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Nº 1484 . 12/8 A 18/8/2021 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

JOSÉ PACHECO
PEREIRA AMBIENTE
“O PROBLEMA
DA DIREITA
AS TAXAS QUE
É ESTAR VAMOS PAGAR
DESFASADA
DA REALIDADE”
PARA SALVAR
O PLANETA

Joana de Áustria,
Isabel da Nóbrega
e Hedy Lamarr

GRANDES MULHERES
NA SOMBRA DA HISTÓRIA
AS HISTÓRIAS DE 16 ARTISTAS, ESCRITORAS, MATEMÁTICAS, POLÍTICAS
E EMPRESÁRIAS, CUJA IMPORTÂNCIA FICOU ESCONDIDA NUM MUNDO DOMINADO PELA
NARRATIVA MASCULINA. OS SEUS EXEMPLOS SÃO AINDA HOJE UMA FONTE DE INSPIRAÇÃO
O Tribunal de Justiça da União Europeia procura,
através de procedimento de contratação pública,
tradutores freelance.
O Tribunal de Justiça tenciona atribuir ocasionalmente a tradutores freelance
a tradução para português de textos jurídicos
DSDUWLUGHFHUWDVO¯QJXDVRȴFLDLVGD8QL¥R(XURSHLD

Alemão (DE) Italiano (IT)


Inglês (EN) Neerlandês (NL)
Espanhol (ES) Polaco (PL)
Francês (FR)

O anúncio de concurso foi publicado no JO 2021/S 101-265586


de 27/05/2021
Os documentos relativos ao concurso estão disponíveis em
https://curia.europa.eu/jcms/freelance

Eventuais pedidos de informação podem ser enviados para o endereço eletrónico


Trad.PT-Marches_Publics@curia.europa.eu
VISÃO
12 AGOSTO 2021 / Nº 1484

10 Entrevista: Clara Raposo

RADAR
14 Raio X
16 A semana em 7 pontos
18 Holofote
19 Inbox
20 Almanaque
21 Transições
GETTY

22 Próximos capítulos
24 Imagens do mundo
56 David Attenborough, o senhor planeta
FOCAR A propósito de um novo livro editado em Portugal sobre expedições
realizadas nos anos 50 e 60, traçamos o perfil do icónico naturalista
72 O que leva a extrema-direita que continua ativo aos 95 anos
a ser negacionista
da Covid-19?
76 Jogos Olímpicos: 28 Mulheres na sombra da História
o peso das medalhas Foram matemáticas, escritoras, artistas, políticas, empresárias,
78 Nicarágua: a vice-presidente mas a História, escrita no masculino, ignorou-as ou tratou-as, se fosse
o caso, apenas como mulheres ou filhas de homens famosos
implacável

VAGAR 42 “A direita está desfasada da realidade”


Grande entrevista com José Pacheco Pereira a pretexto do seu novo livro.
80 A longa marcha da Penguin O conhecido intelectual e político diz que o facto mais importante da
86 Pessoas política portuguesa, no próximo ano, vai ser saber quem controla o PSD
88 Tendências: em vez da vaca,
a larva 50 Dez anos de “Monte Branco”
A acusação do Ministério Público sobre escândalo financeiro, que teve
VISÃO SETE origem numa pequena loja de câmbios em Lisboa, ainda não viu a luz do dia

62 Visão Verde: o preço de um mundo melhor


Os combustíveis ficarão (ainda) mais caros? E as viagens de avião?
Tudo o que precisa de saber sobre as taxas verdes que aí vêm

91 Bares de vinhos naturais


Online W W W.V I S A O . P T
OPINIÃO Últimos artigos no site da VISÃO
6 Dulce Maria Cardoso
8 Rui Tavares Guedes
23 Cecília Meireles
90 Miguel Araújo
114 Ricardo Araújo Pereira Henrique Costa Santos Manuela Niza Ribeiro Luís Delgado
CRÓNICAS D.C. IGUALMENTE DESIGUAIS LINHAS DIREITAS
Pichardo é 17,98% Migrantes? Terceira
Interdita a reprodução, mesmo parcial, português Afundem-nos e quarta doses?
de textos, fotografias ou ilustrações sob
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

12 AGOSTO 2021 VISÃO 3


LINHA DIRETA Correio do leitor

As origens do futebol
na nova edição da VISÃO História
Diz-se que o futebol é um
dos setores de maior êxito da
economia portuguesa. Formamos
os jogadores, exportamo-los por
bom dinheiro, adquirimos atletas
estrangeiros quase de graça,
Precisamos que os intelectuais
damos-lhe visibilidade e, a seguir, voltem a inspirar-nos!
vendemo-los aos grandes clubes Maria Antónia Sequeira, Lisboa
internacionais com bons encaixes.
É assim o futebol moderno, TÓQUIO 2020
Ao contrário do que nos querem fazer
que faz movimentar milhões, crer, os resultados dos Jogos Olímpicos
sobretudo desde que os clubes se de Tóquio só vieram confirmar aquilo que
transformaram em empresas e já sabíamos. Estamos cada vez mais na
até servem de cobertura a jogadas cauda da Europa. Mesmo comparando
com países com a mesma população,
menos limpas de dirigentes. Mas as medalhas que Portugal ganhou são
isso são outros futebóis, e não é incomparavelmente escassas. E as
deles que falamos no novo número conseguidas foram-no à custa de um
da VISÃO História, já nas bancas. tremendo mérito e trabalho dos atletas.
Nuno Vieira, Lisboa
O fenómeno que evocamos nas
páginas desta revista é o do MIA COUTO
futebol antes de se chamar futebol, o da invenção do jogo propriamente dito Quero dar os meus parabéns ao
escritor-poeta que redigiu este magnífico
em Inglaterra e o da chegada a Portugal do chamado desporto-espetáculo, texto [Conversa entre pedras, V1483].
quando eram os “carolas” que sustentavam os clubes. Maravilhoso de imaginação e, ao mesmo
Claro que não podíamos passar ao lado da fundação dos “três grandes”, tempo, tão finamente adaptado ao real!
Benfica, Sporting e Futebol Clube do Porto, contando a história das pequenas Leio sempre a página de Mia Couto na
VISÃO.
coletividades de Lisboa e do Porto que deram origem a estes clubes. E Danielle Foucaut Dinis
ninguém melhor para o fazer do que os que são adeptos e que, todos os dias,
“vestem” a camisola. João Gobern escreve sobre o “glorioso”, António Macedo TAXA VASP
Como agente da distribuidora Vasp há
dedica-se ao atual campeão nacional e Germano Silva discorre sobre o clube 36 anos na venda de jornais e revistas,
do Norte que nasceu duas vezes. além de pagar semanalmente uma
Percorrendo as páginas da revista, convidamos o leitor a conhecer como as garantia bancária, a Vasp, a pretexto da
fábricas da primeira metade do século XX se tornaram viveiros dos clubes crise, começou a cobrar uma taxa de
distribuição da sua mercadoria. No meu
operários e, também, a desfazer a persistente ideia feita de que o Estado Novo caso, são 11,70 euros por semana. Até
promovia o futebol para “alienar as massas”, quando o que se passava era que ponto é legal esta situação? É o fim
exatamente o contrário: o regime temia o futebol porque era um fenómeno de dos postos de venda.
massas. Salazar, esse, era completamente ignorante na matéria e desprezava o Mário Silva, Setúbal

futebol na mesma medida em que se desgostava do fado. E até a fundação – e CORREÇÃO


um dos seus fundadores – do jornal A Bola mereceu a reserva do ditador. Por lapso, na crónica de Pedro Strecht,
Apesar de tudo, publicada na última
edição da VISÃO, escreveu-se que
Alberto Lacerda faleceu em 2017,

Já nas bancas quando na verdade o poeta morreu em


2007. As nossas desculpas aos leitores.

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
PESSOA INQUÉRITO AÇORES – Quinta da Fonte,
O poeta com Criadores de futuro As rotas sugeridas Edifício Fernão Magalhães, 8,
múltiplas faces pelos guias locais 2770-190 Paço de Arcos

4 VISÃO 12 AGOSTO 2021


 
 
moderação.
o.
Seja responsável, beba com moderação

  



A casta que dá o corpo único, a cor intensa,


o perfil complexo e singular que respira
perfumes ricos de frutos e flores, o caráter da terra
e as mãos de quem escolhe e aperfeiçoa.
Tudo o que é nobre tem uma origem
e esta é Monção e Melgaço.
AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

O avô António
e um restaurante
de beira de estrada
POR DULCE MARIA CARDOSO

T
rim-trim-trim. O telefone estremeceu O telefone de marcador redondo estava à
a noite. Insistentemente. Trim-trim- entrada do apartamento, no canto esquerdo do
-trim. Vindo das misteriosas entranhas quadrado alcatifado a que o senhorio, ao mostrar-
metálicas, que a sisuda baquelite preta -nos o pequeno T1, nomeou pomposamente de
cobria, o irritante toque não parou até a hall de entrada. Também chamou kitchenette à
minha mãe se levantar e atender, Está sim? minúscula cozinha que estava separada da sala
No final da década de setenta, em casa por uns cortinados cujo azul-petróleo haveria de
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

dos meus pais, as noites eram para dormir empardecer com as lavagens que davam ao início
de uma ponta a outra, mesmo se o meu do verão o cheiro a lixívia e a sabão azul e branco.
pai, angustiado por não saber como pagar Apesar da fineza das palavras estrangeiras, até eu,
as prestações do empréstimo do IARN, passasse com pouco mais de 12 anos, percebi de imediato que
muitas delas de um lado para o outro, a fumar na a nossa família não cabia ali. Mas não estando em
escuridão da varanda, o cigarro, um frouxo farol condições de escolher, os meus pais agradeceram
laranja, o meu pai, um destroçado rochedo. o facto de o senhorio não exigir caução nem fiador,

6 VISÃO 12 AGOSTO 2021


e assinaram o contrato de arrendamento nessa mesma Palmira Moira, o amor da sua vida que o fez viajar até
tarde, Uma casa é uma casa, disseram como se assim Luanda. Das histórias que me contaram do meu avô
pudessem esconjurar os quase dois anos que vivêramos, António, terei construído outras na minha cabeça e
enquanto retornados, num quarto do Hotel Paris. a passagem do tempo encarregou-se de me garantir
O apartamento tinha telefone, um luxo para a que as testemunhei. Talvez ele não tenha sido tão
situação em que nos encontrávamos, e os meus pais belo nem tão galã como os meus pais e familiares me
quiseram mandar desligá-lo, Todas as minhas amigas descreveram, mas a consciência disso tardou e continuo
do liceu têm telefone, protestou a minha irmã. Durante a imaginar-me neta de um Paul Newman.
o pouco tempo que pudemos mantê-lo, usámo-lo Pouco tempo depois de o telefone nos ter acordado,
para o estritamente necessário com a obrigação de, em já a madrugada ia alta, partimos assarapantados em
cada chamada, apontarmos os períodos gastos, esses direção ao Norte. No porta-bagagens, uma mala com
irritantes avisos sonoros que nos roupas de luto, para o que desse e
apressavam as conversas. Na folha viesse; a minha irmã aflita com a
de papel pendurada na parede, a matéria que não iria poder estudar
miscelânea de risquinhos e caligrafias Até eu, com pouco para o ponto que tinha daí a poucos
com os nomes e números dos dias; o meu pai mais fechado do que
destinatários das chamadas nunca
mais de 12 anos, nunca no ziguezaguear da estrada;
batia certo com a temida conta do percebi de imediato a minha mãe, sem conseguir criar
fim do mês. O telefone acabaria por
ser levado por um técnico dos TLP,
que a nossa família conversa que gastasse as quase dez
horas em que estaríamos presos
dentro de um saco, como se para não cabia ali. Mas não no carro, ia repetindo provérbios
nós não fosse uma preciosidade, estando em condições esperançosos, Morte anunciada,
pouco tempo depois da noite em que vida acrescentada.
nos acordou para avisar que o avô
de escolher, os meus Graças ao farnel improvisado que
António, o pai do meu pai, entrara pais agradeceram o levávamos, à parte as breves paragens
no hospital com um volvo nos
intestinos. Para mim, volvo era uma
facto de o senhorio para pôr gasolina, a viagem só foi
interrompida uma vez quando o
marca de carro e a incompreensão não exigir caução meu pai estacionou num restaurante
do que se passava com o meu avô nem fiador, e descuidado de beira de estrada.
distraiu-me da tristeza do meu pai e A hora do almoço já tinha passado há
dos noturnos preparativos que nos
assinaram o contrato muito e o restaurante estava vazio.
poriam de imediato a caminho de de arrendamento Os donos, um casal anafado de meia-
Trás-os-Montes: anos antes, a minha
mãe assustara-me quando eu quase
nessa mesma tarde, -idade, aguçaram-nos o apetite
com a descrição do que podiam
engolira um berlinde, mas o meu avô Uma casa é uma desenrascar na cozinha. Estranharam
não podia ter engolido um carrinho casa, disseram como a nossa paragem ali, a desoras: o meu
de brincar. Foi a minha irmã, com o pai perdido nos seus pensamentos, a
desprezo condescendente dos seus 17
se assim pudessem minha mãe naquele nervoso que lhe
anos, quem me explicou que, naquele esconjurar os quase desata a língua, a minha irmã e eu
contexto, volvo significava um nó
nos intestinos. Creio que foi nesse
dois anos que taciturnas. As palavras do meu pai,
não tanto em resposta à preocupação
momento que soube da existência de vivêramos, enquanto curiosa dos donos do restaurante,
palavras homónimas. retornados, num deslizaram pela sala, um tom de
Quase não conhecia o meu avô. espanto que lhe desconhecia, O meu
Ele tinha vivido em nossa casa,
quarto do Hotel Paris pai está a morrer.
em Luanda, durante um par de Era a primeira vez que a morte se
anos, quando eu ainda não andava metia assim na minha vida. Afinal
na escola, e as imagens que guardo dele terão sido o meu avô não estava apenas doente, ia morrer daí a
inventadas a partir de recorrentes conversas familiares. poucos dias, poucas horas, poucos minutos. O meu pai
Ainda hoje, quando me vê a ler, a minha mãe diz, O pai queria despedir-se dele e havia ainda muito caminho a
do teu pai também estava sempre a ler, lia até os livros fazer. Comemos apressadamente. Deixe lá isso, homem,
de matemática da tua irmã. E eu sou capaz de jurar que disse o dono do restaurante, quando o meu pai fez o
me lembro de o ver sentado na cadeira de tiras verdes, gesto para pedir a conta, Não se atrase. Raramente me
junto à janela, entretido com um livro nas mãos. Ou de cruzei com uma solidariedade generosa e discreta como
ele a querer transformar o nosso bravio quintal africano a dos donos do restaurante. Não há muito que possa ser
numa domesticada horta da Metrópole. Ou ainda a feito por um homem que tem o pai a morrer.
afastar-se, vestido de fato e gravata, para ir ter com a visao@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 7


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
Os incendiários
somos nós
P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo
1

P
ara que servem os avisos e os alertas? Conhecemos o risco, sabemos que ele
De que adianta dizer que se deve está cada vez mais próximo de ser brutal-
escutar a Ciência se, depois, não se mente destruidor e inevitável, mas continua-
levam as suas conclusões a sério? mos a adiar as decisões que precisam de ser
Desde que o IPCC (sigla inglesa de tomadas. Até porque demoramos demasiado
Painel Intergovernamental para as tempo a olhar o problema de frente.
Alterações Climáticas) publicou o Durante anos, por exemplo, sempre que o
seu primeiro relatório, em 1990, as País se via sobressaltado devido aos incên-
emissões de gases com efeito de estufa quase dios florestais, a narrativa pouco se alterava e
duplicaram no planeta. Há mais de três déca- nunca incluía o “pormenor” do aquecimento Usar uma ilustra-
das – desde essa primeira conclusão, consen- global: a “culpa” era sempre da falta de meios ção com um rosto
feminino era uma
sual entre centenas de peritos reunidos pelas para combater as chamas e dos incendiários
hipótese, mas
Nações Unidas – que sabemos tudo o que de criminosos que ateavam o fogo pela calada da
pouco atrativa.
mais importante precisávamos de saber sobre noite, a soldo de interesses obscuros – o que
o aquecimento global e as alterações climáti- até pode ter sido verdade, em alguns casos,
cas. Sabemos, mas nada fizemos para tentar a par de fatores como o gritante desordena-
inverter a situação. mento do território, o despovoamento do
Nesse primeiro relatório, estavam já bem Interior, a falta de planeamento na gestão das

2
explícitas a caracterização e a dimensão do florestas e a ausência de mecanismos eficazes
problema. Com base, como se escrevia então, de proteção civil.
em três “provas robustas”: a temperatura mé- No entanto, quando vemos agora os in-
dia do planeta está a aquecer devido à ativida- cêndios incontroláveis nas nações mais ricas e
de humana e, em consequência disso, o nível desenvolvidas do planeta, onde existem mais
do mar vai subir e vão ser mais frequentes as homens, máquinas e aviões para combater as
ondas de calor. chamas do que em outra parte do globo qual-
Passaram-se 31 anos e o IPCC produziu quer, temos de refrear o argumento da falta
mais cinco relatórios – o último, o sexto, de meios. E devemos, isso sim, procurar os
publicado há dias e que o secretário-geral das “incendiários”, responsáveis por estes crimes,
Nações Unidas, António Guterres, classificou que ameaçam a Natureza, arrasam povoações
como um “alerta vermelho” para a Humani- e matam pessoas. O último relatório do IPCC
dade. Nele, os cientistas acrescentam ainda é muito claro sobre quem tem a culpa dos in- Tentar uma monta-
mais robustez às provas que têm reunido cêndios, mas também das ondas de calor que gem com pedaços
ao longo dos tempos e tentam prever o que provocam secas e inundações: os incendiários de várias fotos?
pode acontecer nos próximos anos, caso se somos nós. Não só persistimos em ignorar os Fica demasiado
adotem ou não medidas para combater o alertas dos cientistas como nos recusamos a confuso.
aquecimento global. Mas dão-nos também, mudar de estilo de vida, protestamos quando
desta vez, outra certeza: a crise climática já se as taxas de carbono fazem aumentar o preço
tornou inevitável e irreversível. E só nos resta dos combustíveis fósseis e privilegiamos o
uma oportunidade, a derradeira – já não para conforto imediato em detrimento do futuro
evitar o pior mas, apenas, para tentar evitar o
pior cenário possível.
sustentável. Pior: permitimos, com a nossa
inação, que o debate político sobre o ambien-
3
Em consciência, ninguém pode manifes- te caísse, tantas vezes, em questões estéreis
tar-se admirado ou surpreendido com isto. e laterais, sem se debruçar, de facto, naquilo
Não só os avisos foram sendo feitos, ao lon- que é essencial mudar na economia e na or-
go dos anos, como também os sinais se tor- ganização da sociedade.
naram cada vez mais eloquentes: secas nunca Agora, diz o IPCC, temos uma década para
vistas, inundações que só deveriam ocorrer tentar impedir o pior cenário possível. Não vai
num século, mas que se repetem numa dé- ser fácil: vamos sofrer com secas e inundações,
cada, incêndios colossais em todas as latitu- ver a nossa orla costeira destruída em muitos
des. E tudo isto com um padrão comum: a locais e os incêndios a imporem a sua lei na
cada ano que passa, vão sendo batidos novos floresta. Vamos assistir ao fim de indústrias mas
O melhor é sele-
recordes de temperatura média em qual- também ao surgimento de outras. E vamos ser
cionar três mulhe-
quer ponto do globo, mas continuam ainda a todos obrigados a pagar mais taxas e impostos
res, de épocas e de
aumentar, globalmente, as emissões de gases em nome do ambiente. É esse o preço a pagar origens diferentes.
com efeito de estufa. pelo incêndio que começámos. rguedes@visao.pt

8 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Mais a Norte
Mais futuro
Ser do Norte é ser uma parte de um todo, mas não uma parte qualquer.
No Norte estão as raízes da nação e pulsa o motor do futuro. Aqui somos mais.
E queremos mais. Mais modernidade. Mais sustentabilidade. Mais solidariedade.
Mais investimento. Mais autonomia. Esta é a marca que queremos construir:
Mais a Norte. A marca que nos dá voz e nos leva mais longe. Para continuarmos
a fazer Portugal e a partilhar o que somos com o mundo.

Veja aqui
a apresentação
da nova imagem
do Norte

COFINANCIADO POR:
Clara Raposo Presidente do ISEG

Há uma noção de bem


comum que acho importante
e que veio para ficar.
Não posso olhar para o meu
negócio de forma isolada,
tenho de pensar no seu
contributo para a globalidade
da economia
NUNO AGUIAR MARCOS BORGA

10 VISÃO 12 AGOSTO 2021


H
Há três anos, Clara Raposo foi a
primeira mulher eleita presidente do
ISEG. Metade desse tempo foi vivida
em pandemia. Semanas depois de
o Instituto Superior de Economia e
Gestão fazer 110 anos, a sua dean fala
sobre os desafios de adaptação que
a Covid-19 trouxe às universidades,
o que espera da recuperação da
A adaptação foi difícil, mas rápida.
Houve muita solidariedade, o ISEG
também é uma escola de causas.
E do lado dos alunos? Conseguiram
retirar o mesmo das aulas à
distância?
Não conseguem tirar o mesmo,
mas tiram outras coisas. Perdeu-se
obviamente a socialização, e isso, para
alunos que entram pela primeira vez
na universidade, é necessariamente
diferente e condiciona muito. A
proximidade física, olhar para o colega
e chamar o professor é mais fácil
em sala de aula do que à distância,
mas consegue-se fazer. E, se calhar,
até temos pessoas que, por falta de
alternativas, estudaram mais e tiveram
mais sucesso. Isto foi no primeiro
confinamento. No primeiro semestre
deste ano letivo já funcionámos
em regime presencial, semana sim,
semana não. Podia vir de máscara…
Como economista, vê com
curiosidade o momento que
estamos a viver, seja a crise
seja a resposta a ela?
Tenho imensa curiosidade sobre como
vamos desembrulhar-nos. Vejo as
dificuldades, mas também os lados
positivos. Houve uma resposta. Na
Europa, quando foi necessário, foram
estabelecidas prioridades. É preciso
paciência. Veremos de onde vem a
imaginação para criar coisas novas,
transformar os negócios… Percebo
a relevância de todo este dinheiro
público para aguentar a economia,
vamos ver o que vai acontecer com ele
e com a iniciativa privada.
O que a surpreendeu mais?
Surpreendeu-me pela positiva
o facto de, apesar de paragens
profundas, não terem faltado bens
essenciais. As cadeias de distribuição
não são perfeitas, mas eles não
economia nacional e também do E aí como correu? faltaram. Conseguiram garantir-se
trabalho que ainda é preciso fazer para Também gostei. Dei aulas seis semanas serviços mínimos. A forma como
garantir uma Economia com maior este ano, para passar pela mesma contabilizamos o desempenho das
diversidade de vozes. “Em muitas experiência, e tenho a dizer que é nossas economias é muito à base
reuniões onde vou, sou a única mulher dificílimo. É extremamente cansativo das transações, da necessidade
ou há poucas mulheres presentes”, e o resultado não é tão bom como de transacionar para demonstrar
sublinha à VISÃO. quando fazemos totalmente online ou valor, mas não podemos esquecer-
Todas as instituições tiveram presencialmente. E também vamos -nos de que há uma base de capital.
de se adaptar à pandemia. aperfeiçoando: ter boas formas de Ao contrário de uma guerra, não
Como correu no ISEG? comunicação digital, prepararmo- houve destruição [desse capital]. A
Foi uma loucura no início. A nos melhor para quando pudermos capacidade produtiva pode não estar
Universidade de Lisboa, e o ISEG, até -escolher… Mas chega uma altura em a ser utilizada, mas percebemos que,
foram dos primeiros a fechar. São que estamos saturados. se quiséssemos, tínhamos os recursos
datas que eu não esqueço. A 10 de Quando regressarmos para nos mantermos à tona. Não para
março de 2020 foi decidido: “Vamos à normalidade, o que é que não sempre, até porque ninguém quer
deixar de funcionar assim.” Tínhamos vai voltar atrás? viver com o Estado a determinar tudo
zero experiência de funcionamento Em cursos com mais estudantes o que pode fazer. Mas há uma noção
online e em três dias aprendemos e internacionais, a possibilidade de de bem comum que acho importante
colocámos tudo a funcionar online. assistir à distância por opção se e que veio para ficar. Não posso olhar
Apesar das preocupações com calhar vai manter-se. Há pessoas que para o meu negócio de forma isolada,
questões de saúde e as dificuldades têm de se deslocar e que assumem tenho de pensar no seu contributo
de alguns alunos em ter os meios que preferem assistir à distância. para a globalidade da economia.
necessários para acompanhar as aulas, Para aulas de grande injeção, muito Durante algum tempo, a economia
os primeiros seis meses foram um expositivas, em que estamos a achava que já sabia tudo.
período de grande transformação. Tive repetir sempre a mesma coisa, há um Eram só certezas.
oportunidade de experimentar coisas conjunto de elementos que podem ser Fomos caminhando para uma
que, de outra maneira, nunca teria preparados com qualidade para que as desvalorização da ação coletiva
conseguido naquela escala. aulas sejam mais um espaço de debate que a pandemia interrompeu?
E que acharia impossível. e de esclarecimento de dúvidas. Isso já Voltou o tema da necessidade
Impossível. As pessoas na está a acontecer e estamos preparados de coordenação das economias.
universidade têm de ser bastante psicologicamente para mudar o ensino As grandes potências mundiais
persuadidas para fazermos as coisas a esse nível. Mas a aula em que se certamente se aperceberam de que
com qualidade. Foi um período de ouve também é importante. Há uma o sistema capitalista atual passou
muita mobilização e comunicação. tendência de querer estimular, de a ser dominado por uma nova
De alteração radical na nossa forma achar que os estudantes, por serem grande potência com uma forma
de comunicar. Foi preciso muita nativos digitais, só têm dez segundos de coordenação centralizada muito
liderança e ir buscar skills que eu não de atenção e tem de ser tudo muito diferente da Europa e dos EUA.
sabia que tinha. Mas acabou por ser rápido e muito participado. Mas a vida Obviamente não estou a dizer que é
muito bem-sucedido. Tínhamos os não é só entretenimento e aprender a preciso um regime não democrático,
meios tecnológicos e nem sabíamos. ouvir é um skill importante. mas é importante que os países

12 AGOSTO 2021 VISÃO 11


democráticos estejam atentos a estes topo. Nos concursos que estamos a
movimentos e que tenham uma forma
Em todas as crises abrir – para professor associado e
de coordenação que garanta a sua da nossa História, catedrático – não vamos discriminar,
competitividade. mas tenho esperança de que as
Vamos entrar agora na fase de tivemos sempre mulheres se candidatem e não fiquem
recuperação, com uma grande
injeção de fundos comunitários.
o problema da sossegadinhas e satisfeitas por serem
professoras auxiliares a vida inteira.
Daqui a dez anos, o que seria fixação da riqueza e Há um problema também de
imprescindível que Portugal não representação mediática? A imagem
deixasse de fazer?
continuamos assim. que temos do economista que vai
Temos de ter cá as pessoas certas É muito importante à televisão é a de um homem mais
e capital. O acesso a fontes de velho.
financiamento é importante, mas que as empresas Identificamos essas figuras, como
temos de fixar quem quer investir não tenham de sair o economista, o opinion maker
e viver aqui. A educação é muito e o grande gestor [com homens].
importante. Pessoas com boas ideias, de Portugal para As mulheres, se calhar, também
formação técnica, mas também crescer são educadas para estarem mais
criatividade, sejam portuguesas ou sossegadas, participam menos do que
de outras nacionalidades. Em todas os rapazes nas aulas, têm mais medo
as crises da nossa História, tivemos de errar e são mais bem-comportadas.
sempre o problema da fixação da Tenho apelado Isso prejudica-as na comunicação.
riqueza e continuamos assim. É aos empregadores Mas tem de se criar o hábito e tem de
muito importante que as empresas haver equilíbrio.
não tenham de sair de Portugal para ouvirem mais E em relação a outro tipo de
para crescer. Temos de fixar centros
de conhecimento. O turismo está
quando entrevistam. diversidade, seja étnica ou
de orientação sexual, é uma
em crise, mas com um País mais As organizações preocupação para as faculdades?
qualificado, as pessoas também podem Sim, é uma preocupação. As pessoas
vir a Portugal para ter experiências
têm de evoluir devem poder ser quem são e serem
interessantes. Não sou pessimista, com as pessoas profissionais. Devemos ser capazes de
temos a possibilidade de o fazer. encaixar qualquer pessoa. Temos de
As nossas expectativas em ensinar a teoria, mas também ensinar
relação ao Plano de Recuperação as pessoas a serem tolerantes. O nosso
e Resiliência estão demasiado lema é “open mind”, porque sentimos
elevadas? que é uma escola muito plural. E nem
Se o plano é desenhado para toda a gente no ISEG vai concordar
compensar a paragem de atividade, mulheres na economia e na gestão. com aquilo que eu estou a dizer,
que sirva também para relançar a Há várias razões, mas, em certa porque há uns ultraconservadores em
economia e fazer investimentos e medida, é porque se cria o hábito de determinadas áreas. Mas temos um
reformas que estavam paradas. Há ser de uma maneira e não de outra. espaço de muita liberdade.
uma grande percentagem do PRR que Em muitas reuniões onde vou, sou a E vê vantagens nessa diversidade
será alocada a investimento público, o única mulher ou há poucas mulheres para o próprio ensino?
que não significa que os privados não presentes. Até na academia. Se calhar, Vejo. A partir do momento em que
sejam envolvidos para o concretizar. nas licenciaturas e nos mestrados partilha com franqueza, temos mais
Mas, além do PRR, há mais dinheiro não temos menos raparigas, mas se coisas para escolher daqui para a
do quadro financeiro plurianual, mas formos para áreas mais específicas, já frente. Se limitarmos o que dizemos
virado para a iniciativa privada. existem. Nas áreas mais quantitativas, sobre nós próprios e sobre o mundo,
Além de ser a primeira mulher há tipicamente mais rapazes. Nos ficamos com um leque mais limitado
presidente do ISEG, foi a primeira a doutoramentos na área de Economia de assuntos para debater. Há imensa
candidatar-se ao lugar. e Gestão também há mais homens do pressão para termos as pessoas work
Fui. Em 110 anos de História. que mulheres, com mais homens no ready. E é importante prepará-las
Identifica um problema de topo da carreira. para o mercado de trabalho, mas
representatividade de género na E o que é que o ISEG e outras não faz sentido esperar que sejam
área económica? faculdades podem fazer, por todas iguais, tendo proveniências e
Identifico. É o que os números nos exemplo, no recrutamento de gostos diferentes. Tenho apelado aos
dizem. Se me perguntar se, quando fui alunos? empregadores para ouvirem mais
estudar, pensava muito no problema, É mais na forma como divulgamos quando entrevistam. As organizações
não, não pensava. Nunca achei que os programas e como tentamos têm de evoluir com as pessoas.
seria prejudicada ou favorecida por atrair mais uns ou outros do que E isso tem mudado?
ser rapariga ou rapaz. Mas temos propriamente com quotas. É o que Há mais recetividade à diferença.
o mesmo número de mulheres e tentamos fazer. Só depois de me Temos de estar preparados para todas
homens em vários setores e, no ter tornado presidente do ISEG é as pessoas. O que só enriquece a
topo das carreiras, há muito menos que me apercebi da diferença no realidade. visao@visao.pt

12 VISÃO 12 AGOSTO 2021


o mundo
trocado por miúdos
a revista que junta pais
e filhos e ajuda os mais
novos a aprender
de forma divertida
Todos os meses, uma nova
edição com notícias escritas a
pensar nas crianças e nos
jovens: Natureza, animais,
ambiente, desporto, aventura e
muitos jogos e passatempos

Nesta
edição
– Animais que batem recordes
– Como fazer slime comestível
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em parques temáticos
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RAIO X

O efeito UNESCO A lista do património mundial aumentou em 34


lugares – selo de qualidade que obriga a compromissos
de preservação e que é alavanca para o turismo

