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Artigo Pereira Barbosa IFBr
Artigo Pereira Barbosa IFBr
18352016 3017
ARTIGO ARTICLE
e pessoas com deficiência no contexto da LC 142/2013
Abstract This article derives from a study con- Resumo O artigo resulta de estudo realizado na
ducted on the validation of the Brazilian Func- validação do Índice de Funcionalidade Brasileiro,
tionality Index (IF-BrA) applied to the granting aplicado para fins de concessão da aposentadoria
of retirement benefits to disabled persons. The da pessoa com deficiência (IFBrA). A aposenta-
retirement of persons with disabilities is regulat- doria é regulamentada pela Lei Complementar
ed by Complementary Law 142 of May 8, 2013. 142/2013. O objetivo é discutir como os sujeitos
The aim is to discuss how the individuals involved envolvidos na aplicação do instrumento fazem uso
in application of the instrument perceive the con- do conceito de deficiência e as possíveis implicações
cept of disability and the possible implications for para a garantia do direito à aposentadoria. Foram
ensuring the right to retirement. Eleven agencies visitadas 11 agências do Instituto Nacional do Se-
of the National Social Security Institute (INSS) guro Social (INSS), onde foram entrevistados 16
were visited and 16 physicians, 16 social work- peritos médicos, 16 assistentes sociais e 40 pessoas
ers and 40 persons with disabilities were inter- com deficiência, além de observadas a avaliação
viewed. The evaluation and assessment process e a perícia. Os resultados indicam tensões con-
was also observed. The results indicate that there ceituais entre a perspectiva sobre deficiência dos
are conceptual tensions between the perspective profissionais e os conceitos do IFBrA. Assistentes
on disability of the professionals and the IF-BrA sociais e médicos são desafiados em suas especia-
concepts. Social workers and physicians are chal- lidades técnicas na aplicação do instrumento. As
lenged in their technical specialties in the appli- pessoas com deficiência nem sempre se identificam
cation of the instrument. Persons with disabilities assim em suas vidas diárias. A deficiência ora é co-
do not always consider themselves to be disabled locada como uma descrição política dos corpos em
in their daily lives. Disability is either presented consonância com o modelo social da deficiência,
as a political description of the body in accordance ora é descrita como uma dificuldade pontual que
with the social model of disability, or it is described justifica a busca pela aposentadoria.
as a specific difficulty justifying the right to seek Palavras-chave Índice de Funcionalidade Brasi-
retirement. leiro, Lei Complementar 142/2013, Aposentado-
1
Departamento de Saúde
Coletiva, Universidade Key words Brazilian Functionality Index, Com- ria, Pessoas com deficiência, Estudos sobre defici-
de Brasília. Campus plementary Law 142/2013, Retirement, Persons ência
Universitário Darcy Ribeiro with disabilities, Disability studies
s/n, Asa Norte. 70910-900
Brasília DF Brasil.
everton.epereira@gmail.com
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Pereira EL, Barbosa L
formas como cada categoria utiliza essas questões tentes sociais, têm dificuldade para separar, na
em seus cotidianos. avaliação social, a restrição de participação de-
Os três tipos sociais que serão detalhados a vida à deficiência de restrições de outras ordens,
seguir foram igualmente importantes para o ar- como classe e gênero. Os profissionais entrevis-
gumento do artigo, justamente por serem atores tados sentem-se compelidos pelo IFBrA a iso-
chave no uso do instrumento. Os dois primeiros, lar a opressão pela deficiência de outras formas
assistentes sociais e peritos médicos, são res- de opressão e sentem desconforto em realizar
ponsáveis pela tarefa da realização da avaliação tal empreendimento. Segundo as instruções do
do segurado. São eles que utilizam o IFBrA. As IFBrA, o aplicador deve pontuar cada uma das 41
pessoas com deficiência, por outro lado, são sub- atividades com uma escala de valores a depender
metidas às avaliações e realizam reflexões sobre o do desempenho do sujeito. Tal escala considera a
momento pericial e sobre a importância do ins- dependência ou a independência para realizar a
trumento na definição de deficiência. atividade. Para os assistentes sociais, no entanto,
Os resultados indicam que há tensão entre além dos impedimentos corporais e as barreiras
os conceitos sociais e biomédicos sobre a defi- direcionadas para eles, diferentes fatores influen-
ciência entre os profissionais entre si e com os ciam a realização das atividades e a independên-
conceitos presentes no instrumento. As pessoas cia do segurado, conforme detalharemos a seguir.
