentre as questões
enfrentadas pela articulista, figuraram os desafios da guerra e da paz. Outros três pontos
expunham de modo igualmente incisivo os referenciais que norteavam sua visão da
história. Foram eles: a abolição da escravidão, a Revolução Francesa e a República.
Não resta dúvida de que a Grande Guerra (1914-1918) tornou-se um dos
acontecimentos basilares para seus contemporâneos, exercendo impacto nos meios
intelectuais da América do Sul (COMPAGNON, 2014). Compreende-se, assim, que a
carnificina tenha sido aventada como um episódio definidor da ideia de “geração”. No
Brasil, a exemplo de outros torrões, a guerra seria identificada como uma espécie de
cinzel a talhar toda uma juventude literária, alcunhada de “geração da Paz” (COSTA,
1923; MURICI, 1928), surgida do armistício de 1918 e do hiato da gripe espanhola.
A urgência em se evitar novas guerras e estabelecer a paz, segundo Cecília
Meireles, seria o “mais grave problema do mundo” (MEIRELES, 2001b, p. 258). Para
enfrentá-lo, além de lançar mão de vocabulário e de expressões pacifistas (SILVA,
2017b), a autora sinalizava a relevância de um ensino e de uma concepção de história,
antagônicos à retórica belicista. Dessa maneira, em janeiro de 1932, ao se deparar com a
notícia do predomínio de miniaturas de tanques, submarinos, porta-aviões e outros itens
de guerra em lojas de brinquedo berlinenses, redigiu:
[...] como o telegrama vem de Berlim, e a palavra da história tem um
prestígio profundo, porque vem de infinitos destinos acumulados e
sacrificados nas trágicas mãos do tempo, não será inoportuno recordar
Wells quando discorre sobre ‘A catástrofe internacional de 1914’ [...].
(MEIRELES, 2001b, p. 234).
A seguir, citou extensos trechos desse último tópico do livro oitavo de The outline
of History,11 tocando destacar aquele que parece resumir a crítica em foco:
O maior crime dos Hohenzollern foi a intervenção constante e
persistente da coroa na educação do país, e particularmente no ensino
de história. Nenhum Estado moderno pecou tanto contra a educação. A
oligarquia e a monarquia coroada da Grã-Bretanha puderam mutilar e
fazer sofrer a educação, mas a monarquia Hohenzorllen corrompeu-a e
prostituiu-a (WELLS apud MEIRELES, 2001b, p. 234).12
11
Conhecido, sobretudo, por seus romances científicos, Herbert George Wells (1866-1946) foi também
autor de textos de não-ficção e defensor da paz, da justiça social e da igualdade de direitos entre homens e
mulheres. Cf. WELLS, 2015.
12
A tradução desse e dos demais excertos de Wells pode ter sido feita por Cecília Meireles, que estudava
várias línguas, dentre as quais, o inglês. O original encontra-se em: WELLS, 2015. Saliente-se que a autora
observou ainda: “Essa mesma visão de Wells, encontramo-la em Remarque, nas queixas do Nada de novo
na frente ocidental, e no Depois” (MEIRELES, 2001b, p. 234). Além de leitora e comentarista das obras
9
A educadora-jornalista prestigiava a história, o saber sobre a experiência dos que
viveram, lutaram e morreram, e via com preocupação o uso de seu ensino para a promoção
de um patriotismo sectário, de ilusões de superioridade. Dois dias depois, emergiu um
outro artigo, no qual, novamente, Cecília voltou a ressignificar as ideias de H. G. Wells.
Na condição de brasileira, intelectual latina-sul-americana (SILVA, 2018), Cecília
parecia disposta a atuar pela descolonização do pensamento historiográfico e de seu
ensino, ao difundir e se apropriar de passagens como:
O patriotismo forma-se um pouco no ambiente doméstico; até certo
ponto, pelos livros; mais, talvez, pelos jornais; mas principalmente pelo
ensino da história em nossas escolas. Essa obsessão de independência
soberana dos Estados, que constitui o único obstáculo real para a
federação e a paz mundiais, tem por base o ensino, nas escolas, da
história puramente nacionalista ou imperialista (WELLS apud
MEIRELES, 2001b, p. 238).
de Eric Maria Remarque, Cecília dedicou cerca de cinco crônicas à exegese de cartas de estudantes alemães
mortos na guerra, então publicadas em livro. Vislumbra-se, por esses indícios de empatia, igualmente, pelos
alemães, que a citação de Wells possuía antes um intento político-pacifista do que uma inexistente adesão
à propaganda antigermânica pré-nazista.