S Ó N I A C A L H E I R O S scalheiros@visao.pt

Belezas de valor excecional


Só em julho a lista de candidaturas apresentadas em 2020 e 2021 foi avaliada pela comissão do Património
Mundial da UNESCO. O resultado são 34 lugares do mundo classificados com “valor universal excecional”,
entre eles o Paseo del Prado e o Parque do Retiro, em Espanha, o jardim tropical Sítio Roberto Burle Marx,
no Brasil, o Farol de Cordouan, em França, os pórticos de Bolonha, em Itália, a ferrovia transiraniana
e o observatório solar pré-histórico Chankillo, no Peru. São agora 1 154 propriedades (897 culturais,
218 naturais e 39 mistas), espalhadas por 167 países-membros, que contam com “o efeito UNESCO”,
uma chancela que traz prestígio, receita no turismo, financiamento público-privado para trabalhos de
restauração e compromissos na sua preservação

NÚMERO DE LUGARES PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE, POR PAÍS


+ de 30 20 a 29 10 a 19 5a9 1a4 0

Farol de Cordouan,
estuário do Gironde, França
52
Lugares em perigo de perder a distinção, incluindo a recém-entrada Roșia Montană Paisagem
Mineira, na Roménia, tal como aconteceu, este ano, à cidade inglesa de Liverpool. É nos
Estados árabes que se situam 40% dos lugares culturais (21) em perigo e, em África, 29% dos
naturais (11) estão em risco. Menos de 9% dos locais ficam em África, apesar de, este ano, oito
mesquitas da Costa do Marfim e de o Parque Nacional Ivindo, no Gabão, terem entrado para a
lista. A tentativa de resolução dos conflitos armados, de erradicar a pobreza extrema e a compra
de vacinas deverão ser agora prioridades ainda maiores nestes países

TOP 21 Países com mais património da Humanidade 27


Itália 58 Reino Unido 34 Austrália 20 Países-membros, de um total de 194, sem
China 56 Rússia 30 Turquia 19 nenhuma inscrição na lista de Património
Alemanha 51 Irão 26 Grécia 18 Mundial da UNESCO, entre eles Bahamas,
França 49 Japão 25 Portugal 17 Butão, Maldivas, Mónaco, São Tomé e Príncipe
Espanha 49 EUA 24 Polónia 17 ou Timor-Leste – lugares do mundo
Índia 40 Brasil 23 República Checa 16 seguramente com interesse cultural
México 35 Canadá 20 Bélgica 15 e muita beleza natural

FONTE UNESCO INFOGRAFIA AR/VISÃO

14 VISÃO 12 AGOSTO 2021


I NTROVE RTI DOS D A V I D M O T TA MEDRONHO SU L FO R A DAS PR AIAS PODCASTS DE HISTÓRIA

PORTEFÓLIO CANINO N E G Ó C I O S D E FA M Í L I A DAN I E L JONAS MOULLINEX

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DIAS ÚTEIS DAS 9H ÀS 19H
7
PONTOS DA SEMANA

POR
SARA BELO LUÍS*
GETTYIMAGES

A CEGUEIRA
Mal comparados, há três grandes assuntos
da chamada atualidade que nos deixam
Por fim, a saúde mental. A propósito do caso
da ginasta americana Simone Biles, o assun-
mais ou menos indiferentes: a crise demo- to veio à baila por causa da pressão a que
gráfica, as alterações climáticas e a saúde estão sujeitos os atletas de alta competição.
mental. Isto é, podem até ser gastos rios Também têm sido publicados vários estudos
de tinta para se escrever sobre eles, podem que alertam para o facto de a solidão – ter-
até ocupar alguns minutos em horário reno fértil para todas as depressões – estar a
nobre televisivo, em bom rigor, pode até aumentar, acelerada, em boa parte, pela cri-
reconhecer-se-lhes a maior das importân- se pandémica. Há dois meses, em entrevista
cias estratégicas. Mas não só não provo- à VISÃO, a economista Noreena Hertz, au-
cam qualquer alarme social como condu- tora do muitíssimo recomendável O Século
zem a uma estranha inação. E, quanto mais da Solidão, dizia: “Temos tendência para
preocupantes são as conclusões dos mui- afirmar que os mais velhos são os mais so-
tos estudos produzidos sobre estes temas, litários, mas a geração em que as pessoas se
quanto mais graves são as declarações que sentem mais sozinhas é a mais nova. Um em
os cientistas e as elites políticas sobre eles cada cinco millennials admite não ter um
proferem, mais difícil é transmitir a men- único amigo.” Já aqui citámos um relatório
sagem. Na era da hiperinformação, como é recente promovido pela Comissão Europeia,
possível tanto ruído? segundo o qual quadruplicou a solidão entre
Apresentados há duas semanas pelo Insti- os jovens da faixa etária 18-35 anos.
tuto Nacional de Estatística, os resultados De certo modo, esta insensibilidade até se
preliminares dos Censos 2021 indicam compreende. Não são questões de curto
que existem menos 214 mil pessoas a viver prazo, os efeitos são difusos e têm sobre-
em Portugal do que há dez anos, o que já tudo impacto nas gerações futuras – como
não acontecia desde os anos 60 do século diz o outro, no futuro, estamos todos
passado, período em que houve, como mortos... Por outro lado, esta tríade de
é sabido, um forte fluxo de emigração. preocupações é própria de sociedades mais
Estes primeiros dados também dizem que desenvolvidas, com democracias estabi-
cerca de metade da população do País está lizadas e, mais crise, menos crise, econo-
concentrada em 31 municípios, localiza- mias prósperas. São inquietações de quem,
dos sobretudo nas áreas metropolitanas de justificam os cientistas políticos, vive em
Lisboa e do Porto. Sobre o novo relatório territórios onde já não há nem guerras nem
do Painel Intergovernamental para as Alte- fomes para resolver. Também é verdade
rações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), que, da Síria ao Sudão do Sul, há todo um
divulgado esta semana em toda a Impren- mundo com outras urgências e prioridades
sa, os cientistas do IPCC escreveram em – e isso, no mínimo, devia envergonhar-
letras garrafais o que, segundo os especia- -nos. Mas é tão estúpido esperar por um
listas, nunca tinha sido escrito com tanta maravilhoso mundo novo pós-Covid-19
assertividade: a Humanidade está a sufocar como desperdiçar a rutura da pandemia
o planeta; sim, a culpa é nossa! para ver o essencial.
*Subdiretora
sbluis@visao.pt

16 VISÃO 12 AGOSTO 2021


2,7
NÚMERO FRASE

C 0 Eu sei que, quando se tem 16 ou 17 anos,


não há ninguém que não se considere
eterno. Eu considerava-me eterno”
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República,
apelando aos jovens para que se vacinem contra a Covid-19,
Aumento de tem- de modo que o próximo ano letivo decorra com normalidade
peratura previsto
até 2100, se as
emissões conti-
nuarem idênticas SAÚDE
às de hoje, segun-
do a projeção do Vacinação dos
relatório do IPCC adolescentes
No novo relatório do Painel
Intergovernamental para
aprovada
as Alterações Climáticas Como diziam as vozes mais
(IPCC, na sigla inglesa), serenas, era tudo uma
estima-se que o limiar do questão de tempo. Dez dias
aquecimento global (mais depois do início da polémica,
1,5 ºC), em comparação a Direção-Geral da Saúde
com a era pré-industrial,

GETTY IMAGES
(DGS) recomendou a vaci-
vai ser atingido em 2030. nação contra a Covid-19 de
O documento deverá ser- todas as crianças e adoles-
vir de base às propostas centes dos 12 aos 15 anos,
que os decisores políticos sem prescrição médica. Em
FRANÇA
levarão à COP26, em conferência de imprensa,
novembro, em Glasgow. “Non”! esta terça, 10, Graça Freitas
justificou a decisão com
Pelo quarto fim de semana consecutivo, os franceses dados recentes da União
saíram à rua em protesto contra as novas medidas Europeia e do Centers for
A F E G A N I S TÃ O
sanitárias, consideradas pelo governo essenciais para Disease Control and Preven-
O regresso travar a pandemia. De um modo geral, os manifestantes
acham que a ideia de um “passe sanitário” constitui uma
tion (CDC), que confirmam
que episódios de miocardites
das trevas violação dos direitos e das liberdades fundamentais. e pericardites são “extre-
Nada impediu, porém, que, nesta segunda, 9, entrasse mamente raros”. Ainda se
Ao mesmo tempo em vigor a obrigatoriedade de apresentação de um desconhece, porém, a data
que o avanço dos certificado de vacinação (PCR ou um teste antigénio para início da vacinação dos
fundamentalistas negativos) para fazer viagens de comboio de longo jovens desta faixa etária
islâmicos no Afeganistão curso e aceder a determinados lugares, como bares, (cerca de 410 mil). Apesar de
se torna evidente, a restaurantes e salas de espetáculos. os efeitos da doença serem
Administração Biden já
pouco graves nos adoles-
tornou claro que, após 20
centes, a sua vacinação tem
anos de conflito, terminou CIÊNCIA como objetivo garantir o
o papel dos Estados
seu bem-estar e “reduzir a
Unidos da América no
território afegão. Em
Esperança contra a malária transmissão do vírus”.
menos de uma semana, A BioNTech – a empresa Europeia e Fundação Bill e
os talibãs conquistaram alemã que, juntamente com Melinda Gates, o projeto,
seis capitais de província: a americana Pfizer, criou a cujos ensaios clínicos
Taliqan, Kunduz, Sari Pul, primeira vacina de mRNA estão previstos para o
Taloqan, Sheberghan e contra a Covid-19 – anunciou final de 2022, pretende
Zaranj. Com a iminência o lançamento de um projeto ainda desenvolver uma
de uma guerra civil entre que visa desenvolver a capacidade de produção
as tropas governamentais primeira vacina contra a sustentável de vacinas em
e as forças talibãs, a malária, também baseada África, continente onde a
FERNANDO NEGREIRA

população não tem para em mRNA. Apoiado pela doença é responsável por
onde ir, receando-se uma Organização Mundial da 409 mil mortos por ano
nova tragédia humanitária. Saúde (OMS), Comissão (dados da OMS, de 2019).

12 AGOSTO 2021 VISÃO 17


HOLOFOTE

Kristina Timanovskaya Dissidente involuntária


TENTARAM FAZÊ-LA
Ordem superior Como tudo se Pedido de asilo Política vs.
precipitou Do aeroporto de Desporto
Era ainda madru-
gada em Tóquio
Kristina manteve
divergências com REGRESSAR A CASA À Tóquio já só saiu,
sob proteção,
Convencida de
que passará os
FORÇA, AINDA ANTES
quando dois
os treinadores para a embaixada próximos tempos
responsáveis da desde que da Polónia no afastada do país
seleção olímpi-
ca bielorrussa
percebeu, ao DA PARTICIPAÇÃO Japão, de onde
rumou depois a
natal, a atleta
recusa ser vista
OLÍMPICA, MAS A
chegar à capital
de atletismo do Japão, que a Varsóvia, com como ativista
entraram no
quarto de Kristina
tinham inscrito,
sem o seu VELOCISTA TEMEU A escala em Viena.
A Polónia, país
política. “Só
expressei o meu
Timanovskaya e
lhe ordenaram
conhecimento,
numa prova que PRISÃO OU O HOSPITAL que acolhe muitos
dos opositores
desacordo face à
decisão do corpo
que fizesse as
malas para voltar
nunca havia
realizado e para a
PSIQUIÁTRICO E de Lukashenko,
ofereceu-lhe asilo
técnico”, lamentou
ao The New York
a casa. Já nem qual não se sentia ESCAPOU DA DITADURA político, estendido Times, apelando

NA BIELORRÚSSIA
poderia disputar preparada – a também ao marido aos compatriotas
as eliminatórias estafeta dos 400 que abandonou a para “deixarem
dos 200 metros, metros. Mal sabia Bielorrússia assim de ter medo de
que dar conta RUI ANTUNES que percebeu falar” se forem
a razão da sua
presença nos dessa insatisfação, o que estava desrespeitados
Jogos Olímpicos. no Instagram, em causa. Em enquanto atletas.
A caminho do iria torná-la
torná la entrevista ao El A Amnistia
uma dissidente País, Kristina Internacional
aeroporto, ao
involuntária. Logo sugeriu que, se contabiliza 30
falar ao telefone
ela que nunca tivesse obedecido mil bielorrussos
com os pais e a se envolvera em à ordem de “detidos em
avó, a velocista manifestações regressar, a violação do seu
de 24 anos soube contra o regime esperavam direito à liberdade
que, na Bielor- comunista “talvez a prisão de reunião
rússia, corria já de Aleksandr ou o hospital pacífica”, desde
a versão de que Lukashenko nem psiquiátrico”, as eleições de
sofria de pertur- emitira sinais acrescentando há um ano. Há
bações mentais. públicos de que “não se sai dois meses, o
Aconselhada a desagrado para facilmente de regime desviou um
não regressar, com o ditador ou qualquer um avião comercial
pediu socorro a mesmo qualquer deles”. para prender
um polícia japo- declaração de o jornalista
nês. “Estou em cariz político. dissidente Roman
perigo”, escreveu Protasevich.
num tradutor Kristina diz seguir
automático na as notícias, mas só
internet. quer prosseguir
com a
carreira:
“Pertenço
ao mundo do
desporto.”

18
INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Quero
Não é a roupa
upa
de cozinha mais
continuar
prática, mas
gosto de cozinhar
zinhar
a não ter
com estilo
ilo
PARIS HILTON ON
fronteiras
A socialite estreou
reou
Cooking With Paris, programa
de culinária na Netflix,
etflix, e a não ter
limites
em q
que usa vestidoss de festa

DANIELA MELCHIOR
Na sua estre
estreia internacional,
a atriz portuguesa
portug de 24 anos
é protagonista
protago do filme
O Esquadrão Suicida, no qual
interpreta Ratcatcher 2,
personagem construída
personag
aproveitando a sua nacionalidade

FRASE DA SEMANA

Acho o #MeToo o uma


idiotice! Se não queres O vírus não nos
estar com alguém,
guém, dá féria
férias, o vírus
recusas e pontoo final!
YUJA WANG G
continu muito
continua
Pianista prodígio compara
ompara
o movimento à Revolução
volução
ativo e temos
Cultural Chinesa
esa
de nos proteger
GOUVEIA E MELO
GOUVE
Coordenad da task force
Coordenador
Não deve haverer um para o plano de vacinação Covid-19,
num apelo para que as pessoas continuem
auxílio de Estado
tado a ser vacinadas, mesmo estando de férias
C H O Q U E F R O N TA L
que é simplesmente
dinheiro colocado
nas empresas para
prolongar a sua
agonia
PEDRO SIZA VIEIRA
ministro da Economia
sobre a TAP, “uma empresa
que é estratégica”

A Câmara de Lisboa As casas são


Acima das opiniões bem pode ser motivo da GNR, estão
pessoais e dos de orgulho para desocupadas
estados de alma qualquer português (...). Pode agora
de cada atleta que simpatize com os retomar as suas
está Portugal padrões de rigor do férias e prosseguir
JOSÉ MANUEL CONSTANTINO
terceiro mundo com a silly season
Presidente do Comité RUI RIO FERNANDO MEDINA
Olímpico de Portugal Líder do PSD sobre Justificou
sobre Nelson Évora ter torcido as portas na Ajuda o presidente da
por um adversário que ficaram a autarquia e candidato
de Pedro Pichardo 1,5 metros do chão nas próximas eleições

Fontes: Twitter, TVI, Jornal i, Observador, The New York Times, RTP
19
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

€1,4 mil
milhões
Valor da fortuna de Rihanna, Carismático Iggy Pop Sensual Rita Ora
estimado pela revista
Forbes. A nova milionária
é agora a cantora mais
bem paga do mundo, numa
lista encabeçada pela
apresentadora Oprah Winfrey.

11,5 milhões
Horas extra trabalhadas
pelos profissionais de saúde
no Serviço Nacional de Saúde
no primeiro semestre de
2021, dois terços de todas
as horas extraordinárias
prestadas em 2020.

2 500
Despedimentos previstos
Provocadora Saweetie

até ao final do ano de


ALESSANDRO SCOTTI/PIRELLI

trabalhadores da banca, mais


de 6% da força de trabalho
do setor, segundo dados da
Associação Portuguesa de
Bancos.

€3,2 milhões
Poderosa Jennifer Hudson Cumplicidade Normani e Bryan Adams

Valor pago pelo empresário


Mário Ferreira por mais
5,16% da Media Capital,
Pirelli, a música nos dias de 2022
O calendário mais famoso do mundo está de volta pela lente do cantor
reforçando para 35,38% a
sua participação na empresa e fotógrafo Bryan Adams. On the Road faz-se com retratos de Cher,
dona da TVI. Iggy Pop ou Rita Ora nos bastidores e na vida de estrada
Para lá dos palcos é o que mostrarão Bohan Phoenix, Kali Uchis e Saweetie

2 100
as folhas do Calendário Pirelli em foram feitos, em junho e julho, em Los
2022. Neste verdadeiro objeto de arte Angeles, na Califórnia, em cenários
iniciado em 1964 e que já vai na 48ª que vão desde as ruas desta grande
Auxiliares de lares de idosos edição, sem publicação em 2021 por metrópole, ao teatro Palace ou o hotel
que ainda não tomaram causa da pandemia, a música será a Chateau Marmont e em Capri, em
uma única dose da vacina protagonista com retratos a preto-e- Itália, no hotel La Scalinatella. O cantor
contra a Covid-19, aos que se branco, mas também a cores, captados e fotógrafo canadiano de 62 anos passa
juntam cerca de mil utentes. por Bryan Adams, a revelar diversas assim a fazer parte da lista de 37 dos
Números que se devem a gerações e estilos, do rock ao rap, mais prestigiados fotógrafos do mundo
alguns surtos ativos e à da pop à eletrónica. Os retratos de que já dispararam para a Pirelli, como
constante entrada de novos Cher, Iggy Pop, Grimes, St. Vincent, Herb Ritts, Annie Leibovitz ou Mario
profissionais. Jennifer Hudson, Normani, Rita Ora, Testino.

20 VISÃO 12 AGOSTO 2021


TRANSIÇÕES

MORTES
A pianista Elisa Lamas foi
também uma das profes-
soras mais carismáticas do
meio musical português,
tendo lecionado no Con-
servatório desde 1952 e
até à reforma. A autora da
Sebenta de Harmonia com
vista à realização do baixo-
-cifrado morreu no dia 3, aos
95 anos.

Fundador da banda Kool


& the Gang, Dennis “Dee
Tee” Thomas era saxofo-
nista, flautista e percussio-
nista, além de mestre de
cerimónias e o estilista do
grupo que cantou Cele-
bration ou Get Down On It.
Morreu no dia 7, com 70
anos, durante o sono.

LIONEL MESSI
Antigo presidente da

Fintado na despedida
Associação Portuguesa
da Indústria Farmacêutica
durante cerca de 12 anos,
João Gomes Esteves foi
também vice-presidente da Estava tudo certo para renovar por mais duas épocas, mas a grave
Confederação Empresarial crise financeira do Barcelona, com dívidas a rondar os €1 200
de Portugal e do Conselho milhões, empurrou-o para fora do clube de toda a vida
Geral da Associação Indus-
trial Portuguesa – Câmara Há um ano, queria sair e ficou. Agora, necessitava para crescer. O talento,
de Comércio e Indústria. O queria ficar e teve de sair... quando esse, nunca lhe faltou. Quando o então
médico-veterinário, comen- a renovação de contrato estava já secretário técnico do clube, Carles
dador da Ordem de Mérito e acordada e todos esperavam que ele Rexach, o observou pela primeira
medalha de ouro do Ministé- continuasse. Estava escrito que o vez, quis tanto contratá-lo que logo
rio da Saúde, morreu no dia
adeus de Lionel Messi ao Barcelona redigiu um contrato simbólico num
5, aos 77 anos.
não poderia ter um guião predefinido. guardanapo, devidamente assinado
Não seria coerente com o legado de 21 por todas as partes.
Natural da Amadora, foi na anos que deixa no clube da Catalunha, Ao fim de três anos, já estava a
presidência da Câmara Mu- um festival de imprevisibilidade estrear-se na equipa principal do
nicipal de Beja, durante 23 constante. Barcelona e, a partir daí, foi sempre a
anos (1982-2005), que José Se os adversários o esperavam de um somar: quatro Ligas dos Campeões,
Manuel Carreira Marques lado, ele fugia para o outro. A cada dez Ligas espanholas, três Mundiais
firmou o seu nome, sempre toque na bola, a cada movimento de Clubes, seis Bolas de Ouro, maior
eleito por coligações lidera- de corpo, o improviso e o engodo goleador da história do clube...
das pelo PCP. Morreu no dia sempre presentes. A capacidade de Mais de duas décadas depois, a
6, aos 77 anos. levar meio mundo a acreditar que ia rutura é justificada pelas dificuldades
fazer uma coisa para, de repente, tirar financeiras que o clube atravessa
um coelho da cartola e executar outra (dívida de €1 200 milhões e prejuízos
O comediante norte-ame- completamente diferente. “Mágico”, de €487 milhões só na última
ricano Trevor Moore, um como lhe chamaram vezes sem conta. temporada). Segundo o presidente
dos fundadores do grupo de Foi sempre assim imprevisível desde Joan Laporta, Messi aceitou baixar o
comédia The Whitest Kids U’ que, em 2000, com apenas 13 anos, salário para metade e o pagamento
Know, conhecido por atuar
abandonou a natal Argentina para em cinco anos dos dois anos de
e produzir séries infantis da
ingressar no Barça. De pequena contrato, mas a Liga não deu aval ao
Disney, morreu no dia 6, aos
41 anos, num acidente de
estatura, partiu à procura de um acordo. Aos 34 anos, o argentino ficou
viação. clube na Europa que lhe pagasse livre para escolher o próximo destino:
o tratamento hormonal de que Paris Saint-Germain. R.A.

12 AGOSTO 2021 VISÃO 21


Israel já
está a dar
PRÓXIMOS CAPÍTULOS a terceira
dose a
maiores de
60 anos

PERISCÓPIO

INÉDITO do Parlamento e ser


Constitucional casada com o ministro
é palco de guerra Eduardo Cabrita. Na
no PSD última segunda-feira,
Vai já em 4-0 o resulta- a ex-ministra despe-
do da batalha jurídica diu-se da política ao
que o Conselho de partilhar no Facebook
Jurisdição e a direção a música Sete Mares,
do PSD decidiram dos Sétima Legião.
levar a cabo junto do Vitorino escreveu que
Tribunal Constitucional esteve indecisa sobre
nos últimos meses, a música a escolher,
com uma clara vitória, mas o texto foi decisi-
até agora, para o órgão vo: “Foram tantas as

GETTY IMAGES
que tem de fazer tormentas que tivemos
respeitar os estatutos de enfrentar. Chegarei,
do partido. A última amor, na volta da
conquista da jurisdição maré. Ai, troquei-te por
laranja, liderada por um mar ao sul.”
VA C I N A S C O V I D - 1 9 Paulo Colaço, foi o
reconhecimento pelo CONVITE

Os dramas da terceira dose


Os surtos e as mais recentes mortes registadas nos
Palácio Ratton de que
o PSD tem de transfe-
rir parte do valor das
quotas dos militantes
Venham a mim
os socialistas!
O militante nº 7783
do PS foi um dos
da concelhia de Sintra que receberam do
lares vêm dar uma nova urgência à discussão sobre candidato da oposição
para a estrutura local
a necessidade de um reforço da vacina – José Silvano, secre- interna, Daniel Adrião,
tário-geral do partido, um convite para
Os idosos com mais de 80 anos foram incluídos na fase 1 do tinha invocado as integrar a sua lista à
plano de vacinação contra a Covid-19, que arrancou no início elevadas despesas das comissão nacional, a
de fevereiro. Um estudo recente publicado pela medRxiv, autárquicas de 2017 apresentar ao próximo
ainda não revisto pelos pares, mostra que a eficácia da vacina realizadas pelo PSD/ congresso do partido,
da Pfizer/BioNTech diminuiu cerca de 6% a cada dois meses Sintra para reter essas marcado para 28 e
após a segunda inoculação. Os dados foram recolhidos entre transferências. Rui Rio 29 deste mês. Adrião
40 mil participantes durante um período de seis meses. ainda poderia lembrar tomou a iniciativa
Extrapolando, se a diminuição permanece no tempo, ao fim de que a direção teve uma inédita de enviar um
18 meses da segunda dose a vacina da Pfizer terá uma eficácia recente conquista, email com o convite
inferior a 50%, o limite internacionalmente aceitável para com o Constitucional a todos os militantes
aprovação de uma vacina contra a Covid-19. Os novos surtos a declarar ilegal o socialistas, entre eles
em lares (56 ativos à hora de fecho castigo aplicado pela este filiado na secção
desta edição) relançam a discussão: Jurisdição ao líder par- das Águas Livres: nada
deve ser administrada uma terceira lamentar Adão Silva, mais nada menos do
NECESSITAMOS dose? A maioria dos 1 200 infetados mas Colaço recorreu que… António Costa,
primeiro-ministro e
para o plenário do
URGENTEMENTE dos lares tem a vacinação completa e
apresenta sintomas ligeiros. O Governo Ratton. Virá aí o 5-0? secretário-geral do
DE MUDAR AS português afasta, para já, esse cenário, DESPEDIDA
PS. Com recetividade
globalmente positiva,
COISAS: [PASSAR] mas outros países já anunciaram que
vão mesmo avançar para a terceira dose,
Ana Paula Vitorino Daniel Adrião só
recebeu uma recusa
DE UMA MAIORIA caso da França, do Reino Unido e da pelos mares ao sul
Ana Paula Vitorino indignada, a de
DE VACINAS Alemanha. Em Israel, os maiores de 60
anos já estão a tomá-la. No entanto,
despediu-se de 25 Tiago Preguiça,
anos de política ativa ex-assessor de
PARA OS PAÍSES o dilema é moral: 80% das doses de para rumar à presi- Costa, recentemente
RICOS PARA vacinas disponíveis foram administradas
nos países mais desenvolvidos. Será
dência da Autoridade nomeado diretor-
geral da Segurança
da Mobilidade e dos
UMA MAIORIA ético continuar a “arrebanhar” vacinas Transportes (AMT), Social, sem concurso.
PARA OS PAÍSES enquanto a maior parte do mundo está
por vacinar? A Organização Mundial da
o regulador do setor,
entre as críticas da
“Agradeço o convite,
mas recuso o mesmo,
POBRES Saúde (OMS) pediu uma moratória das oposição quanto à falta de forma convicta”,
TEDROS terceiras doses até ao final de setembro, de isenção para o car- respondeu Preguiça.
ADHANOM para que pelo menos 10% da população go, perante o facto de Para que fique por
GHEBREYESUS transitar diretamente escrito...
diretor-geral mundial possa ser vacinada.
da OMS Alexandra Correia

22 VISÃO 12 AGOSTO 2021


OPINIÃO

Onde é que
já vimos isto?
P O R C E C Í L I A M E I R E L E S / Deputada do CDS-PP

C
om a chegada do verão, o Governo tem- Que os cidadãos e as empresas portugueses terão
se multiplicado em anúncios de verbas também de pagar.
e investimentos na execução do famoso Aliás, os anúncios não se limitam apenas às
PRR – Plano de Recuperação e Resiliência. verbas que virão da Europa. Ao mesmo tempo
A mensagem subjacente a todos estes que apregoa um dos maiores investimentos
anúncios parece-me bastante simples: de sempre na modernização da Administração
há dinheiro para gastar e o primeiro- Pública, aparentemente a única reforma a que
ministro está com pressa de passar os esse investimento levará é à contração de mais
cheques. Se o dinheiro vai ser gasto da funcionários.
melhor forma, se os investimentos feitos O número de funcionários públicos tem
vão ser reprodutivos e se o setor privado (sobretudo aumentado todos os anos desde 2015, e no primeiro
o mais afetado pela pandemia) vai ser compensado, trimestre deste ano, aproximava-se bastante dos
são perguntas que o Governo prefere que não sejam níveis de 2011. Esta semana, o Governo anunciou já
feitas. Até porque as respostas não uma nova vaga de contratações
seriam animadoras e poderiam na Função Pública e mais
perturbar o clima eleitoralista que Os setores mais dinheiro no próximo Orçamento
se quer instalar. para aumentar os seus salários.
Aliás, a filosofia do Plano é
dinâmicos, o setor É evidente que há áreas
precisamente apostar no setor exportador e as da Administração Pública
público como motor da economia.
É o setor público que fica com
empresas que não carentes de recursos humanos,
mas não é menos óbvio que a
a parte de leão dos fundos, trabalham para o digitalização e, sobretudo, a
relegando a iniciativa privada Estado ficarão para simplificação de procedimentos
para o papel de sócia minoritária (absolutamente necessária)
dos empreendimentos, a navegar
segundo plano. É esta levarão a que algumas
entre o habitual mar de burocracia a visão clientelar que funções se tornem supérfluas.
e procedimentos associados às
candidaturas. É verdade que
o Governo tem para a Também a descentralização,
abundantemente proclamada,
o setor público vai precisar de economia portuguesa. mas ainda longe de ser uma
contratar empresas privadas para Não é um erro novo, realidade, terá necessariamente
realizar muitos dos investimentos, de levar a grandes alterações na
mas isso significa apenas que
mas é um erro trágico Função Pública. Não é possível
mais uma vez, como infelizmente apregoar a passagem de várias
já aconteceu muitas vezes no competências essenciais para
passado, serão as empresas habituadas à contratação a administração local, mas depois querer deixar
pública e adaptadas a terem o Estado como grande intocadas todas as estruturas e grandes direções
cliente que sairão beneficiadas. Os setores mais gerais que geriam essas mesmas competências na
dinâmicos, o setor exportador e as empresas que não administração central.
trabalham para o Estado ficarão para segundo plano. É por tudo isto que me parece que o conjunto
É esta a visão clientelar que o Governo tem para a destes anúncios nada tem que ver com uma visão
economia portuguesa. Não é um erro novo, mas é reformista, nem tão-pouco com uma ideia para
um erro trágico. o País. Eles traduzem sobretudo um objetivo
Sobretudo porque os fundos europeus não eleitoralista e uma tentativa de disfarçar a crise
são eternos e porque, ao contrário da ideia que que vivemos com dinheiro e pacotes de medidas
tem passado, terão de ser pagos com recursos megalómanas. É uma receita que já vi um outro
próprios europeus, cujos contornos não estão governo do Partido Socialista experimentar numa
ainda completamente determinados, mas que se crise anterior. E, lamentavelmente para todos nós e
traduzirão provavelmente em impostos europeus. para Portugal, o final não é nada feliz. visao@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 23


IMAGENS

GOUVES,
ILHA DE EVIA,
GRÉCIA

AKCAYAKA,
TURQUIA

24 VISÃO 12 AGOSTO 2021


UM PLANETA
EM PERIGO
Nestes primeiros dias de agosto, o mundo tem sido
assolado por desastres climáticos, como que a ilustrar as
conclusões do último relatório do IPCC, publicado nesta
semana – os fenómenos extremos são já mais intensos
e frequentes. Mas o futuro será ainda pior

Na segunda-feira, 9, um incêndio que lavrava há três semanas ganhava o


triste estatuto de segundo mais destrutivo de sempre na Califórnia (após
o do ano passado), arrasando quase dois mil quilómetros quadrados de
floresta e destruindo completamente a cidade histórica de Greenville.
Enquanto isso, do outro lado do mundo, também a Turquia e a Grécia
eram assoladas por fogos “alimentados” por temperaturas altíssimas
e que se encontram já entre os mais devastadores das últimas décadas.
Isto poucas semanas depois de a onda de calor inédita, que atravessou
o Noroeste americano, ter levado uma vila no Canadá aos 49,6 ºC
– e de esta ter sido obliterada pelas chamas.
As condições meteorológicas para incêndios desta magnitude podem ser
já uma consequência das alterações climáticas. Um relatório do IPCC
(Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) revelado esta
semana, o mais importante desde 2013, conclui que a atividade humana
tornou os fenómenos climáticos extremos relacionados com o calor
mais intensos e frequentes, devido a um aumento de temperatura nos
últimos 50 anos que não tem rival desde há pelo menos dois milénios.
É uma amostra do que aí vem.
Hoje, a temperatura média global está 1,09 ºC acima da média
GETTY IMAGES

de 1850 a 1900. Daqui a menos de 20 anos, segundo o relatório do IPCC,


deveremos ultrapassar o limite simbólico de 1,5 ºC. L.R.

