Você está na página 1de 18

O Estado Democrático de Direito e a

necessária reformulação das competências


materiais e legislativas dos Estados

José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior,


Eduardo Martins de Lima, Vinicius
Gonçalves Porto Nascimento, Ana Carolina
Alves Villaça e Marina Dayrell Brasil

Sumário
1. Introdução. 2. A organização do Estado
Federal brasileiro e a repartição de competên-
cias entre os entes federativos. 3. As limitações
das competências legislativas reservadas aos
Estados. 4. A separação de poderes e o Princí-
pio da Simetria. 5. A produção legislativa da
Assembleia Legislativa de Minas Gerais. 6. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
7. Considerações finais.

1. Introdução
O objeto de estudo da pesquisa que deu
origem ao presente artigo teve como refe-
rência o estatuto jurídico (notadamente a
Constituição Federal, constituições estadu-
ais e legislação ordinária e complementar)
do atual Estado Democrático de Direito
brasileiro e pretende refletir sobre os limites
impostos aos Estados em termos do esta-
belecimento de competências legislativas e
José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior é materiais no contexto do pacto federativo
doutor em Direito Constitucional pela UFMG nacional.
e professor da UFMG e PUC-Minas; Eduardo O objetivo geral da referida investigação
Martins de Lima é doutor em Ciências Huma- consistiu na análise crítica das competências
nas: Sociologia e Política pela UFMG e professor legislativas e materiais no paradigma do Es-
da Universidade FUMEC; Vinicius Gonçalves
tado Democrático de Direito, especialmente
Porto Nascimento é Mestre em Direito e Ins-
tituições Políticas pela Universidade FUMEC;
no que diz respeito à atribuição de poderes
Ana Carolina Alves Villaça graduou-se em legislativos aos entes federativos estaduais
Direito pela Universidade FUMEC; Marina brasileiros. Outrossim, foram estabelecidos
Dayrell Brasil de Lima graduou-se em Direito quatro objetivos específicos para a aludida
pela Universidade FUMEC. pesquisa. O primeiro, identificar as prin-

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 153


cipais teorias, considerando a literatura que analisaram a mesma questão objeto do
especializada nacional e estrangeira, que presente estudo.
discutem a atribuição de competências O presente artigo trabalhará as se-
legislativas nos contextos federativos. O guintes dimensões: a estrutura fornecida
segundo, analisar a Constituição Federal pela Constituição, o funcionamento de tal
e Constituições Estaduais do Brasil, bem estrutura em função do jogo político entre
como a legislação ordinária e complemen- União e Estados, o universo legislativo
tar, estabelecendo as competências legisla- estadual e a posição do Supremo Tribunal
tivas da União, Estados, Distrito Federal e Federal que, em boa medida, tem contribu-
Municípios. O terceiro, analisar a doutrina ído para a consolidação de uma federação
e a jurisprudência do Supremo Tribunal centralizada. Como será destacado adiante,
Federal sobre as ações diretas de inconstitu- decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
cionalidade, questionando as competências Federal em relação a temas centrais para a
legislativas federais e estaduais. Por fim, organização federativa, tais como aquelas
mas não menos importante, refletir sobre relativas à Lei Complementar no 101 (Lei
possibilidades de aprimoramento das de Responsabilidade Fiscal), demonstram
normas jurídicas federais e estaduais que a escassez de temas hoje objeto da atuação
norteiam e disciplinam as competências legislativa dos Estados.
legislativas dos entes federados brasileiros Ressaltando a importância da definição
constitui-se no quarto objetivo. de um marco teórico como elemento de
Pretende-se contribuir para uma relei- controle da pesquisa científica, as profes-
tura teórica e prática do papel histórico soras Miracy Gustin e Maria Tereza Dias
das instituições políticas pós-19881, sem, (2002, p. 57) o definem como:
contudo, desconsiderar a tensão dialética “[...] uma afirmação incisiva de um
presente no processo interdisciplinar e teórico de determinado campo do
reflexivo de análise da realidade, e, assim, conhecimento que realizou investi-
destituir representações simplificadoras gações e reflexões ordenadas sobre
e rever interpretações conservadoras, de determinado tema e chegou a expli-
modo a elaborar uma abordagem que inte- cações e conclusões metódicas sobre o
gre o objeto de estudo eleito pelo grupo de assunto ou (...) o fundamento teórico
pesquisadores, autores do presente artigo. que respalda suas reflexões em toda
Os dados que embasaram a pesquisa sua produção ou em parte dela.”
em alusão podem ser assim classificados: Nesse sentido, entendemos adequado
a) dados primários: jurisprudência do adotar como marco teórico da pesquisa,
Supremo Tribunal Federal, com destaque que ora se desenvolve, a concepção do
para as ações diretas de inconstitucionali- Direito como integridade apresentada por
dade (ADIs), e de outros órgãos do Poder Ronald Dworkin (2000, 2002) ao longo de
Judiciário, bem como projetos de lei em suas obras e, em especial, em O Império do
tramitação e com tramitação encerrada Direito (1999).
na Assembleia de Minas Gerais − como Efetivamente, é nesse livro que o autor
referência do Poder Legislativo estadual; procura expor de modo sistemático a concep-
e b) dados secundários: obras consultadas ção do Direito que ele veio desenvolvendo
de autoria de renomados doutrinadores, durante décadas de atividade intelectual, a
qual denomina “Direito como integridade”.
1
Considerando que as instituições políticas são Para tanto, começa analisando o que é o Di-
objeto de construções históricas e sociais, não devem
ser tratadas em si de forma abstrata e atemporal, mas
reito e, em seguida, diversas teorias relativas
em suas devidas relações a partir de um contexto à atividade interpretativa. Apresentados,
político, histórico e social. então, seus entendimentos básicos sobre

154 Revista de Informação Legislativa


referidos temas, Dworkin passa à crítica das mais práticos. O primeiro é o princípio
duas principais concepções do Direito pre- da integridade na legislação, que pede
sentes na história do pensamento jusfilosó- aos que criam o direito por legislação
fico, quais sejam, aquelas encampadas pelo que o mantenham coerente quanto aos
positivismo jurídico e pelo jusnaturalismo, as princípios. O segundo é o princípio da
quais, segundo ele, não seriam aptas a expli- integridade no julgamento: pede aos
car nossa prática jurídica de modo plausível, responsáveis por decidir o que é a lei
nem a justificá-la coerentemente. que a vejam e façam cumprir como
Isso posto, Dworkin começa a delimitar sendo coerente nesse sentido”.
os contornos do Direito como integridade, Com efeito, é com base nessa conexão
concepção que ele apresenta em sua obra e que se pretende avaliar a coerência e, conse-
que, diferentemente das teorias criticadas, quentemente, a consistência da doutrina e do
se adequaria e justificaria o Direito das entendimento jurisprudencial do Supremo
sociedades contemporâneas. Isto é, o prin- Tribunal Federal ao reforçar a centralização
cípio da integridade estaria presente nas de competências legislativas e materiais em
práticas políticas e jurídicas correntes como torno da União e em detrimento dos Estados
uma demanda por decisões coerentes quan- no contexto do pacto federativo brasileiro.
to aos princípios do ordenamento jurídico
e, por outro lado, seria um forte argumento
2. A organização do Estado
em favor da legitimidade do monopólio da
coerção pelo Estado de Direito. Federal brasileiro e a repartição de
Entre os diversos requisitos e carac- competências entre os entes federativos
terísticas da concepção do Direito como A repartição de competências legisla-
integridade, será, então, essencial para o tivas e materiais em um Estado de forma
desenvolvimento do argumento de nossa federal definem o próprio caráter da distri-
pesquisa a relação entre o princípio da in- buição geográfica do poder2. É o termôme-
tegridade e a necessária coerência quanto tro da federação, pois delimita o espaço de
aos princípios que se demanda do aplicador atuação de cada um daqueles que a inte-
do Direito, entendida esta não como vincu- gram. A autonomia das entidades federa-
lação à linha das decisões anteriores, nem tivas pressupõe repartição de competências
como mera igualdade formal: e a distribuição constitucional de poderes, a
“[...] o direito como integridade (...) fim de possibilitar o exercício e desenvolvi-
exige que um juiz ponha à prova mento de sua atividade normativa.
sua interpretação de qualquer parte De acordo com José Afonso da Silva
da vasta rede de estruturas e deci- (1999, p. 479),
sões políticas de sua comunidade, “[...] competência é a faculdade juri-
perguntando-se se ela poderia fazer dicamente atribuída a uma entidade,
parte de uma teoria coerente que
justificasse essa rede como um todo” 2
Discorrendo sobre a autonomia de que dispõem
(DWORKIN, 1999, p. 294). os Estados-membros num Estado federal, Gilmar Fer-
Dworkin (2000, p. 203) expõe seu pen- reira Mendes (2008, p. 798) assinala que “a autonomia
importa, necessariamente, descentralização do poder”,
samento sobre o princípio da integridade e descentralização essa que “é não apenas administrati-
sua demanda por uma coerência de princí- va, como, também, política”. De acordo com o autor,
pio do ordenamento jurídico, seja quando “é característico do Estado federal que essa atribuição
da criação da lei, seja na sua aplicação. dos Estados-membros de legislar não se resuma a uma
mera concessão da União, traduzindo, antes, um di-
Assim é que ele afirma: reito que a União não pode, a seu talante, subtrair das
“Será útil dividir as exigências da entidades federadas; deve corresponder a um direito
integridade em dois outros princípios previsto na Constituição Federal”.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 155