13
Ver, por exemplo, crônicas dos anos 1950: MEIRELES, 1999.
10
“obra de pacifismo universal” (MEIRELES, 2001b, p. 238). A paz, como a liberdade,
teria de ser “uma conquista do homem dominado por si mesmo”, um processo longo,
difícil, mas possível, mesmo porque “a humanidade possui a virtude da morte, que é uma
virtude de renovação. Os mortos de hoje transmitirão aos vivos de amanhã, e aos de todos
os tempos, um sonho que já está procurando ser uma pequena realidade” (MEIRELES,
2001b, p. 283).
O percurso do passado, portanto, não seria uma regra imutável, uma vez relido e
redimensionado pelo presente, locus do imprevisível, da gestação de futuros. Esse mesmo
juízo delineou os apontamentos de Cecília sobre os significados do 13 de maio e do 14
de julho, datas que, excluídas há pouco do calendário oficial (DECRETO, 1930),14
relembravam, respectivamente, a assinatura da lei nº 3. 353 de 1888, cujos breves artigos
declaravam legalmente extinta a escravidão no Brasil, e a tomada da Bastilha por
populares na Paris de 1789, símbolo da Revolução Francesa.
Constatando, em maio de 1932, que “o preconceito das raças não desapareceu
completamente do espírito de todos”, provocou: “Eu queria que me dissessem em que
país do mundo é que está a liberdade”. E inferiu:
[...] o Brasil, infelizmente, ainda não é uma exceção. E parece que em
todo hino que a gente sabe de cor desde criança está essa palavra bonita,
que instintivamente se ama e em que se acredita, sem saber que é apenas
uma invenção de algumas criaturas sonhadoras, que morreram por ela
(muito contentes quase sempre), antes de a poderem conhecer com
realidade objetiva. Mas o sonho transmite-se. O sonho é uma realidade
a seu modo: sem substância, mas indestrutível (MEIRELES, 2001b, p.
203).
14
Juntamente com o 13 de maio e o 14 de julho retirou-se do calendário de feriados nacionais o 21 de abril,
até então consagrado à “comemoração dos precursores da Independência Brasileira, resumidos em
Tiradentes” (DECRETO, 1890). Essa mudança veio a chamar a atenção de Cecília Meireles para o episódio
e os personagens da Inconfidência Mineira, conforme mais tarde, em 1947, recordaria a autora. Cf.
MEIRELES, 1998a, p. 111.
11
Se os significados e os anseios da Abolição continuavam à espreita da
concretização de seus fins inalcançados, o mesmo se aplicava às ideias franco-
revolucionárias: “Somos, afinal, um permanente 14 de julho. Uma permanente aspiração
para a liberdade, seja qual for o rumo por que orientarmos essa palavra”, pois “[...] Dentro
de nós existem sombrias bastilhas: a que os outros edificaram em nosso espírito, e aquelas
que nós mesmos, sem o sabermos, andamos edificando” (MEIRELES, 2001b, p. 209).
Imersa nos embates por uma educação pública, gratuita, laica e democrática, para
ambos os sexos, Cecília fornecia pistas de sua opção política e historiográfica:
14 de julho: todo o nosso esforço. Nosso sangue. Nosso espírito...
Talvez uma bastilha em fogo... E a liberdade?
“Liberté, liberté, chérie...”
Onde estão os que morreram por ela, naquele 14 de julho que todos
viram? Eles sorririam agora de todas as nossas mortes infrutíferas...
Sorririam, mas tornariam a morrer mil vezes, pelo mesmo sonho
(MEIRELES, 2001b, p. 210).