PEFKI, EVIA,
GRÉCIA

GREENVILLE,
CALIFÓRNIA,
EUA 12 AGOSTO 2021 VISÃO 25
IMAGENS

AMTA,
ÍNDIA

FADILIYAH,
IRAQUE

26 VISÃO 12 AGOSTO 2021


SINAIS DO QUE AÍ VEM

A meteorologia é, por definição, imprevisível e irregular. Mas todos os sinais


apontam para uma imprevisibilidade crescente. As cheias do mês passado
na Europa Central foram um alerta, entretanto acentuado por mais cheias
na Índia. Por outro lado, parte do Norte de África e do Médio Oriente estão
debaixo de vagas de calor e de secas profundas.
São duas faces da mesma moeda e apenas uma pequena parte do que pode
estar ao virar da esquina. Provavelmente, não vamos conseguir impedir
males maiores. De acordo com o mais recente relatório do IPCC (Painel
Intergovernamental para as Alterações Climáticas), algumas alterações
são já irreversíveis. “O aquecimento causado por emissões antropogénicas
desde o período pré-industrial irá persistir, durante séculos ou milénios, e
continuará a causar mais mudanças de longo prazo no sistema climático,
como o aumento do nível do mar, com impactos associados”, lê-se no
estudo. A subida das águas dos oceanos é um dos impactos que levantam
mais preocupações: os cientistas do IPCC não põem de parte um aumento
de dois metros, até ao fim deste século, e de cinco metros até 2150, o que
teria implicações catastróficas para as regiões que vivem ao nível do mar.
Outras das consequências inevitáveis são o degelo do gelo marinho do
Ártico e a contínua acidificação dos oceanos, com efeitos drásticos sobre os
corais. Mas há uma diferença entre o mau e o péssimo. Os investigadores
do IPCC sublinham que cada fração de grau centígrado conta e que a
magnitude dos impactos de um aumento de temperatura de 1,5 ºC será
muito menor do que se o planeta atingir os 2 ºC. “Este relatório é um código
vermelho para a Humanidade”, avisou António Guterres, secretário-geral da
ONU. “Se juntarmos forças agora, podemos evitar a catástrofe climática.
Não temos tempo para atrasos nem espaço para desculpas.” L.R.
GETTY IMAGES

ALTENAHR,
ALEMANHA

CAIRO,
EGITO
12 AGOSTO 2021 VISÃO 27
MULHERES
NA SOMBRA
DA HISTORIA
FORAM MATEMÁTICAS, ESCRITORAS, ARTISTAS,
POLÍTICAS, EMPRESÁRIAS, MAS A HISTÓRIA, ESCRITA
NO MASCULINO, IGNOROU-AS OU TRATOU-AS, SE FOSSE
O CASO, APENAS COMO MULHERES OU FILHAS
DE HOMENS FAMOSOS. NO ENTANTO, FORAM MUITAS AS
QUE NÃO SE RESIGNARAM E PROSSEGUIRAM NA SENDA
DOS SEUS SONHOS, ÀS VEZES EM CONFRONTO ABERTO
COM UMA SOCIEDADE QUE NÃO AS COMPREENDIA
MARIA JOÃO MARTINS
12 AGOSTO 2021 VISÃO 29
C
Chamava-se Judith e era a irmã de William Shakespeare. Tal como
ele, era audaz, inteligente, curiosa e conformava-se pouco com
os limites do pequeno mundo em que nascera. Mas os pais não a
mandaram à escola e a menina teve de estudar às escondidas, sempre
receosa pelo castigo, no pouco tempo que lhe deixavam as tarefas
domésticas nas quais, pelo contrário, se devia mostrar exímia. Mal
chegou à puberdade, arranjaram-lhe o noivo que convinha à família,
mas, em desespero, Judith fugiu de casa e juntou-se a uma trupe de
atores, das muitas que atravessavam então as estradas de Inglaterra,
para recreação de nobres e plebeus. Abandonada pelo amante, que
a engravidara, suicidou-se e foi sepultada sem sacramentos nem
família, à beira de um caminho qualquer. Não chegara a fazer 20 anos.
Chocante? Sim, mesmo que Judith Shakespeare não tenho passado
de uma personagem de ficção criada pela escritora inglesa Virginia
Woolf com o propósito de, através do choque, alertar a comunidade
para os obstáculos colocados à criatividade feminina (no livro de
1929, Um Quarto que seja Seu), a verosimilhança da história faz-nos
pensar em quantas, como Judith, deixámos cair pelo caminho. Umas
Bárbara
Virgínia
A primeira
realizadora
portuguesa
foi “obrigada”
a emigrar
Desde 2015 que a Academia Portu-
guesa de Cinema atribui o Prémio
Bárbara Virgínia às mulheres que o
júri considera autoras de serviços
assinaláveis a esta arte. No entanto,
quem ainda sabe ao certo a razão
deste nome e a quem pertenceu?
Nascida em Lisboa a 15 de novembro
de 1923, Bárbara Virgínia é o nome
artístico de Maria de Lourdes Dias
vezes, de forma tão trágica como esta, outras, num apagamento lento, Costa. Filha da classe média, teve
silencioso e igualmente letal. Aconteceu no mundo da literatura, mas uma educação artística e acesso a
também nos das outras artes, nas ciências, na política ou na vida um grupo de intelectuais e artistas
empresarial. amigos da família, mas, ao contrário
Ao longo da História, nas mais diversas civilizações, as mulheres de muitas das suas contemporâneas,
foram incentivadas a atingir a excelência... no papel de “anjo do lar”. não se contentou com as
Nas artes, quando muito, podiam desempenhar a função de musas habituais prendas de tocar
inspiradoras. Tudo o que as obrigasse a transpor a soleira da porta piano e falar francês.
de casa era coisa subversiva, capaz de as desviar do caminho tido por Aos 22 anos, depois de
adequado. Se insistiam (e foram muitas as que o fizeram), o escrutínio ter sido atriz nos filmes
– o dos contemporâneos e o da posterioridade – tendia a ser Aqui Portugal e Sonho de
implacável. Importava silenciar-lhes os feitos para não se tornarem Amor, ousou ir mais lon-
exemplos. ge; tornando-se a primeira
Mas se o passado é um país distante (às vezes, inatingível), nem portuguesa a realizar uma
por isso o devemos abordar com facilitismo: há que dizer que longa-metragem, Três Dias
nem todas as épocas trataram com negligência a criatividade e sem Deus, onde também
a inteligência femininas. No século XVI, as princesas da Casa de era a atriz principal. Dará tal
Áustria (ou de Habsburgo, dinastia que dominou grande parte da conta de si que, juntamente
Europa durante centenas de anos) eram conhecidas pela sua cultura
e competência política e, como tal, desempenharam cargos de
grande responsabilidade. Foram os casos de Isabel de Portugal, filha Destemida
de D. Manuel I de Portugal, casada com o imperador Carlos V, e da Representou Portugal
filha destes, Joana de Áustria, que haveria de ser mãe do nosso rei na primeira edição do
D. Sebastião. Mulheres que conviveram e acolheram no seu círculo Festival de Cannes e,
à pergunta se temia
figuras com o nível intelectual de Santa Teresa de Ávila ou da pintora
reações negativas por
Sofonisba Anguissola.
se estar a meter num
Mas a História não evolui em linha reta e não encontramos idêntica mundo de homens,
paridade em épocas bem mais recentes. É sabido que, em resposta respondeu: “Temo
a alguém que lhe perguntava sobre as aspirações das mulheres à apenas não chegar ao
realização profissional, Salazar terá respondido: “Nunca encontrei nível artístico que me
uma boa dona de casa que não tivesse muito que fazer.” proponho”
Mostrar-se-ia tão eficaz neste tipo de doutrinação que meio século
de democracia ainda não erradicou totalmente o velho patriarcado.

30 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Catarina Dias
de Aguiar
Uma “intrusa”
no comércio
ultramarino
A história dos Descobrimentos
portugueses é abundante em nomes
de mercadores que terão prosperado
graças ao trato das preciosidades
importadas da Índia, do Brasil ou da
Guiné. Mas se buscarmos nomes
femininos, a tarefa complica-se. E, no
entanto, elas existiram, tão audazes e
empreendedoras como eles. É o caso de
Catarina Dias de Aguiar, de genealogia
e origem incerta como quase tudo o que
respeita ao século XV (pensa-se que terá
nascido no Alentejo, por volta de 1475),
mas sobre a qual subsistem, no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, os registos
das mercês perpétuas concedidas
pelo rei como reconhecimento pelo
seu trabalho como tratadora das suas
aposentadorias. O que significava que
Catarina dava estalagem a viajantes
ilustres, como os membros da Corte,
o que não era coisa pouca nesse final
D.R.

da Idade Média em que, antes de


iniciar viagem, qualquer um, por mais
com Leitão de Barros (com Camões) uma carreira de diseuse de poesia nobre que fosse, lavrava testamento e
integrará, em 1946, a representação nos palcos e na Rádio Tupi e, mais encomendava a alma a Deus.
portuguesa na primeira edição do tarde, com a abertura de um res- Catarina prosperou e investiu no negócio
Festival de Cannes. A mesma onde taurante seu. Morreu em 2015 sem da cortiça, vindo a ganhar a concessão
foram lançados filmes míticos como nunca voltar a Portugal. do seu comércio, já então altamente
Roma, Cidade Aberta, de Roberto Mas não foi esquecida. Em 2017, rentável.
Rossellini; Breve Encontro, de David Luísa Sequeira dedicou-lhe o docu- Viúva, tomar-se-ia de amores por
Lean ou Gilda, de Charles Vidor. mentário Quem é Bárbara Virgínia?, um milionário de origem florentina,
A 18 de agosto de 1946, a poucos apresentado em vários festivais como Bartolomeu Marchioni, também ele
dias da viagem para Cannes, o Diá- o DocLisboa. Movida pelo fascínio no negócio das aposentadorias de
rio de Lisboa perguntaria à jovem pela personalidade desta mulher que, qualidade. Apesar de casado e pai
cineasta se temia reações negativas apesar das contrariedades, nunca se de família, Marchioni, naturalizado
por se estar a “intrometer” num rendeu ao peso do statu quo, Luísa português por mercê de D. João
mundo de homens, ao que, determi- dizia: “Ela queria fazer mais filmes, II, retribuir-lhe-ia o afeto e ambos
nada, ela responderia: “Temo apenas era uma artista multifacetada e com investem no comércio com a Índia.
não chegar ao nível artístico que me um talento enorme. Uma mulher Na frota que larga de Lisboa a 6 de
proponho. O resto são pensamentos muito determinada e com muita abril de 1503, envia uma nau sua, de
negativos, que não alimento.” personalidade, isto num país que nome... Catarina Dias. Os dois viveriam
Mas a família não a apoiava e vivia uma ditadura onde nem todas juntos na então luxuosa Rua Nova dos
o regime não via com bons olhos as mulheres podiam votar, num país Mercadores, em Lisboa, e teriam uma
a ideia de uma mulher cineasta, a que não permitia à mulher viajar filha de nome Maria.
comandar as operações atrás das para o estrangeiro sem autorização Sempre atenta à necessidade de
câmaras. Bárbara ainda conseguiu do marido.” De Três Dias sem Deus, diversificar o negócio, Catarina Dias
realizar um pequeno documentário durante muito tempo a única longa- apostou também no já então muito
proveitoso negócio do luxo, o tal que não
intitulado Aldeia dos Rapazes, mas -metragem portuguesa realizada por
sofre flutuações de procura por maior
já não obterá financiamento para uma mulher, parece restar uma única
que seja a crise. De Itália, importava
uma nova longa-metragem, desta cópia, aliás, danificada, depositada camas com fama de sumptuosas que
feita sobre a vida do poeta António no Arquivo Nacional de Imagens em fariam as delícias dos notáveis do reino.
Nobre. Dececionada, emigra para o Movimento (ANIM). Entre eles, Vasco da Gama, que lhe
Brasil em 1952. Adquire indepen- comprou uma para a sua casa de Sines.
dência económica e constitui família (Lisboa, 1923 – São Paulo,
aos 39 anos, o que acumula com Brasil, 2015) (c.1475 – 1ª metade do XVI)

12 AGOSTO 2021 VISÃO 31


Isabel
da Nóbrega
Companheira de José Saramago,
escritora em nome próprio
“À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria Sedução Em Viver com os Outros, descreve
e renova”, assim escreveu, em dedicatória, que retiraria em o murchar precoce das mulheres casadas:
edições posteriores, José Saramago na abertura de Memo- “Tudo se apagou, para surgir transformada
rial do Convento. A Isabel, assim homenageada (e, a seguir, num ser baço, meio indiferente,
apagada), é Isabel da Nóbrega, com quem o Nobel viveu 16 a quem designas por mosca-morta”
anos, e que parece ter assumido
um papel fundamental no seu ras), tem alguma coisa publicada
crescimento como escritor. Mas no âmbito da ficção e da poesia,
o que raramente se diz é que esta mas ninguém poderia suspeitar
mulher, nascida em Lisboa, a 26 do fulgor futuro. A não ser talvez
de junho de 1925, muito mais do Isabel, que lhe oferece trabalho n’
que uma das mulheres de Sara- A Capital, primeiro para redator
mago, é ela própria uma autora de um suplemento de verão e
de mérito e foi uma incansável depois como cronista. Apaixo-
divulgadora cultural na rádio, nar-se-á e ele corresponde. Co-
televisão e Imprensa. meçarão a viver juntos por esta
Autora de peças de teatro época, depois de ambos terem
como O Filho Pródigo e O Amor posto termo às relações anterio-
Difícil, esta última levada à cena res. Ele com a pintora Ilda Reis,
no palco do Teatro Nacional mãe da filha Violante Saramago, e
D. Maria II, publica, em 1964, a ela com o crítico literário, grande
sua obra mais ambiciosa, o ro- divulgador da obra de Fernando
mance Viver com os Outros, em Pessoa, João Gaspar Simões.
que se debruça, com olhar ci- Assim estiveram nos 16 anos
rúrgico, sobre uma certa vacui- seguintes, durante os quais Sa-
dade da burguesia lisboeta que ramago escreveu, entre outros
ela conhecia tão bem. Será, nesta títulos, Deste Mundo e do Ou-
década de 60, quando já mostra tro; Levantado do Chão; Me-
uma razoável maturidade lite- morial do Convento e O Ano da
rária, que Isabel há de conhecer Morte de Ricardo Reis, até que
José Saramago. Este trabalha na apareceu uma jornalista espa-
editora Estúdios Cor (ao lado da nhola chamada Pilar del Río...
redação do jornal A Capital, de Além de ser uma autora em
D.R.

que ela foi uma das fundado- nome próprio, Isabel da Nóbrega
foi uma mulher intrépida que não
hesitou em causar escândalo na sociedade hipócrita em que
se movia, se o coração lhe falasse mais alto. Assim aconteceu
quando deixou o médico Pedro Abreu Loureiro para viver
com João Gaspar Simões e voltaria a acontecer quando en-
controu José Saramago. O que mais temia era esse murchar
FOI UMA MULHER INTRÉPIDA precoce das mulheres casadas que tão bem descreve em Viver

QUE NÃO HESITOU EM CAUSAR


com os Outros: “Era bonita, lustrosa, elegante, mas tudo o
que nela reluzia (...) tudo se apagou, para surgir transfor-
ESCÂNDALO NA SOCIEDADE mada num ser baço, meio indiferente, a quem designas por
mosca-morta. E não só ela. Quantas outras raparigas tenho
HIPÓCRITA EM QUE SE MOVIA, observado que passam pelo mesmo fenómeno.”
Incapaz de perdoar-lhe o abandono, Gaspar Simões
SE O CORAÇÃO LHE FALASSE escreveria um (mau) romance de vingança, As Mãos e as
Luvas, em que a beleza de Isabel (lendária na Lisboa de
MAIS ALTO então) sai exaltada: “No arsenal das suas seduções, as mais
mortíferas das suas armas são os olhos.”

(n. Lisboa, 26/6/1925)

32 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Religião
Vários são os
historiadores podem ser vistos nos seus aposentos do Convento das
que acreditam Descalças Reais, em Madrid, por ela fundado em 1559.
ter professado Jovem e bela, Joana não voltaria a casar-se. Dedi-
como jesuíta, sob cou-se à política, assumindo, várias vezes, a regência
o pseudónimo de em nome do pai e depois do irmão; à cultura (fazia jus
Mateo Vásquez à reputação de grande capacidade política e elevado

Joana nível intelectual das mulheres da casa da Áustria) e à


religião. Amiga de S. Francisco de Borja (o duque de
Gandia que tomou votos religiosos ante o cadáver de
de Áustria Isabel de Portugal, de que fora o mais fiel cortesão), vá-
rios historiadores acreditam hoje que tenha professado
como jesuíta (o que estava vedado às mulheres) sob o
Muito mais do que a mãe pseudónimo de Mateo Vásquez. Morreu jovem, em 1573,
e está sepultada no seu Mosteiro das Descalças Reais.

de D. Sebastião e irmã de Filipe II (Madrid, 1535 – Escorial, 1573)

O retrato que dela fez Sofonisba Anguissola (a


italiana que fez carreira como pintora na Corte de
Filipe II de Espanha, I de Portugal) evidencia tanto a
austeridade do porte como as parecenças com o seu
único filho, o nosso rei D. Sebastião. Joana de Áustria,
nascida infanta de Espanha, foi princesa herdeira de
Portugal (mais tarde princesa-viúva, título com que
se fez identificar na documentação oficial até à sua
morte). Filha de Isabel de Portugal e do imperador
do Sacro Império Romano-Germânico (e rei de Es-
panha) Carlos V, Joana nasceu em Madrid, a 24 de
junho de 1535, sendo irmã mais nova do futuro Filipe
II de Espanha, I de Portugal.
Aos 16 anos, como peça dos interesses dinásticos,
casou-se com o seu primo, tanto pelo lado mater-
no como paterno, o príncipe herdeiro de Portugal,
D. João de Portugal. Mas se, ao contrário do que
acontecia nestas uniões decididas pela política, o amor
nasceu entre os dois jovens, esse seria engano de alma,
ledo e cego, que a fortuna não deixou durar muito, já que
o príncipe morreria muito cedo, deixando-a nas últimas
semanas de gravidez.
Numa decisão arriscada, os sogros – D. João III e D.Ca-
tarina – impediram-na de tomar conhecimento da notícia,
esperando que a criança nascesse, como veio a acontecer
a 20 de janeiro de 1554, dia de São Sebastião. Em causa
estava já a independência do reino, uma vez que, antes de
D. João Manuel, já tinham morrido todos os oito filhos do
casal real português.
Fosse porque a hostilidade contra a princesa-viúva
crescia na Corte portuguesa, fosse porque o pai, Carlos V,
solicitava a sua presença em Espanha para assumir a re-
gência na sua ausência, D. Joana deixou Portugal e o filho,
D. Sebastião, com quatro meses. Não mais se veriam, embo-
ra, dilacerada pelas saudades, D. Joana enviasse anualmente
D.R.

um pintor a Lisboa para retratar o filho, retratos que hoje

FAZIA JUS À REPUTAÇÃO DE GRANDE


CAPACIDADE POLÍTICA E ELEVADO
NÍVEL INTELECTUAL DAS MULHERES
DA CASA DE ÁUSTRIA
D.R.

Safo de Lesbos
A primeira lírica da História
Dizia de si mesma ser serva da beleza e Platão
considerou-a a décima das musas, favorita de
Zeus. Nascida na ilha de Lesbos no século VII
a.C, é considerada a mãe da poesia clássica
grega, apenas superada, em fama, por Home-
ro. Além do mais sabemos pouco, a não ser o
que nos conta Ovídio: que a sua família viera
da Ásia Menor e que ficou órfã de pai ainda
criança. Começou a escrever na adolescência
e não tardou a ser adorada por uns e detestada
por outros, desencadeou ódios, a ponto de ser
exilada em Siracusa, onde continuou a escrever
e a aumentar a sua fama e influência junto dos
mais novos.
De regresso a Mitilene, Safo fundou um salão
onde ensinava música, dança e canto aos jovens
da nobreza, sendo o amor e a livre expressão
do desejo um dos temas privilegiados pelos
frequentadores dessas sessões sob o signo da
deusa Afrodite.
Como autora, Safo escreveu nove livros de
odes, elegias, hinos e cânticos nupciais, mas
apenas alguns fragmentos chegaram aos nossos
dias, escritos em dialeto eólico. Ousada tanto no
conteúdo como na forma, experimentou vários
tipos de métrica e abordou temas que, até en-
Hipátia
tão, não eram matéria poética. A ela devem-se
os versos sáficos – os decassílabos com tónica
na quarta, oitava e décima sílabas. Foi também
a precursora do lirismo poético, onde o Eu fala
dos seus sentimentos, característica que lhe ren-
de Alexandria
deu o título de “a primeira lírica da História”. O
assunto principal dos seus poemas foi sempre
o amor, tratado com naturalidade, muitas vezes

OS SEUS TRABALHOS CIENTÍFICOS


de forma terna, quase pueril, e noutras com
paixão. A sua morte permanece tão envolta em
mistério como a vida. Para alguns autores, terá
posto fim aos seus dias por causa de um amor VALERAM-LHE RENOME,
não correspondido, para outros, pelo contrário,
terá morrido tranquilamente após uma longa
A ELOQUÊNCIA E CAPACIDADE
vida abençoada por Afrodite. DE ARGUMENTAÇÃO FILOSÓFICA
(Lesbos, Grécia, 630 e 612 a.C. – cerca de 570 a.C.) TORNARAM-NA UMA LENDA
34 VISÃO 12 AGOSTO 2021
Clara
Campoamor
Matemática Pelo voto feminino,
de excelência, exilada pela ditadura
massacrada “Só aprendemos a viver em liberdade
se a tivermos”, escreveu a feminista
espanhola Clara Campoamor, no livro O

pelos cristãos Voto Feminino e Eu: O Meu Pecado Mortal.


Nascida em Madrid, em 1888, no seio de
uma família modesta, conseguiu formar-se
em Direito, em 1924. Iniciou o seu ativismo
Sobre esta mulher, considerada
a primeira matemática da História, cívico em 1925, quando foi nomeada
escreveu-se que o seu espírito, tanto para o Colégio de Advogados. Em 1931,
obteve um lugar no primeiro parlamento
como a sua beleza, iluminavam a
da República Espanhola, a par de Victoria
antiga Alexandria. Filha do matemá-
de Kent. Mas, em clara oposição a esta,
tico Teão, que ensinava no Museu de tornou-se a primeira mulher a dirigir-se
Alexandria, recebeu deste uma educa- à assembleia constituinte em outubro
ção brilhante, muito diversa daquela a desse ano, num discurso que advertia
que as outras mulheres da sua época os membros masculinos da assembleia
tinham acesso. Estudou, além de Ma- para o facto de a exclusão das mulheres
temática, Desenho, Geometria celeste do direito de voto ser uma violação do
e terrestre, astronomia e filosofia. Direito natural. Esta posição foi contestada
Entre todas as disciplinas da Ma- não apenas por políticos e católicos
temática, Hipátia parece ter preferido romanos conservadores, mas por homens
a Geometria, mas os seus trabalhos de esquerda e até mesmo por outras
científicos valeram-lhe renome, a elo- mulheres, como a referida Victoria de
quência e capacidade de argumenta- Kent, que acreditava que as mulheres, se
ção filosófica tornaram-na uma lenda. votassem, seriam influenciadas nas suas
Em Alexandria tornar-se-ia a maior decisões por padres católicos. Quando
representante do sistema neoplató- o seu próprio partido decidiu opor-se
nico, que tinha também escolas em ao sufrágio feminino, Clara não abdicou
Atenas, Roma e na Síria. dos seus princípios: deixou o partido e
Fundou a sua própria escola, continuou a defender o sufrágio como
sobre a qual o filósofo Sinésio, o membro independente da assembleia.
Tudo isto se esfumou em 1936, quando
seu discípulo mais fiel, diria: “Ela
o golpe militar franquista de 1936 a
dispunha de um excecional poder de forçou ao exílio em Buenos Aires. Mais
retórica, uma facilidade de expressão e tarde mudar-se-ia para a Suíça, onde
uma metodologia única.” Infelizmente, acabou os seus dias, em 1972, já que
à atualidade chegaram poucos a ditadura a impediu de voltar à pátria.
testemunhos escritos da sua produção Autora do texto da primeira lei espanho-
além de alguns comentários seus às la sobre o divórcio, deixou várias obras
Tábuas Manuais de Ptolomeu ou dos de pendor feminista como El Derecho
testemunhos deixados por Sinésio, Femenino en España ou La Situación
que a associam aos cálculos essenciais Jurídica de La Mujer Española. Mais
à invenção de um instrumento recentemente, a sua obra e intervenção
de navegação bem conhecido dos social, esquecida durante décadas, tem
portugueses, o astrolábio. sido revista
Hipátia teve um final trágico no como parte integrante da Geração
ano 415 da nossa era. Um dia, ao de 1927, cujos nomes cimeiros foram
dirigir-se para a escola, foi assaltada Federico García Lorca, Luís Buñuel ou
por um grupo de cristãos que a Salvador Dalí.
espancaram até à morte e profanaram (Madrid, 1888 – Lausanne, Suíça, 1972)
o seu cadáver antes de o queimar.
Talentos
Fundadora da sua
Tamanha violência seria denunciada às
própria escola, autoridades locais, mas os criminosos
Hipátia “dispunha ficaram impunes. Por trágica ironia,
de um excecional sabemos, uma vez mais através de
poder de retórica, Sinésio, que Hipátia já manifestara
uma facilidade a sua intenção de se converter ao
de expressão e cristianismo.
uma metodologia
única”, segundo (Alexandria, Egito,
D.R.

o filósofo Sinésio cerca de 360 d.C. – 415 d.C.)

12 AGOSTO 2021 VISÃO 35


Fanny
Mendelssohn
Irmã do compositor
e autora de muitas peças
que lhe são atribuídas
Pensa-se em Mendelssohn e ouvem-
-se mentalmente os acordes solenes
da Marcha Nupcial. E, no entanto,
quantos sabem que além de Felix, o com-
positor, existiu também a sua sua irmã,
Fanny (1805-1847), também ela pianista e
compositora?
Como mulher, Fanny não podia pensar em
exercer uma profissão séria, muito menos
numa área artística. Por isso, recebeu

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aulas de música somente para ser uma
amadora competente e não para ser pro-
fissional como o seu irmão, Felix. Mesmo
assim, Fanny aprendeu rapidamente e
não só se tornou uma pianista de exceção,
como começou a compor ainda menina.
Por sorte, o marido de Fanny, o pintor Wi-
lhelm Hensel, apreciava mais os talentos
de Fanny do que a família de origem, que,
pelo contrário, considerava essas ativi-
dades pouco dignas de uma respeitável
dona de casa burguesa. Hensel organizava
saraus para que o público tomasse conhe-
cimento do trabalho da sua Fanny. Sob o
estímulo dele, publicou várias composi-
Ada Lovelace ções da sua autoria. 
Atualmente, são conhecidas 466 compo-
sições de Fanny, nomeadamente cânticos
Filha de Lord Byron, preferiu no estilo Lied, (muito populares nesta
época) e peças para piano. A sua maior

a poesia dos algoritmos Matemática


Considerada
obra é o Oratorium nach Bildern der Bibel
(“Oratória segundo Imagens da Bíblia”),
de 1831, para coral, orquestra e solistas,
a primeira obra claramente romântica que só viria
O retrato de Ada Byron King, condessa de Lovelace, pintado
programadora a estrear-se em 1987. Por preconceito e
por Alfred Edward Chalon parece dar-nos a ver uma boneca
da História, desconhecimento, não sabemos ao certo
de porcelana, toda ela fragilidade, muito ao gosto da época desenvolveu
romântica, mas, na verdade, estamos perante uma matemática quantas peças de Fanny foram errada-
os algoritmos mente atribuídas ao irmão. Diz a lenda
da maior importância para a história da Ciência e da Tecnologia. que permitiram
Nascida em Inglaterra em 1815, filha do poeta Lord Byron que certo dia, após um concerto, a rainha
à máquina de Vitória, grande apreciadora da obra de
e da sua mulher, Anabella, é reconhecida principalmente Charles Babbage Mendelssohn, terá dito a Felix qual era
por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado computar a obra dele que preferia. Embaraçado,
por uma máquina, a máquina analítica de Charles Babbage. os valores o compositor agradeceu, mas o sorriso
Durante o período em que esteve envolvida com o projeto de funções amarelo ficou-lhe na cara. É que a peça
de Babbage, desenvolveu os algoritmos que permitiriam à matemáticas em causa seria, afinal, uma das muitas
máquina computar os valores de funções matemáticas, além que ele assinara e a irmã compusera. 
de publicar uma coleção de notas sobre a máquina analítica. Por esse trabalho,  
é considerada a primeira programadora da História. (Hamburgo, Alemanha, 1805
Em 1953, mais de 100 anos após a sua morte, essas notas foram – Berlim, Alemanha, 1847)
republicadas. Em consequência disso, a máquina foi reconhecida como
um primeiro modelo de computador e as notas de Lovelace consideradas
a descrição de um computador e um software.
A sua importância para uma área disciplinar em que as mulheres ainda são
minoritárias é tal que se criou o Dia Lovelace, que se celebra na segunda terça-
feira do mês de outubro, com o intuito de festejar as conquistas femininas
na Ciência. Em 1982, uma linguagem de programação estruturada recebeu o
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nome Ada, em homenagem à condessa.

(Londres, 1815 – Marylebone, Reino Unido,1852)

36 VISÃO 12 AGOSTO 2021


A vamp que era um génio Hedy
da tecnologia
O mundo celebrou-a durante décadas como a
estrela de filmes (como Sansão e Dalila) em que a sua
extraordinária beleza era o elemento mais assinalável,
mas esta rapariga, nascida em Viena de Áustria em
Lamarr
1914, e registada com o nome de Hedwig Maria Kessler,
foi muito mais do que Hedy Lamarr, a mulher fatal
de Hollywood. Ainda na Europa, deu que falar como (Viena, 1914 – Flórida, Estados Unidos da América, 2000)
estrela de um filme checoslovaco
intitulado Êxtase, em que a
câmara se detinha sobre o seu
rosto, tomado pelo prazer, durante
uma cena sexual. O marido irado
quis ordenar a destruição de todas
as cópias da película, enquanto a
arrastava para uma sucessão de
jantares e receções com membros
do Partido Nazi. Por isso, quando
Hollywood lhe acenou com um
contrato, a beldade, a quem o
fascismo repugnava, não hesitou
em soltar amarras de uma Europa
cada vez mais sombria.
O seu espírito irrequieto,
porém, não se contentaria em
dar a réplica a galãs como
Clark Gable ou Charles Boyer.
Durante a Segunda Guerra
Mundial, em parceria com
George Antheil, criou um
aparelho de interferência por
rádio para despistar os radares
nazis, isto porque Hedy, ao
realizar um dueto de piano
com George, percebeu que se o
emissor e o recetor mudassem
constantemente de frequência,
os dois poderiam comunicar sem
medo de serem intercetados.
No entanto, a sua invenção
seria rejeitada pelas autoridades
militares (embora classificada
como top secret), o que só seria
revertido em 1962, durante a
chamada Crise dos Mísseis. Em
1997, num mundo já totalmente
diferente, a Ottawa Wireless
Technology comprou-lhe as
patentes e desenvolveu várias
tecnologias de comunicação
concebidas por Hedy, como
as conexões Wi-Fi e CDMA
“Mãe do Wi-Fi”
(Acesso Múltiplo por Divisão
Em 1997, a Ottawa
de Código), e é por esse motivo Wireless Technology
que hoje ela é conhecida como a comprou-lhe
“mãe do telemóvel” ou “mãe do as patentes e
Wi-Fi”. Hedy morreu em 2000, desenvolveu
aos 85 anos, quando o mundo várias tecnologias
começava a suspeitar de que ela de comunicação
fora muito mais poderosa do que concebidas por
a pérfida Dalila. Hedy Lamarr

D.R.
12 AGOSTO 2021 VISÃO 37
A vilã que também foi
produtora, argumentista
e realizadora
A imagem que guardamos dela é a de mulher fatal se conformou com o papel decorativo que os grandes
à moda do cinema clássico norte-americano, em estúdios lhe queriam impor.
filmes como They Drive by Night ou High Sierra, Em 1951, já inscrita na Director’s Guild of America (foi a
nos quais conseguia ser tão dura como George Raft segunda mulher a fazê-lo, após a pioneira Dorothy Arzner),
ou Humphrey Bogart, com quem contracenava. No estreou-se na realização de On Dangerous Ground (em
entanto, esta britânica, nascida no Norte de Londres que entrava como atriz) devido à doença de Nicholas Ray.
em 1918, foi muito mais do que uma estrela de volátil Dois anos depois, tornar-se-ia a primeira mulher a dirigir
fulgor. Na verdade, foi atriz, mas também produtora, um film noir, The Hitch-Hiker. Em 48 anos de carreira,
argumentista, realizadora e uma mulher que nunca fez mais de 59 participações em filmes, tendo dirigido oito
longas-metragens, a maioria nos Estados Unidos
da América, de que se tornou cidadã em 1948.
Dirigiu, escreveu e atuou em vários filmes para
televisão. Nos anos 70, foi a única mulher a dirigir
um episódio da série Twilight Zone, mas também
assinou programas das séries Alfred Hitchcock
Apresenta, Casei com Uma Feiticeira, The Donna
Reed Show, Batman e The Untouchables. Morreu
em 1995 e foi sepultada ao lado de Errol Flynn.

