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Des-Continuidades Na Experiência de Vida Sob Cerco e Na Sociabilidade Violenta
Des-Continuidades Na Experiência de Vida Sob Cerco e Na Sociabilidade Violenta
(DES)CONTINUIDADES NA
EXPERIÊNCIA DE “VIDA SOB CERCO”
E NA “SOCIABILIDADE VIOLENTA”
Resumo
Este trabalho se propõe a revisitar as noções de “vida sob
cerco” e “sociabilidade violenta” a partir de pesquisas etnográficas realizadas na última década. O artigo analisa as
transformações que a inauguração das Unidades de Polícia Pacificadora gerou na vida cotidiana de favelas cariocas e
no chamado “mundo do crime”. Além disso, visa compreender o momento atual, investigando os efeitos da “crise” das
upps e o “legado” da “pacificação”.
PALAvRAs-ChAve: favelas, sociabilidade, crime, violência, pacificação
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[…] por um período, eles eram obrigados a trabalhar de gato e rato e ga-
nhavam muito mais dinheiro. Polícia fazia a segurança deles contra invasão
de alemão. Não tinha tanto gasto com armamento, nem munição e também
não perdia tanto dinheiro. O que perdia era um pouco de droga que estava
na boca vendendo quando era pego. Mas tinha muito mais lucro porque não
tinha aquela coisa de perder muito dinheiro igual perdem quando polícia
chega de surpresa em operação e leva um monte de fuzil, pistola, droga, di-
nheiro, dando um prejuízo grande para a boca. (Trecho de entrevista com
um morador da Cidade de Deus)
O morador fica oprimido. Olha só, se você mora aqui, você é criado aqui,
só porque você pegou uma certa amizade com um policial, só porque você
levou um copo d’água, o tráfico te oprime. Se você é um morador que mora
aqui há não sei quantos anos e se acostumou com o tráfico e ajuda o tráfico,
o policial te oprime. Então tu fica acuado, porque tu tem que ficar no meio de
tudo e de todos, mas não se deixar levar por nenhum deles. Tem que ser que
nem um poste, tem que ficar parado e intato. (Trecho de entrevista
com um morador da Cidade de Deus)
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Circular por ou estar em um lugar “suspeito" Ter contato com traficante, policial ou Fazer algum comentário (positivo ou
(ex: próximo de bocas ou da sede da upp) alguém próximo de um dos dois negativo) sobre o tráfico ou sobre a polícia
MoMeNto CRÍtICo
“Desenrolo" (situação em que é questionado por traficantes) “Dura" (situação em que é questionado por policiais)
vIoLÊNCIA
deNÚNCIA
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Agora, eles usam vários tipos de coisa. A polícia bota o drone muitas
[12] Em março de 2019, Witzel con-
das vezes quando é dia de baile. Muitas vezes no final de baile de manhã firmou que atiradores de elite da polí-
tem drone. […] Tem também o helicóptero azulzinho, que a gente chama de cia já estão sendo usados para matar
traficantes nas favelas: “Os snipers são
x9, que também fica voando, filmando lá os moleques. […] O águia passa usados de forma absolutamente sigi-
lá só quando tem trocas de tiros. Passa lá dando uns rasantes sinistros. Dá losa. Eles já estão sendo usados, só
não há divulgação. O protocolo é cla-
até medo. O águia é da pm. Do Bope é o “caveirão” voador. Até o barulho ro: se alguém está com fuzil, tem que
dele é diferente. Geral tem medo dele. Aquele aqui quando passa tem ser neutralizado de forma letal”. Fon-
te: <https://oglobo.globo.com/rio/
snipers12 que ficam ali só apontando. snipers-ja-estao-sendo-utilizados
-so-nao-ha-divulgacao-diz-witzel
-sobre-acao-da-policia-23563496>.