Posto que o passado dos vencedores fosse entendido como um peso, a travar
mudanças necessárias, o dos vencidos era interpretado como herança semeadora de
liberdade. Mais valeria o martírio do que o servilismo ante o opressor, partidário da
inércia. Que tais referenciais lançassem raízes na cultura francesa, acompanhada por certa
francofilia, vinda do oitocentos, parece claro (FLÉCHET; COMPAGNON; ALMEIDA,
2017). Cecília Meireles, inclusive, sentia-se mais familiarizada com a língua francesa do
que com a inglesa (MEIRELES, 1998a), e assumia a importância de Jean-Jacques
Rousseau para sua formação intelectual, ao denominá-lo de “criatura genial”, “de que
ainda hoje estamos sendo discípulos em todas as verdades que preparou no seu século”
(MEIRELES, 1932a, p. 4). Sua concepção de história e a forma de lidar com o passado
sustinha uma proximidade com esse seguimento político-ideológico, por meio do qual se
municiava de preceitos republicanos, chegando mesmo a afirmar, ao sair em defesa da
laicidade do ensino, frente a medidas do Governo Provisório, que “[...] a revolução [de
outubro de 1930] deixa até de ser democrática. Eu achava melhor, portanto, que
voltássemos logo à monarquia. Porque assim, pelo menos, podia haver a esperança de
ainda vir a ser proclamada a República” (MEIRELES, 1932b, p. 4).
12
bem comum. Essa forma de apreender a história e o mundo implicou movimentos
distintos, animando, por um lado, os vínculos com pessoas e circuitos que comungavam
do mesmo ideal e, por outro, acentuando a reação de adversários.
Em 1932, como ocorria a praticamente todos de tendência progressista, Cecília
fora rotulada de comunista e, em 1937, viu o Centro de Cultura Infantil, que fundara e até
então conduzia, ser invadido e fechado pela polícia do Estado Novo, sob o pretexto de
abrigar obras de conotações... comunistas. No ano seguinte, seus opositores tentaram, sem
êxito, preteri-la do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Atitude análoga
voltaria a surgir nos anos 1950, quando concorreu a outras honrarias com Romanceiro de
Inconfidência (LIMA, 1932; PIMENTA, 2001; ANDRADE, 2007). A despeito dessas
investidas, Cecília Meireles conseguiu retraçar rotas de ação e levar a cabo iniciativas,
sem abrir mão de seu olhar para a história.
Em 1939, viúva e mãe de três filhas, tornou-se repórter da revista mensal O
Observador Econômico e Financeiro, fornecendo textos com mais de 15 páginas,
enriquecidos por fotografias, com títulos como “Economia do Magistério”, “Economia
do Intelectual” e “Trabalho feminino no Brasil” (MEIRELES, 1939a; MEIRELES,
1939b; MEIRELES, 1939c).15 Em todas essas colaborações, além de consultar
profissionais e estudos pertinentes, trazendo números atuais sobre os problemas
arrolados, valeu-se de um balanço histórico. Comparou os desafios do professorado nos
períodos anteriores e posteriores às iniciativas escolanovistas dos anos 1920
(MEIRELES, 1939a); conjecturou sobre a figura dos intelectuais, estimando que fosse
“condição do pensamento debater-se entre circunstâncias e alcançar algumas verdades
duradouras [...]”, haja vista que “[...] A história da humanidade é o relato desse vai-e-vem
do pensamento, em luta consigo e com tudo mais – de algumas das suas vitórias e muitos
dos seus cativeiros” (MEIRELES, 1939b, p. 59); recorreu a Frei Vicente do Salvador e a
Vanhargen, o Barão de Porto Seguro, para investigar o trabalho feminino no Brasil
colonial, atravessando o Império até os avanços do Novecentos, em que apreciava o
engajamento de Bertha Lutz na “chefia do movimento de reivindicações femininas”
(MEIRELES, 1939c, p. 101).
Durante a realização de uma das entrevistas para O Observador, tomou contato
com o fitopatologista e diretor da Escola Nacional de Agronomia, Heitor Grillo, com
quem se casou em 1940. No ano subsequente, tornou-se editora da revista Travel in
15
Sobre a revista, ver: CORRÊA, 2016.