Ida
Lupino

(Londres, 1918 – Los Angeles,


Estados Unidos da América, 1995)

MUITO MAIS DO QUE UMA


ESTRELA DE VOLÁTIL FULGOR,
NUNCA SE CONFORMOU
COM O PAPEL DECORATIVO
QUE OS GRANDES ESTÚDIOS
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LHE QUERIAM IMPOR


Realizadora
Foi a primeira mulher a dirigir um film noir,
The Hitcher-Hiker. Já nos anos 70, fez também
um episódio da série Twilight Zone
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38 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Rosalind
Franklin
Pioneira na descoberta
do ADN, esquecida pelo Nobel
Em que pensaram James Watson, Fran-
cis Crick e Maurice Wilkins quando, em
1962, receberam o Nobel da Medicina pela
descoberta da estrutura de dupla hélice do
ADN? Teriam pensado em Rosalind Franklin,
a pioneira da Biologia Molecular cujo traba-
Dupla hélice
lho de pesquisa de décadas permitira chegar
Com a sua à identificação dessa estrutura? Se o fizeram,
pesquisa sobre a calaram-se e Rosalind, que morrera quatro
identificação da anos antes, vítima de cancro ainda jovem, já
estrutura, James não podia reivindicar justiça.
Watson, Francis Rosalind Elsie Franklin nasceu a 25 de julho
Crick e Maurice de 1920, em Londres, e morreu com apenas 38
Wilkins receberam anos. Em 1938, foi admitida na Universidade
o Nobel da de Cambridge, formou-se em 1941 e, seis anos
Medicina em 1962 mais tarde, concluía o seu trabalho de douto-
ramento em Microestruturas de Carbono e de
Grafite. Nos três anos seguintes, em Paris, de-
dicou os seus estudos à utilização da técnica de
difração de raios X. Em 1951, regressou a Ingla-
terra, como investigadora associada, a convite
do King’s College de Londres, para trabalhar
com ADN. Nos anos que se seguiram, Rosalind D.R.
Franklin orientou o seu próprio grupo de investigação em Birkbeck College, trabalhando no seu pro-
jeto inicial sobre as moléculas de carbono, amadurecendo os seus estudos com o ADN e dedicando
a sua atenção ao estudo dos vírus. Mas a morte impedi-la-ia de prosseguir uma carreira fulgurante.
Em 2015, a contribuição de Franklin para a descoberta da dupla hélice foi levada aos palcos
de Londres na aclamada peça de teatro Photograph 51, com texto de Anna Ziegler e Nicole Kid-
(Londres, 1920 man no principal papel. A propósito da estreia deste espetáculo, o jornal The Guardian lançava
– Londres, 1958) esta questão: Até que ponto a história da Ciência pode ser sexista?

Tina Modotti
Fotógrafa na Guerra Civil de Espanha
Assunta Adelaide de Luigi Modotti nasceu em 1896 em Udine, Itália, numa
família de operários pobres. Aos 17 anos, emigrou para São Francisco, Ca-
lifórnia, onde o pai e uma irmã já estavam em busca do “sonho americano”.
Bonita e carismática, Assunta, que já era Tina, começou a servir de manequim
no atelier de costura onde trabalhava. Em breve, começou a frequentar os
meios artísticos e apareceu, em pequenos papéis, no cinema mudo.
O encontro decisivo, ocorrido pouco depois, dar-se-ia com
Edward Weston, considerado um dos pais da fotografia pura à
americana. Tornaram-se amantes e, com ele, Tina descobriu a
paixão por esta arte ainda à procura de uma linguagem, pelas
viagens e pelo compromisso político. Andou pelo México pós-
-revolucionário, conheceu Diego Rivera e Frida Kahlo, partiu
Sonho
para Moscovo, já como membro do Partido Comunista, e depois
americano
Com Edward
para o coração da Guerra Civil de Espanha, a qual documentou
Weston, tão poderosamente como Robert Capa.
descobriu Tina Modotti morreu aos 45 anos, vitimada por um ata-
a paixão que cardíaco, na Cidade do México, e, aos poucos, apesar das
pela arte da homenagens feitas pelos amigos, a sua obra foi caindo no es-
fotografia quecimento. Só a partir da década de 80, quando o trabalho
das mulheres fotógrafas começou a ser objeto de um renovado
interesse, é que Modotti foi resgatada à penumbra.

(Udine, Itália, 1896 – Cidade do México, 1942)

12 AGOSTO 2021 VISÃO 39


Censurada e
internada por ordem Zelda
do marido, Scott
Fitzgerald
Passou à História como a
Fitzgerald
principal responsável pela escassa
produtividade literária do marido,
Francis Scott Fitzgerald, depois
de uma estreia arrebatadora em (Alabama, Estados Unidos da América, 1900
1920, com a novela Este Lado do – Carolina do Norte, Estados Unidos da América, 1948)
Paraíso. A esta reputação malsã não
será estranho o testemunho sobre a
vida do casal deixado por Hemingway
em Paris é Uma Festa. Mas a verdade
parece ter estado muito distante deste
retrato pouco abonatório.
Nascida em Montgomery, Alaba-
ma, a 24 de julho de 1900, Zelda, um
pouco como a Daisy Buchanan d’O
Grande Gatsby (a obra mais fa-
mosa de Scott Fitzgerald), go-
zava de grande popularidade
graças à sua beleza e viva-
cidade. Quando conheceu
Francis, um rapaz do Mi-
dwest com ambições li-
terárias, os dois, e a vida
de diversão desenfreada
que levavam primeiro
nos Estados Unidos da
América e, mais tarde,
na Europa, tornaram-se
um símbolo dos loucos
anos de 1920.
Mas, como o escritor
sugere em Terna é a Noi-
te, os ressentimentos entre
os dois cônjuges não tardaram
a surgir. Por vontade do marido,
Zelda foi internada durante meses
numa clínica psiquiátrica em Balti-
more. Como se esta reagisse ao trata-
mento com um surto de criatividade,
Francis, cada vez menos seguro das
próprias capacidades, acusou-a de
o ter plagiado. Pegou no manuscrito
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que ela escrevera no hospital e obri-


gou-a a retirar todas as partes que ele
considerava serem da sua lavra. Zelda
Fitzgerald morreu em 1948 num
incêndio, oito anos após a morte do

FRANCIS PEGOU NO MANUSCRITO


marido, vítima de enfarte. Ao longo
de décadas, o talento literário e cria-
tivo de Zelda, alegadamente sufocado
pelo marido mais famoso e seus com- QUE ELA ESCREVERA NO HOSPITAL
panheiros de geração, tem vindo a ser
tratado num vasto conjunto de filmes,
E OBRIGOU-A A RETIRAR TODAS
séries de televisão e livros, o mais
célebre dos quais assinado por Nancy
AS PARTES QUE ELE CONSIDERAVA
Milford – Zelda: A Biography. SEREM DA SUA LAVRA
40 VISÃO 12 AGOSTO 2021
Ethel Smyth
Compositora e sufragista,
esquecida pela posterioridade
Em 1934, um Royal Albert Hall cheio,
presidido pela rainha Mary, celebrou,
com pompa e circunstância, o 75º
aniversário da compositora britânica
Ethel Smyth. No entanto, após a morte,
10 anos depois, a sua obra musical foi
gradualmente caindo no esquecimento e

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tornou-se muito menos falada (e tocada)
do que a de contemporâneos seus, como
Benjamin Britten. 
Ethel, que conseguiu tornar-se composito-
ra, apesar da veemente oposição paterna,
estudara com um professor privado e, mais
tarde, frequentou o Conservatório de Leip-
zig, onde conheceu muitos compositores da
época. Porém, desistiu, após apenas um ano
de estudos, por não estar satisfeita com o
nível de ensino e voltou a estudar com um

Katherine Johnson tutor privado, desta vez Heinrich von Her-


zogenberg. Ao longo da sua carreira, Smyth
compôs cânticos, obras para piano, música de

Um pequeno passo para Neil, câmara, de orquestra, coros e óperas.


Em 1910, Smyth juntou-se à Women’s So-

um grande passo cial and Political Union e parou de compor


música, durante dois anos, para se dedicar
por inteiro à causa do sufrágio universal e

para uma matemática negra Pioneira


do voto feminino. Foi ela a autora do Mar-
ch of the Women, que se tornou o hino do
movimento sufragista. Smyth respondeu
Calculou
Em 2016, o filme de Theodore Melfi, Hidden Figures, ao apelo de Emmeline Pankhurst de partir
trajetórias,
chamou a atenção para o papel desempenhado no pro- janelas para chamar a atenção para a causa
janelas de
grama da exploração espacial da NASA por um grupo de lançamento e acabou por cumprir dois meses de prisão
matemáticas que eram não só mulheres como negras. e caminhos na Holloway.
A mais notável delas, Katherine Johnson, morreu no ano de retorno de Ethel começou a perder a audição em
passado, depois de ter celebrado 101 anos. emergências 1913 e não conseguiu completar mais
Fascinada por Matemática desde criança, esta menina para muitos do que quatro trabalhos, antes de ficar
da Virgínia Ocidental enfrentou um mar de preconcei- voos, incluindo completamente surda, e terminar a sua
tos raciais e sexistas para conseguir estudar ao mais alto as primeiras carreira como compositora. Porém, veio a
nível. Já formada, os primeiros empregos que ela conse- missões interessar-se por literatura e, entre 1919 e
guiu eram para lecionar, mas, numa reunião de família, 1940, publicou dez livros de grande sucesso
alguém terá mencionado que a NACA, mais tarde NASA, (a maioria de teor autobiográfico).
tinha um concurso aberto a mulheres, em especial negras, para o
seu departamento de navegação. Katherine inscreveu-se em 1953 e (Sydcup, Reino Unido, 1858
foi imediatamente aceite. – Woking, Reino Unido, 1944)
O seu primeiro trabalho consistia em ler os dados das caixas-ne-
gras dos aviões, entre outras tarefas matemáticas de grande precisão.
Em breve, os conhecimentos de Katherine em Geometria Analítica
permitir-lhe-iam fazer contribuições decisivas para aeronáutica e
exploração espacial, sobretudo em aplicações da computação na
NASA. Conhecida pela precisão na navegação astronómica infor-
matizada, o seu trabalho de liderança técnica na NASA estendeu-se
durante décadas, em que ela calculava trajetórias, janelas de lança-
mento e caminhos de retorno de emergência para muitos voos de
Projeto Mercury, incluindo as primeiras missões da NASA de John
Glenn, Alan Shepard e o voo triunfal da Apollo 11, em julho de 1969.
A 24 de novembro de 2015, o Presidente Obama incluiu Katherine
na exclusiva lista de 17 norte-americanos que receberam a Medalha
Presidencial da Liberdade, e o seu nome foi referido como exemplo
de mulheres negras pioneiras na Ciência, Tecnologia, Engenharia
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e Matemática.

(Virgínia Ocidental, EUA, 1918 – Virgínia, 2020)

12 AGOSTO 2021 VISÃO 41


José Pacheco Pereira

A direita está
desfasada
da realidade
O antigo dirigente social-democrata
defende que o mais importante da
política portuguesa, no próximo ano,
será saber “quem controla o PSD”.
Considera que o partido ficou castrado,
por muitos anos, pela liderança de Passos
Coelho – em quem não votou. E reflete
sobre a “ignorância atrevida” que tomou
conta do debate, em Portugal.
Quanto à “bazuca” europeia, mostra-se
cético: “Na fila para os dinheiros,
estão os mesmos de sempre...”
FILIPE LUÍS LUÍS BARRA
José Pacheco Pereira Fotografado
nesta segunda-feira, 9, no polo do
Arquivo Ephemera, num armazém
da antiga zona industrial do Barreiro

“Caibo mal apenas na little box [a caixinha] Quer dizer que muitas das
em que me metem.” Esta frase, na nota personalidades do nosso quotidiano,
introdutória do novo livro de José Pacheco em Portugal, hoje proeminentes em
Pereira, 72 anos, Personalia (da Tinta-da- várias áreas, terão apenas uma nota
-China) que é lançado nesta quinta-fei- de pé de página?
ra, 12, resume a ideia de uma obra que Na esmagadora maioria dos casos, nem
contempla alguns textos inéditos e que isso.
recupera, sobretudo, textos publicados, Mas consegue identificá-las?
ao longo do tempo, no blogue Abrupto e Não, isso não consigo.
em jornais, revistas e publicações diversas. Ora, no dia em que morre Mário
“A qualidade de político”, escreve Pacheco Soares, por exemplo, temos a
Pereira, “é, por nenhuma boa razão, avas- consciência de que esta figura não será
saladora e, como tende cada vez mais a ser apenas uma nota de pé de página...
um insulto, com o estado atual da radica- Nesse caso, sim, como nos de Álvaro
lização nas chamadas ‘redes sociais’, serve Cunhal, Sá Carneiro, Ramalho Eanes...
os seus fins e tem publicidade assegurada”. Mas essas são figuras que protagonizam
Por isso, o que encontramos em Persona- mudanças, cortes no tempo, recomeços...
lia é o outro lado do intelectual, a refle- Posso dizer-lhe que já lidei, nos meus
xão transversal ao tempo – e aos tempos trabalhos de investigação, com imensa
históricos –, a recuperação de episódios gente de extrema importância – mas que
sobre figuras universais (embora, algumas desapareceu completamente do mapa.
desconhecidas), em que o real se confunde Quando uma obra de História tem apenas
com a recomposição formatada pela ima- um volume, em mil figuras conhecidas...
ginação do autor. A política está sempre nem uma sobra. Nem uma. Nesse sentido,
lá, claro, mas Pacheco, nestes escritos de sou, também, um especialista do efémero.
breve leitura – 168 páginas –, cose-se, fun- Tornou-se, então, um estudioso do
damentalmente, às paredes da pólis. Num tempo e do que influencia os vários
dos armazéns da antiga zona industrial do tempos...
Barreiro, na Rua 48, onde mantém um dos Exatamente...
polos do imenso Ephemera, o maior arqui- E, nesse sentido, teve a necessidade
vo privado nacional, recebe-nos de mangas de estudar o efémero. É isso que o
arregaçadas, a acarretar livros, documentos arquivo Ephemera guarda?
e pastas, uma das quais reúne boa parte do Nós, na Ephemera, somos “omnívoros”. A
quinto tomo da monumental biografia de nossa atenção quanto ao que é importante
Álvaro Cunhal, que ele há de terminar um para a História vai mudando. Coisas que
dia destes. hoje nos parecem relevantes amanhã estão
No seu livro, declara-se “especialista esquecidas. É um processo de seleção na-
do efémero”. O que é um “especialista tural que muda com as mentalidades, com
do efémero”? as gerações e com os tempos. Por exemplo,
Quem trabalha com a História percebe que quando nós olhamos para a propaganda
muito pouca coisa fica para a História. E política, verificamos a ascensão e a queda
se isso é verdade para a História em geral, de várias das suas formas. O autocolante!
é verdade para a História de Portugal, é Usar um autocolante de um partido ou de
verdade para a História da Literatura, etc. um candidato era símbolo de pertença.
Ou seja: percebe-se que o tempo é um “Eu pertenço a um partido. Eu apoio um
implacável selecionador. E, portanto, a candidato.” Andava-se com autocolantes
maioria das coisas a que atribuímos valor, na lapela, nos transportes públicos. Hoje,
na realidade, não só não tem o valor que mesmo que surja algum autocolante, ele
lhe atribuímos como não deixa especial é retirado quando se sai do grupo (do co-
registo. Isto [o arquivo Ephemera] está mício, da reunião, da manifestação)... Nós,
cheio de coisas que entram nesse catálogo. na Ephemera, estamos a cobrir as cam-
Aliás, no prefácio do meu livro, falo de um panhas autárquicas. Pelos meus cálculos,
autor, o Pigault-Lebrun [transição entre serão, por todo o País, umas sete a oito mil
os séculos XVIII e XIX] que foi um grande candidaturas. E onde antes havia o cartaz,
bestseller e que, hoje, não só ninguém o lê hoje há o outdoor. E os outdoors estão
como está completamente esquecido. E eu cada vez mais parecidos entre si – e não
trabalho com personagens: as principais se distinguem dos outdoors dos agen-
mas também com personagens secun- tes imobiliários da Remax... À distância,
dárias e, até, terciárias. E o que é muito não percebemos a diferença e já temos
relevante para a História está cheio de fotografado, por engano, anúncios da
personagens secundárias e terciárias. Essas Remax! Com uma inovação: agora há uma
personagens, embora não marcando nada tendência para o “engraçadismo”, político;
de decisivo, traduzem o espírito do tempo. aqueles que já são pensados para aparecer

12 AGOSTO 2021 VISÃO 43


naqueles programas de televisão que
se debruçam sobre cartazes insólitos.
E os materiais utilizados na pro-
paganda política também regis-
tam ascensões e quedas?
Sim. Registamos a ascensão e a
queda do plástico. A ascensão atual
Para que anda uma pessoa de mensagens em caixas de medi-
a ler, a estudar, para depois camentos – já tem que ver com o
envelhecimento da população. E a
vir um imbecil qualquer ascensão e a queda de muitos dos
discutir, com estatuto de brindes que são oferecidos também
é interessante e diz-nos muito sobre
igualdade, assuntos sobre o tempo.
os quais não faz a mínima E a evolução do conteúdo
da mensagem política?
ideia? Por que razão uma Veja a campanha presidencial de
Pandemia “No princípio,
pessoa há de mostrar-se navegava-se à vista, e 1986: é o primeiro momento em que
as águas se dividem entre a esquer-
pacífica perante alguém não podia ser de outra
forma. Depois, já com o da e a direita, e não entre outras
que diz umas banalidades conhecimento acumulado, identificações. As pessoas, antes, não
diziam muito se eram de esquerda
e que a gente percebe que o Governo deve ouvir os
especialistas, mas tomar, ou de direita; uns diziam que eram
nunca leu nada? ele, as decisões...” marxistas, outros que eram do CDS,
outros que eram do MRPP... “Eu sou
nacionalista, eu sou socialista, eu sou
social-democrata”... No final, para a
segunda volta, o que sobrou? Mário
Soares e Freitas do Amaral. Esquerda
e direita. É um momento de viragem.
Quase no início do livro, avisa
quanto à sua “arrogância”. Não
será antes falta de paciência?
Falta de paciência para com um
certo ramerrame político, social,
mental?
Sim, talvez seja mesmo falta de
paciência – mas é sobretudo a falta
de paciência para com a “ignorância
atrevida”. Para que é que anda uma
pessoa a estudar, a ler, a trabalhar
em determinadas matérias e aparece
um imbecil qualquer que lê meia
dúzia de coisas, ou passou por um
programa de televisão, e acha que
pode discutir os temas com o mesmo
estatuto de quem se dedicou e de
quem estudou? Isso é um fenómeno
muito presente que as redes sociais
potenciaram.
Essa “ignorância atrevida”
tem ideologia?
É verdade que o grande ativismo da
extrema-direita, nas redes sociais,
nos leva a notar mais o fenóme-
no nesse espectro político. Mas a
“ignorância atrevida” é transversal.
Já discuti com “marxistas” que não
fazem a mínima ideia do que estão
a falar. E o que se há de fazer? Por
que razão uma pessoa que, apesar
de tudo leu aquilo, há de perma-
necer pacífica perante alguém que

44 VISÃO 12 AGOSTO 2021


diz umas banalidades e que a gente trair – como ficou demonstrado
percebe que nunca leu nada? na sua evocação a Otelo.
Coloca-se numa posição elitista? (Ver caixa.) Não se livra de ser
Não, é diferente. Eu tenho o maior As suas críticas à acusado de “traidor”, por uma
respeito pelas pessoas que não tive- deriva de direita, certa direita. Veste esse fato?
ram oportunidade de estudar, que Claro que não! Nem dou muita
não tiveram condições para melhorar mais radical, do importância a essas reações de gente
a sua educação ou a sua cultura... PSD remetem para que só ouve com um ouvido. Nem
Estou a falar de coisas diferentes. a avaliação que isso me preocupa muito. Aliás, eu
Mas, ao mesmo tempo, no texto aprendi mais com os meus insuces-
introdutório do livro, parece ter
faz ao consulado sos políticos. Quando fui presidente
sentido a necessidade de dizer de Pedro Passos da distrital de Lisboa [do PSD], assis-
que não vive na torre de marfim Coelho? ti a coisas inimagináveis, do género
dos intelectuais: privou com os de eu abrir uma porta e cair-me à
pescadores de Espinho, conheceu Em grande parte, foi Passos frente um tipo que estava encostado
o operariado do Ave, testemu- Coelho quem encostou o PSD a escutar. Pessoas que falsificaram
nhou a emigração a salto... à direita. Ele foi o maná que assinaturas, que foram denunciadas
Não é uma necessidade, é uma cons- está na base da radicalização em público, que reconheceram o
tatação de facto. Se for ver, as pessoas da direita portuguesa e colocou que fizeram – e pensa que isso lhes
que, aqui no Barreiro ou em qualquer a captura do PSD no centro da prejudicou a carreira?… Ainda hoje
lugar, vêm falar comigo, notará essa vida política. A tudo isto, não estão lá, sãos e salvos… Quando se
proximidade. Às vezes, as pessoas é estranho o surgimento de veem estas coisas, tem-se uma ideia
têm dificuldade em dizer o nome do projetos de comunicação social do que pode ser a vida política…
programa [Circulatura do Quadrado, que colocam o projeto político à O certo é que muita gente, no
TVI 24], às vezes só apreenderam frente da própria sustentabilida- PSD, se sente incomodada com
uma ideia, mas a gente percebe que de financeira e que fazem o jogo algumas das coisas que o senhor
as pessoas acompanham, se interes- da radicalização política. Ainda diz e escreve.
sam e entendem. Na sua maioria, são que finjam que criticam o Che- O programa do PSD foi muito
empregados de mesa, são trabalha- ga, acabam por seguir os mes- maltratado pela prática do PSD. Mas
dores das obras, são migrantes... E mos temas e a mesma agenda. continua a ser um programa refor-
eles não sentem que a minha atitude Ao mesmo tempo, a crítica ao mista e social-democrata.
seja elitista. Quem o sente são os tais Chega, vinda do ponto de vista Essa crítica dirige-se a Pedro
ignorantes atrevidos... dos setores moderados, e dos Passos Coelho? (Ver caixa.)
Quem não lê não vive, como diz setores moderados da comuni- A direita sempre tem um
no livro – mas os livros serão o cação social, é muito “fofinha”. problema, em Portugal?
suficiente? Serão o principal? Ora, a coisa mais importante O problema da direita é não ter
São bastante. As duas coisas são que pode acontecer na política votos...
importantes: eu aprendi com a vida portuguesa, no próximo ano, é Além desse aspeto, que nome
e com os livros. Os livros não serão o saber quem controla o PSD! tem “o problema”? Rui Rio...
principal. Mas... mas... … Não!
Ao reunir estes textos, que são André Ventura? António Costa?
uma ínfima parte do que vai ano- Não. O problema é estar desfasada
tando, terá seguido um critério?
Na verdade, foi um critério um tanto
preguiçoso. É que eu tenho mui-
to pouco tempo, mas lembrei-me
destes textos para transmitir um lado
mais fora do habitual...
Outros interesses, outros temas
de que o vemos falar menos?
Passos Coelho esteve na
O lado da curiosidade. A curiosidade base da radicalização da
é o que distingue as pessoas.
Abjuração, traição, e o que dis-
direita e colocou a captura
tingue ambos os conceitos, com a do PSD no centro da vida
invocação da história de São Pe-
dro quando nega Cristo, merece a
política. Ao mesmo tempo,
sua reflexão. É esta a sua história? projetos de comunicação
Abjurou o maoismo ou traiu-o?
Eu nunca abjurei o maoismo. Foi
social, à direita, fingem
um período da minha vida e do meu criticar o Chega, mas
percurso...
Agora, muita direita também o
seguem os mesmos temas
acusa de abjurar, quando não e a mesma agenda
12 AGOSTO 2021 VISÃO 45
O Chega, pela sua crescente
O livro “Personalia” expressão eleitoral, afirma que
não haverá alternativa de direita
reúne textos dispersos sem eles. Será assim?
em que Pacheco Com o Chega, a direita radicaliza mas
não cresce. Cresce o Chega à custa
Pereira mostra dos outros, à direita, que se esvaziam.
uma diversidade de Se bem que, se o PSD se radicalizar,
também contém a subida eleitoral do
interesses reveladora Chega...
de um homem Há quem diga, por isso, que o
pior que podia acontecer a André
eminentemente Ventura era o regresso de Passos
curioso. “É o que Coelho…
Talvez seja verdade. E o pior que
distingue as pessoas” podia acontecer a Passos Coelho era
regressar.
Também reflete sobre a
importância da mentira para
o estado de saúde das relações
da realidade. É uma sequência de sociais. Também é importante
atos que traiu a base natural de apoio – e necessária – na política?
do PSD e, mesmo, do centro-direita, Em certos casos, também é necessá-
nomeadamente, durante o período
da Troika, sacrificando as classes
Certa direita ria. Há vários graus que distinguem
os tipos de mentira. Se perguntar
médias-baixas e os mais desfavore- não perdoou a um ministro das Finanças, que
cidos. as suas declarações detenha poderes para isso, se ele vai
Num dos textos recuperados para a propósito da promover uma desvalorização da
este livro, o senhor defende que moeda, ele dirá que não – ainda que
os políticos não têm um poder morte de Otelo... a tenha prevista para o dia seguinte.
significativo... O que eu disse do Otelo, quando Em relação a muitas matérias de
E não têm. Veja o Paulo Morais, por ele morreu, foi o que sempre Estado, é normal que haja omissões
exemplo, e a sua pugna pela “trans- disse. Falei do seu lado irres- e até mentiras. Há mentiras que são
parência”, em que ataca muito os ponsável, das asneiras que fez... funcionais e outras que têm um papel
deputados. Eu tenho uma objeção As pessoas é que só ouviram social; outra coisa é utilizar a mentira
contra aquele discurso. A maioria uma parte. Só ouvem com um como instrumento político.
dos alvos dele não tem nenhum ouvido. No cômputo geral, o No livro, defende que a mentira
poder. E, depois, passa ao largo dos Otelo será recordado pelo quê? está mais difícil, por causa da
que têm. Só uma pessoa que não No cômputo geral, o que fica do tecnologia. Dá como exemplos
percebe o funcionamento da corrup- Otelo é o 25 de Abril! E, portan- instrumentos como o GPS ou
ção em Portugal é que pensa que os to, é muito mais relevante o que as câmaras a gravar em direto.
deputados têm poder. As decisões ele fez no 25 de Abril do que as Mas, por outro lado, a tecnologia
estão noutro nível, nos gabinetes, nas asneiras cometidas posterior- também potencia a difusão
pessoas que certos poderes fáticos mente. Desde o primeiro minuto, mais acelerada da mentira, não
aprovam ou vetam – sobretudo ve- eu disse sempre isto. O Otelo concorda?
tam – porque não são “fiáveis”... escreveu o melhor livro sobre Potencia, mas isso não é culpa da
O regime de “marca PS” acentuou o 25 de Abril. Porquê? É pela tecnologia: é da iliteracia. Na escola,
este ambiente, é mais permeável sua leitura que percebemos por além de aprender a ler, a escrever
aos tais poderes fáticos ou a si- que razão a oposição, em 48 e a contar, seria básico aprender a
tuação é igual ao que sempre foi? anos, não conseguiu derrubar ver televisão e a consultar a internet.
O fenómeno é transversal. O PS, o regime – e eles conseguiram. Se vemos imagens focadas de um
que supostamente está mais distan- Todas as regras conspirativas confronto entre manifestantes e a
te desses poderes, acaba por fazer foram quebradas. Tudo aquilo polícia, é importante termos a noção
mais “favores”. As políticas de direita que era recomendado a quem de que não estamos, necessariamente,
satisfazem mais naturalmente – e tinha atividade política clan- a ver a verdade. Tudo é manipulado,
não pelo regime do “favor” – certo destina ou ilegal para enfren- e as câmaras não alargam o espectro.
tipo de interesses. É verdade que tar o regime, as cautelas, os Do mesmo modo, ao pesquisar na
tivemos o caso de Sócrates – mas, no cuidados, os procedimentos, foi net sobre a vacina contra a Covid-19,
fundo, a corte que o seguia é sempre ignorado. Se quisermos, com podemos atribuir igual valor ao
a mesma de outros governos, quer à aquele manual, aquilo nunca se conhecimento científico e a um site
esquerda quer à direita. Eu não afir- faria, mas eles fizeram. conspirativo. É a diferença entre a
maria que o fenómeno da corrupção Wikipedia e a Enciclopédia Britânica.
se acentua com os socialistas no Eu já vi um trabalho escolar sobre D.
poder. Afonso Henriques em que o milagre

46 VISÃO 12 AGOSTO 2021


“Especialista do efémero”
“Sei demais, vi demais e li demais
para sequer me preocupar
com a ideia de deixar um legado.
Não penso nisso”

de Ourique é atribuído a um óvni.


Consultar a internet não é o mesmo
do que aprender. Aprende-se lendo,
observando e com uma escola que
não esteja completamente desfasada
da realidade, como a que nós temos.
O que se passa hoje com as redes so-
ciais, que têm a fama de democratizar
o acesso ao espaço público, faz-me
lembrar a diferença entre democracia
e demagogia – e os gregos antigos
sabiam bem como distingui-las. A
primeira coisa que temos de perceber
é que são muito parecidas. Têm os
mesmos mecanismos: a opinião da
maioria ou do comum, por exemplo.
A diferença é que a democracia tem
regras e a demagogia não. E assisti-
mos hoje a uma ascensão da dema-
gogia.
A demagogia tanto prospera em
democracia como em ditadura...
Prospera sempre e é um instrumento
político que pode ser usado de forma
mais benigna ou mais maligna.
Mas tem um princípio comum: é
contra as mediações. O jornalismo
de referência, por exemplo, é um
mecanismo de mediação. Ora, com o
crescendo da demagogia, o jornalis-
mo torna-se descartável e indeseja-
do. Há o jornalismo e o “jornalismo
de cidadão”, que não é jornalismo
nenhum.
E a pandemia? A política
submeteu-se à agenda
pandémica? Ou a pandemia é um
assunto “demasiado sério para
ficar nas mãos dos especialistas”?
Sim e não. Lá está: as coisas não são a
preto-e-branco. A condução à vista,
analisada retrospetivamente, parece
caótica. Mas era a única possibili-
dade! Só que, quando se começou a
acumular conhecimento, quando se
percebeu quais eram algumas das
características da ameaça – aí, já não
se pode viver apenas da navegação à
vista. Já é necessário medir os prós e Democracia e demagogia
os contras: abrir ou fechar? Abrir um
bocadinho ou fechar um bocadinho?
são muito parecidas, têm
E, depois, sobrevieram fatores psi- pontos comuns. O que as
cológicos com os quais é difícil lidar,
seja qual for o governo. O cansaço,
separa é que a primeira
por exemplo, e, de novo, a demago- tem regras e a segunda
gia. Nós, Ephemera, acompanhámos
as primeiras manifestações nega-
não. A demagogia rejeita as
cionistas – nem a Imprensa apare- mediações, e o jornalismo
cia – em que se falava das medidas
como pretexto para pôr em causa as
é um mecanismo de
liberdades. Ora, a “liberdade” tem mediação. Por isso,
sido a palavra mais abastardada dos
últimos tempos. Não há liberdade
a demagogia descarta-o
entre usar máscara e não usar. Entre e desvaloriza-o
12 AGOSTO 2021 VISÃO 47
usar cinto de segurança e não usar.
Entre usar capacete na moto e não
usar...
Tudo isso depende de decisões
políticas...
Evidentemente. O poder político
deve ouvir os especialistas e depois
decidir – não deve estar à espera de
que os especialistas decidam por si.
Não tenho quaisquer Num dos pequenos textos do
livro, cita Paul Morand sobre
razões para estar De Gaulle: “Deixar a política
otimista quanto externa nas mãos de um militar
que a pratica aos 77 anos é como
à aplicação destes colocar uma navalha nas mãos
fundos europeus. Paulo Portas?
de um macaco.” Os dinheiros
do Plano de Recuperação e
Nem pela observação ‘‘As pessoas pensam que
Resiliência (PRR) são uma
eu tenho um problema com
do passado nem o Paulo Portas. Não tenho. navalha colocada nas mãos de
alguém?
pela do presente. Os Mas não votaria nele para
Presidente da República. Pela observação do anterior, dos
mesmos de sempre já É daquelas perguntas a que exemplos passados, não tenho
quaisquer razões para estar otimista
se colocaram na fila eu não devia responder…
mas há coisas de que tenho quanto à aplicação do PRR.
do costume... a certeza: não votaria!” E pela observação do presente?

