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Pau-Brasil: a reescrita da história brasileira na poética de o

Oswald de Andrade

Lucas Toledo de Andrade


(Universidade Estadual de Londrina – UEL)

Resumo: Este artigo busca observar a poética de Oswald de Andrade, a partir de poemas
selecionados na coletânea Pau-Brasil (1925). Para isso serão relacionados esses poemas a
algumas das teses presentes no texto “Sobre o conceito de história” (1940), de Walter
Benjamin, com o intuito de entender de que forma a poética oswaldiana elabora a reescrita da
história oficial brasileira, por meio dos fragmentos de imagens do passado colonial, atualizadas
na modernidade, o que permite uma reflexão crítica sobre o Brasil do século XX e de nossos
tempos. Sendo assim, busca-se pensar a produção poética oswaldiana a partir das discussões
benjaminianas acerca do discurso histórico.
Palavras-chave: Oswald de Andrade; Walter Benjamin; reescrita da história; Pau-Brasil,
“Sobre o conceito de história”

Abstract: This article aims to observe the poetic of Oswald de Andrade, from the poems
selected in a collection Pau-Brasil (1925). For this will be related this poems to some of the
theses present in the texto “Sobre o conceito de história” (1940), by Walter Benjamin, with the
aim of to understand the way like the oswaldiana poetic elaborates the rewriting of Brazilian
official history, through of pieces of images of the colonial past, updated in modernity, which
allows a critical reflection on Brazil of twentieth century and of our times. Therefore, we seek
to think of Oswald's poetic production from the Benjamin´s discussions about the concept of
history.
Key-words: Oswald de Andrade; Walter Benjamin; rewrite of history; Pau-Brasil; “Sobre o
conceito de história”

Para dar início a esse texto convém evocar a nona tese benjaminiana, aquela que nos
leva ao encontro da imagem do anjo da história, trazida por meio da impressão que o pensador
judeu tem de um quadro de Paul Klee:

“Minhas asas estão prontas para o vôo,


Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo.”

Gerhard Scholem, Saudação do anjo

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que


parece querer afastar-se de alguma coisa que ele encara fixamente. Seus olhos
estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar as pessoas mortas e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele
não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o acumulado de ruínas cresce até
o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (BENJAMIN, 1987,
p. 226).