13
Brazil, produzida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, escrita unicamente em
inglês e voltada para o público estrangeiro (LUCA, 2011).16 Ao preparar um dos volumes,
viajou para Ouro Preto e fez a cobertura da Semana Santa de 1942, ocasião que instigaria
a criação de um vigoroso elo com a cidade, mantido até o fim da vida.
Dividindo o número com outros dois artigos, um dos quais, assinado por seu
antigo professor de História, Basílio de Magalhães, o texto de Cecília Meireles descrevia
detalhes das celebrações e dos personagens envolvidos, mesclando tons de reportagem,
crônica e poesia, coerentes com a proposta da publicação. Anunciando que uma visita à
Semana Santa de Ouro Preto valeria a pena, “seja em espírito devocional, seja em espírito
científico, artístico ou turístico” (MEIRELES, 1942, p. 16),17 mal disfarçava seu
entusiasmo:
[…] Ouro Preto! Essa é Ouro Preto. Um ar de tristeza, de velhice
sonhadora, banha-se como a luz da lua no topo das colinas com igrejas
de duas torres, cobre as antigas casas em ruínas e desce com os rios
preguiçosos, que fluem lentamente sob as pontes de pedra com suas
cruzes para proteger o viajante (MEIRELES, 1942 p. 15).18
16
A Travel in Brazil contou com contribuições de Mário de Andrade, Tasso da Silveira, José Lins do Rego,
Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros.
17
Original: “whether in a devotional spirit, or in a scientific, artistic or touristic spirit”. Tradução minha.
18
Original: “[…] Ouro Preto! This is Ouro Preto. An air of sadness, of dreamy old age, bathes like
moonlight the tops of the hills with twin-towered Churches, covers the old ruined houses and descends with
the lazy rivers, wich flow sluggishly under the stone bridges with their crosses to protect the traveler.”
Tradução minha. Registra-se que Ouro Preto despertou o fascínio de vários intelectuais coetâneos. Ver, por
exemplo, o caso de Gustavo Barroso, cujo pensamento, se não distava tanto de Cecília Meireles, no que diz
respeito à experiência do tempo, situava-se no polo oposto ao daquela no espectro político. Ver:
CERQUEIRA, 2017.
19
Original: “[...] Ouro Preto the celebrated ‘Vila Rica’, to wich two important facts of Brazilian history are
attributed: the martyrdom of Tiradentes, and the love of the Poet Gonzaga, both forming a part of the
dramatic episode called the ‘Inconfidência Mineira’, the movement for independence in 1789.” Tradução
minha.
14
acontecimentos centrais, não cessariam. Os inconfidentes e seu mártir subsistiam como
objeto de controvérsias durante o Estado Novo, não raro criticados por simpatizantes do
fascismo. Em outras palavras, “apesar de um forte imaginário sobre Tiradentes já estar
internalizado na população, sobretudo pela ação da escola, havia discussões sobre tal
figura e a possibilidade de alteração de uma hierarquização de sua grandeza [...]”
(FRAGA, 2015, p. 145-146).
Nesse debate, Cecília tendia para a valorização do alferes, de Gonzaga e das
aspirações dos insurgentes, conforme já explicitara em artigo de abril de 1931
(MEIRELES, 2001b, p. 195-198). Com a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados,
em agosto de 1942, a demanda por um imaginário de luta por liberdade intensificou ainda
mais a reverência àquela figura (FRAGA, 2015, p. 146-147).
Vale, assim, indagar que nuances haveria entre tais representações, partícipes de
um mesmo macro campo ideológico, ou seja, de enaltecimento da ideia de liberdade e das
tramas das Minas setecentistas. A editora de Travel in Brazil, com efeito, tomou parte na
elaboração e na difusão do referido simbolismo e, simultaneamente, manteve-se esquiva
a um tipo de nacionalismo, que pudesse obnubilar o espírito crítico (SILVA, 2017a). Mais
que isso: em tempos nos quais grassava a perda do “respeito pela condição humana”
(MEIRELES, 1998b, p. 189), com a ditadura estadonovista e a fúria bélica mundial, deu
ênfase aos significados da resistência à opressão, à sobrevivência de princípios
defendidos por condenados,20 compreendendo a Inconfidência por uma via processual,
como um “dramático episódio”, como “movimento pela independência” (MEIRELES,
1942, p. 15).21
A escolha dessas expressões não era gratuita e sugeria o comprometimento da
autora com uma cultura histórica alinhada ao “desejo de ser justo”, ao “pudor de ser ou
parecer, sequer, maior que o seu semelhante” (MEIRELES, 1998b, p. 189). Sob esse
prisma, a narrativa tocante aos inconfidentes seria não só histórica, como também
alegórica, a desvelar as angústias do agora.