48 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Também não. Se observarmos a lista de Crockett e a batalha de Álamo,
interessados na aplicação dos fun- em São José, contra os mexicanos.
dos, reparamos que estão lá os da fila E diz que já quis ser como aqueles
do costume. Não me refiro apenas a Votou no PSD heróis – mas acrescenta que, en-
empresários ou a sindicatos... Refiro- tretanto, cresceu. O patriotismo
-me à fila do costume, aos mesmos de de Passos Coelho? heroico, a ideia de morrer pela
sempre. Não. E não tenho nenhum Pátria, é uma infantilidade?
A batata portuguesa, que, em problema com Passos Coelho. Não, nada disso. O patriotismo é
contraponto à espanhola, Paulo A discordância era puramente um sentimento nobre, embora nem
Portas levou, uma vez, para um política. Mas afastei-me, por sempre as formas de expressá-lo
debate sobre eleições europeias, livre e espontânea vontade, sejam as melhores. E até acho que
foi pretexto para um dos seus de todos os cargos do PSD temos falta de patriotismo, por
textos mais duros contra Portas. – e cheguei a ser convida- exemplo quando nem pestaneja-
Agora, faz questão de recuperá-lo do... – porque, quando se mos ao ver que o Parlamento, sem
neste livro. Porquê? discorda das políticas, não se qualquer consulta a ninguém e
Não há qualquer intenção escondi- pode lá estar. E o programa, perante a indiferença geral, abdica
da ao recuperar esse texto. Apenas o ADN do PSD foi traído com de poderes de soberania, nomeada-
procurei variar a temática... Aliás, a deslocação à direita, para mente orçamentais [no quadro das
tenho-me cruzado com Paulo Portas, além da Troika, com o ónus regras europeias]. Agora, quando vejo
sempre num clima de grande cor- da austeridade a incidir nos André Ventura ajoelhado aos pés do
dialidade. As pessoas pensam que eu setores da sociedade que o túmulo de D. Afonso Henriques, que,
tenho algum problema pessoal com PSD tinha ajudado a crescer. ainda por cima, nem sequer é santo,
o Paulo Portas... Não é verdade. Não Para mais, com a ideia errada isso incomoda-me... O nacionalismo
tenho. Tenho muito mais, isso, sim, de um conflito entre o privado é uma coisa diferente, é afirmarmos
com os “ignorantes atrevidos” de que e o público, esquecendo que que somos superiores aos outros.
falei antes. Com o Portas, não. Criti- o Estado, em países como O nacionalismo é “a doença in-
quei-o politicamente, apenas. Portugal – ou como a Alema- fantil do patriotismo”?
Votaria nele para Presidente da nha ou como a França! –, tirou Num certo sentido, sim.
República, se ele fosse o candida- muita gente da pobreza. Todo O que um “especialista do efé-
to da direita contra um candidato este discurso nem sequer mero” constrói como legado? O
da esquerda? é o do grande capitalismo, arquivo da Ephemera? A obra
[Sorrisos.] Não! Claro que não! Em- mas o do nosso capitalismo sobre Cunhal? E onde fica um
bora esta seja uma daquelas pergun- selvagem e incompetente. Ora, pensamento próprio? Em livros
tas a que nunca devemos responder assumir esse discurso, como como este? Ou ainda lhe falta
– mas há coisas de que eu tenho a fez Passos Coelho, castrou o escrever “O Livro”?
certeza: não votaria no Paulo Portas PSD. O PSD está castrado, Isso não me compete a mim julgar.
para Presidente da República. por muitos anos. Não trabalho para isso. Se quer que
Tolstói é um escritor recorrente eu lhe diga, nem penso nisso. Como
nestas suas reflexões. Cita-o, no- digo no livro, “sei demais para atribuir
meadamente, para homenagear a qualquer valor a um reconhecimento,
beleza poética do inverno. Parece por um lado, por razões dos tempos,
a sua estação favorita... Ou a iden- cheios de famas de 15 minutos e de
tificação com uma estação do ano salamaleques literários, mas porque
é um estado de espírito? eu próprio não dou muito valor a
Tenho uma grande admiração por tudo isto, porque já vi muita coisa e já
Tolstói. E, sim, num certo sentido, é li muita coisa”. fluis@visao.pt
a minha estação favorita... mas não
tenho estados de espírito!
E assume ter em comum com
Simone de Beauvoir a aversão aos
parabéns cantados em locais pú-
blicos ou aos coraçõezinhos das Coraçõezinhos de São
montras no dia de São Valentim
– e todas essas coisas. Irrita-o, ou
Valentim? Há quem diga
incomoda-o, a exposição pública que eu sou um ‘bruto
da celebração privada?
Há quem diga que sou uma espécie
afetivo’. Mas o que me
de “bruto afetivo”, mas o que me incomoda é mesmo
incomoda é mesmo a pieguice. Esta-
mos inundados de pieguice! Rodea-
a pieguice. Estamos
dos de pieguice por todos os lados! inundados de pieguice!
Conta uma história sobre o
patriotismo – neste caso, ame-
Estamos rodeados de
ricano –, em que entra o David pieguice por todos os lados!
12 AGOSTO 2021 VISÃO 49
MONTE BRANCO
O PAI DE TODOS
OS PROCESSOS
Acusação do Ministério Público sobre o escândalo
financeiro, que começou, há dez anos, numa pequena
loja de câmbios, ainda não viu a luz do dia. PGR tinha
pedido ao DCIAP que, até às férias judiciais, acabasse
com o impasse. Saiba quais os megaprocessos
a que este caso, entretanto, deu origem
NUNO MIGUEL ROPIO

50 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Arranque
Monte Branco teve
início no verão de
2011, na sequência
da investigação ao
BPN e de dados que
se cruzavam com
outra megaoperação
sobre fraude fiscal,
a Operação Furacão.
Ministério Público
detetou que, a
partir de um espaço
comercial na Baixa
de Lisboa, vários
clientes portugueses
fariam lavagem de
grandes quantias
de dinheiro com a
ajuda de um antigo
banqueiro na Suíça,
que as fazia chegar
depois a Portugal via
BPN de Cabo Verde

JOÃO RENDEIRO

ANA BRUN
BRUNO
UNOO

MICHEL CANALS

ÁLVARO SOBRINHO

51
51
DUARTE LIMA
12 AGOSTO 2021 VISÃO
P
Pouco mais de dez anos depois de ter
arrancado aquela que é considerada
uma das maiores investigações sobre
fraude fiscal e branqueamento de ca-
pitais em Portugal, da qual resultaram
muitos outros processos, a Operação
Monte Branco ainda não conhece
uma acusação. Apesar de, no início
deste ano, a Procuradoria-Geral da
República (PGR) ter pedido ao De-
partamento Central de Investigação
e Ação Penal (DCIAP) que finalizasse
este caso até às férias judiciais, a ver-
dade é que várias diligências ainda
Homeland
nd / Caso Duarte Lima

Venda da EDP Renováveis

férias judiciais com um despacho de


acusação, graças a uma alegada mu-
dança na estratégia, que permitisse
e Privatização da REN

onde ricos e poderosos do País acor-


reram, durante seis anos, para alega-
damente lavar dinheiro e fugir ao fisco
através de um esquema internacional
que percorria meio mundo. Já há três
anos, a meta era chegar também às

evitar a prescrição dos crimes. Porém,


os prazos estabelecidos pela lei para
concluir as averiguações continuaram
a ser ultrapassados. A pressão sobre
a equipa de Rosário Teixeira, para a
Operação Marquês

No início de 2021, João Figueiredo


Monteiro, vice-procurador da PGR,
estipulou que Albano Pinto, diretor do
DCIAP desde 2019, tivesse este pro-
cesso concluído até às férias judiciais
estão a ser realizadas – entre as quais, conclusão do processo que envolveu deste ano – que já estão a decorrer
a identificação de quem já pagou o quê o ex-primeiro-ministro José Sócrates, desde meados de julho e se esten-
e quando ao Estado. Também será de não tem deixado grande espaço de dem até ao final do mês de agosto. À
ter em conta que o titular do caso, manobra para evitar o atual cenário. VISÃO, fonte oficial da PGR indicou
o procurador Rosário Teixeira, tem
em mãos, simultaneamente, outros
megaprocessos, como a Operação
Marquês. Caução
Tendo sido originado em junho Ricardo Salgado
de 2011, quando o Ministério Público requereu, há dias,
(MP) passava a pente fino as contas do que lhe sejam
antigo Banco Português de Negócios devolvidos os
(BPN), o Monte Branco já perdeu um 1,5 milhões de euros
dos seus principais arguidos, Fran- que entregou ao Estado
no âmbito da Operação
cisco Canas, que morreu em 2017;
Monte Branco, em
e arrisca-se a não conseguir ir mais
2014, para se manter
além do que foi a Operação Furacão, em liberdade
iniciada em 2005, em que os arguidos
acabaram por regularizar os deveres
fiscais junto da Autoridade Tributária
(AT) com a ajuda do poder político.
Esta nem é, aliás, a primeira vez
que o DCIAP não consegue estabe-
lecer um ponto final na investigação
que teve origem numa pequena loja de
câmbios, na Rua do Ouro, em Lisboa,

52 VISÃO 12 AGOSTO 2021


O que saiu da
Operação Monte
Branco Processo BES / GES
Proc

Caso BES Angola

ter vindo pedir ao juiz de instrução


Processo BPP / João Rendeiro Carlos Alexandre que devolvesse ao
antigo banqueiro os 1,5 milhões de eu-
ros da caução que entregou ao Estado,
no verão de 2014, quando foi detido
pelas suspeitas dos crimes de abuso de
confiança, branqueamento de capitais,
burla e falsificação de documento. Tal
como então, Salgado veio agora alegar
Cartão Vermelho / Luís Filipe Vieira insuficiência financeira, referindo que
com a restituição do montante poderá
saldar o valor que o Estado lhe exige
na Operação Marquês. Em 2014,
Carlos Alexandre aceitou diminuir
para metade a garantia de três milhões
que ainda “prosseguem as diligências” de euros que estabeleceu para que
relativamente à Operação Monte Salgado se mantivesse fora da prisão
Branco. “Atendendo a que, depois de preventiva.
o processo se ter iniciado, houve um Foi ainda a Operação Monte Bran-
Regime Excecional de Regularização PROCURADORIA- co que desencadeou o caso que en-

-GERAL DA REPÚBLICA
Tributária (RERT) ao qual aderiram volve o antigo ministro da Juventude
intervenientes processuais, o Minis- e Desporto de Guterres, Armando

ADMITE QUE
tério Público encontra-se a proceder à Vara, e cujo julgamento arrancou
conferência entre os valores pagos em no início de junho. Este processo
termos fiscais e os valores das opera-
ções financeiras detetadas no âmbito EQUIPA LIDERADA cruza-se com a Operação Marquês,
por estar em causa o alegado bran-
do inquérito”, assegurou, salientando
que “o designado Processo Monte POR ROSÁRIO queamento de capitais, oriundos das
contrapartidas obtidas por Vara ao
Branco deu origem a vários inquéri-
tos, alguns dos quais findos”, como, TEIXEIRA AINDA conseguir, enquanto administrador
da Caixa Geral de Depósitos (CGD),
por exemplo, o que envolveu Duarte
Lima, denominado Homeland, e
ESTÁ A REALIZAR que o banco público financiasse o
empreendimento Vale do Lobo. A la-
que acabou com a condenação do
ex-deputado do PSD a seis anos de
“DILIGÊNCIAS” E A vagem de cerca de um milhão de eu-
ros terá sido feita através do esquema
prisão efetiva. CONFERIR VALORES detetado no Monte Branco. E, nem há

PAGOS AO FISCO POR


O Monte Branco voltou a estar um mês, o ex-presidente do Benfica,
debaixo dos holofotes, nos últimos Luís Filipe Vieira, foi detido por sus-

SUSPEITOS NO CASO
dias, depois de a defesa de Ricardo peitas de burla, abuso de confiança
Salgado, um dos visados neste caso, e branqueamento de capitais, igual-

12 AGOSTO 2021 VISÃO 53


Marquês Julgamento
lgamento
Sócrates foi um Armando
mando Vara
dos visados pelo está
tá neste
Monte Branco, momento
omento a ser
tendo sido julgado
gado pela
desencadeada alegada
egada lavagem
daí a Operação de dinheiro
Marquês, com recebido
cebido no
base em escutas negócio
gócio do
e transações empreendimento
mpreendimento
financeiras de Vale do Lobo

mente numa operação, denominada são do ‘vice’ no sentido de prorrogar


de Cartão Vermelho, resultante do ou não esse prazo dado aos titulares
megaprocesso de 2011. do inquérito”. “É uma competência
A verdade é que a permanência de delegada no ‘vice’ da PGR a decisão
um inquérito em aberto durante mais sobre os prazos previstos no Código
de uma década não tem abonado a Penal, que não são perentórios, mas
favor da Justiça, tendo sido uma das são ordenadores”, explicou à VISÃO,
bandeiras a que se agarraram as de- salientando que “no DCIAP estão
fesas dos arguidos da Operação Mar- muitas investigações complexas ao
quês quando pediram a abertura da mesmo tempo”.
instrução. Os advogados de Sócrates e “Aos olhos do cidadão comum, em
de Carlos Santos Silva questionaram a termos abstratos, podem ser ques-
migração de provas do Monte Branco, tionados os dez anos – um enorme
como escutas, sem ainda terem tido espaço temporal entre o cometimento
acesso às dezenas de volumes de in- de um crime e a reação criminal. Mas
dícios recolhidos no âmbito daquela é importante conhecer-se a complexi-
operação. Refira-se que até os primos
do ex-primeiro-ministro terão sido DEFESAS DE SÓCRATES dade destes casos, os meios que exis-
tem para os investigar, a existência de
escutados pelas autoridades no caso.
Houve ainda outros processos desen-
E DE CARLOS SANTOS muitos processos paralelos e as ques-
tões técnicas muito complicadas que
cadeados pelo Monte Branco que não SILVA CONTESTAM envolvem. É melhor pedir mais prazo

PROVAS NA
deram em nada, como foi o inquérito do que se sustentar uma acusação que
à venda da EDP Renováveis, em que o não seja devidamente alicerçada em

OPERAÇÃO MARQUÊS
primo de Ricardo Salgado, José Maria meios de prova e mais à frente venha
Ricciardi, chegou a ser arguido. a ser objeto de um despacho de não

JUSTIÇA “QUE NÃO É JUSTA” TRANSITADAS DO pronúncia ou de absolvição”, defendeu


Adão Carvalho.
O prazo estabelecido em janeiro, pelo
vice-procurador-geral da República, MONTE BRANCO, Para o advogado Paulo Saragoça da
Matta, este cenário “não é admissível
João Figueiredo Monteiro, surgiu na
sequência de um incidente desenca- POR ESTAREM a nenhum título e só resulta de se
querer fazer megaprocessos, quando
deado pelo filho de Francisco Canas,
Nuno Canas (também ele arguido),
IMPEDIDAS DE ACEDER as demais vezes servem apenas para
recolher prova; não para um processo
para a aceleração processual do in-
quérito.
À INVESTIGAÇÃO em concreto mas para tudo o que dali
possa vir a resultar”.
Segundo Adão Carvalho, presidente E DE CONHECER “Qualquer acusação que venha a

A DIMENSÃO DOS
do Sindicato dos Magistrados do Mi- ser produzida dez anos depois do
nistério Público, o prazo estabelecido início da investigação e 15 anos após

INDÍCIOS RECOLHIDOS
“não se trata de uma decisão defini- os factos não faz sentido. Uma Jus-
tiva. Tem é de existir uma nova deci- tiça tardia não tem nada de justo; é

54 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Recente
Luís Filipe
Vieira foi detido
há cerca de
um mês. Caso
Cartão Vermelho
foi dos últimos
inquéritos
resultantes do
Monte Branco

o próprio Código Penal que manda 2012, para branquear capitais, lesando
atender ao decurso do tempo, desde o Estado em cerca de duas centenas
a prática dos factos até ao julgamen- de milhões de euros em impostos. O
to, como critério da fixação da pena. dinheiro seria entregue por diversas
Esta é mais uma das aberrações do personalidades, entre elas Ricardo
modo de investigação que tem vindo Salgado, a Canas. Este último fazia
a ser seguido pelo DCIAP”, admite o chegar as quantias ao ex-banqueiro
causídico, que não deixa de apontar DESDE JUNHO DE 2011, Michel Canals, sócio da Akoya, uma

OPERAÇÃO MONTE
baterias a quem dirige tais proces- sociedade de gestão de fortunas se-
sos. “A reprodução e a duplicação de diada na Suíça, que as depositava
comportamentos não são censuradas
por nenhuma das entidades a quem BRANCO JÁ PERDEU em bancos de Genebra e de Zurique.
O dinheiro seguia para o BPN de
cumpre fiscalizar o funcionamento
da Justiça. Durar dez ou 15 anos pa- O PRINCIPAL ARGUIDO, Cabo Verde e daí chegava à casa mãe
do banco em Portugal. No final, os
rece ser irrelevante para os conselhos
superiores das magistraturas”, diz FRANCISCO CANAS, montantes eram transferidos para os
clientes de Canas em contas do BCP.
Saragoça da Matta.
QUE FALECEU EM 2017; Mas nem todos, como Duarte
Lima, passavam pela loja criada por
DA PEQUENA LOJA A CABO VERDE
A investigação à alegada atividade
DESENCADEOU VÁRIOS Canas em 1974. Na lista de clientes de
Canals estariam o antigo presidente
criminosa que tinha origem na loja PROCESSOS – COMO A do BES Angola, Álvaro Sobrinho, que

OPERAÇÃO MARQUÊS,
Montenegro, Chaves & C.ª, na Rua do terá usado aquela sociedade através da
Ouro, e se estendia à Suíça e a Cabo advogada Ana Bruno para investir no

QUE ENVOLVE JOSÉ


Verde surgiu a par da investigação Aeroporto de Berlim-Brandenburg,
da queda do BPN e na sequência da sendo que, com base nisso, foi extraí-
Operação Furacão – o primeiro gran-
de inquérito sobre uma megafraude SÓCRATES, OU O CASO da uma certidão para um inquérito ao
que aconteceu naquele banco.
fiscal no País e que acabou esvaziado
pelas amnistias fiscais durante o go- HOMELAND, QUE Com um outro RERT, já em 2012,
durante o governo de Passos Coelho,
verno de José Sócrates, em 2005 e
em 2010. Com o Regime Excecional LEVOU À CONDENAÇÃO houve uma corrida de muitos dos
nomes envolvidos no esquema à re-
de Regularização Tributária (RERT),
na sua maioria, os arguidos da Ope-
DE DUARTE LIMA; gularização da situação fiscal, levando
a AT a recuperar quase três centenas
ração Furacão saldaram junto da AT
as quantias de que eram suspeitos de
E TEVE CERTIDÕES de milhões de euros em impostos.
Ricardo Salgado foi um dos que en-
não terem entregado ao fisco. EXTRAÍDAS PARA tregaram declarações com correções

INQUÉRITOS QUE NÃO


Aquela loja de câmbios, proprie- contributivas, no valor de 8,5 milhões
dade de Francisco Canas, conhecido de euros, e outros tantos têm-no feito

DERAM EM NADA
por “Zé das Medalhas” e entretanto também nos últimos anos, para se li-
falecido, terá servido, entre 2006 e vrarem da Justiça. nropio@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 55


DAVID
ATTENBOROUGH

O senhor
planeta
Viajou pelos lugares mais recônditos da Terra
para recolher imagens e histórias do reino animal.
O mundo rendeu-se às cenas televisivas por si
narradas e, aos 95 anos, o icónico naturalista
continua ativo, hoje num tom de alerta em prol
da proteção da biodiversidade. A propósito de um
novo livro editado em Portugal sobre expedições
realizadas nos anos 50 e 60, traçamos o seu perfil
MARIANA CORREIA DE BARROS

Ilha de Madagáscar A segunda expedição


de Viagens ao Outro Lado do Mundo dá conta
de uma viagem ao “sótão da Natureza”,
diz o próprio Attenborough, que se deslocou
em busca de diferentes espécies de lémures,
existentes apenas neste território

56 VISÃO 12 AGOSTO 2021


O
“Os sifakas eram animais muito crédulos e,
desde que estivessem lá em cima nos ramos e
que nós não fizéssemos movimentos abrup-
tos, conseguíamos aproximar-nos bastante
sem eles fugirem. Filmámo-los dia após dia.
Eles dormiam e passavam a maior parte da
manhã nas florestas de Didierea, lá em cima,
nos caules ondulantes, a banhar-se ao sol e a
comer. Nas horas mais quentes do dia, des-
ciam para um nível mais baixo dos ramos,
onde davam menos nas vistas, e adormeciam
refastelados nas posições mais improváveis
e aparentemente perigosas.” A passagem tem
assinatura de Sir David Attenborough e ima-
Uma vida
dedicada
à Natureza

1926
Nasce em Inglaterra,
um ano antes da
invenção da televisão
que o transformaria
numa lenda. Passa
a infância a recolher
pedras, fósseis e
pequenos animais

1950
Casa-se com a
namorada de sempre
e, dois anos depois,
entra para a BBC, onde
trabalha na produção de
programas, sobretudo
giná-la narrada na sua potente e melodiosa de não ficção
voz tem outro encanto.
O parágrafo em questão versa sobre uma 1954
das espécies de lémures com que o apresen- Parte na primeira
tador de televisão e o seu operador de câ- grande expedição
mara se cruzaram na ilha de Madagáscar, na zoológica para o
década de 60, e faz parte da segunda grande programa Zoo Quest,
expedição zoológica reunida em Viagens ao em que filma e captura
Outro Lado do Mundo – Mais Aventuras de espécies exóticas para
Um Jovem Naturalista, editado, este mês, o zoo de Londres
em português pela Temas e Debates. O livro
reúne três grandes viagens, da Nova Guiné 1979
Estreia da série Life
às Ilhas do Pacífico, de Madagáscar ao Terri-
on Earth, que viria a
tório do Norte da Austrália, num registo de
ser um momento de
grande reportagem e de relato observacional
transformação na
da existência das espécies autóctones desses
sua carreira. Com
lugares recônditos, bem como de busca pelos 13 episódios de 55
hábitos, ritos e vivências dos povos locais. minutos, deu origem
A obra é a continuação do volume, também a mais oito séries
publicado pela mesma editora em Portugal, documentais
em 2019, Aventuras de Um Jovem Naturalis-
ta, e são ambas reedições revistas dos diários 1985
com que Sir David Attenborough sempre se É ordenado cavaleiro
fez acompanhar nas suas missões, no caso pela rainha Isabel II e
para o programa Zoo Quest, o primeiro vê os seus programas
grande leque de viagens ao serviço da BBC. serem vendidos
Entre 1954 e 1964, numa produção conjunta para todo o mundo,
entre a estação de televisão britânica e o zoo tornando-se uma
de Londres, fez uma série de expedições com estrela de televisão
o propósito de filmar os animais e trazer o planetária

58 VISÃO 12 AGOSTO 2021


ENTROU NO MUNDO TELEVISIVO EM
1952, DEPOIS DE TER CHUMBADO
NUMA CANDIDATURA PARA A RÁDIO.
“TELEFONARAM-ME DA BBC, FALARAM-
-ME SOBRE UMA COISA NOVA CHAMADA
‘TELEVISÃO’ E PERGUNTARAM-ME ‘QUERES
VIR CÁ VER SE É INTERESSANTE?’”

Ilhas Fiji máximo de espécies exóticas para Inglaterra


Na povoação de – prática entretanto abandonada. Apenas isso
Lomaloma, onde explica descrições como esta, sobre um dos
Attenborough locais onde o naturalista dormiu em Mada-
participou, com gáscar: “O meu quarto de hotel estava agora
os homens locais, bem recheado. Os camaleões estavam na sa-
num ritual sagrado nefa do cortinado a olhar uns para os outros,
de pesca. Foi um o lagarto-de-gola estava pendurado de pernas
dos destinos para para o ar num pedaço de casca numa caixa
onde viajou só para alta ao lado do tandraka [mamífero peque-
testemunhar no da família dos tenreques], as centopeias
a cerimónia. Em – durante o dia – descansavam numa caixa
baixo, no zoo de grande no outro canto e as jiboias ocupavam
Londres, com
um saco que se mexia devagar do outro lado.”
lémures-de-cauda-
Por um acaso do destino, foi este mesmo
-anelada
programa que obrigou o então jovem produ-
tor David Attenborough a saltar para a frente
das câmaras, quando o representante do jar-
dim zoológico adoeceu e não pôde continuar
a seguir as expedições. “Nessa altura, passava
metade do ano a viajar e a outra metade a
trabalhar na produção de programas na BBC”,
contou numa entrevista do projeto BAFTA
Guru, em maio de 2018. Ele que entrou no
mundo televisivo em 1952, depois de ter
chumbado numa candidatura para a rádio. Até
então, o contacto com o pequeno ecrã limita-
va-se a um único programa televisionado em
casa dos sogros. “Telefonaram-me da BBC,
falaram-me sobre uma coisa nova chamada
‘televisão’ e perguntaram-me ‘queres vir cá
ver se é interessante?’.”

ALMA COLECIONADORA
David Frederik Attenborough nasceu em
Inglaterra, a 8 de maio de 1926, no mesmo
ano da rainha Isabel II, de quem é amigo
próximo. Filho do meio de uma família de
O livro três irmãos – Richard, o mais velho, foi ator
e realizador de cinema –, cresceu em Lei-
A obra Viagens ao
Outro Lado do Mundo
cester, nas imediações da University College,
– Aventuras de Um onde o pai desempenhava funções de reitor.
Jovem Naturalista Apaixonado pela Natureza desde miúdo,
reúne três grandes tem contado, em inúmeras entrevistas, que
expedições feitas as suas paixões incluíam manter tanques de
a territórios quase peixes tropicais, andar de bicicleta sozinho
virgens, num registo à procura de pedras e de fósseis e apanhar
de escrita de viagens pequenos insetos e anfíbios. Hoje, mantém-
e aventura e de relato -se uma alma colecionadora, mas sobretudo
jornalístico de artefactos tribais, de arte, livros e música.

12 AGOSTO 2021 VISÃO 59


Estudou Geologia, Zoologia e Ciências Na-
turais na Universidade de Cambridge, porque
queria compreender o funcionamento do
mundo natural, foi destacado para a Mari-
nha Real Britânica, no Norte de Gales, onde
cumpriu dois anos de serviço, e ainda pas-
sou por uma editora de livros infantis, antes
de se estrear na BBC. Tinha 28 anos quando
começou as suas expedições pelos lugares
mais inacessíveis do planeta, num trabalho,
costuma relembrar, de pouca importância e
com audiências minoritárias. Na altura, in-
vestigava, estudava e filmava as espécies ani-
mais mais desconhecidas do grande público,
e ainda se interessava pelos cultos e tradições
dos povos indígenas. Vários episódios curio-
sos, aliás, são contados com precisão neste
livro. Essa paixão levou-o a ingressar numa
pós-graduação em Antropologia, na década
de 60, que acabou por abandonar por não
conseguir trabalhar em simultâneo na BBC.
Em relação ao êxito futuro dos programas
de História Natural, “era impossível prever o
impacto que iriam ter”, recorda, na conver-
sa do BAFTA Guru. Conhecido pela exímia
capacidade narrativa, passível de deixar os
telespectadores colados ao ecrã a sofrer por
uma iguana prestes a ser atacada por uma ser-
pente, tem também dito aos entrevistadores
que o seu trabalho é facilitado pelas fantásti-
cas características dos animais: imprevisíveis
e espontâneos. “Editar e montar as imagens
é o suficiente para contar bem uma história.
Com o tempo percebi que podia usar cada vez
menos palavras”, admite, na mesma entrevista.
Em 1965, David Attenborough assumiu
o cargo de controlador financeiro na BBC
Two, um canal pensado para fugir à televi-
são mainstream, em que o próprio apostou Nova Guiné com os bebés sentados em cima de mim. Se
em programas como Monty Python’s Flying No vale Jimi, estava alarmado, preocupado ou assustado
Circus, Match of the Day (de análise futebo- assistiu à criação com o facto de a mãe deles se poder virar
lística, ainda no ar) e até na transmissão do de machados de contra mim? Nem por um microssegundo.
Campeonato Mundial de Snooker, uma jogada pedra, trabalhados Foi o maior elogio que podia receber: ser
feita para demonstrar as potencialidades da ao pormenor durante aceite naquela família.” Até porque medo
televisão a cores. Em 1969, tornou-se diretor semanas, à data de animais, só mesmo de ratos. Adotar uma
de programas dos dois canais BBC e, sendo objetos raros postura submissa e discreta, diz também,
já apontado nos bastidores como o próximo sempre foi a melhor opção.
diretor-geral da empresa, em 1973 resignou ao Da coleção Life fizeram parte mais oito sé-
cargo e voltou aos programas de expedições. ries documentais ao longo dos anos seguintes.
A década seguinte foi passada a apresen- The Living Planet, The Trials of Life, The Life
tar pequenos programas e documentários of Mammals são apenas alguns exemplos,
de materiais recolhidos nas suas viagens aos quase todos escritos, apresentados e narrados
territórios virgens da Terra, mas também por David Attenborough.
a preparar aquela que viria a ser a série de Questionado por diversas vezes sobre o
consagração da sua figura: Life on Earth. seu método de trabalho, revela que nunca
Escrita e narrada pelo naturalista, estreou-se se considerou um expert em História Natu-
em janeiro de 1979, foi vendida para mais de ral. “Tornei-me uma espécie de ícone. Sou
100 países e vista, estima-se, por 500 milhões a imagem do que as pessoas pensam que é
de pessoas. No ano passado, em entrevista ao um naturalista. Sou um naturalista razoável,
programa 60 Minutos, falou sobre a mítica mas não sou a maior fonte de informação,
cena do encontro com uma família de gorilas compreensão e conhecimento [do mundo
no Ruanda (vale a pena revê-la no YouTube). vivo]”, confessou ao The Guardian, em 2019.
“Tenho essa imagem muito vívida. Acabou Por isso, sempre se reuniu com os melhores

60 VISÃO 12 AGOSTO 2021


especialistas e cientistas das diferentes áreas,
para investigar e montar os seus documen-
tários. “Não devemos ser surpreendidos no
terreno por espécies novas. Tem de haver
planeamento, trabalho de casa (...). Vamos
atrás de determinadas coisas e ficamos lá
até conseguir o que queremos, mesmo que
os animais acabem por fazer algo diferente”,
explicou na entrevista ao BAFTA Guru.