Segundo Michael Löwy (2005), essa tese, de certa maneira, sintetiza todas as demais e,
além disso, traz uma imagem emblemática à cultura ocidental, por ser a expressão da crise
profunda da modernidade e por possuir uma “dimensão profética” (LÖWY, 2005, p. 87) ao
parecer anunciar Auschwitz e Hiroshima, “as duas destruições mais monstruosas que vieram
coroar o amontoado que ‘cresce até o céu’” (LÖWY, 2005, p. 87).
Esse anjo visualiza o passado como um acúmulo de catástrofes, que crescem
infinitamente e é, ainda, arremessado por uma furiosa tempestade, que é o próprio progresso,
em direção ao futuro. Assim sendo, ele não consegue levantar os mortos que estão presos nos
escombros da história e permitir que eles tenham a redenção.
A alegórica figura do anjo ilustra bem a crítica de Benjamin ao discurso histórico
tradicional, de caráter burguês, progressista e teleológico, uma vez que a história oficial se
propõe a narrar os grandes feitos dos conquistadores e ver a passagem de tempo como um
caminhar “natural” em direção a um progresso e não como um acumulado de ruínas.
Esse discurso faz com que a barbárie, a opressão, as mortes e as dominações sejam
justificadas como partes integrantes e necessárias para o progresso da humanidade e a
construção de uma ideia de civilização, o que consequentemente leva ao silenciamento das
vozes das minorias dizimadas pelos processos de domínio e colonização.
Nesse sentido, as teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin pedem a
elaboração de um discurso guiado pela ideia de um “tempo de agora”, por meio de um
historiador “capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar
em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas”
(GAGNEBIN, 1987, p. 8).
Essa concepção de história e de tempo não possui uma imagem cristalizada do passado
e compreende que o presente possui ligações com toda a história anterior da humanidade, não
sendo apenas um intervalo entre o passado e o futuro, como se pensa cartesianamente, mas um
período importante para uma reflexão sobre o passado, sobre o modo como esse presente se
constituiu.
Ao pensarmos nesses aspectos, trazidos pela tese benjaminiana, podemos observar o
cenário modernista do Brasil, dando atenção especial à produção poética de Oswald de
Andrade, para assim compreendermos o modo como a apreensão benjaminiana do discurso
histórico e da ideia de temporalidade encontra diversas consonâncias com elaboração artística
do poeta brasileiro.
Oswald de Andrade faz parte de um importante movimento cultural nacional, o
modernismo. O momento inicial do modernismo brasileiro, circunscrito nos anos 20 do século
passado, compreendia que o Brasil mesmo há cem anos independente politicamente de Portugal
não havia conseguido se desligar de fato do ideário europeu, o que afetava a produção cultural
de forma geral.
Por esse motivo, os modernistas de 20 buscavam renovar as bases artísticas nacionais,
quebrando paradigmas, dando novas cores à linguagem poética e destruindo a própria forma
do verso, que ganhava ares experimentais. Não é por acaso que João Luís Lafetá (2000) refere-
se a esse momento do modernismo como aquele dominado por um projeto estético, uma vez
que se buscava “[...] ‘ajustar’ o quadro cultural do país a uma realidade mais moderna”
(LAFETÁ, 2000, p. 29).
Contudo, não há como negar que aquilo que Lafetá chama de projeto ideológico, marca
dominante dos modernistas de 30, visto que queriam “[...] reformar ou revolucionar essa
realidade e modificá-la profundamente.” (LAFETÁ, 2000, p. 29) esteja presente na poética
oswaldiana, pois esta buscou não apenas reformular as estruturas do verso e abalar a linguagem
da poesia, mas também questionar a história brasileira e olhar para as mazelas nacionais.
Levando esses aspectos em consideração podemos trazer a percepção que Haroldo de
Campos possui da poética oswaldiana, segundo ele: “se quisermos caracterizar de um modo
significativo a poesia de Oswald de Andrade no panorama do nosso modernismo, diremos que
esta poesia responde a uma poética da radicalidade” (CAMPOS, 1990, p. 7). E isso se dá tanto
em nível estético quanto ideológico, visto que a preocupação oswaldiana com a renovação da
linguagem e a destruição da estrutura conhecida do verso se liga diretamente a sua consciência
política dos dilemas brasileiros.
A discussão de Campos (1990) nos possibilita pensar nas teses de Benjamin, pois a
consciência ideológica e política de Oswald de Andrade também o impede de ter uma visão
teleológica e progressista da história, percebendo-a, de certa forma, como o próprio “tempo de
agora” benjaminiano, ao levar em conta aquela narrativa calada e escondida nas ruínas da
história oficial.
A coletânea de poemas Pau-Brasil, publicada em 1925, revela essa noção de tempo ao
mergulhar no passado colonial brasileiro, buscando acordar os mortos e reavivar nas
consciências a barbárie que sustentou o processo de colonização, com o intuito de discutir
também a modernidade e fazer pensar sobre o futuro.
Os poemas presentes em Pau-Brasil mostram a rede complexa que liga o passado ao
presente e, inevitavelmente, ao futuro e dessa forma destrói o modo contemplativo de se
observar o passado, que deixa de ser visto como aquilo que passou e que por isso deve ser
entendido como algo imutável ou a ser esquecido.
Quando os eu-líricos oswaldianos reacendem as dores coloniais no chão da
modernidade, eles nos mostram que o país que somos ou que iremos nos tornar está
intimamente ligado com aquilo que foi a nossa história e com o modo com a qual ela foi
contada, por isso a importância de revê-la e rediscuti-la, pois assim também nos repensamos e
ganhamos a possibilidade de transformar nossas realidades.
Os eu-líricos de Pau-Brasil também estão sendo irremediavelmente lançados ao futuro
pelo progresso, mas ainda olham para o presente e também para o passado, para as ruínas
deixadas pela colonização, pelas memórias da escravidão: “nesse conjunto de poemas Oswald
repassa a história e a literatura brasileira, em um percurso que vai da Carta de Pero Vaz
Caminha à atualidade do poeta” (FONSECA, 2008, p. 104). Com esse intuito de passar a limpo
história e a literatura nacional, Oswald escolhe os seguintes títulos para a segunda e terceira
seção de sua coletânea: “História do Brasil” e “Poemas da colonização”.
Notamos que os próprios títulos das seções reivindicam a tentativa de reescrita da
história nacional no chão dos tempos modernos, valendo-se dessa ideia podemos observar o
poema que abre a “História do Brasil”:

A DESCOBERTA
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra (ANDRADE, 1990, p. 69).