Cerca de um ano após realizar a cobertura da Semana Santa, parecia se divertir
com as tensões de sua relação com o passado, imaginando-se com outros nomes, viajando
pelo século XVIII e reinventando temporalidades: “No caminho [para Ouro Preto], mudo
20
Anos depois, emblematicamente, a autora pensou em dar o título de “Os Condenados” à sua pesquisa
sobre a Inconfidência. Ver: MEIRELES, 1998a, p. 119.
21
Sobre a participação de intelectuais nos quadros do Estado Novo, ver: GOMES, 2007. Quanto à Segunda
Guerra Mundial, ainda ecoando traumas do conflito de 1914, Cecília Meireles também se manifestou pela
poesia. Cf. MOURA, 2016.
15
de nome e de cara. Envelheço, não para adiante, como todos envelhecemos, mas ao
contrário, - minha cronologia vai-se fazendo ao revés, no cômputo para antes de Cristo”
(MEIRELES, 1998b, p. 26).
Se tal interação poderia proporcionar momentos de leveza e de engenho, também
causava angústias e fadigas. Afinal, desde aquela ida a Ouro Preto foi se envolvendo com
o caso e se entregando, cada vez mais, a seu exame, coroado com a publicação do
Romanceiro da Inconfidência, em 1953. Dois anos depois, proferiu uma conferência na
Casa dos Contos, em Ouro Preto, em que explicou o longo processo de preparação,
relembrando:
Quando, há cerca de 15 anos, cheguei pela primeira vez a Ouro Preto,
o Gênio que a protege descerrou, como num teatro, o véu das
recordações que, mais do que a sua bruma, envolve estas montanhas e
estas casas -, e todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os
antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto
propósito jornalístico de escrever as comemorações de uma Semana
Santa; porém os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas
dos andores; [...] Na procissão dos vivos caminhava uma procissão de
fantasmas [...] (MEIRELES, 2013, p. 16).
Em outras ocasiões, Cecília afirmara que entendia a Literatura como uma “fonte
de ilustração indispensável à formação humana.” (MEIRELES, 1944, p.3), “[...] um meio
de compreensão humana e do mundo...” (MEIRELES, 1946, p. 11). Essa mesma
concepção regeria a escrita da história, feita de buscas por elementos duráveis, universais
- tais como liberdade, amor, justiça, traições e humanidade, contidos em episódios
específicos - e de negociações com o passado presente ou com o governo dos mortos
sobre os vivos:
Sem sombra de positivismo, posso, no entanto, confirmar por
experiência a verdade de que “somos sempre e cada vez mais
governados pelos mortos”. Porque nesse mundo emocional que o tempo
acumula todos os dias nem o mais breve suspiro se perde, se ele foi
dedicado ao aperfeiçoamento da vida. [...]
A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem,
vibra, porém, com certa docilidade, e submete-se à aprovação do poeta,
16
como se, realmente, a cada instante lhe pedisse para ajustar seu timbre
à audição do público. Porque há obras que existem apenas para o artista,
desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão e
espera que o artista se ponha a seu serviço, para alcançá-la. O
Romanceiro é desta segunda espécie (MEIRELES, 2013, p. 22 e 25).