ou de um órgão ou agente do Poder editadas no âmbito dos Estados e no
Público para emitir decisões. Compe- âmbito federal, ainda que se busque
tência são as diversas modalidades de na competência privativa uma forma
poder de que se servem os órgãos ou de atribuição de competências que
entidades estatais para realizar suas não admite concorrências”.
funções”. A Constituição de 1988 dispõe no seu
Considerando que no Estado Federal artigo 1o que a República Federativa do
incidem mais de uma ordem jurídica sobre Brasil é formada pela união indissolúvel dos
um mesmo território e sobre uma mesma Estados e Municípios e do Distrito Federal
população, surgiu a necessidade de se ado- e constitui-se em Estado Democrático de
tarem mecanismos que, explica Gilmar Fer- Direito. Ademais, por meio de seu artigo 18,
reira Mendes (2008, p. 799), “[favoreçam] a a Constituição reza que a organização polí-
eficácia da ação estatal, evitando conflitos tico-administrativa da República Federativa
e desperdício de esforços e recursos”. do Brasil compreende a União, os Estados,
Segundo o autor, “a repartição de compe- o Distrito Federal e os Municípios, todos
tências entre as esferas do federalismo é o autônomos, nos termos da Constituição.
instrumento concebido para esse fim”. Tal Essa mesma Constituição articula a
repartição “consiste na atribuição, pela repartição de competências entre União e
Constituição Federal, a cada ordenamento Estados de forma conjugada, estabelecendo
de uma matéria que lhe seja própria”. competências exclusivas e privativas, além
O Brasil consagrou na Constituição de das comuns e concorrentes entre os seus
1891 a forma horizontal de repartição de entes federativos, norteadas pelo princípio
competências, a qual privilegia a atribuição geral da predominância do interesse. Dessa
de competências exclusivas e privativas aos forma, à União cabe legislar sobre maté-
entes da federação, restringindo a possibili- rias e questões de predominante interesse
dade de conflitos ou tornando mais objetivas geral nacional4. Aos Estados, os assuntos
as formas de solução dos mesmos. O federa- de predominante interesse regional e aos
lismo de cooperação consagrado a partir da Municípios, os de interesse local5.
Constituição de 1934 tornou mais complexa As competências podem ser classificadas
a repartição de competências, na medida em em dois grandes grupos. O primeiro é o da
que a forma horizontal de repartição de com- competência material, que se traduz nas atri-
petências cedeu espaço para a forma vertical, buições administrativas e se divide em exclu-
com a previsão de competências comuns e siva e comum. O segundo é o da competência
concorrentes entre União e Estados3. legislativa, que se traduz na possibilidade
A esse propósito, José Alfredo Baracho de regulamentar determinada matéria pela
Júnior (2007, p. 279) observa que expedição de leis, dividindo-se em exclusiva,
“O sistema de competências estabe- privativa, concorrente e suplementar.
lecido na Constituição da República
é bastante complexo, especialmente 4
A União, no plano legislativo, pode editar: a)
na medida em que busca conjugar a leis nacionais: que alcançam todos os habitantes do
forma horizontal com a forma vertical território nacional e outras esferas da Federação; e
b) leis federais: que incidem sobre os jurisdicionados
de repartição de competências. Tal da União, como os servidores federais e o aparelho
fato potencializa os conflitos entre leis administrativo da União (MENDES, 2008).
5
Podem ser considerados de interesse local as
3
Na modalidade de repartição horizontal de com- atividades e a respectiva regulação legislativa, concer-
petências, não se admite concorrência de competências nentes ao transporte coletivo municipal, coleta de lixo,
entre os diferentes entes federados. Na repartição ordenação do solo urbano, fiscalização das condições
vertical de competências, realiza-se a distribuição da de higiene de bares e restaurantes, horário de funcio-
mesma matéria entre a União e os Estados-membros namento de farmácias, entre outros que impliquem
(MENDES, 2008). interesse predominantemente municipal. (Idem)

156 Revista de Informação Legislativa


Diz-se que a competência é exclusiva privativas7 da União, respectivamente. No
quando é atribuída a uma entidade com artigo 25, encontram-se as competências
exclusão das demais, sem possibilidade de privativas dos Estados e, observe-se que,
delegação (transmitir o poder). Competência no parágrafo 1o, está disposto que são re-
privativa, aquela enumerada como própria servadas aos Estados as competências que
de uma entidade, podendo, contudo ser de- não lhes sejam vedadas pela Constituição.
legada a outra. Competência comum significa Os artigos 23 e 24, por sua vez, consagram,
legislar ou praticar atos “em pé de igualdade”
com outros, sem que o exercício de uma ve- mento energético dos cursos de água, em articulação com
os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;
nha a excluir a competência de outra; o exercí- c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura
cio das competências comuns, de acordo com aeroportuária; d) os serviços de transporte ferroviário e
Suely Araújo (2005, p. 3), deve pautar-se pela aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais,
cooperação governamental. Competência ou que transponham os limites de Estado ou Território;
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e
concorrente é a possibilidade de dispor sobre internacional de passageiros; f) os portos marítimos,
o mesmo assunto ou matéria por mais de fluviais e lacustres; XIII − organizar e manter o Poder
uma entidade federativa, podendo ser plena, Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública
no âmbito de seu território, quando inexistir do Distrito Federal e dos Territórios; XIV − organizar
e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de
legislação federal, ou suplementar, quando bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar
as normas supram ausência ou omissão de assistência financeira ao Distrito Federal para execução
determinado ponto da norma geral nacional, de serviços públicos, por meio de fundo próprio; XV
− organizar e manter os serviços oficiais de estatística,
ou desdobrem seu conteúdo visando atender geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;
peculiaridades locais. Sempre a legislação XVI − exercer a classificação, para efeito indicativo, de
federal terá primazia sobre as elaboradas diversões públicas e de programas de rádio e televisão;
concorrente ou suplementarmente pelas XVII − conceder anistia; XVIII − planejar e promover a
defesa permanente contra as calamidades públicas, espe-
outras unidades da federação. cialmente as secas e as inundações; XIX − instituir sistema
No sistema atual de repartição de compe- nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir
tências, destacam-se os artigos 21 e 22 como critérios de outorga de direitos de seu uso; XX − instituir
diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
definidores das competências exclusivas6 e
habitação, saneamento básico e transportes urbanos;
XXI − estabelecer princípios e diretrizes para o sistema
6
Art. 21. Compete à União: I − manter relações
nacional de viação; XXII − executar os serviços de polícia
com Estados estrangeiros e participar de organizações
marítima, aeroportuária e de fronteiras; XXIII − explorar
internacionais; II − declarar a guerra e celebrar a paz; III
os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza
− assegurar a defesa nacional; IV − permitir, nos casos
e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o
previstos em lei complementar, que forças estrangeiras enriquecimento e reprocessamento, a industrialização
transitem pelo território nacional ou nele permaneçam e o comércio de minérios nucleares e seus derivados,
temporariamente; V − decretar o estado de sítio, o es- atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda
tado de defesa e a intervenção federal; VI − autorizar e atividade nuclear em território nacional somente será
fiscalizar a produção e o comércio de material bélico; VII admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do
− emitir moeda; VIII − administrar as reservas cambiais Congresso Nacional; b) sob regime de concessão ou
do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, permissão, é autorizada a utilização de radioisótopos
especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem para a pesquisa e usos medicinais, agrícolas, industriais e
como as de seguros e de previdência privada; IX − elabo- atividades análogas; c) a responsabilidade civil por danos
rar e executar planos nacionais e regionais de ordenação nucleares independe da existência de culpa; XXIV − or-
do território e de desenvolvimento econômico e social; ganizar, manter e executar a inspeção do trabalho; XXV
X − manter o serviço postal e o correio aéreo nacional; − estabelecer as áreas e as condições para o exercício da
XI − explorar, diretamente ou mediante autorização, atividade de garimpagem, em forma associativa.
concessão ou permissão, os serviços de telecomunica- 7
Art. 22. Compete privativamente à União legislar
ções, nos termos da lei, que disporá sobre a organização sobre: I − direito civil, penal e do trabalho; II − natura-
dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros lização, emigração e imigração, entrada, extradição e
aspectos institucionais; XII − explorar, diretamente ou expulsão de estrangeiros; III − organização do sistema
mediante autorização, concessão ou permissão: a) os nacional de emprego e condições para o exercício de
serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; b) profissões; IV − seguridade social; V − diretrizes e
os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveita- bases da educação nacional.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 157