ÍCONE GLOBAL
Em inúmeros outros programas que con-
tinuou a fazer ao longo dos anos, contribui
não só com a sua inconfundível voz como
também com a ajuda em edição, escrita dos
guiões – quando não são escritos por si, dá-
-lhes o seu cunho pessoal – e investigação,
tendo, devido à idade, reduzido o número de
viagens e de trabalhos.
Considerado um “tesouro nacional” e
uma das mais influentes figuras britânicas,
tornou-se, ao longo dos 70 anos de carreira,
um ícone global. Foi ordenado cavaleiro pela
rainha, em 1985, tem mais de 15 espécies ba-
tizadas com o seu nome, como a planta car-
nívora Nepenthes attenboroughii ou a aranha
caribenha Spintharus davidattenboroughi,
recebe em média 40 cartas por dia, muitas de
crianças, e nunca tirou a carta de condução.
Fez televisão a preto-e-branco, a cores, com
gravadores de fita e material técnico capaz de
ocupar as costas de 40 carregadores nas via-
gens entre aldeias, como relata em Viagens
ao Outro Lado do Mundo, mas adaptou-se
e soube tirar proveito das possibilidades das
novas tecnologias. Basta ver os últimos traba-
lhos em streaming, como a série Our Planet.
Nas últimas duas décadas, foi alvo de al-
guma controvérsia por se manter à parte do
tema das alterações climáticas. Em 2017, com
a estreia de Blue Planet II, sobre o tópico da
poluição dos mares, o discurso modificou-
-se, mas sempre na perspetiva de proteger
o mundo animal, admitindo que o aumento

FOI ORDENADO CAVALEIRO PELA


da temperatura da Terra e a acidificação dos
oceanos estão a destruir o planeta. “Em última

RAINHA EM 1985, TEM MAIS DE 15


análise, dependemos do mundo natural para
toda a comida que pomos na boca e todo o ar

ESPÉCIES BATIZADAS COM O SEU que respiramos”, disse no 60 Minutos.


Em outubro de 2020, a Netflix lançou o
NOME, COMO A PLANTA CARNÍVORA documentário David Attenborough: A Life on
Our Planet, um filme em tom de chamada de
“NEPENTHES ATTENBOROUGHII” OU atenção para os perigos da perda de locais
selvagens e da biodiversidade, com várias
A ARANHA CARIBENHA “SPINTHARUS soluções para repovoar a Terra de espécies
vivas. Nas semanas anteriores à estreia, abriu
DAVIDATTENBOROUGHI”, RECEBE EM uma conta de Instagram, ainda disponível,
mas inativa, onde postou regularmente
MÉDIA 40 CARTAS POR DIA, MUITAS alguns destes avisos e respostas, naquele

DE CRIANÇAS, E NUNCA TIROU


seu tom franco e sério, para um total de 6,1
milhões de seguidores. Afinal, poucos têm

A CARTA DE CONDUÇÃO
observado o mundo natural – e o seu declí-
nio – como ele. visao@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 61


GETTY IMAGES
O PREÇO
A Comissão Europeia preparou
um imenso pacote de propostas
legislativas para cumprir o objetivo
de reduzir, até 2030, 55%

DE UM
das emissões. Estas medidas vão ter
um impacto profundo na vida dos europeus.
Os combustíveis ficarão (ainda) mais caros?
E as viagens de avião? Os novos impostos
sobre os transportes marítimos farão

MUNDO
aumentar o preço dos produtos importados?
E há compensações para quem
tem menores rendimentos?
Tudo o que precisa de saber
sobre as taxas verdes que aí

MELHOR
vêm. O custo da transição
é alto, mas o de não fazer
nada é mais alto ainda,
conclui o relatório do IPCC
publicado esta semana
LUÍS RIBEIRO
C
do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC) publica-
do esta semana mostra que a inação
resultaria num aumento de tempe-
ratura potencialmente catastrófico. O
documento de 42 páginas conclui, por
exemplo, que a atmosfera já está hoje
1,09 ºC acima da média da segunda
metade do século XIX e que as ondas
de calor extremas são mais frequentes
e intensas por causa disso. E uma su-
bida de 1,5 ºC (o limite ideal do Acordo
de Paris) será quase certamente atin-
gida até 2040. Vamos falhar as metas,
sim, mas sem medidas de redução de
emissões, como o pacote Fit for 55, o
futuro será ainda mais sombrio.

A GASOLINA E O GASÓLEO
VÃO CONTINUAR
A AUMENTAR?
De um modo geral, na União Europeia
(UE), sim. Entre as medidas mais im-
portantes do Fit for 55 está a inclusão
dos setores do transporte rodoviário e
Chama-se “Fit for 55” (aptos para 55), dos edifícios num mercado autónomo
numa referência ao corte de 55% das de licenças de emissão, semelhante ao
emissões de gases com efeito de estufa, que já existe para a aviação e para as
até ao fim desta década, face a 1990, e indústrias mais intensivas em emissões
promete ser uma revolução ambiental de dióxido de carbono (CO2) e outros
sem precedentes. A base da estratégia, gases com efeito de estufa. Isto signifi-
apresentada em julho, é simples: taxar ca que os produtores ou distribuidores
produtos e serviços com altas emis- de combustível terão de comprar no
sões, para acelerar a descarbonização, mercado licenças de emissão corres-
no caminho para a neutralidade car- pondentes aos gases produzidos.
bónica, apontada a 2050. As contas são fáceis de fazer. A
A forma de cumprir o plano, no en- queima de um litro de gasolina emite
tanto, é complexa. Implica aumentar a 2,4 quilos de CO2. Tendo como refe-
produção de eletricidade no bloco eu- rência o preço atual da tonelada de car-
ropeu para 40% (hoje, ronda os 20%), bono no mercado europeu de emissões
implementar impostos transfronteiri- (cerca de €50), 50 litros de gasolina
ços em produtos como aço, cimento e custariam mais €6 do que hoje. Mas

O MAIS RECENTE
fertilizantes, criar um novo mercado de o preço do carbono tem subido muito,
carbono para os combustíveis fósseis tendência que deverá manter-se e até

RELATÓRIO
usados nos transportes rodoviários e acelerar. Prevê-se que atinja os €100
na climatização dos edifícios, e impor por tonelada daqui a poucos anos, o
novas “taxas verdes” no transporte
marítimo e aéreo. Pelo caminho, fica
que (pressupondo um paralelismo
neste novo mercado dos combustí- DO IPCC MOSTRA
sentenciada a morte dos veículos com
motor de combustão, sendo na prática
veis) elevaria o acréscimo de preço na
gasolina para €12 por cada 50 litros. QUE A INAÇÃO NÃO
proibida a sua venda a partir de 2035.
Sim, nos próximos anos, a vida
Qual o preço da medida ao final do
ano? Uma análise do Instituto Eco- É ALTERNATIVA.
vai encarecer e, numa primeira fase,
corre-se o risco de serem os mais
nómico Polaco estima um aumento
médio anual nos custos com transporte
SE NÃO REDUZIRMOS
desfavorecidos a pagar a fatura. Mas
a ideia é que seja atingido um equilí-
de €373 para uma família europeia. EMISSÕES,
brio e que, a longo prazo, o impacto MAS OS PREÇOS JÁ SÃO
INCOMPORTÁVEIS
OS EFEITOS SOBRE
O CLIMA SERÃO
seja neutro. As receitas decorrentes
destes impostos podem também ser EM PORTUGAL. COMO

IRREVERSÍVEIS
uma arma contra a desigualdade – se PODEM SUBIR MAIS?
forem bem aplicadas. “Portugal já aplica uma taxa de car-
A transição será dolorosa para mui- bono nos combustíveis rodoviários”,
tos, mas não há alternativa. O relatório lembra Francisco Ferreira, presidente

64 VISÃO 12 AGOSTO 2021


tomóveis a gasolina ou a gasóleo até
ao fim desta década. Várias cidades
europeias também têm dado sinais no
mesmo sentido, interditando motores
de combustão em zonas históricas,
para reduzir os níveis de poluição. O
Fit for 55 vem, em certa medida, pôr
uma data na lápide destes carros.
A venda de veículos elétricos há
muito que tem crescido, mas não com
a velocidade necessária para a transição
que a UE pretende. E, sobretudo, os
preços da tecnologia não estão a cair
tão depressa como deviam. “Proibir os
motores a combustão vai ajudar a criar
economia de escala e fazer baixar mais
rapidamente o preço dos elétricos”, va-
ticina Francisco Ferreira. A criação de
um mercado de elétricos usados será
igualmente essencial, para que que se
tornem acessíveis a mais gente. Mas,
continua o ambientalista, “temos de
mudar o paradigma de que todos têm
de possuir um carro, pelo menos em
meio urbano”.

OS IMPOSTOS SOBRE
OS COMBUSTÍVEIS SÃO
UMA IMPORTANTE FONTE
DE RECEITA DO ESTADO.
GETTY IMAGES

O QUE VAI ACONTECER


COM A REDUÇÃO
DO CONSUMO DE GASOLINA?
Terá de ser compensada com outros
da associação ambientalista Zero e valor absoluto de quem comprasse um impostos. O ISP (imposto sobre os
professor da Faculdade de Ciências e de €25 mil, o que beneficiaria as classes produtos petrolíferos) tem, do ponto
Tecnologia da Universidade de Lisboa. menos favorecidas. de vista de qualquer governo, a van-
Se os custos com as licenças de emissão O investigador realça ainda que é tagem de ser relativamente inelástico:
substituírem essa taxa, em vez de se fundamental haver uma boa comuni- grandes oscilações de preço provocam
acumularem, “a gasolina e o gasóleo cação por parte dos governos, recor- pequenas alterações de comportamen-
não vão necessariamente encarecer”. dando que taxas sobre os combustíveis to. Segundo um estudo realizado em
Por outro lado, as verbas resultan- estiveram na origem do movimento França, e que foi publicado em 2014
tes da compra de emissões podem ser dos Coletes Amarelos, em França. “É na revista científica Transportation
aplicadas pelos Estados em apoio à preciso explicar aos cidadãos: isto fica Research Procedia, um aumento de
compra de carros elétricos, acelerando mais caro, mas aquilo fica mais bara- 10% no preço dos combustíveis gera
a transição para uma mobilidade de to.” Sem uma política de comunicação uma diminuição de apenas 1,4% do
baixo carbono e reduzindo as despe- eficaz, mudanças tão drásticas podem tráfego automóvel a curto prazo e de
sas para quem conseguir substituir o vir a ser aproveitadas por políticos 2,8% a longo prazo.
carro. “Nesse caso, talvez as pessoas populistas. Com o fim dos motores de com-
não sintam o aumento de preço. Pelo bustão, o Estado perde essa receita.
contrário, pode mesmo baixar o cus- OS CARROS A GASOLINA E não faz sentido, do ponto de vista
to da mobilidade, porque o custo por OU A GASÓLEO VÃO SER da sustentabilidade ambiental, one-
quilómetro é mais baixo nos carros PROIBIDOS? rar a eletricidade que vai substituir a
elétricos”, calcula Tiago Domingos, O plano da Comissão Europeia li- gasolina (quando muito, poderá ser
professor de Ambiente e Energia no mita progressivamente as emissões feita uma discriminação positiva para
Instituto Superior Técnico. dos veículos novos, sendo que essas quem contratar eletricidade de fontes
Importante, acrescenta, é que um limitações, em termos práticos, re- renováveis). A solução será aumentar o
eventual cheque-carro tenha “um sultam na abolição da venda de carros IRS, o IVA, o IRC e o IMI, entre outros,
valor fixo, igual para todos” e não seja (novos, sublinhe-se) com motores de tendo em conta os impactos ambien-
uma percentagem do preço do carro, combustão, incluindo híbridos, até tais sempre que possível, diz Tiago
para evitar situações de desigualdade. 2035. Algumas marcas já antecipavam Domingos. “O consumo de gasolina e
Quem comprasse um carro de €100 essa tendência – a Volvo anunciou, há gasóleo é extremamente problemático,
mil teria direito ao mesmo apoio em meses, que deixará de produzir au- no que respeita às alterações climáti-

12 AGOSTO 2021 VISÃO 65


cas e à poluição. Mas subsidia escolas, Outro ponto crucial do pacote Fit
hospitais…” for 55 é que a totalidade das receitas
com licenças de emissão terá de ser
O GÁS TAMBÉM VAI SER aplicada em projetos de mitigação ou
MAIS CARO? COMO adaptação às alterações climáticas. Até
AQUEÇO A MINHA CASA agora, era apenas metade.
NO INVERNO?
O setor dos edifícios será incluído AS VIAGENS DE AVIÃO
no mesmo mercado de emissões dos VÃO FICAR MAIS CARAS?
transportes rodoviários, pelo que se Sem dúvida, e por várias razões. A
antevê o aumento do preço do gás, seja Comissão pretende aumentar as taxas
ele propano, butano ou natural. O Ins- sobre os combustíveis fósseis usados
tituto Económico Polaco aponta para na aviação, ao longo de dez anos (co-
um aumento médio de €429 por ano, meçando em 2023), para estimular
na climatização de uma casa europeia, o desenvolvimento de combustíveis
causado pelo preço do carbono. alternativos. Em simultâneo, vão ser
Invariavelmente, os principais pre- eliminadas progressivamente as li-
judicados serão os mais pobres. Um cenças gratuitas de que o setor ainda
estudo da empresa de consultoria beneficia, no mercado de emissões.
britânica Cambridge Econometrics A estas medidas junta-se o Pacto
conclui que criar este mercado de Ecológico Europeu, que impõe metas
emissões levará a uma subida consi- concretas para a incorporação de SAF
derável nos gastos das pessoas com (sigla internacional para combustí-
menores rendimentos, e que nem vel sustentável para aviação): 2% até
sequer terá um impacto muito rele- 2025 e 5% até 2030, nos voos internos
vante na redução de emissões. Mas a europeus. O SAF é três a cinco vezes
Comissão tem um mecanismo para mais dispendioso do que o querosene
equilibrar as contas: um Fundo Social, usado nos aviões.
que servirá precisamente para ajudar Para já, estas exigências têm por
os mais desfavorecidos a suportar os alvo apenas os voos internos e as O mais provável é que, pelo menos,
custos da transição energética. Pode companhias europeias. Mas as distor- uma fatia importante dos custos do
resultar, desde que seja bem aplicado, ções de concorrência que provocam comércio marítimo com o mercado
diz Francisco Ferreira. “Hoje, é mui- levarão inevitavelmente (e isso já está de emissões seja refletida nos preços
to mais caro comprar equipamentos a ser discutido) ao alargamento das finais dos produtos importados, mes-
elétricos: um esquentador a gás custa taxas e metas às outras empresas de mo entre países da UE, pelo que serão
umas centenas de euros, uma bomba aviação que operarem em aeroportos os consumidores a pagar grande parte
de calor elétrica, milhares. E os apoios europeus. Em suma, todos os voos dos custos com o carbono.
estão, neste momento, a beneficiar tendem a ficar mais caros para os
mais as classes médias e altas. É preciso passageiros. AS EMPRESAS EUROPEIAS
intervir diretamente na casa das pes- TÊM MAIS LIMITAÇÕES
soas e direcionar para as classes mais VAMOS PAGAR MAIS POR E CUSTOS AMBIENTAIS
baixas.” A Zero pede, aliás, que seja PRODUTOS IMPORTADOS? DO QUE AS OUTRAS.
banida a venda de equipamento a gás Muito provavelmente. Pela primeira COMO PODEM AS EMPRESAS
até 2025, dada a sua longevidade (um vez, a UE decidiu incluir o transporte EUROPEIAS
sistema de aquecimento central a gás marítimo no mercado de emissões, COMPETIR COM O RESTO
vendido hoje funcionará, no mínimo, pelo que todos os cargueiros terão DO MUNDO? VÃO MUDAR-SE
até 2040). de pagar pelo dióxido de carbono que PARA PAÍSES COM
Mais do que tudo, há que reabilitar produzirem nas viagens. Não é coisa REGRAS MAIS FOLGADAS?
as casas, para as tornar mais resistentes de somenos, atendendo a que as as- Um dos aspetos que mais polémica
ao frio e ao calor (por incrível que pa- sociações do setor logo se insurgiram prometem levantar com parceiros
reça, ainda morre mais gente de frio do ferozmente contra a proposta. comerciais da UE é o mecanismo de
que de calor em Portugal). A Estratégia Ainda assim, não pagam as licenças ajuste na fronteira de carbono, uma
de Longo Prazo para a Renovação dos na totalidade. No caso de travessias medida de protecionismo com raízes
Edifícios, mais conhecida por Estraté- com partida na UE e destino fora ambientais. A intenção é criar um novo
gia de Combate à Pobreza Energética, (e vice-versa), as empresas só terão imposto aduaneiro para produtos in-
aprovada pelo Governo português, de comprar 50% das emissões das tensivos em carbono na sua produção
pressupõe a renovação de 363 milhões viagens. Nas travessias internas, sim, (aço, ferro, alumínio, cimento, fertili-
de metros quadrados de edifícios até têm de adquirir as licenças de todas zantes e eletricidade, por agora, mas
ao final da década, reduzindo assim em as emissões. Os operadores vão ter extensível a mais produtos no futuro),
11% o consumo de energia. O Fundo três anos para se adaptarem: em 2023, para evitar o “carbon leakage”, ou vaza-
Social pode ser canalizado para me- compram 20%; em 2024, 45%; em mento de carbono – a deslocalização
lhorar estes números, começando pelas 2025, 70%; e em 2026, finalmente, de empresas europeias para onde não
famílias que mais precisam. 100 por cento. tenham tantos custos com as emissões

66 VISÃO 12 AGOSTO 2021


com o objetivo de baixar as emissões.
“Estão em desenvolvimento múltiplas
soluções para reduzir as emissões de
metano do gado ruminante. No limite,
estas inovações podem fazer com que
não seja necessária a descida do con-
sumo de carne por motivos ambientais.
Há que reduzir por razões de saúde,
mas essa é outra questão.”

O QUE SE SEGUE AGORA?


Longas e duras negociações. Há té-
nues esperanças de que o pacote,
com maiores ou menores alterações,
seja aprovado até ao final de 2022,
mas dificilmente isso acontecerá –
os documentos têm de ser debatidos
pelos governos nacionais, pelo Parla-
mento Europeu (PE) e, depois, pelos
governos, pelo PE e pela Comissão,
em conjunto. Maio de 2024, data das
eleições para o PE, é o prazo oficial
para a aprovação. O mais certo é que
a discussão demore dois anos, sendo o
documento assinado na segunda me-
GETTY IMAGES

tade de 2023, já durante a presidência


espanhola da UE.
É expectável que países com go-
vernos ultraconservadores, como a
de gases com efeito de estufa. tem mais emissões do que de produção Polónia e a Bulgária, se mostrem mais
Este é o “truque” encontrado para interna. Deve ser levada em considera- reticentes em aceitar as propostas (a
que não fiquem em desvantagem em ção a diferença no impacto. E há ainda Polónia ficou mesmo de fora do Acor-
relação a empresas que, não se regen- que acautelar a remuneração de outros do Verde Europeu, por opção própria).
do pelas dispendiosas regras da UE, serviços de ecossistema, dos impactos Por seu lado, os países nórdicos e, em
conseguem pôr no mercado produtos positivos da produção de carne no certa medida, Portugal e Espanha vão
mais baratos. Mas o caso deverá chegar Ambiente. A diferenciação tem de ser lutar para que a proposta final seja o
à Organização Mundial do Comércio. feita. Nos outros setores, também não mais ambiciosa possível.
A defesa da UE passará pela urgência se põe uma taxa às cegas. Não há uma Do lado do setor económico, deve-
de reduzir emissões e no argumento taxa de carbono sobre cada quilo de remos assistir a alguma contestação,
de não estar em causa um imposto que cimento, mas, sim, sobre as emissões.” pelo menos em certas áreas, com a
visa países, mas, sim, setores, pelo que Impostos dessa natureza acabam indústria automóvel, a aviação e o
todos os Estados ficam em igualdade igualmente por fomentar a inovação, transporte marítimo à cabeça. Apesar
de circunstâncias. de uma enorme maioria das empre-
sas apoiar as metas de neutralidade
A PRODUÇÃO DE CARNE,
O PACOTE FIT FOR
carbónica até 2050, esse entusiasmo
ESPECIALMENTE DE VACA, desce em flecha quando se lhes pede
TAMBÉM GERA EMISSÕES
CONSIDERÁVEIS. OS BIFES 55 INCLUI UM FUNDO ação mais imediata: um inquérito de
opinião mostrou que pouco mais de
VÃO FICAR MAIS CAROS?
O pacote Fit for 55 não faz referência SOCIAL, PARA um terço das grandes companhias
europeias aprova um corte de 55%
às emissões da agricultura (há apenas
uma menção ao potencial de sequestro AJUDAR OS MAIS até ao fim desta década.
Mas o caminho está traçado. “Va-
de carbono por parte do setor). Mas é
natural que, mais tarde ou mais cedo,
DESFAVORECIDOS mos pedir muito aos nossos cidadãos”,
disse o holandês Frans Timmermans,
surja uma taxa sobre as emissões da
carne. “É a consequência lógica. Os
A SUPORTAR Primeiro Vice-Presidente da Comis-
são Europeia (número dois de Ursula
setores têm todos de ser tratados por OS CUSTOS DA von der Leyen) e responsável pelas

TRANSIÇÃO
igual”, diz o professor de Ambiente políticas climáticas no organismo,
Tiago Domingos. durante a apresentação do Fit for

ENERGÉTICA
Mas esse imposto não pode ser 55. “Também vamos pedir muito às
cego, avisa. “Teria de se avançar com nossas indústrias, mas é por uma boa
tarifas na fronteira, tendo em conta causa. É para dar à Humanidade uma
que um quilo de carne de fora da UE hipótese de lutar.” visao@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 67


Mau ambiente nas nossas cozinhas
Dois estudos mostram que muitos portugueses estão a pôr em risco
a sua saúde quando cozinham – e não, ao contrário do que diz
a sabedoria popular, o sal não mata os micróbios

M
LUÍS RIBEIRO

uita gente lava o frango para causar problemas, sublinha Paula o mesmo saleiro para temperar a salada,
antes de o cozinhar por Teixeira: “A dose para provocar uma tudo com as mãos. Mas este não é um
motivos de higiene. Não doença é muito baixa. Basta meia dú- costume generalizado na Europa. “Na
deixa de ser irónico que zia de células.” Noruega e em Inglaterra, não é assim.
essa “medida higiénica” O estudo seguinte, já com vários Têm um saleiro para a salada. Da pri-
seja uma das principais países europeus, revelaria um hábito meira vez que submetemos o estudo,
causas de contaminação ainda mais arriscado. nem queriam aceitar. Os revisores, que
da cozinha – o frango é eram ingleses, achavam que ninguém
a maior fonte da bacté- DO FRANGO PARA A SALADA fazia isso. Mas depois perceberam
ria Campylobacter spp., Apesar de ser perigosa, sobretudo que as pessoas faziam-no mesmo em
o agente que provoca mais casos de para os mais velhos, crianças e grá- Portugal, na Roménia, na Bulgária e na
intoxicação alimentar na Europa, e vidas, a Campylobacter morre fa- Hungria...”, recorda Paula Teixeira, que
lavá-lo só vai ajudar a espalhar os mi- cilmente na carne cozinhada (breves participou também nesta investigação.
cróbios. É por isso que uma das regras momentos a 70 ºC são suficientes). O Aparentemente, este descuido de-
de ouro é precisamente não passar o problema é quando se transmite para corre da crença de que o sal desinfeta.
frango por água antes de o preparar. alimentos que são comidos crus. E “Achamos que o sal mata tudo”, diz a
“Quando perguntávamos às pes- a probabilidade de isso acontecer é investigadora portuguesa. “Só que não
soas porque estavam a lavar o fran- grande, a julgar pelos resultados de havia nada publicado sobre contami-
go, elas nem percebiam a pergunta”, outro estudo (este em vários países nação no sal. O micróbio podia até cair
recorda Paula Teixeira, investigadora europeus, incluindo Portugal), publi- e morrer. Mas também lá podia ficar
do Centro de Biotecnologia e Química cado em maio na revista PLOS ONE. umas horas. Não sabíamos.”
Fina, da Universidade Católica Portu- Neste caso, foi analisada a conta- O primeiro passo foi contaminar
guesa, no Porto, e autora de dois es- minação de alface a partir de bactérias 30 amostras de frango com a bac-
tudos sobre contaminação ambiental no frango, através do sal – muita gente téria e temperá-las com sal, com as
nas cozinhas domésticas. tempera o frango e, logo de seguida, usa mãos. De seguida, as mesmas mãos
Um dos estudos, publicado em ja- temperaram outras 30 amostras de
neiro na revista científica International alface, a partir do mesmo saleiro.
Journal of Food Microbiology, acompa- Resultado: em 30 amostras de sal, 21
nhou 18 casos portugueses e redundou ficaram contaminadas (70%); em 30
num manual de más maneiras: 13 (72%) amostras de alface, 11 testaram posi-
não lavaram as mãos antes de começa- tivo à bactéria (37%).
rem a tratar da carne; 12 (67%) lavaram Mas talvez o problema ficasse re-
o frango previamente, debaixo de uma solvido se a salada não fosse tempera-
torneira aberta (num inquérito anterior da imediatamente a seguir ao frango.
a 609 portugueses, concluiu-se que Os cientistas fizeram, então, testes
este é um hábito de mais de metade das em laboratório para perceber quanto
pessoas); e houve até um caso de alguém tempo a bactéria sobrevive no sal. Ao
que arrumava a loiça lavada enquanto fim de quatro horas, ainda estava ativa.
preparava a carne com as mãos. Nas conclusões de ambos os es-
GETTY IMAGES

Se soubessem o que o frango es- tudos, os investigadores sublinham a


condia, talvez tivessem tido outro importância de sensibilizar os consu-
cuidado – das 18 amostras de frango midores para a adoção de hábitos mais
recolhidas, 14 (78%) estavam con- higiénicos, para evitar a contaminação
Do frango para o sal,
taminadas com Campylobacter. No do sal para a alface A bactéria
dos alimentos. Recapitulando: nunca
final, os investigadores analisaram Campylobacter spp. sobrevive quatro passar o frango por água, lavar sempre
várias superfícies e descobriram que horas no sal. Usar o mesmo saleiro as mãos depois de mexer na carne e
a bactéria passara para duas tábuas para temperar carne e salada é não encarar o sal como uma espécie de
de cortar, dois lava-loiças e um pano altamente desaconselhado desinfetante milagroso. Afinal, quan-
de cozinha. E este é um micróbio que tas gastroenterites não serão causadas
não precisa de grandes quantidades por este mito? lribeiro@visao.pt

68 VISÃO 12 AGOSTO 2021


LUÍS ROCHARTRE ÁLVARES
“Gostamos de atender às nossas
necessidades de consumo, mas depois
não aceitamos os seus impactos”
Há uma diferença entre o que as pessoas dizem querer fazer pelo
ambiente e o que realmente fazem, sublinha o engenheiro florestal.
E, garante, há muito desconhecimento sobre o mundo real

P
LUÍS RIBEIRO

ela primeira vez, o nosso Essa é uma das questões-chave. Há


país vai ser incluído no re- uma diferença entre aquilo a que as-
latório Healthy & Sustai- piramos e os nossos comportamentos.
nable Living, da GlobeS- Esta diferença entre o aspiracional
can, que tenta perceber as e o prático é o que nós procuramos
preocupações e as atitudes descobrir: identificar as barreiras que
de consumidores de 30 dificultam as aspirações das pessoas
países em temas de sus- informadas e como transformar essas
tentabilidade. Responsável intenções em atitudes reais, nas nos-
pelo inquérito em Portu- sas escolhas, nas nossas compras.
gal (que terá resultados em setembro) As pessoas dizem não saber por
está a startup NBI – Natural Business onde começar. Pode ajudá-las?
Intelligence, com o apoio da AGEAS e Todos nós, quando consumimos,
da EDP. procuramos tomar decisões infor-
Luís Rochartre Álvares, partner da madas. Há aqui duas dúvidas: uma
consultora, diz que um dos objetivos é se existe informação consistente
é compreender o que leva as pessoas a que nos permita tomar a decisão
serem muito mais ativas nas intenções que queremos; a outra é econó-
do que nas ações – uma das conclu- mica, saber se a minha opção está
sões do inquérito do ano passado. de acordo com o orçamento. Sem
O engenheiro florestal e ex-presi- dúvida que a tomada de consciên-
dente da Forest Solutions Group, do cia tem vindo a crescer. Agora,
Conselho Empresarial Mundial para o é importante focarmo-nos em
Desenvolvimento Sustentável (WB- como o consumidor, tendo ten-
CSD), dá também exemplos de como a dência para determinada opção, a
agricultura e a floresta se têm adap- consegue exercer.
tado aos novos tempos, com práticas Também tendem a
mais sustentáveis. implementar mudanças se estas
No inquérito da GlobeScan do ano forem fáceis. Mas as mudanças
passado concluiu-se que dois terços necessárias para mitigar as
das pessoas querem ter vidas mais alterações climáticas não são
saudáveis e sustentáveis, mas só um fáceis. É possível convencer as
terço fez efetivamente mudanças nas pessoas a alterarem os estilos
suas vidas. O que falta para que as pes- de vida de uma forma mais
soas passem das palavras aos atos? substancial?