com deficiência, por sua vez, muitas vezes não se Para os assistentes sociais, restrição de parti-
identificam como “pessoas com deficiência” em cipação é um conceito multifacetado. As pessoas
suas vidas diárias. As análises aqui realizadas evi- sofrem restrição de participação de várias ordens:
denciam essas tensões e apontam desafios para a econômica, racial, de gênero, etc. Tais formas de
avaliação da deficiência para a aposentadoria no opressão, para eles, tanto agravam o desempenho
Brasil. das atividades no contexto da deficiência como
podem compor a própria condição de pessoa
Assistentes sociais com deficiência. Consideram, assim, desafiador
determinar como cada forma específica de opres-
A experiência do Serviço Social do INSS com são contribuiu ao longo da vida, ou no presente,
o debate da deficiência ganha força com a publi- para a independência das pessoas na realização
cação do Decreto 6214/2007, que regulamenta o das atividades listadas pelo IFBrA.
Benefício de Prestação Continuada da Assistên- As barreiras sociais colocadas para a defici-
cia Social (BPC)16,17. A demanda normativa da ência, para os assistentes sociais entrevistados,
avaliação social desafiou o Serviço Social da Pre- são frequentemente agravadas ou reforçadas por
vidência no que diz respeito aos debates sobre a outras condições de desigualdade. Um dos casos
deficiência, de forma que este se tornou aos pou- acompanhados, de uma mulher de 50 anos com
cos um grupo com reconhecida expertise nes- visão monocular, é bastante paradigmático para
te campo. Após 2009, o Serviço Social do INSS compreender esse ponto. Há uma disputa no de-
promoveu ativamente discussões e capacitações, bate acadêmico e jurídico sobre se a visão mono-
auxiliando, inclusive, juntamente com a equipe cular deveria ou não ser considerada deficiência19.
médica da instituição, na produção do próprio A visão monocular ocorre quando a visão de um
instrumento que avalia a deficiência para fins do olho está preservada20. No caso acompanhado,
BPC, em parceria com o Ministério do Desenvol- Maria, que trabalhou a maior parte da vida como
vimento Social e Combate à Fome18. vendedora, considerava que as múltiplas barrei-
A aproximação desses profissionais com a ras que enfrentou eram resultado de sua defici-
avaliação requerida pela LC 142/2013 acontece ência. Maria não havia conseguido estudar pois
com protagonismo. Os desafios e as reflexões a família a “achava burra, ainda mais com o olho
dos estudos sobre deficiência, ainda escassos no com problema” (sic). Seu esposo e filha eram
contexto nacional, são parte do cotidiano desses impacientes e insatisfeitos com sua performance
profissionais desde a implementação da avaliação nos serviços domésticos – ainda que nenhum dos
social. Isso é notório, especialmente ao se consi- dois participasse desses serviços. Desempregada,
derar o fato de que o INSS é uma das primeiras ela acreditava que não conseguia mais empregos
instituições no Brasil a ser desafiada a implemen- em lojas porque era “feia e velha” (sic).
tar em escala nacional a Convenção. No atendimento observado, Maria acreditava
Os resultados da pesquisa mostram que os que todas essas barreiras deviam-se a sua defici-
profissionais que se dedicam a uma abordagem ência: não estudar por falta de apoio familiar, re-
social da deficiência, como é o caso dos assis- alizar serviços domésticos insatisfatórios (segun-
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fosse tradicionalmente identificado como corres- pedimento do sujeito. Estabelecer uma relação de
pondente a uma deficiência, era alvo de restrições causalidade entre o impedimento e a diversidade
de participação24. na realização das atividades listadas é um desafio
Os dados desta pesquisa mostram que os de- constante para os profissionais. Os médicos rela-
safios identificados nos estudos sobre a perícia tam que muitas vezes as barreiras são evidentes,
médica para o BPC são similares no caso da apo- como no caso em que os sujeitos poderiam ter
sentadoria das pessoas com deficiência. Os mé- uma funcionalidade incrementada com o acesso
dicos se consideram desafiados na avaliação da a uma prótese ou a recursos de melhor qualidade.