respectivamente, as competências comuns8 que hoje ocupam restringiu o espaço de
e concorrentes9 entre entes federativos. Há, competências dos Estados, como resultado
ainda, a repartição de competências em ma- da própria tendência centralizadora que se
téria tributária, que, nos termos do artigo estabeleceu a partir de 193010.
150 e seguintes, prefiguram uma forma A propósito da inclusão do município
específica de repartição de competências. como ente federativo, Dallari (2006, p. 4)
O parágrafo único do artigo 22 permite à observa que:
União, por meio de lei complementar, dele- “Um ponto que deve ser ressaltado é
gar competências aos Estados para legislar que a Constituição inclui o Município
sobre matérias de competência privativa da entre os entes que podem exercer as
União, hipótese que tem ocorrido de forma competências comuns, enumeradas
bastante escassa. Cite-se, como exemplo, a no artigo 23, mas só se refere aos
Lei Complementar n. 103, de 14 de julho de Estados quando admite a legislação
2000, que “autoriza os Estados e o Distrito Fe- suplementar. Como tem sido consen-
deral a instituir o piso salarial a que se refere so na doutrina, o que existe aí é uma
o inciso V, do art. 7o, da Constituição Federal, imperfeição da Constituição, pois ob-
por aplicação do disposto no parágrafo único viamente o Município, exercendo as
do seu art. 22”. Cuida-se de simples facul- competências comuns, deverá legislar
dade do legislador complementar federal, sobre a matéria em relação à qual for
que, explica Gilmar Ferreira Mendes (2008, exercer concretamente a competência.
p. 818), “não poderá transferir a regulação Além disso, pelo artigo 30, inciso I, a
integral de toda uma matéria da competência Constituição dá competência ao Mu-
privativa da União, já que a delegação haverá nicípio para legislar sobre os assuntos
de referir-se a questões específicas”. de interesse local. Assim, pois, em se
Importante, também, destacar que a tratando de matéria não incluída na
Constituição de 1988 inclui no desenho da competência exclusiva da União e
federação os poderes locais, chegando mes- que tenha sido objeto de norma geral
mo a declarar o Município como integrante federal − ou mesmo estadual, se surgir
da federação, nos termos dos artigos 1o e 18, a hipótese −, o município poderá le-
conforme assinalado acima. Em que pese gislar sobre aspectos específicos dessa
alguns juristas, como José Afonso da Silva mesma matéria, que, a par do interes-
(2004) e Luiz Pinto Ferreira (1995), argu- se geral, sejam de interesse local”.
mentarem que os Municípios não integram
a federação, é indiscutível que a posição 10
A posição majoritária sustenta que os Municípios
gozam do status de integrantes da Federação, visto
que, além de autônomos, contando com Executivo e
8
Art. 23. É competência comum da União, dos Legislativo próprios, contam, também, com o poder
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I − zelar de auto-organização, exercido por meio da edição de
pela guarda da Constituição, das leis, das instituições uma lei orgânica. Ademais, o artigo primeiro da Cons-
democráticas, e conservar o patrimônio público; II − tituição em vigor afirma que a República Federativa do
cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados
garantia das pessoas portadoras de deficiência; III e Municípios e do Distrito Federal. Os que ostentam
− promover programas que combatam as causas da posicionamento diverso sustentam que os Municípios
pobreza e os fatores de marginalização, promovendo não participam das entidades criadas para formarem a
a integração social dos grupos desfavorecidos. vontade federal, em nosso caso, o Senado Federal. Não
9
Art. 24. Compete concorrentemente à União, dispõem, além disso, de um Poder Judiciário próprio,
Estados e Distrito Federal: I − direito tributário, finan- como a União e os Estados-membros, e a intervenção
ceiro, penitenciário; II − educação, cultura e ensino; nos Municípios situados em Estado-membro está a car-
III − previdência social, proteção e defesa da saúde; IV­ go deste. Finalmente, a competência originária do STF
assistência jurídica e defensoria pública; V − proteção para resolver conflitos entre as entidades que compõem
e integração social das pessoas portadoras de deficiên- a Federação não inclui as hipóteses em que o Município
cia; VI − proteção da infância e a juventude. compõe um dos pólos da lide (MENDES, 2008).

158 Revista de Informação Legislativa


3. As limitações das competências tados, mas que não excluem a competência
legislativas reservadas aos Estados suplementar desses Estados (§ 2o). Diante
da inexistência de lei federal sobre normas
O quadro descrito sucintamente acima gerais, os Estados exercerão a competência
tem limitado de forma importante a atuação legislativa plena para atender suas peculia-
dos Estados. Inicialmente, porque a compe- ridades (§ 3o). Ademais, está estabelecido
tência residual prevista no artigo 25 – que é que a superveniência de lei federal sobre
privativa dos Estados, uma vez que consiste normas gerais suspende a eficácia da lei
nos poderes reservados e não vedados pela estadual, no que lhe for contrário (§ 4o). Por-
Constituição Federal – é bastante restrita, na tanto, mesmo no âmbito da competência
medida em que a Constituição da República concorrente, que hoje compreende grande
é muito detalhista na definição do elenco de parte da atuação legislativa dos Estados, há
matérias sujeitas à atuação exclusiva ou pri- um forte impacto das normas editadas pelo
vativa da União, praticamente esgotando o Congresso Nacional. Até porque, em caso
rol de temas jurídicos de maior relevância. de conflito entre os entes federativos, por
Por outro lado, ao reconhecer competências ocasião do exercício de atribuições comuns,
privativas para os Municípios11, a Constitui- assinala Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.
ção Federal acrescenta um novo elemento 820), “há de se cogitar do critério da pre-
limitador para os Estados, pois estes já não ponderância de interesses, [...] em que os
têm mais espaço para determinar a organi- mais amplos (da União) devem preferir aos
zação dos poderes locais. mais restritos (dos Estados)”12.
A atuação legislativa dos Estados hoje A esse respeito, Dallari (2006, p. 4)
está em grande medida limitada às com- pondera que:
petências comuns e concorrentes, previs- “Uma questão de grande importân-
tas nos artigos 23 e 24. O exercício de tais cia, por suas implicações teóricas e
competências, entretanto, é também em práticas, e que tem sido objeto de
grande medida determinado pela União. O controvérsias, é o sentido da expres-
parágrafo único do artigo 23 estabelece que são ‘normas gerais’, usada na Cons-
lei complementar federal definirá as formas tituição, no § 1o. do artigo 24, para
de cooperação entre os entes da federação definir a competência legislativa da
no exercício da competência comum, tendo União, no âmbito das competências
em vista o equilíbrio do desenvolvimento concorrentes. Não têm sido raras as
e do bem-estar nacional. Por outro lado, o vezes em que, por inadvertência ou
artigo 24 especifica as matérias no âmbito deliberadamente, o legislador federal
da competência concorrente entre União, tem fixado normas sobre pontos par-
Estados e Distrito Federal e determina no ticulares, de caráter regional ou local,
seu § 1o que compete à União editar normas de matéria sobre a qual só poderia
gerais sobre estas matérias, normas essas fixar normas gerais. Nesses casos,
que delimitam o campo de atuação dos Es-
12
Para corroborar essa assertiva, o autor cita deci-
11
Art. 30. Compete aos Municípios: I − legislar
sobre assuntos de interesse local; II − suplementar a são do Ministro do STF, Celso de Mello, na AC-MC/
legislação federal e estadual no que couber; III − orga- RR 1.255, DJ DE 22/6/2006, na qual ficou assentado o
nizar e prestar, diretamente ou sob o regime de con- entendimento de que, “concorrendo projetos da União
cessão ou permissão, os serviços públicos de interesse Federal e do Estado-membro visando à instituição, em
local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter determinada área, de reserva extrativista, o conflito de
essencial; IV − manter a cooperação técnica e financeira atribuições será suscetível de resolução, caso inviável a
da União e do Estado, programas de educação pré- colaboração entre tais pessoas políticas, pela aplicação
escolar e de ensino fundamental; V − prestar, com a do critério da preponderância do interesse, valendo
cooperação técnica e financeira da União e do Estado, referir que, ordinariamente, os interesses da União
serviços de atendimento à saúde da população. revestem-se de maior abrangência”.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 159