70 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Acredito que as opções racionais po- formais, pelos diversos stakeholders. utilização dos adubos de síntese, dos
dem perfeitamente ser tomadas, não O processo de verificação é muito mais herbicidas e dos pesticidas, o que
com base no medo, mas numa infor- sólido. Há uns anos, dizia-se: “Vamos nos ajudou a diminuir muito a fome
mação desenvolvida. Eu vou consumir, pintar-nos mais de verde porque é no mundo. Este modelo teve um
vou optar por este tipo de produtos, bom para a reputação.” Agora, é bom crescimento e atingimos o ponto de
por estas escolhas, porque me sin- para os mercados financeiros. Portugal inflexão. Agora, temos de renaturali-
to bem com isso, não propriamente já começou a fazer emissões de green zar, de voltar a utilizar os ciclos natu-
porque acho que o mundo vai acabar e bonds e green loans, e as empresas rais, não por uma questão ideológica
que vamos todos morrer. só têm acesso a esse tipo de financia- mas porque os ciclos naturais nos
Alguns estudos demonstram que mento se conseguirem demonstrar ajudam a obter melhores resultados
quem faz pequenos sacrifícios em que efetivamente estão a fazer alguma em qualidade, em economia e em
prol do ambiente no seu dia a dia, coisa e não apenas a contar histórias. O impactos. Nós, na NBI, ajudamos os
com efeitos positivos marginais, sistema financeiro tem vindo a trans- agricultores a olhar para o equilí-
está menos predisposto a fazer formar-se de uma maneira radical e brio dos ecossistemas. Ajudamo-los
sacrifícios com maior alcance, começa a exigir a prova do que se está a ser mais eficientes, diminuindo os
como pagar taxas ambientais. a fazer. Por outro lado, os investidores impactos ambientais sobre a água,
Como resolver este paradoxo da associam maiores riscos às empresas sobre a biodiversidade... Também
“consciência verde tranquila”? menos sustentáveis. é importante dizer que se esperava
Estas são as questões para as quais O seu trabalho passa muito por um retrocesso em relação às preo-
o inquérito nos leva a refletir. Por dar suporte técnico e científico cupações ambientais das empresas,
exemplo, a diferença geracional é in- às empresas, nomeadamente quando a crise da Covid-19 se abateu
teressante. Quanto mais jovens são as na agricultura, na eficiência sobre a economia nacional, mas isso
gerações, maior é a predisposição para de recursos e na adaptação às não aconteceu.
seguirem este tipo de opções. As novas alterações climáticas... A agricultura moderna não tem
gerações não só estão mais conscien- Temos alguns grandes proprietários boa fama. É uma imagem injusta?
tes como estão mais disponíveis para rurais portugueses que nos pedem as A agricultura e a produção florestal...
tomar decisões sustentáveis. projeções dos impactos das alterações Ficamos muito satisfeitos por atender
Este ano, o inquérito vai incluir climáticas a 20, 30 e 40 anos, para eles às nossas necessidades de consumo,
Portugal. Espera resultados muito definirem as suas decisões empresa- sejam as necessidades alimentares, as
diferentes de outros países? riais em termos futuros – se os seus de fibra e de embalagens dos produ-
Portugal é dos países da Europa modelos, hoje, que são um misto de tos florestais ou até as de materiais de
em que os efeitos das alterações agricultura, de floresta, de criação de construção. Mas depois não aceitamos
climáticas serão mais profundos. gado e outro tipo de atividades, terão os seus impactos. Na verdade, temos
A preocupação dos portugueses resiliência face às alterações climáticas. tido uma evolução muito positiva em
está em conformidade com esses Neste momento, eles próprios sentem relação a esses efeitos, mas ainda há
cenários? que não é uma discussão intelectual, é este desconhecimento, que tem que
A média do comportamento do consu- uma realidade. ver com uma cada vez maior urbani-
midor português não deverá ser muito A agricultura está a tentar zação da população.
diferente. Mas há algumas nuances minimizar os seus impactos Liderou o Forest Solutions Group
regionais, como a da consciência das ambientais? e tem uma longa carreira dedicada
alterações climáticas: os EUA conti- No século XX, tornámos a agricultura às florestas. Porque as florestas de
nuam a ser o país com menos cons- mais eficiente, com a mecanização, a produção, em Portugal, são o mau
ciência sobre a importância desses da fita?
assuntos, e todos nós sabemos Os meus últimos três anos no WB-

ESPERAVA-SE
que aquele modelo económico é CSD, com responsabilidades na agen-
um grande responsável pelo que da florestal, permitiram-me perceber
hoje vivemos. Confesso que estou
ansioso para ver os resultados, UM RETROCESSO que essa é uma constante mundial,
mas temos em Portugal característi-
porque é uma primeira fotogra-
fia. Não me parece que possamos EM RELAÇÃO cas diferenciadas. Se no nosso país a
opinião pública está contra as mono-
sair muito do que é o comporta-
mento normal, mas estou com ÀS PREOCUPAÇÕES culturas de eucalipto, na Austrália está
contra as monoculturas de pinheiro-
alguma curiosidade.
Durante muito tempo,
AMBIENTAIS DAS -bravo; no Brasil, contra as de teca.
É a questão das espécies importadas.
imperou o greenwashing.
Parece-lhe que hoje as
EMPRESAS, COM Este tipo de discussão é assim nas
florestas, mas ninguém questiona
empresas estão mais A CRISE DA COVID-19, se devemos ter batatas na Europa,

MAS ISSO NÃO


proativas? Há uma verdadeira apesar de ela vir da América do Sul. As
mudança em curso? culturas, sejam agrícolas ou florestais,

ACONTECEU
As questões da transparência globalizaram-se. Aqui o problema
das empresas passaram a ser continua a ser a tal dissociação. E há
auditadas, seja por processos uma série de mitos urbanos quanto
formais seja por processos in- aos efeitos negativos. lribeiro@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 71


PA N D E M I A

FOCAR

A “gripezinha”
“Uma mentira
pode correr meio
à portuguesa
mundo antes que
a verdade consiga
calçar as botas”
James Callaghan
Estadista britânico
(1912-2005)

72 VISÃO 12 AGOSTO 2021


André Ventura, sem máscara
O líder do Chega foi sempre
dando sinais exteriores que
agradaram aos movimentos

A
negacionistas

extrema-direita cedo perce-


beu o que mais lhe convinha
no contexto da pandemia –
assumindo o habitual posi-
André Ventura voltou a seguir os passos populistas cionamento contracorrente,
de Trump e Bolsonaro, mantendo-se num limbo manteve-se próxima de pes-
que lhe permite continuar a piscar o olho aos soas e grupos que se dedicam
à produção e disseminação
movimentos negacionistas (de cariz conservador de teorias da conspiração
e nacionalista) que emergiram com a pandemia. relacionadas com a Covid-19
O líder do Chega está infetado e não se vacinou (e que, por regra, negam a
existência ou a gravidade da
doença). A exemplo de outros políticos
JOÃO AMARAL SANTOS
populistas – como Donald Trump ou Jair
Bolsonaro –, em Portugal, também André
Ventura, líder do Chega, ignorou as re-
comendações da comunidade científica,
optando por não tomar a vacina. Mesmo
assim, na passada sexta-feira, dia 6, par-
ticipou em novo ajuntamento, promovido
pelo seu partido, que, desta vez, reuniu
dezenas de pessoas numa manifestação no
centro do Porto. Menos de 48 horas depois,
Ventura anunciava ao País, através de um
vídeo publicado nas redes sociais, estar
infetado com o novo coronavírus.
O alerta para as ligações entre extre-
ma-direita e negacionistas da Covid-19 já
constava no Relatório Anual de Segurança
Interna (RASI), referente a 2020, publi-
cado em março deste ano. O documento
sublinhava que “o confinamento imposto
aumentou o tempo de exposição da socie-
dade em geral, e dos jovens em particular,
aos meios online e abriu um leque de
oportunidades para que os movimentos
radicais de extrema-direita disseminassem
conteúdos de propaganda e desinforma-
ção digital, com vista a aumentar as suas
bases de apoio, galvanizar os sentimentos
antissistema e a reforçar a radicalização
com base xenófoba, recorrendo ao discur-
so apelativo da violência e do ódio, num
momento em que a sociedade portuguesa
é, também, confrontada com fenómenos
de polarização ideológica”. Neste contex-
to pandémico, assinalava o RASI que [os
movimentos de extrema-direita] “também
se aproximaram de movimentos sociais
inorgânicos, nomeadamente dos grupos
negacionistas da pandemia”.
Confirmando esta análise, o Chega
percebeu, desde a primeira hora, que po-
dia beneficiar destas ligações. Durante a
pandemia, o partido foi mantendo uma
posição neutra em relação à “mão-cheia”
de influencers digitais que cumprem reli-
giosamente a agenda de apoio ao partido.
Pessoas e grupos que mantêm, diariamente,
sem exceção, uma campanha de contesta-
ção às medidas para a contenção do vírus

12 AGOSTO 2021 VISÃO 73


PA N D E M I A

PONTO DE ENCONTRO levadas a cabo pelo Governo (incluindo


o próprio processo de vacinação). Como
forma de preservar essas bases de apoio,
Ventura manteve-se sempre não surpreendeu o facto de André Ven-
próximo dos passos de Trump e tura, aos 38 anos, ter rejeitado tomar a
Bolsonaro, sem abdicar de sinais vacina, mesmo depois de já o poder ter
exteriores para os negacionistas feito: a partir de 21 de junho, ficou dispo-
nível o agendamento para maiores de 37
A estratégia utilizada pela extrema- anos e, no dia 20 de julho, a modalidade
-direita em Portugal pouco (ou nada) “casa aberta” ficou acessível para pessoas
difere da postura e discurso assumi- com mais de 35 anos.
dos pelos grandes líderes populistas
Ainda em junho, numa entrevista à
mundiais, que, nos últimos anos,
TVI, André Ventura evitou comentar a
têm servido de modelo à liderança
de André Ventura. Como o líder do
alegada proximidade dos seus apoiantes
Chega, também Donald Trump e a grupos negacionistas – como foi o caso

FOTOS: GETTYIMAGES
Jair Bolsonaro rejeitaram máscara, dos “Médicos pela Verdade” – ou a falta
distanciamento social e vacina, ao de distanciamento social nas ações da
mesmo tempo que alimentaram di- sua campanha presidencial. Na altura,
versas teorias da conspiração sobre Ventura encerrou a questão ao afirmar
a origem do vírus, curas alternativas que o Chega “defende a saúde pública”.
ou, simplesmente, para divergirem E, com ironia, desvalorizou o facto de
das respostas à doença dadas pela muitos dos seus apoiantes ignorarem
esmagadora maioria dos governos. o uso de máscaras. A retórica, porém,
Ainda na última manifestação do não lhe permitiu escapar à acusação
Chega, no Porto, o político português pelo Ministério Público de um crime de
insistiu em adjetivar como “ditadu- desobediência simples, na sequência da
ra sanitária” as medidas adotadas realização de um jantar-comício, a 17 de
pelo Governo de António Costa para janeiro, quando ainda vigorava o estado
travar o vírus – um termo recorren- de emergência no País.
temente utilizado por quem, no con-
texto pandémico, se assume como O PESO DOS CONSERVADORES
antissistema. Para memória futura, “As ideias influenciam o curso da Histó-
fica o exemplo prático da união entre
ria, não porque sejam verdadeiras mas
extrema-direita e negacionistas,
porque são acreditadas. Uma afirmação
quando, em janeiro passado, uma
turba em fúria invadiu o Capitólio,
que aponta para a circunstância de os
em Washington, provocando cinco homens serem movidos por aquilo em
mortos. Na ação, destacou-se o que acreditam, sem questionarem se tal
movimento QAnon, que defende corresponde à verdade.” A frase, retirada
Trump como o salvador do mundo, do livro Populismo e Democracia, de
num combate secreto contra uma José Filipe Pinto, sintetiza o fenómeno
organização global de pedófilos negacionista atual. À VISÃO, o autor
e canibais liderada por democra- acrescenta que é através das linhas ideo-
tas, celebridades de Hollywood, o lógicas assumidas pelos conservadores
milionário George Soros ou Angela cristãos, nacionalistas e identitários que
Merkel, entre outros. se tem feito uma ligação destes movi-
mentos à extrema-direita. Em comum,
estes grupos assumem uma “contestação
à globalização, que acreditam ser con-
trolada por uma elite mundial que tem
como objetivo acabar com o que foram
os bastiões das sociedades de modelo
ANDRÉ VENTURA
ocidental”. “Na prática, falamos de pes- NÃO SE VACINOU.
EXTREMA-DIREITA
soas que consideram que as sociedades
europeias só existem se tiverem corres-
pondência com aquilo que vem escrito
na Bíblia, e que respeita os princípios E NEGACIONISTAS
tradicionalistas da religião, da pátria
e da família”, explica José Filipe Pinto.
UNEM-SE NAS TEORIAS
O especialista em populismos ga-
rante que estes movimentos “têm
DE CONSPIRAÇÃO
décadas”, embora só agora, com a ANTISSISTEMA

74 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Os movimentos de extrema-
-direita e negacionistas foram-se
alimentando mutuamente na
“batalha” contra a pandemia

conduzidas pelos textos sagrados e numa


memória que não têm, de uma sociedade
em que a Igreja detinha poder político”,
afirma o professor catedrático.

ANEMIA NAS FORÇAS DEMOCRÁTICAS


É, sobretudo, no espaço digital – eficaz-
mente utilizado pela extrema-direita e
pelos negacionistas para aumentar as
suas bases de apoio – que esta batalha
tem vindo a ser travada. João de Almei-
da Santos tem-se debruçado sobre esta
realidade há vários anos. Contactado pela
VISÃO, o investigador começa, porém,
por recordar que “as redes sociais são
um espaço de liberdade” e que, por isso,
“é profundamente errado afirmar-se que
são, essencialmente, amigas da extrema-
-direita”. “Simplesmente, o que se tem
verificado é que a extrema-direita sabe
movimentar-se melhor no espaço digital,
ENVENENAMENTO VIRAL enquanto os partidos do establishment
ainda revelam uma profunda incom-
preensão deste universo, utilizando mal
Página de apoio ao Chega alertou estas ferramentas”, observa.
para possível envenenamento. Embora admita dificuldades para tra-
Ventura não descartou teoria da var o crescimento destas ideias, o profes-
conspiração, mas esclareceu que sor catedrático identifica soluções para
não se vacinou por ter dúvidas o problema. Autor de vários livros sobre
o tema, João de Almeida Santos acre-
Uma alegada página do Facebook dita que a resposta ao extremismo que
do Chega de Vila Real tornou-se, na circula, veloz, pelas redes sociais “passa
segunda-feira, viral, depois de ter fundamentalmente por um conjunto de
justificado a opção de André Ventura de três ações”. “Por um lado, a intervenção
não se vacinar com a possibilidade de da União Europeia junto das grandes
o líder do partido ser envenenado por plataformas, com legislação atualizada;
“funcionários do Governo socialista” – depois, a afinação de alguns instrumentos
entretanto, a distrital demarcou-se do jurídicos em Portugal, que permita pe-
conteúdo publicado e o partido anunciou
nalizar quem atente clara e diretamente
que vai apresentar queixa contra os
contra o Estado de direito; por último, e
seus autores. Mas, no dia seguinte,
foi o próprio André Ventura a validar
talvez o mais importante, contrariar uma
a teoria da conspiração, admitindo certa anemia política que se tem vindo a
o risco de atentado. “Se eu acho e verificar nas forças políticas democráticas
estou convencido de que o Governo (à direita e à esquerda), que atualmente
pandemia, tenham conquistado mais português ficaria feliz em silenciar- não estão a corresponder àquilo que são
visibilidade. Partindo de uma lógica me? Naturalmente! Se existem neste as expectativas e necessidades da socie-
antissistema, falamos “de pessoas que mundo forças que de bom grado me dade civil”, enumera. Insistindo neste
acreditam estar a travar uma luta entre a eliminariam, física e politicamente? Sem último ponto, João de Almeida Santos
luz e as trevas, entre o bem e o mal”, diz. dúvida!” Ventura admitiu, no entanto, lamenta “uma certa crise de representa-
A razão, essa, nem sempre é chamada que, neste caso, “as coisas não se ção das forças políticas tradicionais, que
ao caso. “O século XVIII foi o século da misturam”. E esclareceu quanto à sua não perceberam a forma de se manterem
razão, e aquilo a que hoje assistimos é a opção: “Não me vacinei porque, numa próximas da sociedade civil, não con-
um questionamento dessa razão. Esta- primeira fase, recusei ser prioritário (...) seguindo dar resposta imediata a estes
mos, por isso, em risco de assistir a um Entendi que ainda não tinha informação terroristas da ideologia”. Haverá tempo
retrocesso civilizacional do modelo euro- suficiente para tomar uma decisão para corrigir o caminho? “Sim, mas é algo
peu, pois estes grupos de extrema-direita sobre a matéria.” “Milhões de cidadãos que tem de ser feito no terreno, ou seja,
– conservadores cristãos, nacionalistas plenos querem saber mais e estar nas próprias redes sociais. A realidade
e identitários incluídos – adotam uma perfeitamente conscientes do que estão das redes sociais é inultrapassável, veio
a fazer, eu sou mais um. Isto é algum
postura de descrédito total em relação para ficar e, por isso, é neste terreno que
crime?”, questionou.
à Ciência, que se explica com o facto de se devem combater estas forças obscu-
as suas crenças serem principalmente rantistas”, conclui. visao@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 75


DESPORTO

O peso das medalhas


Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, os países
mais poderosos foram, de novo, os que enviaram
mais atletas e, no fim, os que colecionaram mais
medalhas. Os EUA e a China lutaram até ao último
dia pela vitória no número de ouros – repetindo
o duelo que, no resto dos dias, mantêm pela
supremacia mundial. Estatísticas e números
para ajudar a comparar os “melhores
Jogos de sempre” de Portugal
com os resultados de outros países
R U I TAVA R E S G U E D E S

Distribuição por continentes


Os atletas europeus ganharam quase metade
das 1 080 medalhas distribuídas em Tóquio 2020. África
voltou a ser o continente com menos subidas ao pódio

EUROPA
47%
ÁFRICA 3%
ÁSIA OCEÂNIA 6%
24% AMÉRICAS
20%

Medalhas da liberdade
Em Portugal, os números não enganam: os nossos atletas ganharam seis medalhas
em ditadura e 21 em democracia – em períodos de tempo quase iguais

1912 1920 1924 1928 1932 1936 1948 1952 1956 1960 1964 1968 1972 1974 1976
ESTOCOLMO ANTUÉRPIA PARIS AMESTERDÃO LOS ANGELES BERLIM LONDRES HELSÍNQUIA MELBOURNE ROMA TÓQUIO MÉXICO MUNIQUE 25 DE ABRIL MONTREAL

76 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Total de medalhas
Total
1 EUAde medalhasOURO
39
PRATA
41
BRONZE
33
TOTAL
113
Europa no pódio
OURO PRATA BRONZE TOTAL Itália, Alemanha e Holanda lideraram os 27 da UE
21 China
EUA
38
39
32
41
18
33
88
113 em Tóquio (total de medalhas por país). Portugal ficou
32 Japão
China 27
38 3214 1817 58
88 ao nível da Eslováquia, Grécia, Irlanda e Roménia
43 Grã-Bretanha
Japão 22
27 1421 22
17 65
58
54 ROC (Rússia)
Grã-Bretanha 20
22 28
21 23
22 6571
65 Austrália
ROC (Rússia) 17
20 287 22
23 46
71 ITÁLIA ALEMANHA HOLANDA
76
87
Holanda
Austrália
França
10
17
10
127 2214 4636
33
40 37 36
Holanda 10 1212 1411 36 MEDALHAS MEDALHAS MEDALHAS
98 Alemanha
França 10
10 1211 1116 37
33
109 Itália
Alemanha 10
10 10
11 20
16 40
37
11
10 Canadá
Itália 107 106 2011 4024 FRANÇA HUNGRIA ESPANHA
1211 Brasil
Canadá 77 66 118 2421 33 20 17
13
12 Nova
BrasilZelândia 77 66 87 20
21
14
13 Cuba
Nova Zelândia 7 63 75 2015
15
14 Hungria
Cuba 67 37 57 20
15 14 11 11
15 ...Hungria 6 7 7 20
56 Portugal
... 1 1 2 4 POLÓNIA DINAMARCA REPÚBLICA CHECA
56 Portugal 1 1 2 4
Medalhas por habitante 9 8 7
Medalhas por habitante POPULAÇÃO MEDALHAS
TÓQUIO 2020
MEDALHAS
PER CAPITA
SUÉCIA CROÁCIA ÁUSTRIA
POPULAÇÃO MEDALHAS MEDALHAS
1
San Marino 33 931 TÓQUIO32020 11 310
PER CAPITA
21
San Marino
Bermudas 33 931
63 918 31 11 310
63 918 7 6 5
32
Bermudas
Granada 63 918
112 523 11 63 918
112 523
43
Granada
Bahamas 112 523
393 244 12 112 523
196 622 BÉLGICA BULGÁRIA ESLOVÉNIA
Bahamas
54
Nova Zelândia 393 244
4 822 233 2
20 196 622
241 112 4 4 4
Nova Zelândia
65
Jamaica 4 822 233
2 961 167 209 241 112
329 019
329 019 PORTUGAL ESLOVÁQUIA GRÉCIA
Jamaica
76
Eslovénia 2 961 167
2 078 938 95 415 788
Eslovénia
87
Fiji 2 078 938
896 445 52 415 788
448 223 4 4 2
Fiji
98
Holanda 896 445
17 134 872 2
36 448 223
475 969
IRLANDA ROMÉNIA ESTÓNIA
109Holanda
Geórgia 17 134 872
3 989 167 368 475 969
498 646
10
11Geórgia
Hungria 3 989 167
9 660 351 8
20 498 646
483 018 2 2
1211
Hungria
Croácia 9 660 351
4 105 267 208 483 018
513 158 FINLÂNDIA LETÓNIA
12
13 Croácia
Dinamarca 4 105 267
5 792 202 811 513 158
526 564 1
13
14 Dinamarca
Austrália 5 792 202
25 499 884 1146 526 564
554 345 LITUÂNIA
14
15 Austrália
Estónia 25 499 884
1 326 535 462 554 345
663 268 Chipre, Luxemburgo
15 663 268 e Malta não ganharam
...Estónia 1 326 535 2
medalhas
...
52 Portugal 10 196 709 4 2 549 177
52 Portugal 10 196 709 4 2 549 177
Pedro Pichardo
Carlos Rosa Fernanda Nelson
Lopes Mota Ribeiro Évora O 5º campeão
olímpico em 109 anos
de Portugal
nos Jogos

1980 1984 1988 1992 1996 2000 2004 2008 2012 2016 2021
MOSCOVO LOS ANGELES SEUL BARCELONA ATLANTA SYDNEY ATENAS PEQUIM LONDRES RIO DE TÓQUIO
JANEIRO

12 AGOSTO 2021 VISÃO 77


Dupla perversa Daniel Ortega
NICARÁGUA e Rosario Murillo parecem ter
uma “relação mágica”
e politicamente instrumental

MAYNOR VALENZUELA/GETTY IAMGES


A vice-presidente implacável
Com o seu quarto marido e os oito filhos, Rosario Murillo
converteu a Nicarágua numa república dinástica e despótica.
A 7 de novembro, quer ser reeleita e já decapitou a oposição

T
FILIPE FIALHO

em direito a vários nomes e tí- “mentalidades perversas e egoístas” e de es-


tulos, alguns pouco recomen- tarem envolvidos em “ações satânicas” para
dáveis: “Bruxa”, “Chaya” (planta derrubar o governo de Manágua.
endémica da América Central, Este novo embate entre a Igreja Cató-
cujas folhas podem ser altamente lica e a excêntrica personagem, que nunca
tóxicas), “Lady Macbeth das Ca- escondeu o gosto pelas ciências esotéricas,
raíbas”, “Tirana”, “Traidora”. No embora esteja sempre a invocar Deus nas
último domingo, 8, a mulher que suas intervenções públicas, coincide com
é formalmente vice-presidente da ROSARIO MURILLO uma crise política e social que tem vindo

E TRÊS DOS SEUS


Nicarágua há quatro anos ganhou a agravar-se com a detenção de todos os
uma nova alcunha, por obra e graça do bispo que ousam criticar o regime. A 7 de novem-
Silvio Báez, um dos mais influentes prela-
dos do país: “No momento da perseguição, FILHOS ESTÃO bro, realizam-se eleições gerais, e o casal
presidencial tem o objetivo de ganhá-las
Deus não se põe ao lado de Jezabel, a rainha
malvada e criminosa que se servia da religião
PROIBIDOS DE VIAJAR a qualquer preço, para que Daniel Ortega
cumpra o seu quarto mandato consecutivo
para submeter o povo.” Palavras que têm
como alvo Rosario María Murillo Zambrana,
PARA A EUROPA como chefe de Estado e a sua “companheira
Rosario” continue a pôr e a dispor dos desti-
após esta acusar alguns sacerdotes de terem E PARA OS EUA nos do segundo país mais pobre da América

78 VISÃO 12 AGOSTO 2021


Latina (logo a seguir ao Haiti).
Desde o início de junho, sete perso-
RICOS HERDEIROS
nalidades que manifestaram a vontade de
concorrer à Presidência nicaraguense foram DANIEL
detidas – a lista teve início com a jornalista O diretor
Cristiana Chamorro –, e o golpe de miseri- Há uma década que
chefia o Canal 4 e
córdia surgiu, na passada semana, quando
que o converteu num
o Conselho Supremo Eleitoral, controlado
dos órgãos oficiais do
pela família Ortega-Murillo, anulou o es- sandinismo. Tem 41 anos.
tatuto legal da última formação política da ZOILAMÉRICA JUAN CARLOS
oposição, Cidadãos para a Liberdade. Pelo A vítima O propagandista
MAURICE
meio, no mesmo período, receberam tam- Em 1998, acusou o Ex-guitarrista de uma
O polícia
bém voz de prisão mais de uma trintena de padrasto, Daniel Ortega, de banda rock, casado com
Diretor das estações de
outros ilustres dissidentes, a começar por a molestar sexualmente uma ex-miss Nicarágua,
televisão Canal 13 e Canal
quatro heróis da revolução sandinista e da desde os 11 anos. Agora, lidera o movimento 4
2, é genro de Francisco
luta contra a ditadura da família Somoza aos 54, a socióloga e de Maio, é diretor da
Díaz, o comandante da
(1936-1979): o ex-deputado Victor Hugo ativista vive exilada na estação de TV Canal
polícia nacional. Tem 36
Costa Rica e acusa a mãe 8 e também da Difuso
Tinoco, o general Hugo Torres, o escritor anos.
de tudo fazer pelo poder. Comunicaciones, agência
Sergio Ramírez (Prémio Cervantes 2017) e
que monopoliza os
a historiadora Dora María Téllez. RAFAEL contratos publicitários do
Por tudo isto, os EUA, o Reino Unido, o O gestor Estado.
Canadá e a União Europeia (UE) têm mul- Tal como Zoilamérica,
tiplicado as sanções ao regime de Manágua. é filho biológico de
A 2 de agosto, através do Jornal Oficial da Jorge Narváez Parajón
UE, a cidadã nicaraguense, titular do passa- (primeiro marido de
porte A00000106, ficou a saber que estava Rosario), mas tem uma CAMILA
proibida de pisar solo comunitário, por ser excelente relação com A modelo
a “responsável por graves violações dos di- o padrasto. Trata dos Assessora da vice-
reitos humanos, pela repressão da sociedade negócios da família (a presidente e organizadora
civil (...) e por comprometer a democracia começar pelo petróleo LAUREANO das festas familiares, já
na Nicarágua”. Além de Rosario Murillo, e os combustíveis). EUA O tenor foi modelo e é diretora da
pelo menos três dos seus filhos (ver caixa) acusam-no de lavagem de O bon vivant e principal Nicarágua Diseña, versão
estão igualmente interditados de viajar para dinheiro. artista da família, de 38 local da semana da moda
anos, é igualmente diretor de Nova Iorque. Tem 34
o “império ianque” e para o Velho Conti-
TINO da agência responsável anos.
nente – Rafael, Juan Carlos e Laureano –,
alegadamente pelos negócios milionários, O técnico pela captação de
Carlos Enrique, nascido investimento estrangeiro LUCIANA
em respetivo nome e no de testas de ferro, A aprendiz
que beneficiam a família em detrimento do em 1977, vulgo Tino, é o no país. Começa a
primeiro filho biológico faltar-lhe dinheiro para A benjamim dos Ortega-
erário público. Com um pormenor adicio- Murillo tem 32 anos e vive
de Ortega com Murillo. organizar concertos de
nal: nada é feito sem que a matriarca dê a ópera (em que é tenor). na sombra de Camila, mas
Gestor na estação de TV
devida bênção, como escreveu El País, em Canal 4 (pública), com o há uma década que está
junho, num artigo intitulado A mulher que pelouro das tecnologias. na direção do Canal 13.
salvou Ortega e afundou o sandinismo:
“Administra o dia a dia do governo, controla
os ministérios, as autarquias.”
Um poder absoluto que é resultado de deslocações oficiais [ao estrangeiro] e ti- sal: acusou o padrasto de ser pedófilo e de a
uma vida de polémicas e de infortúnios. Em nha de engolir a arrogância de um homem ter violado a partir dos 11 anos. Para espanto
1990, depois de o marido perder as eleições forte”, escreveu o jornalista Carlos Salinas, geral, Rosario preferiu defender o marido e
presidenciais desse ano e de ter sido afas- no semanário El Confidencial. Na altura, acusou a filha de mentir. A carreira política
tada da campanha, devido à sua imagem numa entrevista ao El País, Rosario admi- de Daniel fica na corda bamba e a de Rosario
de sacerdotisa hippie, a própria definiu-se tiu até a possibilidade de vir a separar-se está prestes a começar, com ela a ditar-lhe
publicamente: “Sou conflituosa, malcriada do companheiro que conheceu em 1977 e as condições para reconquistarem o poder,
e lixada em muitíssimos aspetos, mas sou com o qual teve sete filhos (e outros três de algo que acontece em novembro de 2006.
leal.” Para trás ficavam 11 anos ao lado do relações anteriores), sem prejuízo de man- Assim que ele toma posse, três meses mais
dirigente máximo, em que a poetisa ateia e terem uma “ligação quase mágica, que as tarde, nomeia-a coordenadora do Conselho
marxista, filha de um latifundiário agrícola, pessoas não entendem, de amor invisível”. do Poder Cidadão, órgão que a converte
educada na Suíça e no Reino Unido, sentiu O divórcio nunca aconteceu pela simples num género de primeira-ministra, e, em
necessidade de dizer basta: “Nos anos 80, razão de que não eram casados e porque, 2014, com a reforma da Constituição e os
era uma mulher submissa face ao coman- em 1998, a filha mais velha, Zoilamérica, milhões da Venezuela ficam escancaradas as
dante [Ortega]. Não era sequer apresentada perfilhada por Ortega, fez uma denúncia portas para a família fazer o que lhe apetece.
como primeira-dama, como mulher, nas que inverteu a relação de forças entre o ca- O resultado está agora à vista. ffialho@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 79


VAGA R

“Eu sou antiquada


e acredito que
ler livros é o
passatempo mais
glorioso que a
Humanidade
alguma vez
inventou”
Wislawa Szymborska
Escritora, poetisa e crítica
(1923-2012)

1935 1938

80 VISÃO 12 AGOSTO 2021


LIVROS

A longa marcha da
Penguin
A CUMPRIR 85 ANOS DE IDADE, A EDITORA
BRITÂNICA COM CATÁLOGO DE MILHARES DE
TÍTULOS UNIU PERGAMINHOS E REBELDIA.
E HÁ MAIS RAZÕES PARA CELEBRAR: A 24
DE AGOSTO, É FINALMENTE LANÇADA EM
PORTUGAL A ICÓNICA COLEÇÃO PENGUIN
CLÁSSICOS, COM SETE LIVROS QUE INCLUEM
AUTORES NACIONAIS. CONHEÇA AS HISTÓRIAS
DESTA AVE RARA
S Í LV I A S O U TO C U N H A

Teoria da evolução
O logótipo do pinguim
foi desenhado por
Edward Young em 1935,
estilizado pelo tipógrafo
Jan Tschichold em 1949
e reinventado pela agência
1942 1944 1946 1947 1948 1949 2003 Pentagram em 2003
EUA

12 AGOSTO 2021 VISÃO 81


LIVROS

Os britânicos dizem que o poeta


Samuel Taylor Coleridge (1772-1834)
foi a última pessoa no mundo que leu
tudo o que havia para ler. Mas este não
era um feito de que Allen Lane (1902-
Seis edições marcantes
Livros Penguin que fizeram História, na forma e no conteúdo
1970) poderia orgulhar-se naquele dia
de 1934: vestido com fato elegante de
tweed e entediado à espera do comboio
na estação londrina de Exeter Lane, vas-
culhou livros disponíveis para entreter
os minutos. A colheita foi magra: para
sua surpresa, good heavens!, o britâni-
co descobriu que apenas encontrava à
venda reedições raquíticas de romances
do século XIX, umas Bovary de segunda
aqui, uns arremedos estafados de Di-
ckens acolá. A experiência funcionaria
como a madalena de Proust do avesso:
a má recordação da experiência inspi-
No âmbito da Obscene Derek Birdsall A Clockwork Orange
rou-o, em 1935, a fundar, juntamente
Publications Act de 1959, a concebeu, em 1963, (Laranja Mecânica),
com os irmãos Richard e John, uma Penguin Books foi a tribunal de Anthony Burgess,
uma capa-anúncio para
editora dedicada a livros bonitos para por ter editado Lady To Kill a Mocking Bird romance admirado por
todos, capa mole e tamanho ajustado ao Chatterley’s Lover (Mataram a Cotovia), de várias gerações, teve
bolso – os volumes da Penguin custa- (O Amante de Lady Harper Lee, romance uma capa desenhada por
vam six pence, o mesmo que um maço Chatterley), de D.H. Lawrence. sobre a discriminação David Pelham em 1972,
de cigarros. A segunda edição, de racial, aqui comparado a... considerada uma das
Hoje, a estação de Exeter Lane possui 1961, agradeceu ao júri o E Tudo o Vento Levou. melhores na história da
veredicto de “inocente”. Penguin e não só.
uma placa comemorativa, um medalhão
cor de laranja com o nome de Allen Lane
encimado pela efígie do pinguim, recor-
dando a epifania literária junto aos carris.
Esta é a versão popular, a petite histoire zer soar o canto da independência. Os Library. Tinha autores de qualidade e
que ilumina a biografia do editor históri- títulos multiplicavam-se como versos capas elegantes em tons ocre, com um
co, construtor de um império assente em homéricos... Em 12 meses, a marca cria- albatroz de asas abertas na parte inferior,
milhares de livros. Mas nos rodapés da da pelos irmãos Lane imprimiu mais de que influenciariam o mundo editorial.
história literária, consta igualmente uma um milhão de livros. Entre os primeiros, E o catálogo de bichos alados cresceu
conferência datada de 1934 em Ripon contavam-se obras do irrequieto Ernest mais na casa do pinguim: em 1940, os
Hall, em Oxford (a que Lane assistiu), Hemingway e da astuta Agatha Christie. primeiros quatro títulos da Puffin Picture
em que se falou da magna questão sobre Em 1937, o acaso voltou a murmu- Books (puffin significa papagaio) foram
como os editores britânicos poderiam rar uma ideia ao ouvido de Allen Lane editados com o objetivo de ajudar as
alcançar uma audiência mais alargada. no cenário caótico de uma estação: em crianças retiradas das cidades a adapta-
Allen Lane defendeu com brio a ideia King’s Cross, o editor ouve alguém pedir, rem-se à vida no campo. Uma das obras,
dos seus paperbacks, apesar de, à época, por engano, “um desses livros Pelican”. Orlando the Marmalade Cat (Orlando,
estes estarem associados a historietas lú- E Lane logo lança uma chancela de o Gato Marmelada), teria mais do que as
gubres e heróis de má fama. Vender o seu não-ficção identificada com o logótipo proverbiais sete vidas: foi protagonista de
conceito visionário aos livreiros foi uma da ave aquática da família Pelecanidae. 19 histórias publicadas entre 1941 e 1972.
tarefa desafiante, que venceu assim: o A identidade visual foi, é, fulcral na
editor levava sempre consigo um mono, NOVOS VOOS história da Penguin. Allen Lane sabia-o.
uma reprodução dos livros arrumados O primeiro título da coleção foi The In- Mas é ao alemão Jan Tschichold (1902-
em filas ordeiras como amostras de tinta, telligent Woman’s Guide to Socialism, 1974), o melhor tipógrafo da sua época,
para convencer os outros. Capitalism, Sovietism and Fascism (O que a Penguin Books deve a sua rein-
A ascensão da Penguin Books ao Guia da Mulher Inteligente para o So- venção gráfica. Fortemente influenciado
pódio como primeira editora dedicada cialismo, o Capitalismo, o Sovietismo e pelos estilos modernistas, ele impôs rigor,
ao consumo de massas com sucesso o Fascismo), de George Bernard Shaw, beleza, simetria, simplicidade – e uma
foi veloz. O catálogo, esse, apostava na a que se seguiu A Short History of the coerência em todos os livros publicados
republicação de livros já existentes. E World (Uma História Curta do Mundo), sob o selo. Mandamentos que Tschichold
embora o selo da criaturinha alada os de H. G. Wells. Mas esta não era a única cunhou no volume Penguin Composition
identificasse como Penguin Books, a ave a sobrevoar os escritórios atarefados Rules (Regras de composição da Penguin).
editora era, efetivamente, a The Bodley da Penguin Books: dizem os historiado- Também as coleções foram germanica-
Head – cujo nome invadiu a capa de res que a marca fora influenciada pela mente disciplinadas por cor: laranja para
80 títulos da Penguin antes de esta fa- editora Albatross Modern Continental ficção, verde para policiais, azul-escuro