O poema em questão se encontra na subseção reservada a Pero Vaz de Caminha, tratado


pela história oficial como o cronista da descoberta, aquele responsável pela escrita da “certidão
de nascimento brasileira”. Oswald não só recorta ao seu bel prazer o documento português,
como também bagunça o nome do europeu que o escreveu, tornando-o Pero Vaz Caminha, a
retirada da preposição “de”, segundo Santos (2009, p. 330), traz à tona “[...] o andamento no
próprio sentido diacrônico do texto [...] imprime o sentido que desliza em direção ao próprio
do ‘ir e vir’ do discurso e não das viagens do cronista [...] retirados de um texto protocolar, os
versos ‘vão e vêm’, entrelaçando passado e presente”.
O recorte do documento que anuncia “vista de terra” frase clássica da narrativa da
chamada descoberta, o que esconde discursivamente a ideia de invasão, que foi o que de fato
ocorreu nessas terras em 1500, também se propõe a trazer uma descoberta que virá pela ótica
do homem brasileiro.
O título do poema “A descoberta”, por meio do uso do artigo “a” singulariza essa
descoberta e mostra a astúcia do brasileiro em se apropriar do texto deixado pelo português,
recortando-o do modo como acha melhor, o que já adianta a estratégia antropofágica de
deglutição do material estrangeiro para a reconstrução da identidade brasileira.
Desse modo, ocorre o descobrimento do país pelo próprio olhar nacional e assim
Oswald começa a reescrever a “História do Brasil”, destruindo simbolicamente e
estruturalmente o discurso oficial, ao retirar o texto da prosa de Caminha e colocá-lo em versos,
desrespeitando assim a sua forma e sua significação, dando voz, então, ao colonizado que é
quem escreve a narrativa, a partir do seu próprio ponto de vista.
Podemos dizer também que quando se retira do texto português o seu caráter de
documento oficial e o coloca no plano do literário, se questiona as próprias afirmações trazidas
pelo cronista Pero Vaz de Caminha, ironizando ainda o seu modo de ver o nativo, como se
percebe em “Os selvagens”:

OS SELVAGENS
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados.
(ANDRADE, 1990c, p. 69).

A primeira impressão advinda da leitura desse poema está em torno do questionamento


da ideia de selvageria, afinal quem seriam aqueles tão terríveis selvagens dos trópicos que
tinham medo de uma galinha? Dessa forma mostra-se a incoerência do discurso de Caminha
que ora mostrava os nativos como seres perigosos, que precisavam ser educados e
catequizados, mas que ao mesmo tempo tinham medo de uma ave inofensiva.
Ao colocar isso no plano de sua poesia Oswald adianta um questionamento que está na
antropofagia, aparecendo inclusive na Revista de Antropofagia (1928 – 1929): o que separaria
o bárbaro do civilizado? Quem de fato era bárbaro ou civilizado?

É preciso constatar que todos os povos civilizados conduziram-se para os


naturais dos países descobertos com a mesma ferocidade... A maneira humana
e assassina que os europeus lutaram contra esses povos e que deixou longe
toda a selvageria dos mesmos nos conduz a uma conclusão antropológica que
não é de pouca importância: o abismo que separa o selvagem do civilizado
não é tão grande quanto parece... (RA. 12.1.6.). (BOAVENTURA, 1985, p.
63).