aquilo que constar de lei federal e que muitas vezes já presentes na Constituição,
não se caracterizar, pelo conteúdo, limitando a participação do Estado. Em um
como norma geral será inconstitucio- âmbito geral, os Estados continuaram em
nal, por exorbitância no exercício da sua posição inquietante, pois os Municípios
competência legislativa”. fortaleceram-se, alcançado o seu reconhe-
O desenho atual da repartição de compe- cimento como ente federativo, ao mesmo
tências reduz a importância dos legislativos tempo em que a União ampliou suas com-
estaduais, que acabam por ter sua atividade petências. Pode-se dizer que a Constituição
preponderantemente voltada para o contro- brasileira de 1988 pouco poder reservou aos
le da Administração Pública estadual, pouco Estados, o que se reflete nas Constituições
atuando em relação à criação de direitos dos Estaduais, que na verdade não realizam
cidadãos ou às formas de exercício de direi- mais do que transcrever o texto da Consti-
tos fundamentais. Com efeito, a competência tuição Federal, caracterizando, assim, uma
privativa dos Estados resume-se a algumas forma federativa muito concentrada em tor-
matérias expressamente discriminadas pela no da União, parecendo os Estados, muitas
Constituição Federal, como exploração de vezes, meros coadjuvantes da Constituição,
serviços de gás canalizado e instituição de ao contrário do que se poderia esperar, por
regiões metropolitanas, e outras não expli- serem estes entidades federativas.
citadas pelo legislador constituinte, como A Constituição de 1988 atribuiu à União
matérias orçamentárias, criação, extinção e Federal um amplo arco de competências
fixação de cargos públicos estaduais, auto- legislativas privativas, competindo legislar,
rizações para alienação de imóveis, criação entre outras matérias, sobre direito civil,
de secretarias estaduais, organização admi- processual, trabalhista, águas, sistema mo-
nistrativa, judiciária e do Ministério Público, netário, trânsito, cidadania, normas gerais
da Defensoria Pública e da Advocacia-Geral de licitação e contrato, diretrizes e bases da
do Estado (MENDES, 2008)13. educação, entre outros. O rol contido no
A preponderância da União sobre os artigo 22 da Constituição, no entanto, não
demais entes da federação, em especial os deve ser tido como exaustivo, visto que há
Estados-Membros, é algo patente. O intuito ainda diversas competências legislativas da
de diminuir as competências da União, pre- União elencadas no artigo 48. Além disso,
sente na Constituinte de 1988, não se con- explica Fernanda Menezes de Almeida
cretizou; ao contrário, a atuação da União (1991, p. 105,106), citada por Gilmar Fer-
se ampliou, concentrando o planejamento reira Mendes (2008, p. 818), “numerosas
nacional. Outro fator que influencia essa disposições constitucionais carecem de leis
situação é o fato de toda competência legis- integradoras de sua eficácia, sendo muitas
lativa gerar uma administrativa, não sendo, de tais leis, pela natureza dos temas ver-
porém, a recíproca verdadeira. Ou seja, os sados, indubitavelmente de competência
Estados, muitas vezes, possuem competên- da União”, como “as leis para o desenvol-
cias materiais, mas não legislativas. vimento de direitos fundamentais – como
Embora as competências concorrentes a que prevê a possibilidade de quebra de
tentem equilibrar essa situação, a União fica sigilo das comunicações telefônicas (art. 5o,
responsável por editar normas gerais, estas XII) ou a que cuida da prestação alternativa
13
Gilmar Ferreira Mendes (2008, p. 819) destaca em caso de objeção de consciência (art. 5o,
que “a Constituição, no tocante a matéria tributária, VIII)”. Do mesmo modo, “serão federais
enumerou explicitamente a competência dos Estados as leis que organizam a seguridade social
– art. 155. No aspecto tributário, é a União que detém
(art. 194, parágrafo único) e que viabilizam
competência, além de expressa, residual, permitindo-
se-lhe a instituição de outros tributos, além dos enu- o desempenho da competência material
merados para ela e para as outras pessoas políticas”. privativa da União”.

160 Revista de Informação Legislativa


São parcas as possibilidades de atuação Estão consagradas no livro escrito por
dos legislativos estaduais, em face do de- Montesquieu e publicado em 1748, O espíri-
senho pouco favorável que a Constituição to das leis, a divisão e a distribuição clássicas
lhes conferiu no que tange à repartição de dos poderes estatais. É em seu livro que o
competências legislativas. O legislador autor considera a exigência de se tripartir
constituinte indubitavelmente conferiu os poderes estatais em órgãos diferencia-
ênfase ao Legislativo federal ao atribuir à dos. Montesquieu explicita a necessidade
União competência para legislar sobre “os da separação de poderes no Capítulo V do
assuntos mais relevantes e de interesse co- Livro Décimo-Primeiro de sua obra, vindo
mum à vida social no País nos seus vários a fazer a distinção entre os poderes Execu-
rincões” (MENDES, 2008, p. 818). tivo, Legislativo e Judiciário.14
Essa situação reflete a formação históri- Dessa forma, estava elaborada a ideia
ca de nossa federação. De acordo com José da separação de poderes preconizada por
Afonso da Silva (2004, p. 101,102), Montesquieu por meio de seu princípio,
“[...] os limites da repartição de po- que se tornou alicerce dos Estados Demo-
deres dependem da natureza e do cráticos de Direito, garantia das liberda-
tipo histórico da federação. Numas, des e direitos dos cidadãos e consagrado,
a descentralização é mais acentua- praticamente, em todas as constituições
da, dando-se aos Estados-membros modernas.
competências mais amplas, como nos A teoria da tripartição de poderes foi
Estados Unidos da América do Norte. que lançou bases para o desenvolvimento
Noutras, a área de competência da do princípio de “freios e contrapesos”,
União é mais dilatada, restando redu- utilizado pelos fundadores da República
zido campo de atuação aos Estados, norte-americana, em meados do século
como o Brasil no regime da Constitui- XVIII, e foi nos Estados Unidos da América
ção de 1967-1969, que construiu mero que ela adquiriu a sua feição constitucio-
federalismo nominal”. nal contemporânea por seus fundadores,
Embora tenha buscado “resgatar o prin- James Madison, Thomas Jefferson, George
cípio federalista”, ao estruturar “um sistema Washington, Alexander Hamilton e John
de repartição de competências que [tentasse] Adams, denominados Os federalistas.
refazer o equilíbrio das relações entre o poder Assim, como Montesquieu, os federalistas
central e os poderes estaduais e municipais”, sustentavam ser necessária a transferência
o Estado federal brasileiro continua sendo, do poder das mãos de apenas uma pessoa
em grande medida, uma federação do tipo ou órgão para os Poderes Legislativo,
“centrífuga” (SILVA, 2004, p. 102). Executivo e Judiciário. Com o poder distri-
buído em três órgãos, a sociedade poderia
viver em um Estado sem opressão e leis
4. A separação de poderes
tirânicas, sendo asseguradas a liberdade
e o princípio da simetria
14
De acordo com Montesquieu (1979, p. 143), “há,
Além da divisão de competência entre em cada Estado, três espécies de poderes: o poder le-
as entidades que compõem a Federação, a gislativo, o poder executivo das coisas que dependem
do direito das gentes, e o executivo das que dependem
Constituição Federal determina a distribui-
do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistra-
ção de funções no âmbito de cada unidade, do faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige
o que tradicionalmente chamamos de tri- ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a
partição dos Poderes. O princípio da sepa- paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabe-
lece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro,
ração de poderes ou de funções do Estado pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos.
tem sido um dos princípios fundamentais Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro,
da democracia moderna. simplesmente o poder executivo do Estado.”