Uma das razões que levou a poeta a abandonar a composição dramática foi o
receio de atribuir, a cada personagem, “pensamentos e sentimentos incompatíveis com a
sua psicologia, e dar-lhes uma linguagem que não podemos reconstituir com suficiente
perfeição” (MEIRELES, 2013, p. 25). A expressão para unir e fazer falar os planos lírico
e histórico-narrativo, então, foi identificada em uma estrutura de raízes medievais, o
romanceiro, que traria a possibilidade de “entremear a possível linguagem da época à dos
nossos dias; de, não podendo reconstituir inteiramente as cenas, também não as deformar
inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das
tradições e da lenda.” (MEIRELES, 2013, p. 25).22
Tal seriedade em pesquisar e escrever sobre o passado, respeitando “essas vozes
que falavam, que se confessavam, que exigiam, quase, o registro da sua história”
(MEIRELES, 2013, p. 26), fê-la sentir-se obrigada à tarefa de “[...] refazer séculos”
(MEIRELES, 1998a, p. 125). Conforme escrevera a Armando Côrtes-Rodrigues, em 4 de
setembro de 1947:
Estou toda século 18, com raízes pelo 17. Porque esses inconfidentes
eram meio enciclopedistas, meio pedreiros-livres; e é preciso estar
dentro da Revolução Francesa, da Independência dos Estados Unidos,
ler Franklin e Jefferson, Voltaire, Montesquieu, Diderot; ir aos árcades
italianos; estudar Portugal desde D. João V, pelo menos; ir aos clássicos
espanhóis, principalmente Gracián, ir à política peninsular do tempo,
Deus meu! (MEIRELES, 1998a, p. 125).
22
Ver também: BORDINI, 2015.
17
Mais tarde, em 4 de abril de 1949, prestes a embrenhar-se em mais uma de suas
visitas a Ouro Preto, exprimiu, de maneira indubitável, sua admiração pelas diretrizes
iluministas:
Mandar-lhe-ei notícias de O. P., se bem que de lá seja mais vagaroso,
pois o correio tem de vir ao Rio, e do Rio à Europa, quase como no séc.
18. Ai, mas quem tivesse vivido então! Que soma de ilusões teríamos,
- que já não chegavam ao século atual! Que esperanças de liberdade, de
dignidade, que altos conceitos de Montesquieu! que sonho de realizar o
mundo pelo saber, como os enciclopedistas! [...] (MEIRELES, 1998a,
p. 176).
23
O potencial das cartas de Cecília a Isabel do Prado como meios de compreensão da escrita do Romanceiro
foi trabalhado, parcialmente, em: SAMPAIO, 2015.
18
conhecer o passado, de intervir no presente e de colaborar com a abertura de futuros
possíveis. Suas diferentes facetas, frentes de atuação e redes de sociabilidade iam-se
costurando entre si e lavrando um mesmo projeto político-pedagógico e historiográfico.
A escrita da história, pois, derivava de uma cultura histórica, orientada por elementos
humanísticos e de contorno republicano, eventualmente sintetizados no dístico franco-
revolucionário “liberdade, igualdade e fraternidade”, em contraste com seus antípodas, a
tirania, o preconceito, a injustiça, o ódio.
Desde seu primeiro trabalho literário, enfrentou a tarefa de se comunicar com o
passado, adentrando a esfera pública. E, dessa forma, foi engendrando seu intuito de dar
voz e vez a antepassados, cujos ideais endossava, sentindo-se destinatária de parte
daquela herança (TODOROV, 2008). Cruzando passado e presente, razão e emoção,
subjetividade e objetividade, história e literatura, Cecília Meireles tateou experiências e
ensaiou reflexões, como portadora de uma visão complexa da existência, em que tais
pares terminológicos, tensionados, conviviam e se intercambiavam.
O interesse e a importância de conhecer e escrever sobre a aventura humana ao
longo de tempos e espaços, assim, acompanhou Cecília Meireles em sua trajetória, sem,
por isso, tê-la transformado em uma historiadora stricto sensu, numa época em que o
perfil daquele profissional estava em delineamento (GOMES, 1996). Ela mesma, aliás,
mostrava-se avessa a especializações e compartimentos intelectuais rígidos, embora
reconhecesse como áreas primordiais de atuação a Literatura e a Educação. Como revelou
à Isabel do Prado: “[...] em História sou simplesmente poeta” (MEIRELES, 1948). Dir-
se-ia poeta-historiadora, que, até falecer, em novembro de 1964, ainda produziria
biografias, crônicas, cartas, ensaios e poemas, devidamente acompanhada por seus
“espectros” ou “fantasmas”.
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