Dessa forma, se questiona e se derruba o binarismo que alimentou boa parte do discurso
colonial, de que haviam homens europeus civilizados que precisavam se defender ou domar os
selvagens das terras descobertas, o que, de certa forma, justificava toda a violência da
colonização.
Além disso, o poema permite que observemos com mais atenção a figura do índio, que
ao longo da história brasileira é olhado de modo estereotipado, como um ser sem complexidade
cultural, o que impede o conhecimento da pluralidade identitária existente nas diversas
sociedades indígenas e os próprios sentimentos e atitudes dos nativos diante do contato com o
português.
Luzia Aparecida Oliva dos Santos nos fala que o recorte feito por Oswald em “Os
selvagens” revela dois “[...] aspectos fundamentais do sentimento indígena: o temor e o
espanto” (p. 334), que se transforma em coragem e encanto, levando-o a pegar a galinha com
as mãos, apesar de espantados.
Isso nos permite notar que não estamos diante de seres humanos apáticos diante da
invasão portuguesa e nem de ignorantes que sequer tentaram entender o que estava havendo,
vemos o medo e o espanto diante do desconhecido, mas também a coragem de lidar com aquilo,
junto ao encanto promovido pelo encontro com o diferente.
O nativo do recorte oswaldiano não é mais o bom selvagem de Rousseau, que recebe o
outro passivamente e aceita de bom grado o que ele tem a oferecer, mas o bárbaro de
Montaigne, que observa com astúcia a ave trazida pelo português, que desconfia das intenções
do invasor e possui a coragem de enfrentá-lo, de lidar com o desconhecido.
Vemos assim que o eu-lírico criado pela poética oswaldiana corresponde à figura de um
cronista, mas não de um cronista que falará em nome dos dominadores, estigmatizando o
nativo, transformando-o em ignorante, em desprovido de sentimentos e ações, em um ser
humano vazio que precisa ser preenchido pela inteligência e pela cultura dominadora.
Temos na poética de Oswald um cronista, que viaja pelas terras brasileiras em busca de
entender suas complexidades, em busca de olhar todos os acontecimentos sem distingui-los
como grandes ou pequenos, pois entende que todas as vozes são fundamentais para se
compreender a narrativa histórica. Isso nos leva ao encontro de mais uma das teses
benjaminianas:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os
pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode
ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade
redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer:
somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos
seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l´ordre
du jour – e esse dia é justamente o do juízo final. (BENJAMIN, 1987, p. 223).

Vemos na terceira tese que a humanidade só será redimida se todos os acontecimentos


forem olhados sem distinção, se todas as dores forem consideradas da mesma forma, ou seja,
a redenção só ocorrerá por meio de uma escrita histórica que fale também dos oprimidos, que
dê voz as minorias e que traga uma lembrança integral dos fatos do passado, assim como nos
mostra Löwy (2005, p. 94): “A redenção exige a rememoração integral do passado, sem fazer
distinção entre os acontecimentos ou os indivíduos "grandes" e "pequenos", Enquanto os
sofrimentos de um único ser humano forem esquecidos, não poderá haver libertação”.
A redenção, nesse sentido, só ocorrerá se cada vítima do passado tiver sua memória
lembrada e “citada na ordem do dia” (citation à l´ordre du jour). Isso implica na escrita de uma
narrativa que considere a importância de todos os fatos históricos, em especial os dramas
sofridos pelas minorias, pois elas que ao longo da criação do discurso histórico oficial foram
esquecidas.
Ao observarmos a poética oswaldiana percebemos a necessidade de se trazer a memória
dessas minorias à tona, por meio da elaboração de cenas da escravidão brasileira, como se vê,
por exemplo, na seção “Poemas da colonização”:

NEGRO FUGIDO
O Jerônimo estava numa outra fazenda
Socando o pilão na cozinha
Entraram
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
Montaram nele (ANDRADE, 1990, p. 85 - 86).