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 161


dos cidadãos e a garantia dos direitos in- orgânicas do Estado. Em razão da referida
dividuais, pois a fiscalização do poder pelo regra, explicam Nelson Nery Júnior e Rosa
poder resguardaria o próprio Estado dos Maria de Andrade Nery (2006, p. 120), “o
efeitos maléficos de uma tirania. poder titular da função típica, que o desig-
A feição dada à Constituição norte- na e o distingue, não pode transferi-la aos
americana pelos seus fundadores influen- outros dois”, de modo que “não é dado
ciou de forma significativa a elaboração a nenhum dos poderes do Estado ‘inter-
das constituições brasileiras, a citar como cambiar entre si suas funções inerentes”’.
exemplos as Constituições de 1891, 1934, As hipóteses de delegação têm que estar
1946 e a atual Constituição de 1988, que previstas na Constituição, daí podermos
têm em seu âmago a garantia dos direitos afirmar que são independentes.
individuais e coletivos, a organização e a Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.
limitação dos poderes estatais. 812) aponta que a tripartição de poderes
Mesmo que um órgão exerça atribuição “tornou-se matriz das mais invocadas em
ordinariamente conferida a outro órgão, ação direta de inconstitucionalidade, para a
isso não implicaria violação ao princípio invalidação de normas constitucionais e in-
da separação de poderes, desde que auto- fraconstitucionais dos Estados-membros”.
rizado e estabelecido dentro dos moldes Segundo o mencionado autor,
constitucionais. Nesse sentido, o princípio “[...] a exuberância de casos em que
da separação de poderes vem reafirmar o princípio da separação de Pode-
que a atribuição das funções do Estado a res cerceia toda a criatividade do
órgãos distintos, interpenetrando uns nos constituinte estadual levou a que se
outros, garante o equilíbrio mútuo destes à falasse num princípio da simetria, para
luz dos paradigmas do Estado Democrático designar a obrigação do constituin-
de Direito. te estadual de seguir fielmente as
O princípio da separação de poderes opções de organização e de relacio-
assegura, ainda, a importância de um po- namento entre os poderes acolhidas
der exercer o controle em relação a outro, pelo constituinte federal” (MENDES,
porém, evitando qualquer tipo de atividade 2008, p. 813-814).
exorbitante. O princípio da simetria, contudo, tal
Só é possível viver em um Estado real- como outros princípios, não deve ser
mente Democrático de Direito com a limi- compreendido como algo absoluto, visto
tação do poder pelo poder, a fim de, ao se que “nem todas as normas que regem o
coibirem abusos, assegurar-se a liberdade Poder Legislativo da União são de absorção
dos indivíduos. necessária pelos Estados”. De acordo com
A atual Constituição brasileira de 1988 Mendes (2008, p. 813,814), “as normas de
consagra o princípio da separação de po- observância obrigatória pelos Estados são
deres de Montesquieu em seu artigo 2o, as que refletem o inter-relacionamento
ao estabelecer que: são poderes da União, entre os Poderes”. Assim, exemplifica o
independentes e harmônicos entre si, o autor, com base na jurisprudência do STF,
Legislativo, o Executivo e o Judiciário. os mecanismos de freios e contrapesos, isto
Embora a atividade dos três Poderes é, de controle recíproco entre os Poderes,
interrelacione-se, num sistema de “freios e devem guardar estreita similaridade com
contrapesos”, à busca da harmonia neces- os previstos na Constituição de 1988. Nesse
sária à realização do bem da coletividade e sentido, “a adoção de medidas parlamen-
para evitar o arbítrio e o desmando de um taristas pelo Estado-membro, quando no
em detrimento do outro, a regra constitu- âmbito da União se acolhe o presidencia-
cional é da indelegabilidade das funções lismo, também é imprópria, por ferir o

162 Revista de Informação Legislativa


princípio da separação de Poderes, como No quadro 1, relacionamos, por tema,
desenhado pelo constituinte federal”15. Não os 774 projetos de lei que receberam pa-
seria possível, de igual modo, a imposição, receres de inconstitucionalidade. Pode-se
por uma Constituição Estadual, do dever de observar que cerca de 36,5% dos pareceres
o prefeito municipal comparecer perante a de inconstitucionalidade emitidos pela
Câmara dos Vereadores. CCJ recaíram sobre temas como trânsito e
transporte (13,6% do total), Administração
Pública, servidores públicos e previdência
5. A produção legislativa da Assembleia
social (11,8%) e educação, cultura, esporte,
Legislativa de Minas Gerais lazer e turismo (11,1% do total). No primei-
Pesquisando a produção legal da ro caso (trânsito e transporte), trata-se de
Assembleia Legislativa de Minas Gerais matéria reservada à competência legislativa
(ALMG), constatamos que, entre 1989 e 21 privativa da União Federal (art. 22, XI, CF).
de junho de 2006 – portanto, em um contex- Relativamente ao segundo tema que mais
to de nova realidade constitucional federal recebeu pareceres de inconstitucionalidade
e estadual −, dos projetos de lei que tiveram (Administração Pública, servidores públi-
sua tramitação encerrada16, 774 receberam cos e previdência social), conforme vimos,
parecer de inconstitucionalidade17 da Co- trata-se de competência privativa estadual
missão de Constituição e Justiça da Casa. não explicitada na Constituição Federal18.
Finalmente, o terceiro tema (educação,
15
Durante a vigência da Constituição de 1946, cultura, esporte, lazer e turismo) acha-se
explica Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 288),
o STF aprovou “diversas representações interventivas
inserido no rol das competências legisla-
contra artigos de Constituições Estaduais (Rio Grande tivas concorrentes entre União, Estados e
do Sul, Ceará e Alagoas) supostamente violadoras Distrito Federal (art. 24, IX, CF).
de princípios estruturantes da República brasileira, Relativamente aos projetos de lei em
entre eles o princípio do Presidencialismo”. Desse
modo, “quaisquer normas que de alguma maneira
tramitação no período pesquisado (quadro
subordinassem a ação do Executivo ao Legislativo 2), cerca de 336 receberam parecer de in-
eram taxadas de parlamentaristas e, portanto, viola- constitucionalidade da Comissão de Cons-
doras da Constituição Federal”, sendo prontamente tituição e Justiça. Curiosamente, pudemos
consideradas pelo STF como inconstitucionais, o que
viabilizava a intervenção federal.
constatar que cerca de 36,7% dos pareceres
16
Um projeto de lei estadual pode ter sua tra- da CCJ recaíram sobre trânsito e transporte
mitação encerrada pelas seguintes razões: a) foram (13,6%), Administração Pública, servidores
arquivados definitivamente (retirados pelo autor ou públicos e previdência social (13,6% do
outro motivo); b) foram rejeitados pelo plenário; ou
c) não foram transformados em norma jurídica, por
total) e educação, cultura, esporte, lazer e
terem recebido parecer de inconstitucionalidade da turismo (9,5%), percentual semelhante ao
Comissão de Constituição e Justiça da Casa. encontrado nos projetos de lei com trami-
17
Há razoável polêmica na doutrina relativa ao tação encerrada (36,5%). Deve-se salientar
controle de constitucionalidade. Pode-se falar de
duas modalidades: a repressiva e a preventiva. O
o percentual mais elevado (8,2%) de proje-
controle repressivo é exercido pelo Poder Judiciário tos relacionados à tributação, matéria que
após a edição de norma e é aceito consensualmente
pelos doutrinadores. O controle preventivo, por sua 18
A competência privativa dos Estados-membros
vez, é exercido pelo Poder Legislativo por meio da não explicitada pela Constituição engloba matérias
Comissão de Constituição e Justiça – na tramitação orçamentárias, criação, extinção e fixação de cargos
da proposição de lei – e pelo Poder Executivo – pela públicos estaduais, autorizações para alienação de
aposição de veto à proposição de lei – e não é aceito por imóveis, criação de secretarias estaduais, organização
muitos doutrinadores. Há inúmeros trabalhos sobre o administrativa, judiciária e do Ministério Público, da
assunto, dentre eles citam-se: Azevedo (2002), Barbosa Defensoria Pública e da Advocacia-Geral do Estado
(1999), Bastos (2001), Beneton (2003), Bernardes Júnior (MENDES, 2008). O tema previdência social, por seu
(2003), Dutra (2003), Fiuza (1999), Mendes (1997), turno, insere-se na competência legislativa concorrente
Nassif (1996), Veloso (2003) e Horta (2007). de União, Estados-membros e Distrito Federal.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 163