82 VISÃO 12 AGOSTO 2021


2003, a ave fez-se bem-comportada,
próxima da versão de Jan Tschichold. E
porquê um pinguim? Essa é outra histó-
ria de acasos: uma secretária Joan Coles,
curiosa, escutava à porta da reunião e,
vendo que o batismo da editora não se
resolvia, sugeriu “Penguin”…
Só depois vieram as odisseias. A Se-
gunda Guerra Mundial trouxe escassez
e tempos difíceis à Penguin Books. O
bebé de Allen Lane adaptou-se: a Pen-
guin decidiu imprimir guias sobre como
criar pequenos animais para fintar a
fome, ou como identificar os aviões para
escrutinar se eram aliados ou inimigos.
E obtiveram 60 toneladas de papel por
mês, oferecendo em troca a distribuição
de milhares de livros para as tropas in-
glesas. Uma causa patriótica que também
Uma das reedições O diretor de arte John Outras subculturas os impeliu a fundar, em 1942, o Armed
de 1984, distopia Hamilton (1964-2019) urbanas colaboraram,
revitalizou a Penguin Forces Book Club (o clube do livro das
de George Orwell, tem em 2011, na série
Classics, recrutando limitada Penguin Ink: seis
forças armadas). Os familiares paperba-
uma capa criada
em 2008 pelo street artist artistas da indústria dos livros mais vendidos na cks de capas coloridas ganhavam função
e ativista Shepard Fairey, musical e da street art. Grã-Bretanha, como semelhante aos missais: consolo.
autor do póster Hope Para And the Ass Saw White Teeth (Dentes A sociedade britânica ainda tentava
com Barack Obama the Angel, de Nick Cave, Brancos), de Zadie Smith, curar as cicatrizes, quando, em 1946, a
que marcou as eleições convidou Banksy em 2009: foram ilustrados Penguin criou um monumento literá-
nunca pensou que este
presidenciais dos EUA por tatuadores rio, ainda hoje sem paralelo: a coleção
nesse ano. aceitasse...
como Lynn Akura. Penguin Classics. Inaugurada com uma
nova tradução da Odisseia, de Homero,
traduzida por um académico reformado
para biografias, rosa para literatura de despachado para o zoo de Londres para que tinha a certeza de que iriam recusar
viagem, vermelho para teatro, beringela captar um bicho real: as barbatanas e os a sua proposta, vendeu mais de três mi-
para ensaio, cinzento para política… e pés cresceram ou diminuíram, a cabeça lhões de exemplares. Em 1964, a coleção
amarelo para tudo o resto. mudava de direção, um pé levantou-se somava 130 títulos, vendendo mais de
O logótipo da Penguin, por seu lado, criando o pinguim dançante. Em 1950, um milhão de exemplares por ano. Hoje,
sofreu reincarnações várias, desde que chegou até a existir um logótipo trans- é um repositório literário ímpar – e em
o designer Edward Young, 22 anos, foi parente, com volutas dentro. Desde expansão. O editor Henry Eliot admite,

O artista que subverte as capas da Penguin Books


Enganam os distraídos: estas pinturas “Acredito que cada título é uma obra que retrabalhou na série Bad Weather,
mimetizam com realismo o desenho de ficção potencial”, tem dito Harland aludindo aos tiques da Inglaterra
gráfico, cores, tipografia, mascote Miller, 57 anos, ex-escritor. nortenha. Uma produção de naturezas-
editorial, das capas da célebre editora. As coleções de romance, ensaio e teatro mortas em que o artista acrescenta
Até ler os títulos: uma ironia ou aforismo da Penguin Books são os seus alvos cantos dobrados, manchas de humidade,
sarcástico que remete para tragicomédia preferidos, incluindo a Pelican: volumes lombadas desfeitas – as marcas dos
urbana. Como I’m the one I’ve been de não ficção com capas azul-celeste livros verdadeiros.
waiting for (“Sou aquele por quem
tenho esperado”), ou Incurable romantic
seeks dirty filthy whore (“Romântico
incurável procura vadia imunda”). Ou
ainda Armageddon – is it to much to ask?
(“Armagedão, é pedir demais?”) e Death,
what’s in it for me? (“Morte, o que é que
eu ganho com isso?”). Há até trocadilhos
profanos, como o título I’m so fucking
hard “assinado” por Ernest Hemingway. Harland Miller O britânico trabalha o tema há duas décadas

12 AGOSTO 2021 VISÃO 83


83
LIVROS

Finalmente em português
A coleção Penguin Clássicos é lançada em Portugal a 24 de agosto, com ambições, autores nacionais e um inédito brasileiro

Q
uantos mais definição de “clássico” evoluiu Penguin até 1960 (ao ser des- não é uma exaltação à toa do
clássicos de e expandiu-se para abarcar tronado por O Amante de Lady passado, antes uma escolha
literatura do novas linguagens, formatos e Chatterley, de D.H. Lawrence). criteriosa do que nele é rele-
mundo poderão públicos”, já sublinhara Henry É essa coleção icónica que vante para nós, Humanidade,
existir?”, preocu- Eliot, atual responsável da agora chega a Portugal, com hoje.” E cujos valores, diz, pro-
pava-se o diretor coleção no livro The Penguin sete volumes em novas tradu- varam a sua força durante a
editorial da Penguin, William Classics Book (2018). Algo que ções. “Esta coleção nasce de pandemia que fechou livrarias.
Emrys Williams, nos anos ecoa a crença do primeiro di- uma ideia revolucionária – a da Na estreia da Penguin Clássi-
1950, depois de lançar os pri- retor, Emile Victor Rieu: “Estes democratização da leitura e o cos, há três clássicos de língua
meiros 60 volumes da coleção textos ajudam-nos a apreciar acesso às obras universais que portuguesa: Os Maias de Eça
Penguin Classics. Não havia e a compreender as diferenças compõem o cânone, derruban- de Queirós (com prefácio
motivos para angústia: 75 essenciais que nos dividem, do a ideia de que os grandes de Carlos Reis); O Livro de
anos passados da sua criação assim como as verdades livros estão reservados a uma Cesário Verde (prefaciado por
(dez anos depois da fundação universais que nos vinculam elite intelectual”, recorda Paula Morão); e o inédito Triste
da Penguin Books), a Penguin uns aos outros (…). O seu valor Eurídice Gomes, a editora da Fim de Policarpo Quaresma de
Classics é uma biblioteca de é incalculável, e a sua perda Penguin Clássicos. Evocando Lima Barreto (com introdução
Babel com milhares de títulos ou destruição diminuir-nos-ia Italo Calvino – “Um clássico de Lilia Schwarcz e prefácio de
abrangendo quatro mil anos a todos.” Ele viu a sua tradu- é um livro que nunca esgota Clara Rowland). Este romance
de literatura universal desde a ção da Odisseia de Homero tudo o que tem a dizer aos brasileiro, protagonizado por
Antiguidade até à atualidade, inaugurar a coleção, em 1946, seus leitores” –, a responsável um nacionalista, crítico das
de Gilgamesh a Orwell. “A tornando-se o best-seller da afirma à VISÃO: “Esta coleção clivagens sociais entre elites

“ESTA COLEÇÃO NÃO É


UMA EXALTAÇÃO À TOA
DO PASSADO, ANTES UMA
ESCOLHA CRITERIOSA DO
QUE NELE É RELEVANTE
PARA NÓS, HOJE”, DIZ A
EDITORA EURÍDICE GOMES

84 VISÃO 12 AGOSTO 2021


e povo e da discriminação
sofrida pelas mulheres e pelos
negros, foi, diga-se, despre-
zado pelos seus contemporâ-
neos. “Lima Barreto é uma voz
da mudança e do progresso,
um idealista, que vê no conhe-
cimento e no autodidatismo
uma arma para libertar um
povo dos constrangimentos
da mediocridade, da servidão Um editor singular Allen Lane fundou a Penguin Books como
e da ignorância”, diz Eurídice uma editora de qualidade para as massas
Gomes. Juntam-se-lhes o
seminal Um Quarto Só Seu, de no livro The Penguin Classics Book 2000, a Penguin continua a lançar sé-
Virginia Woolf (com prefácio (2018), que há uma preponderância da ries inovadoras, por exemplo, a recente
da poeta Ana Luísa Amaral); ficção britânica e que muitas grandes coleção dedicada à ficção científica ou a
a sátira A Quinta dos Animais obras da América Latina, da Suécia e projetada coleção de livros verdes com
de George Orwell (tradução de do Japão ainda estão ausentes. Mas a protagonistas da batalha ambiental.
Guilherme Pires); a obra-pri- dimensão do catálogo existente é esma- Em Portugal, a atenção está foca-
ma A Metamorfose de Franz gadora... “Os Penguin Classics são prova- da na Penguin Classics, não havendo
Kafka (prefaciada por Gonçalo velmente a chancela mais conhecida de planos imediatos para importar outras
Vilas-Boas); e o clássico de todo o universo Penguin, mantendo um séries marcantes. Mas a recente notí-
filosofia política Discurso notável nível de atividade e atualidade no cia da fusão entre a Penguin Random
Sobre a Origem e os Funda-
Reino Unido. O lançar-se num novo país House e o Grupo 20/20 (detentor de 11
mentos da Desigualdade entre
atesta a incrível vitalidade da coleção”, chancelas que incluem Elsinore, Cavalo
os Homens, de Jean-Jacques
Rousseau (traduzido por José
refere Clara Capitão, diretora editorial de Ferro e Topseller), geradora de um
Mário Silva e prefaciado por da Penguin Random House em Portugal. novo colosso editorial nacional, ergue
Francisco Louçã) – todos com expectativas sobre o futuro. Mas o fu-
capas criadas pelo designer CRISES E DESAFIOS turo já começou: para 2022, avança a
brasileiro Alceu Nunes. A editora teve momentos de cinzas. Em editora Eurídice Gomes, está prevista
Clara Capitão era leitora 1970, quando sir Allen Lane faleceu, a a publicação de mais 12 volumes em
assídua da coleção original companhia foi vendida: a década de 1960 língua portuguesa na Penguin Clássi-
desde os anos da faculdade, trouxera caos, confusão, concorrên- cos, abrangendo muitos géneros, como
tendo Shakespeare, Conrad, cia. Desafiada pela contracultura e por romances, epopeias, ensaios, discursos,
Wordsworth ou Twain na es- uma nova geração que fugia dos velhos poesia, novelas, cartas e teatro, e com
tante: “Gosto de voltar a esses modelos sociais, a Penguin adotou um periodicidade bimensal: dois títulos de
livros e reler as muitas notas maior experimentalismo autoral e grá- dois em dois meses. “A nossa ambição
a lápis que neles fazia”, conta fico, distanciando-se da sua identida- é que esta coleção se transforme numa
a diretora editorial da Penguin de; por vezes, as ilustrações das capas companhia de viagem para os leitores
Random House em Portugal. lembravam pulp fiction... Pela primeira portugueses, numa marca de confiança
Acredita que, como ela, há vez, os livros Penguin confundiam-se a que os leitores recorrem para obras em
muitos leitores lusos ligados à com todos os outros. Antes, em 1963, formato de bolso, com preços acessíveis
Penguin. “Somos um país Germano Facetti foi incumbido de rei- e que trazem obras que produziram co-
com bons níveis de proficiên-
maginar a identidade gráfica dos livros: nhecimento, que instigaram a reflexão e
cia de inglês e com fortes
o designer italiano trouxe as lombadas o pensamento crítico, e que fomentaram
relações com Inglaterra. Ao
longo dos anos foram muitos
negras e a arte fotográfica, e o desejo de o maravilhamento pela vida em todas
os leitores na Feira do Livro de fazer coincidir a contemporaneidade as suas dimensões, as bússolas imate-
Lisboa, que nos perguntavam entre obra e arte gráfica – um princípio riais de gerações posteriores”, declara
quando teríamos ‘os livros seguido até hoje. Entre 1999 e 2018, o a editora. Regressemos, pois, às frases
com o pinguim’...” Clara não influente diretor de arte John Hamilton lapidares, como a de Jorge Luis Borges
duvida de que novas gerações seria responsável por um novo culto (1899-1986), que sempre imaginou que
serão agora ganhas: gráfico em torno da Penguin, ao recor- “o paraíso fosse uma espécie de biblio-
“Os Penguin Clássicos vieram rer a artistas urbanos inovadores (ver teca”. A Penguin tem sido um bom éden
para ficar.” caixa Seis edições marcantes). Nos anos substituto. scunhavisao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 85


PESSOAS

João Mário Grilo


“A arte cria este sentimento de presença”
A vida e obra dos pintores Vieira da Silva e Arpad Szenes revelam-se em Vierarpad,
novo documentário do realizador apresentado no IndieLisboa

JOSÉ CARIA

O
IndieLisboa está de Bairrão Ruivo, atual diretora do museu. elementos, ao conter já muito do
regresso à capital, Comecei a trabalhar no projeto e logo que Vieira queria que fosse relatado
já a partir do próxi- me apercebi do quão interessante era cinematograficamente sobre o seu
mo sábado, dia 21, aí a correspondência que restava. Vieira casamento.
ficando até 6 de se- e Arpad construíram muito bem a O filme abre caminho na
tembro. Com a pro- posterioridade, as cartas davam-nos intimidade do casal de artistas
gramação eclética do uma série de pistas para construirmos através dessas cartas?
costume, ainda que todo o universo da vida deles. Vieira e Arpad marcaram muito bem
afetado pelos efeitos da pandemia no Como foi o processo de criação e o que queriam que fosse público e
que respeita ao número de obras por- realização do filme? o que não fosse. Aliás, existem até
tuguesas apresentadas, assumiram os Toda a história de Vieira e de Arpad cartas que não são públicas e que
responsáveis, o Festival Internacional é contada através das cartas, dos saem um pouco da linearidade das que
de Cinema vai apresentar o documen- depoimentos de investigadores em são narradas no filme. E é aqui que
tário de João Mário Grilo dedicado ao pintura e também de trechos do filme surge a questão da responsabilidade:
casal de pintores Maria Helena Vieira Ma Femme Chamada Bicho (1978), “De que forma posso criar esta
da Silva e Arpad Szenes. A conversa de José Álvaro Morais. O processo homenagem exatamente da forma que
com o realizador português explorou a foi bastante complexo mas também eles gostariam que fosse feita?”. Por
pintura, os processos de criação e, claro, muito desafiante. Na minha ótica, o isso mesmo escolhi fazer o arranque
a pandemia. filme já estava feito: Vieira e Arpad da obra na sepultura de ambos. Além
Porquê um filme sobre Vieira da prepararam-no meticulosamente ao de ser a única imagem que consigo
Silva e Arpad Szenes agora? longo dos anos. A dificuldade esteve deles, hoje, esta é a representação do
O filme resultou de um desafio que em juntar todas as peças. Para tal, foi que é o filme – um levantar da tampa
me foi lançado pela Fundação Arpad indispensável o trabalho do Comité na vida deles, que foi marcada por
Szenes-Vieira da Silva: queriam que Arpad Szenes-Vieira da Silva em um casamento que lhes parecia ser
eu pensasse numa obra sobre as cartas Paris, que organizou o material, e o intrínseco. A maior obra de Vieira e de
trocadas pelo casal, na sequência da filme do José Álvaro, que se tornou Arpad foi o amor que os uniu durante
exposição comissariada por Marina a peça-chave para ligar todos os 55 anos, não foi nenhum quadro ou

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pintura. E era isso que eu queria que o
espectador sentisse ao ver Vieirarpad:
um casamento de pura cumplicidade.

MATT WINKELMEYER/GETTY IMAGES


A história deste casal de pintores
explica o conturbado tempo do
século XX?
Como é sabido já há vários anos,
Arpad era judeu – até há um
depoimento no filme em que se fala
de o casal ter sido ou não apátrida
durante alguns anos... Mas a verdade
é que eles foram sempre mais fortes
do que a guerra, mais fortes do que
todos os contextos, e conseguiram-no Jennifer Hudson
através da arte. Arpad dizia: “A arte
é a nossa grande coisa.” E é inegável
que foi através da pintura que eles
resistiram. E, por isso, o filme é
Uma canção original para honrar Aretha
também uma história que narra a Quando Jennifer Hudson entrou pela sala de audições do
importância maior que a arte pode ter programa de talentos American Idol, em 2004, jamais imaginaria
na vida das pessoas. que, 17 anos depois, estaria a interpretar Aretha Franklin,
Qual o papel da arte numa época uma das suas maiores referências, numa grande produção
marcada pela desinformação? cinematográfica. E que teria sido escolhida pela própria artista
Há um exemplo matricial para falar para o papel. E que cantaria na banda sonora do filme com uma
sobre o papel da arte nesta matéria: o música original da sua autoria. Respect chega esta quinta-feira,
sorriso da Gioconda, na Mona Lisa, 12, às salas nacionais como a primeira adaptação cinematográfica
de Leonardo da Vinci. É uma mulher autorizada sobre a vida da rainha da soul. Um dia depois, sexta-
que foi pintada como muitas o foram feira, 13, fica disponível a banda sonora da película que, além de
à época, mas Da Vinci colocou-lhe um incluir sucessos como I Say a Little Prayer (1968) ou (You Make
sorriso que a eternizou e a fez chegar Me Feel Like) A Natural Woman (1968), conta ainda com um
até aos dias de hoje. A arte cria este tema original, escrito pela protagonista do filme em coautoria
sentimento de presença. E, no caso de com Carole King e Jamie Hartman. Here I Am (Singing My Way
Vieira e de Arpad, eles desenharam Home) foi, diz Hudson, o resultado de um “processo de criação
situações reais, mas também nos musical que pretendia criar o maior tributo de sempre para
deixaram marcas das experiências honrar o espírito de Aretha”, a mulher de sonhos e de convicções
que ficaram desses episódios vividos. a quem batizaram de rainha da soul.
Portanto, as biografias e o cinema
trazem muito mais do que uma
simples sequência: narram o espírito e
a forma concreta e verdadeira de como
os factos foram vividos.
Como vê o panorama
Led Zeppelin
cinematográfico no pós-pandemia?
É difícil fazer previsões, porque ainda Hard Rock Veneza
não podemos dizer que tenha chegado
o fim da pandemia. Os jovens de 18 e Será, seguramente, uma das surpresas da 78ª edição do Festival de
19 anos estão a crescer moldados pela Cinema de Veneza 2021, presidida pelo sul-coreano Bong Joon-ho
(realizador de Parasitas), que terá lugar entre 1 e 11 de setembro:
experiência do confinamento e, daqui
Becoming Led Zeppelin, o primeiro documentário dedicado à
a poucas décadas, vão ter 30 e 40 anos.
banda britânica, realizado por Bernard McMahon. Apresentada
É preciso esperar para ver que papel o fora da competição oficial, a obra traça as origens do grupo
cinema vai ter nessa nova sociedade. Se em 1968 e a sua ascensão ao panteão do rock na década
virmos bem, ainda não existe nenhum de 1970, partindo de entrevistas com os três elementos
grande filme sobre a pandemia... O sobreviventes – o vocalista Robert Plant, o guitarrista
que me parece provável é que a nossa Jimmy Page e o baixista John Paul
sociedade sofra uma clivagem, nem que Jones – e de material documental
seja porque a força humana que todos do baterista desaparecido, John
achávamos quase invencível foi deitada Bonham (1948-1980), a que se
abaixo por um ser vivo invisível. juntam, confidenciou McMahon
Estamos ainda a aprender a viver com à Imprensa, “cenas de fantasia”
tudo isto, e o cinema não é exceção. inspiradas... no musical Serenata
Alexandre Abrantes Neves aneves.est@visao.pt à Chuva.

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No supermercado Não é
preciso ingerir diretamente os
TENDÊNCIAS insetos; preparados como as
barrinhas já estão à venda em
Portugal

Adeus, vaca. Olá, larva


Se os pratos podiam continuar a encher-se apenas de proteína animal altamente
poluente? Podiam, mas para o ambiente não seria a mesma coisa. Vamos lá arranjar
espaço para os insetos, que eles já se vendem no supermercado
LUÍSA OLIVEIRA J O S É C A R L O S C A R VA L H O

a última vez que nos licenciamento em Portugal para qualquer male pupae, Gryllodes sigillatus, Locus-

D
víramos, estávamos que fosse a atividade associada a insetos ta migratória, Schistocerca, gregaria e
numa garagem em Ma- na comida. Há um ano, Guilherme deixou Tenebrio mollitor), ainda não está legis-
tosinhos, rodeados de essa “brincadeira”, que o ocupava bastante lada a produção nem a comercialização
caixas de bichos-da- desde 2016, depois de ter acabado o curso de nenhuma destas espécies de grilo, de
-farinha e não havia de Engenharia Alimentar e apreendido o besouro, de larvas e de gafanhotos. “Falta
máscaras a taparem- conselho da FAO, quando essa organiza- criar mecanismos legais para regularizar as
-nos o rosto. Dois anos ção das Nações Unidas para a alimentação fábricas”, explica Guilherme, acreditando
depois, encontramo-nos com Guilherme recomendou os insetos como a alternativa que isso acontecerá no início de 2022.
Pereira, 28 anos, da empresa Portugal Bugs, mais conveniente à produção e ao consumo Porém, podem vender-se produtos
em frente a uma prateleira de supermerca- massificado de gado. derivados deles, desde que se importe a
do, admirando os seus produtos com base Como até hoje não conseguiu comercia- matéria-prima. A Portugal Bugs fá-lo e,
em insetos, acabados de chegar às mãos lizar nem um bicho por si produzido, por por enquanto, é a única empresa a pro-
dos portugueses. A caminhada até aqui foi não haver suporte legal para isso, embora duzir este tipo de artigo alimentício. Mas
dura, e especialmente morosa, mas contou fabricasse dezenas de quilos por mês, vi- há sete empresas a integrar a associação
sempre com o apoio da namorada e colega rou-se então para a transformação. Portugal Insect, que existe desde 2018 para
de curso, Sara Martins. Neste momento, e apesar de Portugal defender os interesses destes visionários
Quando o conhecemos, fazia produ- ter aprovado para consumo humano sete que entraram em ação antes que a lei lhes
ção de Tenebrio mollitor, sem que isso espécies de insetos (Acheta domesticus, permitisse tirar algum proveito disso. No
o levasse a lado nenhum, pois não havia Alphitobius diaperinus, Apis mellifera entanto, na Europa, há mais de dois anos

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Checa, Bélgica, EUA ou Japão. O restante
vende online, no seu site, e agora abriu o
primeiro canal presencial, com o Conti-
nente (em dez lojas).
A cadeia de venda a retalho da Sonae é a
primeira a apostar nesta comercialização.
E a disseminação para todos os espaços
do grupo irá depender de como reagir o
consumidor, defende Paula Jordão, diretora
comercial da Sonae. “Apostámos, desde a
primeira hora, nos insetos por serem uma
alternativa alimentar sustentável e nutri-
cionalmente interessante. É uma proposta
que está de acordo com as novas tendências

As algas também
alimentares, pois já há dois mil milhões de
pessoas a consumi-los no mundo. No en-

se comem tanto, temos de avaliar a adesão dos nossos


clientes.” Sim, porque o hábito de os comer
existe essencialmente na Ásia e na América
A tendência de trazer novos
produtos alimentares para a mesa do Sul. O resto do mundo, Portugal incluí-
passa também pela integração das do, ainda anda a descobrir o que fazer com
algas no cardápio. E são cada vez este novo alimento. E a torcer muito o nariz
mais as hipóteses que temos de as a esta nova experiência.
adicionar às nossas refeições. A história não vai, então, ficar por aqui,
A Wissi é a mais recente marca asseguram ambas as partes envolvidas.
nacional, biológica, que se faz valer No final deste mês, a Portugal Bugs espera
de mergulhadores certificados que as prateleiras destes supermercados
que já havia países a venderem produtos para apanhar as algas do fundo dos acomodem também dois gelados seus:
com base em insetos. oceanos – depois são transformadas um de framboesa com insetos e outro de
para serem manuseadas facilmente amendoim feito com farinha de Tenebrio.
OS INSETOS AINDA SÃO CAROS pelo consumidor. A venda, por Em setembro, haverá espirais de massa
Guilherme e Sara vão buscar os Tenebrio enquanto, é apenas online e em lojas proteica à base de Buffalo (uma larva mais
– para já, só trabalham com esta espécie diferenciadas, mas está para breve pequena) para comprar e depois entrarão
de besouros – à Holanda (um dos países a chegada à grande distribuição, à no retalho hambúrgueres e almôndegas de
que estão muito à frente nesta matéria), semelhança dos insetos. grilo, enquanto reais substitutos da carne.
para produzirem quatro barrinhas que A alface-do-mar, o esparguete- De facto, e quando analisada a sua
do-mar ou o chorão-do-mar
vendem a €1,79 (chocolate e amêndoa, figo composição, os insetos são uma alterna-
apresentam-se desidratados, em
e laranja, manteiga de amendoim e mel e tiva consistente a qualquer outra proteína
pacotes. Depois de estarem uns
maçã e canela), snacks com sal marinho minutos em água, as algas podem
animal: cada barrinha tem entre 15% e 18%
ou pimenta-caiena (15 gramas por €4,55) ser adicionadas a sopas, saladas, de proteína, os snacks 39% e a farinha 45
e farinha (100 gramas por €9,95). O preço arrozes ou comidas apenas com por cento. Ou seja, por cada 100 gramas de
assusta, é certo, mas a utilização desta fa- azeite e alho. Bom apetite... por insetos, 38 são de proteína. Mas existem
rinha nunca será para substituir totalmente coisas novas. outras maravilhas nutricionais. Sofia Di-
outra de trigo ou centeio. O que se sugere é nis, profissional da área que acompanhou
integrar cerca de 10% desta opção em re- esta implementação na cadeia Continente,
ceitas comuns, como, por exemplo, bolos, faz sobressair também os ácidos gordos
massas ou numas bolachas de chocolate (a essenciais, as fibras e as vitaminas. A nutri-
receita vem na embalagem). cionista não passa por cima do maior be-
Os preços ainda altos não se justificam nefício destes novos produtos alimentares:
com a complexidade do processo de fa-
brico (todas as espécies que comemos são
POR CADA 100 GRAMAS “O impacto ambiental é muito menor do
que o de outras fontes de proteína animal.”
produzidas em fábricas, não andam por DE INSETOS, 38 SÃO Na maioria dos produtos que já po-

DE PROTEÍNA. MAS
aí na Natureza), pois os bichos necessitam dem chegar aos nossos pratos, os bichos
de pouca água e ainda de menos alimento nem se notam. A farinha é a sua redução
para se desenvolverem. No entanto, por
serem ainda raros na Europa, são um bem TAMBÉM SÃO RICOS e é adicionada a receitas tradicionais; nas
barrinhas, como têm tantos outros ingre-
bastante caro.
Desde que profissionalizou a transfor-
EM ÁCIDOS GORDOS dientes, ninguém dá pelo sabor dos Tene-
brio; os snacks, esses sim, são o bicho em
mação, a Portugal Bugs já fabricou mais de
20 mil destes produtos, que envia também
ESSENCIAIS, FIBRAS estado puro, desidratado, bem crocante. E
saboroso, perfeito para um final de tarde de
para países tão diversos como República E VITAMINAS verão, junto a uma imperial. loliveira@visao.pt

12 AGOSTO 2021 VISÃO 89


CRÓNICA

P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico

H
O alçapão á coisas que desaparecem sem deixar
rasto. Uma das luvas do par, as moedas
castanhas, os guarda-chuvas, os

das ideias talões do parque de estacionamento,


as ideias. Algures existirá um alçapão
onde todas estas coisas órfãs de dono
se acabam por amontoar todas juntas
num bizarro armazém, uma espécie de
bazar encantado onde as crianças acabarão por encontrar
o chapéu do cowboy de plástico que um dia simplesmente
se evaporou, onde as meias hão de por fim encontrar o seu
par, quem sabe se no fim dos tempos, quando o Arcanjo
Miguel descer dos céus para resgatar as derradeiras
almas sob o céu. Até lá, há que aceitar que é assim: as
coisas desaparecem, fogem por algum buraquinho de
um qualquer portal mágico com destino a um universo
paralelo que não nos é dado conhecer. De todas estas coisas
que desaparecem, que na sua generalidade não passam
de tralha dispensável e substituível, uma pequena parte
constitui uma enorme tragédia, uma irreparável perda
para a humanidade: as ideias. As ideias que se perdem,
que escorrem pelo ralo irreversível que esse tal buraco
negro traga e não devolve. Talvez num momento mais
feliz, mais fértil e cívico da nossa caminhada humana, num
tempo mais claro, mais cumprido e justo, seja possível
que as ideias não se frustrem ainda em verde, ainda no
ramo. Vivemos num momento nada propício a que as
ideias amadureçam em coisa concreta. Porque as ideias
precisam, quase sempre, que a alma que as pariu venha
munida de uma natureza empreendedora, engenhosa,
“desenrascada”, com facilidade em arranjar empréstimos
e investidores, em conhecer este ou aquele que ajude a
viabilizar leis, que é como dizer, uma natureza contrária
àquela natureza contemplativa, alheada, pachorrenta e
ausente de alguém que tem ideias porque fica a olhar da
varanda. Casar estas duas forças é praticamente impossível.
As pessoas das ideias não sabem sequer como tirar o talão
do estacionamento do edifício onde se pode registar uma
As pessoas das ideias patente, quanto mais criar uma empresa. E as pessoas
empreendedoras estão demasiado ocupadas a ler artigos
não sabem sequer do código fiscal ou a abrir CAE para se deixarem estar
como tirar o talão do quietas a fermentar o lado criativo do cérebro. Além de
estacionamento do tudo mais, são pessoas que não se entendem nem sequer se
apreciam muito. Não se cruzam. Num futuro mais pleno,
edifício onde se pode será uma prioridade para a humanidade não deixar que as
registar uma patente, ideias vazem desta forma. Será urgente fazer o encontro
entre a vontade de que algo exista e a vontade de fazer com
quanto mais criar uma que algo exista. Até lá, andaremos nisto: a criatividade vai
empresa permanecendo cativa no plano da imaginação. visao@visao.pt

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