Em “Negro fugido” temos o personagem Jerônimo, notamos que o poema se aproxima


das mini-narrativas, pois se vê personagens e ações que se desenrolam em uma sequência, o
que nos ajuda a falar da fusão entre prosa e poesia realizada formalmente por Oswald. Além
disso, percebemos o uso de uma linguagem coloquial, concisa e objetiva, que em forma de
flashes, recria cenas do período da escravidão.
Nessa recriação histórica, trazida em versos, o personagem Jerônimo pode ser visto
como uma figura metonímica, pois ele é usado para retratar as situações vivenciadas por um
coletivo durante a escravidão e assim denunciar e expor para a sociedade brasileira a barbárie
que foi o regime escravocrata.
Apesar disso, Jerônimo também é um sujeito individualizado, pois possui um nome e é
trazido por um artigo definido, ele é “O Jerônimo”, o que o impede de ser mais um indivíduo
na massa, tornando-se um homem com história, identidade, rebeldia, não é à toa que está
fugido. O que anuncia, de certa forma, que o negro também é agente de sua história e não
simplesmente um ser passivo diante dos desmandos dos senhores. Esse personagem
individualizado é usado, então, para singularizar essa coletividade, mostrando-a como capaz
de ter suas próprias vontades, embora impedidas pelas forças dominadoras da época.
É interessante dizer que a publicação dessa coletânea ocorreu após 37 anos da abolição
da escravidão, o que mostra a ousadia do poeta em se desviar para um passado recente e expor
um problema que ainda não era discutido da forma como se devia, colocando o dedo na ferida
de uma sociedade que via a escravidão e o sofrimento de gerações de negros como algo que
havia simplesmente ficado no passado.
Levando isso em conta podemos dizer que Jerônimo, como figura metonímica, vem
reacender as lembranças da escravidão em um país que finge esquecê-la ou ignora os seus
efeitos destruidores na vida de gerações negras que viviam no presente do poeta e também o
modo isso afetaria o futuro de tantas outras pessoas.
Por isso mesmo a cena de “Negro fugido” busca recontar o modo como o homem negro
foi animalizado e reificado ao longo dos quase 400 anos de escravidão. Vemos pelos versos
que Jerônimo estava em outra fazenda, socando o pilão. Com a ajuda do título podemos deduzir
que ele está fugido, o que já nos revela que esses sujeitos não tinham o direito de ir e vir, pois
eram posses de seus donos, o que levava a fuga e a vivência não legalizada em outras fazendas
ou nos quilombos.
Após a fuga Jerônimo é encontrado e tratado como bicho por outros sujeitos, que agem
implicitamente, sendo notados apenas pelas desinências dos verbos: “entraram”, “grudaram”,
“montaram”, que apresentadas de forma brusca, anunciam a violência pela qual o negro foi
surpreendido e tratado.
Notamos pelos versos que após entrarem e grudarem em Jerônimo, ele tropeça e cai,
assim como o próprio pilão que tomba: “Entraram/ Grudaram nele/ O pilão tombou/ Ele
tropeçou” devido à ação violenta. Percebemos então que o homem adentra a esfera dos objetos,
pois se iguala ao pilão, o que simboliza a já falada reificação, lançando diversas significações
ao período da escravidão.
Além disso, vemos o modo com o qual a brincadeira com a desinência dos verbos
expressam o jogo de forças discursivas, que refletem em certa medida uma força política de
culpabilização do outro e transformação desse outro em objeto, como já foi dito, pois
inicialmente temos: “entraram”, “grudaram”, que remete a ação de outros indivíduos sobre
Jerônimo, para depois termos: “tropeçou”, “caiu”, que do modo como são colocados, após a
queda do pilão, dão a entender que a ação de quem “entra” e “gruda” não é responsável pelo
tropeço e pela queda do homem e do objeto, o que exime o sujeito violento da culpa, colocando-
a sobre quem sofreu a ação.
Após ser reificado Jerônimo também é animalizado, pois o verso que fecha o poema
traz: “montaram nele”, e, novamente, pelo uso da desinência verificamos que a ação de um
sujeito implícito transforma o homem em animal a ser montado, o que, em última instância,
revela a dominação.
A escravidão, assim, é denunciada como um modo de reificação e animalização do
homem, o que pode se estender a uma discussão sobre a capacidade do dominador de
transformar o outro em um objeto utilizado para a satisfação de suas vontades, como
visualizamos em “As meninas da gare”:

AS MENINAS DA GARE
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos vergonha nenhuma (ANDRADE, 1990, p. 69 – 70).
O poema citado está na subseção “Pero Vaz Caminha”, tratando-se, assim, de mais um
recorte do documento oficial português, que deixa a prosa protocolar europeia e transforma-se
em verso brasileiro. Revela-se aqui o olhar português as nativas nuas e o modo como esse
encontro se deu.
A utilização dupla do substantivo feminino “vergonha”, ora representando a genitália
das índias e ora o despudor do português em olhar a nudez dessas mulheres, deixa bastante
evidente um processo de dominação que desconsiderou a cultura do nativo e o seu modo de
expressar, pois a falta de roupa da índia não é vista pelo homem branco como algo característico
de sua identidade cultural, mas é colocada no plano da malícia e da sexualidade.
O trecho de Caminha escolhido por Oswald para ilustrar esses versos revelam que o
desejo de dominação sexual, que pode ser visto também como um desejo de exploração das
terras brasileiras, foi algo marcante na invasão portuguesa, afinal o europeu não fica só
extasiado com as riquezas naturais do território, mas também com os corpos nus que visualiza
de forma bastante intensa: “Que de nós as muito bem olharmos” (ANDRADE, 1990, p. 69 –
70, grifo nosso).
O título escolhido pelo poeta tem poder absoluto sobre o recorte do texto do cronista,
pois por meio dele a crítica do olhar europeu sobre as índias e o interesse sexual do branco
sobre esses corpos nus fica ainda mais evidente. Afinal gare, significa em francês, estação
ferroviária, sendo assim as meninas da gare, são mulheres que ficam nas ferrovias vendendo
seus corpos, trata-se então de prostitutas.
Entendemos, então, que o português olha para as índias nuas, simplesmente, como
prostitutas, não levando em conta seus modos de ser e sua individualidade, elas são
simplesmente objetos que satisfarão os desejos europeus.
Por isso, o domínio desses corpos nus e posteriormente o domínio territorial do país são
realizados de forma violenta e totalmente predatória, uma vez que se olha para os corpos e para
o espaço como objetos a serem invadidos, dominados a qualquer custo para a satisfação dos
interesses da coroa portuguesa ou para o prazer sexual daqueles homens.
A colocação das nativas de 1500 no espaço da ferrovia, do transporte e,
consequentemente, da modernidade contribui para a elaboração de uma crítica ao período da
invasão e também aos tempos em que o poeta vive, no qual a sanha por dinheiro, lucro,
progresso e inovação continua fazendo vítimas, explorando corpos e destruindo territórios.
As ideias anteriores nos leva a uma relação direta com o anjo da história que ao olhar
para o passado só consegue ver a barbárie que se acumula até o céu, mesmo com a criação de
um discurso histórico que baseado na ideia de progresso a qualquer custo busque esconder
essas ruínas, impelindo violentamente o ser humano ao futuro.
Quando Oswald nos mostra que a barbárie de 1500, permaneceu viva ao longo de toda
a escravidão brasileira e se mantem ainda presente na sua contemporaneidade, ele anuncia, em
certa medida, que um estado de violência e desrespeito aos direitos humanos foi uma regra
geral ao longo de toda a história do país, o que corrobora com mais uma das teses
benjaminianas:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que


vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que
nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa
posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da
circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso,
considerado uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios
que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro
filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de
que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é
insustentável.

Percebemos pela fala de Benjamin que o “estado de exceção”, ou seja, um estado em