Quadro 1 – Projetos de lei com tramitação encerrada – Assembleia Legislativa de Minas Gerais
– parecer de inconstitucionalidade da Comissão de Constituição e Justiça – 1989/2006

Total de pareceres de Participação no total


Tema inconstitucionalidade de pareceres de
emitidos pela CCJ inconstitucionalidade
Trânsito e transporte 105 13,6%
Administração Pública, servidores públicos e Previdência 91 11,8%
Educação, cultura, esporte, lazer e turismo 86 11,1%
Imóvel 58 7,5%
Tributação 47 6,1%
Saúde e saneamento 46 5,9%
Direitos e garantias fundamentais 39 5,0%
Segurança 30 3,9%
Defesa do consumidor 24 3,1%
Fiscalização financeira e orçamento 23 3,0%
Utilidade pública 23 3,0%
Denominação 19 2,5%
Meio Ambiente e energia 19 2,5%
Ação Social 18 2,3%
Justiça (Poder Judiciário) 18 2,3%
Propaganda 14 1,8%
Desenvolvimento regional 13 1,7%
Homenagem 13 1,7%
Agropecuária e política fundiária 12 1,6%
Fundo estadual 9 1,2%
Poder Legislativo 9 1,2%
Recursos hídricos 8 1,0%
Limite geográfico 6 0,8%
Habitação 1 0,1%
Outros 43 5,6%
Total 774 100%
Fonte: Quadro elaborado a partir de informações fornecidas pelo setor de pesquisa da Assembleia Legislativa
de Minas Gerais. Observação: as categorias dos assuntos dos projetos de lei foram estabelecidas considerando
a indexação temática adotada pela Assembléia.

Quadro 2 – Projetos de lei tramitando – Assembleia Legislativa de Minas Gerais –


parecer de inconstitucionalidade da Comissão de Constituição e Justiça – 1989/2006
Total de pareceres de Participação no total
Tema inconstitucionalidade de pareceres de
emitidos pela CCJ inconstitucionalidade
Trânsito e transporte 46 13,6%
Administração Pública, servidores públicos e Previdência 46 13,6%
Educação, cultura, esporte, lazer e turismo 32 9,5%
Tributação 28 8,2%
Imóvel 26 7,9%
Saúde e saneamento 26 7,6%
Desenvolvimento regional 19 5,7%
Utilidade pública 17 5,1%
Defesa do consumidor 17 5,0%
Direitos e garantias fundamentais 16 4,7%
Denominação 13 4,0%
Habitação 12 3,5%
Meio Ambiente e energia 6 1,9%
Ação Social 5 1,6%
Justiça (Poder Judiciário) 4 1,3%
Segurança 3 0,9%
Agropecuária e política fundiária 3 0,9%
Fiscalização financeira e orçamento 2 0,6%
Poder Legislativo 2 0,6%
Recursos hídricos 2 0,6%
Fundo estadual 1 0,3%
Propaganda 1 0,3%
Homenagem 0 0,0%
Limite geográfico 0 0,0%
Outros 9 2,8%
Total 336 100%
Fonte: Quadro elaborado a partir de informações fornecidas pelo setor de pesquisa da Assembleia Legislativa
de Minas Gerais. Observação: as categorias dos assuntos dos projetos de lei foram estabelecidas considerando
a indexação temática adotada pela Assembleia.

164 Revista de Informação Legislativa


figura no rol das competências legislativas da expressão “Evite o consumo excessivo
concorrentes de União, Estados e Distrito de álcool” nas embalagens das bebidas.
Federal (art. 24, I, CF). Note-se que, ao editar a referida norma,
Conforme assinalamos, a atuação legis- a União também fez uso da competência
lativa dos Estados está, em grande medida, concorrente para legislar sobre consumo
limitada às competências concorrentes e proteção e defesa da saúde, esgotando,
(artigo 24 da Constituição Federal). To- pois, a possibilidade de qualquer Legisla-
davia, mesmo no âmbito da competência tivo estadual vir a suplementar a matéria
concorrente, que hoje compreende grande versada na citada lei federal.
parte da atuação legislativa dos Estados, há Podemos também citar o parecer rece-
um forte impacto das normas editadas pelo bido pelo Projeto de Lei no 2.645/05, que
Congresso Nacional. Do levantamento feito dispunha sobre mecanismos facilitadores
a partir da produção legislativa da ALMG, do acesso dos cidadãos aos bancos de
constatamos que algumas das leis estadu- dados dos órgãos de proteção e defesa do
ais editadas no exercício da competência consumidor do Estado. O referido projeto
concorrente; a) ao disporem sobre as ma- também foi elaborado com base na com-
térias elencadas no artigo 24, adentraram petência concorrente da União, Estados e
em matéria de competência privativa da Distrito Federal para legislar sobre con-
União; ou b) conflitavam com leis federais sumo (artigo 24, V) e responsabilidade
pré-existentes e que dispunham sobre por dano ao consumidor (artigo 24, VIII).
normas gerais. Todavia, o aludido projeto recebeu pare-
O parecer dado pela Comissão de Cons- cer de inconstitucionalidade da Comissão
tituição de Justiça da ALMG ao Projeto de de Constituição e Justiça da ALMG, ao
Lei no 3.260/2006 é bastante elucidativo argumento de que o Sistema Nacional de
sobre as hipóteses acima mencionadas de Defesa do Consumidor, criado pelo Código
conflito de competência entre União e Es- de Defesa do Consumidor (Lei Federal no
tados. O aludido projeto pretendia obrigar 8.078/90), teria delegado ao Departamento
os fabricantes e os distribuidores de bebidas de Proteção e Defesa do Consumidor, órgão
alcoólicas a inserir, nas embalagens do do Ministério da Justiça, a competência
produto, as expressões “proibida a venda a para planejar, elaborar, propor, coordenar
menores de 18 anos” e “o uso abusivo desta e executar a política nacional de proteção ao
substância causa diversos males à saúde”. consumidor. Já existiria em âmbito federal,
Vê-se que o referido projeto foi elaborado portanto, o Sistema Nacional de Informa-
com base na competência concorrente da ções de Defesa do Consumidor, programa
União, Estados e Distrito Federal para legis- que integra em rede as ações e informações
lar sobre consumo (artigo 24, V) e proteção relativas a essa matéria, formando um todo
e defesa da saúde (artigo 24, XII). Todavia, harmônico para proteção estratégica e qua-
o aludido projeto recebeu parecer de in- lificada dos consumidores do País.
constitucionalidade da Comissão de Cons-
tituição e Justiça da ALMG, ao argumento 6. A jurisprudência do
de que, no exercício de sua competência
Supremo Tribunal Federal
privativa para editar normas sobre propa-
ganda comercial (artigo 22, XXIX), a União No âmbito do Supremo Tribunal Fe-
editou a lei federal no 9.294/96, que dispõe deral, constatamos, a partir da análise da
sobre restrições ao uso e propaganda de jurisprudência do Tribunal, o questio-
bebidas alcoólicas, medicamentos, etc., namento de leis estaduais que, de forma
disciplinando a rotulagem dos produtos inconstitucional, teriam adentrado na
dessa natureza e determinando a inclusão competência privativa da União ou na