deficiência, que tensiona com sua formação cujo Mas, em geral, entendem que enxergar as barrei-
enfoque reside nos impedimentos corporais. Nos ras nos casos apresentados são demandas coloca-
novos modelos de avaliação, a deficiência é com- das pela política que ainda constituem entraves
preendida como restrição de participação em na avaliação.
ambientes com barreiras. Assim, os impedimen- Há um esforço dos peritos para adequar seu
tos corporais, especialidade biomédica, não são olhar para uma concepção de deficiência mais
compreendidos como determinantes da deficiên- próxima do modelo social. Mas, para além da for-
cia e não se confundem com ela25,26. Os peritos mação biomédica, há elementos institucionais que
médicos do INSS entrevistados se esforçam para desafiam esses profissionais, como o tempo dispo-
compreender a deficiência como restrição de nível para a avaliação e outras frentes de trabalho
participação, mas tensionam permanentemente que não adotam a mesma concepção de deficiên-
com os determinantes dessa restrição. cia. Como o INSS é a instituição responsável pelas
Como o instrumento lista 41 atividades a se- perícias que conferem também as aposentadorias
rem preenchidas considerando-se a performance e os benefícios por incapacidade, os médicos al-
do sujeito em cada uma, analisar restrição de par- ternam seus turnos entre a avaliação de sujeitos
ticipação é considerado inevitável pelos médicos com deficiência que trabalham e sujeitos com e
entrevistados. Nesse sentido, o IFBrA foi bem re- sem deficiência incapazes para o trabalho. Nesse
cebido pelos profissionais, uma vez que direciona sentido, a metáfora do interruptor é trazida por
o olhar dos avaliadores para as dimensões da vida vários dos profissionais entrevistados: sentem que
que importam para considerar a restrição de par- precisam ligar e desligar o conceito de deficiência
ticipação correspondente à deficiência. a depender do objetivo da perícia a ser realizada.
Há uma clareza para os peritos médicos en- Essa variedade de conceitos operacionaliza-
trevistados de que deficiência é um conceito dos nos diferentes momentos da perícia médica
multifacetado. A apropriação dos vários determi- pode gerar uma tensão nas cenas da avaliação
nantes da deficiência, no entanto, acontece res- executada na LC 142/2013. Para além da tendên-
peitando as tensões conceituais que se ancoram cia vinda da formação médica de classificar os
na formação biomédica dos profissionais. Para corpos, a tarefa dos médicos no INSS tem sido
acomodar elementos do modelo social, os médi- há vários anos aferir a capacidade/incapacidade
cos descrevem os parâmetros da avaliação como para o trabalho dos candidatos a aposentadoria e
subjetivos e objetivos. Quanto mais a avaliação outros benefícios.
se aproxima do conceito biomédico, como o uso
dos laudos e pareceres para a determinação do Pessoas com deficiência
início da deficiência, mais os médicos se decla-
ram confortáveis com a atuação e confiantes na Apesar da existência de uma definição oficial
sua avaliação pericial. Por outro lado, nos casos de deficiência, o trabalho de campo procurou co-
em que o instrumento demanda uma leitura nhecer mais sobre como os segurados que foram
contextual das atividades do periciando, como buscar a LC 142/2013 entendem este conceito.
atividades vinculadas a escolarização ou vida co- Os dados mostram um conjunto complexo de
munitária, os médicos acreditam estar avaliando elementos que apontam para diversas compreen-
uma dimensão subjetiva da deficiência e se dizem sões. O conceito de deficiência é instrumentaliza-
menos confortáveis e confiantes para a tarefa. do pelos segurados de acordo com suas histórias
Mas, embora os peritos médicos relatem des- de vida e não seguem, necessariamente, a lógica
conforto em avaliar a deficiência como restrição definida pela Lei e pela Convenção. O uso do ter-
de participação, na prática atrelam invariavel- mo deficiência aparece como forma de justificar
mente seu julgamento a isso. Durante a avaliação, a busca pela aposentadoria, mas a forma como
os médicos se sentem compelidos a considerar a esse conceito é utilizado não corresponde ao seu
restrição de participação como resultado do im- significado normativo.
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Colaboradores
Agradecimentos
Referências
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