que os direitos humanos são desrespeitados, em que há censura e opressão é na tradição
histórica dos oprimidos uma regra e não uma exceção de fato. Oswald de Andrade, de certa
forma, mostra isso também quando, por exemplo, em “Meninas da gare”, revela o modo como
a barbárie iniciada na colonização ainda marca a sua contemporaneidade.
O que faz com que em ambos haja a noção da necessidade de um “conceito de história
que corresponda a essa verdade”, por meio de uma escrita histórica que leve em conta essa
tradição de sofrimento dos oprimidos, que desmascare o poder, que mostra as falácias e os
silêncios presentes no discurso histórico oficial.
Desse modo há também o questionamento da ideia de progresso, e a reflexão sobre o
preço pago por essas transformações em nome de uma modernização e da construção de uma
civilização, revelando assim que a narrativa da história oficial mascara inúmeros fatos e
silencia muitos indivíduos para impor esse olhar progressista à história, uma vez que o ideal de
progresso é “considerado uma norma histórica”, o que faz com os processos de opressão e a
barbárie sejam naturalizados.
Na tese trazida por Benjamin e citada anteriormente trabalha-se com a ideia de que o
verdadeiro estado de exceção, aquele no qual a sociedade de classes será abolida e não haverá
relações de dominação e opressão do outro, só será verdadeiramente construído quando for
trazido à tona essa outra história escondida e silenciada pelos textos oficiais, visto que essa já
falada concepção de história burguesa, linear e teleológica é vista como insustentável.
Para Benjamin, o sujeito que crê que a evolução de uma sociedade se faz por meio de
uma passagem de tempo natural, na qual o futuro tende a ser melhor que o passado, pois o
progresso é entendido positivamente, não consegue perceber, por exemplo, a relação que o
fascismo possui com a modernidade, uma vez que é incompreensível para esse sujeito a
possibilidade de um governo autoritário, assassino e fascista em uma sociedade desenvolvida
científica e tecnologicamente, por isso a ideia de um “assombro com o fato de que os episódios
que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis”.
E é essa incapacidade de compreender a existência de um “tempo de agora”, no qual
passado, presente e futuro se interseccionam a todo o momento que permite que a opressão, a
morte de minorias e a dominação de uma classe sobre a outra sobreviva ao longo dos tempos.
Não é por acaso que o texto de Benjamin assustadoramente nos fala sobre a situação de
uma Alemanha que viveria o nazismo, em um cenário moderno, no qual tanto a tecnologia,
quanto o desenvolvimento científico, em certa medida, contribuiriam com o horror que foi o
holocausto.
Por esse motivo a ideia de uma reescrita histórica tanto em Benjamin, quanto em
Oswald se faz revolucionária, pois ambas levam em conta a necessidade de se rever o discurso
da história para assim possibilitar que o sujeito munido de uma consciência crítica sobre a sua
sociedade consiga modificá-la e impedir que situações bárbaras, que levem a dizimação e
opressão de minorias deixem de ocorrer.
Ao pensarmos nisso, podemos deslocar nossa atenção ao Brasil e pensar na importância
que uma noção histórica alimentada pela ideia do “tempo de agora” assume em um país que
ainda não discute de forma correta a colonização e dizimação dos nativos, nem a escravidão e
toda a dívida existente com os negros escravizados, eventos ocorridos em séculos anteriores e
que ainda ecoam em nosso presente. Um país que sequer consegue reconhecer e tratar da
recente ditadura civil-militar, sendo vista por muitos como objeto apenas da ficção, ou ainda
como uma solução para os problemas atuais da nação.
Notamos que uma visão histórica progressista e linear impede o reconhecimento do
modo como o passado afeta o presente, o que impossibilita uma compreensão profunda dos
problemas nacionais. Talvez seja por isso que as mesmas questões assolem a realidade nacional
desde a invasão portuguesa até os dias de hoje
Por fim, é válido dizer que, infelizmente, o ideário em torno da poética oswaldiana e
das teses benjaminianas a respeito da história como uma constante barbárie continua atual e
relevante para se pensar os nossos tempos, no qual discursos de ódio contra minorias, a
violência, a opressão e comportamentos fascistas se fazem presentes, nos deixando sempre à
beira do caos e contribuindo para que esse amontoado de corpos e de ruínas continue a crescer
infinitamente.

Referências

ANDRADE, Oswald. Pau Brasil. 1 ed. São Paulo: Globo, 1990. 145p.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:_______. O anjo da história. Tradução


de João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 9 – 20.

BOAVENTURA, Maria Eugenia. Vanguarda antropofágica. São Paulo: Editora Ática, 1985.

CAMPOS, Haroldo. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. 1. ed.
São Paulo: Globo: Secretária de Estado da Cultura, 1990, p. 7 – 59.

FONSECA, Maria Augusta. Ensaio de leitura. In:_______. Por que ler Oswald de Andrade.
São Paulo: Globo, 2008, p. 44 – 134.

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