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 165


competência concorrente do legislador cia requisitos para a criação, autorização
federal para editar normas gerais. Nesse de funcionamento, avaliação e reconheci-
sentido, podemos citar a decisão proferida mento dos cursos de graduação na área da
na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. saúde de instituições públicas e privadas,
3.645/PR, ajuizada pelo Partido da Frente atribuindo ao Conselho Estadual de Saúde
Liberal (PFL) em face do Governador e da a competência de emitir parecer conclusivo
Assembleia Legislativa do Estado do Pa- sobre a necessidade social dos cursos em
raná, questionando a constitucionalidade questão. Para o requerente, o legislador
da Lei estadual n. 14.861/05, a qual tinha paulista teria usurpado a competência
por escopo regulamentar o direito à infor- privativa da União para legislar sobre dire-
mação quanto aos alimentos e ingredientes trizes e bases da educação nacional (artigo
alimentares que contivessem ou que fossem 22, inciso XXIV), bem como o disposto no
produzidos a partir de organismos geneti- artigo 209 da Constituição, que determina
camente modificados. Temos também aqui ser livre o ensino de iniciativa privada se
uma lei redigida pelo Legislativo paranaen- atendidos dois requisitos: o cumprimento
se versando sobre consumo (artigo 24, V) e das normas gerais da educação nacional e
responsabilidade por dano ao consumidor a obtenção de autorização e avaliação de
(artigo 24, VIII). qualidade pelo Poder Público.
Para a Ministra Ellen Gracie, relatora Antes de votar, o Ministro relator, Car-
da aludida ADI, a lei estadual em comento los Velloso, explicou que, quando duas
tratava de assunto já disciplinado na Lei entidades políticas – como, por exemplo,
federal de Biosegurança e Biotecnologia a União e os Estados − têm competência
(Lei n. 11.105/05), conflitando, ainda, com o para legislar sobre a mesma matéria, tem-
Decreto Regulamentador (Decreto Federal se competência concorrente que pode ser
n. 5.591/05). Ambos já teriam disciplina- cumulativa ou não-cumulativa (suplemen-
do, de acordo com a Ministra, de forma tar). Segundo ele, cabe ao Estado-membro,
genérica, a produção e comercialização de no uso da competência suplementar,
organismos geneticamente modificados. preencher os vazios da lei que dispõe
Segundo Ellen Gracie, ainda que tratando sobre normas gerais, a fim de afeiçoá-la
de consumo e proteção e defesa da saúde, às peculiaridades locais. Além disso, uma
o diploma legal impugnado teria procedido vez inexistente a lei federal dispondo so-
com regulamentação paralela e explici- bre normas gerais, compete ao legislador
tamente contraposta à legislação federal estadual exercer a competência legislativa
vigente, extrapolando, pois, a competência plena para atender às suas peculiaridades.
concorrente suplementar de que dispõem Para Velloso, no caso da ADI em questão,
os Estados. Em suma, não seria possível a lei estadual impugnada teria ido além
que, no uso de sua competência residual, do exercício da competência concorrente
o Legislativo paranaense afastasse, com a suplementar, tendo em vista que a questão
aplicação da lei impugnada, a aplicação das já se achava disciplinada pela Lei federal
normas federais de caráter geral, que foram de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
editadas para a solução de um problema 9.394/96).
que visivelmente transcende a esfera dos Outro caso de lei estadual que, de forma
Estados considerados singularmente. inconstitucional, teria adentrado na compe-
Podemos também citar a Ação Direta tência privativa da União foi apreciado pelo
de Inconstitucionalidade n. 3.098/SP, pro- Supremo Tribunal Federal no julgamento
posta pelo Governador do Estado de São da Ação Direta de Inconstitucionalidade
Paulo, questionando a constitucionalidade n. 1.893/RJ, relatada pelo Ministro Carlos
da Lei estadual n. 10.860/01, que estabele- Velloso. Em sua peça exordial, a Confede-

166 Revista de Informação Legislativa


ração Nacional da Industria (CNI) argüiu outros termos, a matéria disciplinada pela
a inconstitucionalidade da Lei estadual n. lei impugnada – “política de qualidade
2.702/97, editada, segundo informação ambiental ocupacional e de proteção da
prestada pela Assembleia do Estado do Rio saúde do trabalhador” – não era contempla-
de Janeiro, “no exercício da competência da pela competência concorrente prevista
concorrente dos Estados para legislar em no inciso VI do art. 24 mas, sim, pelo art.
matéria de proteção do meio ambiente 22, I, da Constituição. Afinal, destacou em
do trabalho (CF, art. 24, VI)”. A referida seu parecer o então Procurador-Geral da
lei determinava, em seu art. 3o, a fixação República, Geraldo Brindeiro: “os temas
de padrões de qualidade ambiental ocu- atinentes à segurança e à saúde do trabalha-
pacional por parte dos órgãos estaduais dor estão insertos no conteúdo do Direito
de saúde e meio ambiente, os quais, dis- do Trabalho, somente podendo ser objeto
punha o art. 4o, deveriam ser obedecidos da legislação estadual em caso de delegação
por empresas e instituições responsáveis de competência da União para os Estados,
por atividades efetiva ou potencialmente por meio de lei complementar”.
causadoras de poluição ocupacional, sob
pena de advertência, multas e interdição
7. Considerações finais
(art. 8o). De acordo com a requerente, as
normas veiculadas pela referida lei teriam Analisando a repartição de competên-
violado a “competência exclusiva da União cias efetuada pelo legislador constituinte
para legislar sobre direito do trabalho” (art. de 1988, é possível constatar ser diminuta
22, I, CF), “a competência [privativa] da a importância dos legislativos estaduais,
União para organizar, manter e executar a cuja atividade está preponderantemente
inspeção do trabalho”, prevista no art. 22, voltada para o controle da Administração
XXIV, além de ter excedido os “limites da Pública estadual, pouco atuando em relação
colaboração na proteção do meio ambiente à criação de direitos dos cidadãos ou às for-
de trabalho”, previsto no art. 200, VIII, da mas de exercício de direitos fundamentais.
Constituição19. Esse é um dado preocupante, posto que a
Em seu voto, acompanhado pelos autonomia das entidades federadas emana,
demais Ministros do Tribunal, Carlos em grande parte, da repartição de compe-
Velloso julgou procedente a Ação Dire- tências e da distribuição constitucional de
ta de Inconstitucionalidade, mantendo, poderes, a fim de possibilitar o exercício
portanto, a decisão que havia deferido o e desenvolvimento de sua atividade nor-
pedido de suspensão cautelar da referida mativa.
lei. Naquela ocasião, o Tribunal já havia se No Brasil, a competência privativa
manifestado no sentido de que “o gênero dos Estados – poderes reservados e não
‘meio ambiente’, em relação ao qual é viá- vedados pela Constituição Federal – é por
vel a competência em concurso da União, demais restrita, visto que à União compe-
dos Estados e do Distrito Federal, a teor do te, no uso de suas atribuições legislativas
disposto no artigo 24, inciso VI, da Consti- privativas, legislar sobre os assuntos mais
tuição Federal, não abrange o ambiente de relevantes e de interesse comum à vida
trabalho”, sendo, portanto, inadmissível social do país. Além disso, na medida em
a “fiscalização do local por autoridade que reconheceu aos Municípios compe-
estadual, com imposição de multa”. Em tências privativas, a Constituição Federal
acrescentou um novo elemento limitador
19
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete,
para os Estados, pois esses já não têm mais
além de outras atribuições, nos termos da lei:
[...] VIII − colaborar na proteção do meio ambiente, espaço para determinar a organização dos
nele compreendido o do trabalho. poderes locais.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 167


Diante desse quadro, a competência editadas no exercício da competência con-
privativa dos Estados resume-se a algumas corrente, algumas adentraram em matéria
matérias expressamente discriminadas de competência privativa da União e outras
pela Constituição Federal, entre as quais conflitavam com leis federais pré-existentes
exploração de serviços de gás canalizado e e que dispunham sobre normas gerais. No
instituição de regiões metropolitanas, e ou- âmbito do Supremo Tribunal Federal, por
tras não explicitadas pelo legislador cons- outro lado, constatamos, a partir da análise
tituinte, em sua maior parte vinculadas ao dos julgados do Tribunal, que algumas leis
funcionamento da Administração Pública estaduais foram impugnadas porque ou
(orçamento, cargos públicos, organização teriam adentrado na competência privativa
administrativa). Eis a razão de a atividade da União, ou na competência concorrente
legislativa dos Estados estar, em grande do legislador federal para editar normas
medida, limitada ao exercício das compe- gerais.
tências comuns (materiais) e concorrentes Tais constatações corroboram a asser-
(legislativas). Entretanto, mesmo nessa tiva de que, em razão da preponderância
esfera de competências, há predomínio da União, materializada na concentração
da União, uma vez que, no que tange ao de poderes proporcionada pela repartição
exercício da competência comum, cabe ao de competências feita pela Constituição
legislador federal, mediante lei comple- Federal, a federação brasileira continua
mentar, definir as formas de cooperação sendo, em grande medida, uma federação
entre os entes da federação. Relativamente do tipo centrífuga. A reversão dessa ten-
ao exercício da competência concorrente: dência, acreditamos, depende da revisão
a) compete à União editar normas gerais, da sistemática adotada pelo constituinte
delimitando, portanto, o campo de atuação para atribuir as competências aos entes
dos legislativos estaduais, aos quais resta federativos. O redesenho dessa sistemática
suplementar a legislação federal; b) com- deverá ampliar o leque de competências
pete aos Estados editar normas gerais, se legislativas e materiais dos Estados mem-
inexistente a lei federal nesse sentido, para bros e do Distrito Federal, permitindo-lhes
atender às suas peculiaridades; no entanto, legislar sobre uma gama maior de temas
a superveniência de lei da União dispondo que digam respeito à criação de direitos
sobre normas gerais suspende a eficácia de dos cidadãos ou às formas de exercício
lei estadual, no que lhe for contrária. de direitos fundamentais, a respeito dos
Em suma, mesmo no âmbito da com- quais a União tem legislado no uso de sua
petência concorrente, que corresponde competência privativa e/ou concorrente
ao grosso da atuação legislativa estadual, (edição de normas gerais).
há um forte impacto das normas editadas
pelo Congresso Nacional. Ademais, nos
Referências
casos em que há conflito entre os entes
federativos em razão do exercício de atri- ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competência
na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991.
buições comuns, em razão do critério da
preponderância de interesses, os interesses ARAÚJO, Suely M. V. G. de. A distribuição de compe-
da União, por serem mais amplos, prepon- tências governamentais em relação a meio ambiente. 2005.
Disponível em: <http://www.camaradosdeputados.
deram sobre os dos Estados, de âmbito gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publica-
mais restrito. coes/estnottec/tema14/2005_2327.pdf>. Acesso em:
Da análise elaborada sobre a produção 29 jul. 2008.
legislativa da Assembleia Legislativa de ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DE MINAS GERAIS.
Minas Gerais, entre 1989 e 2006, constata- Disponível em: <www.almg.gov.br>. Acesso em: 18.
mos que, relativamente às leis estaduais nov. 2006.

168 Revista de Informação Legislativa


AZEVEDO, Luiz Henrique Cascelli de. O controle ______. Uma questão de princípio. Tradução Luís Carlos
prévio de constitucionalidade na Câmara dos Depu- Borges São Paulo: Martins Fontes, 2000.
tados. Cadernos Aslegis, Brasília, v. 1, n. 2, p. 62-65,
______. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes,
mai./ago. 1997.
1999.
______. O controle legislativo de constitucionalidade. Pará:
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Notas sobre o
S. A. Fabris Editor, 2001.
controle preventivo de constitucionalidade. Revista de
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. A Informação Legislativa, Brasília, v. 36, n. 142, p. 279-296,
competência concorrente no Brasil. In: GALLUPO, abr./jun. 1999.
Marcelo Campos (Org.). Brasil que queremos: reflexões
FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional.
sobre o Estado democrático de Belo Horizonte. Editora
7 ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995.
PUC Minas, 2007. p. 271-280.
FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. O controle de
BARBOSA, Elizabeth Cristina da Costa Lopes. Contro-
constitucionalidade das Leis (Direito Comparado).
le preventivo da constitucionalidade dos projetos na
Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, Belo
Câmara dos Deputados. Boletim de Direito Administra-
Horizonte, v. 1, n. 2, p. 83-102, 1995.
tivo, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 239-244, abr. 1999.
GALLUPO, Marcelo Campos (Org.). Brasil que que-
BASTOS, Celso Ribeiro. Do estudo da inconstitucio-
remos: reflexões sobre o Estado democrático de Belo
nalidade no campo específico da lei complementar.
Horizonte. Editora PUC Minas, 2007.
Revista de Direito Constitucional e Internacional, São
Paulo, v. 9, n. 37, p. 55-63, out./dez. 2001. MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Consti-
tucional. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
BENETON, Marco Antônio Hatem. Algumas notas
sobre o controle preventivo de constitucionalidade ______. O Poder Executivo e o Poder Legislativo no
no âmbito da Assembléia Legislativa do Estado de controle de constitucionalidade. Revista da Procura-
São Paulo. Revista Jurídica 9 de Julho, São Paulo, n. 2, doria-Geral da República, São Paulo, n. 10, p. 125-160,
p. 55-68, jul. 2003. jan./jun. 1997.
BERNARDES JÚNIOR, José Alcione. O controle MONTESQUIEU. O Espírito das leis. 2 ed. São Paulo:
jurisdicional do processo legislativo à luz da teoria Abril Cultura, 1979.
sistêmica. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Hori-
zonte, v. 8, n. 13, p. 151-177, jan./dez. 2005. NASSIF, Elaine Noronha. Controle prévio de constitu-
cionalidade pelo Poder Legislativo. Revista do Tribunal
BRASIL. Lei complementar no 103, de 14 de julho de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.
de 2000. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia 20, n. 3, p. 113, jul./set. 1996.
para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp103.htm >. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andra-
Acesso em: 25 jun. 2008. de. Constituição Federal comentada e legislação constitu-
cional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucio-
nal democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Normas gerais sobre saú-
de: cabimento e limitações. Disponível em: <http:// ______. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed.
saudepublica.bvs.br/lildbi/docsonline/1/2/121- rev. e atual. São Paulo: Melhoramentos, 2004.
Dalmo_Dallari_Normas_gerais.doc>. Acesso em: 12 SIMÕES, Marília Horta. Controle preventivo de consti-
nov. 2006. tucionalidade na ALMG. Belo Horizonte: Assembléia
DIAS, Maria Tereza Fonseca; GUSTIN, Miracy Bar- Legislativa de Minas Gerais, Escola do Legislativo,
bosa de Souza. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria 2007. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/
e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. publicacoes/nepel/nepel_4.pdf>. Acesso em: 28 jul.
2008.
DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. A evolução
histórica do controle de constitucionalidade de leis e SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em:
seu papel no século XXI. Revista Jurídica 9 de Julho, São <www.stf.gov.br>. Acesso em: 18 nov. 2006.
Paulo, n. 2, p. 11-32, jul. 2003. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionali-
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradu- dade. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2003.
ção Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Brasília a. 47 n. 186 abr./jun. 2010 169

Você também pode gostar