Outro morador da mesma favela sentenciou que “agora está tudo Acesso em: 30/04/2019.
mais vigiado. Antigamente, não existia drone. Hoje, já tem e ele filma
[13] O governador eleito anunciou
todo mundo. Para piorar, dizem que esse cara falou que ia lá em Israel que pretende “conhecer um modelo
comprar um drone que atira”, fazendo referência ao fato de o então de drone equipado com uma arma,
capaz de atirar enquanto sobrevoa
recém-eleito governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ter anun- uma região. O equipamento, usado
ciado, no fim de novembro de 2018, que iria para Israel comprar cin- pelas forças israelenses em ações na
fronteira com os territórios palesti-
quenta drones capazes não só de filmar, como também de atirar.13 Esse nos, pode ser utilizado em operações
drone que filma e atira sintetiza, em um único dispositivo, a hipótese de segurança no Rio. Witzel e Flávio
Bolsonaro querem, ainda, obter in-
de que continua a existir, mesmo após o ocaso das upps, uma sobre- formações sobre um equipamento de
posição dos regimes de “fogo cruzado” e de “campo minado”, de troca leitura facial que pode ser instalado
nos transportes públicos do estado”.
de tiros e de monitoramento e vigilância recíproca permanentes. Isso Fonte: <https://extra.globo.com/
porque, por um lado, o drone suscita e incrementa a preocupação com noticias/extra-extra/witzel-flavio
-bolsonaro-vao-israel-comprar
a vigilância constante do território na favela e dos fluxos de circulação -drone-que-faz-disparos-23206958.
de pessoas e objetos nele existentes. Por outro, ele apavora porque abre html>. Acesso em: 15/01/2019.
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Se o “caveirão” vier aqui todo dia, 24 horas por dia, como aconteceu na
semana passada, o tráfico não para mais de vender. Eles já sabem vender de
outra forma se for preciso. As pessoas começam a se adaptar rapidinho. […]
Aos poucos o bandido perde o medo e também não vai ficar enfrentando o
tempo todo a polícia se sabe que ela naquele dia não vai sair. Eles não vão
ficar gastando munição à toa e correndo risco de perder arma. Eles vão co-
meçar a brincar de gato e rato. Vão ficar de um lado e os policiais do outro.
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momentos após a “pacificação”, uma das favelas mais lucrativas do [24] Na mesma entrevista, ao ser
Rio de Janeiro para o tráfico, movimentando em torno de 15 milhões questionado sobre possível envol-
vimento com o pcc, Nem, apesar de
de reais por mês.24 negar filiação à facção de São Paulo,
Tal exemplo reforça que o eixo principal, mas não o único, da indicou que, na visão dele, o mode-
lo de negócios do grupo paulista é
racionalização parece ser a substituição dos “portadores” da so- mais eficiente “e menos violento” do
ciabilidade violenta e dos traficantes com laços interpessoais nas que o das facções fluminenses. Ele
mencionou a tese de que o grupo cri-
localidades onde atuam por quadros mais autônomos em relação minoso foi responsável pela queda
às raízes locais e, ao mesmo tempo, por lideranças menos irra- dos homicídios no estado (Feltran,
2011, 2018): “Sem o pcc São Paulo
cionais. Por outro lado, o caráter altamente autoritário e perso- ia virar um inferno. Quem você acha
nalizado da organização interna do tráfico permanece, levando a que acabou com a violência lá? Foi o
Estado por acaso?”, questiona. Nem
que o funcionamento dos “tribunais” que julgam ações tidas como não acha, no entanto, que o pcc con-
desviantes — cuja atividade é denominada de “desenrolo” na lin- seguiria ter sucesso em uma possível
empreitada no Rio. Nas palavras dele:
guagem popular — seja pouco previsível e dependa do sempre “é outra coisa. São muitos interesses
cambiante mood do “dono do morro”. Mas, ainda que seja parcial, diferentes, às vezes é tão bagunçada a
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Cada dono de morro tem sua doutrina. Tem uns que não gostam de es-
culachar. O amigo daqui não quer esculachar ninguém. O ritmo dele é botar
dinheiro no bolso e ficar milionário. Ele não quer que mate ninguém na favela
porque ele também quer sair da cadeia e ficar em liberdade. Porque, matando
vagabundo na favela dele, acaba caindo nas costas dele e ficando mais difícil
para ele sair depois. Dependendo da favela é diferente. Lá do outro lado, eles
já mandam matar e jogam para o jacaré. Eles não querem saber, não. Se for
caso de x9, então, eles tacam ou tocam no latão e botam fogo na pessoa viva
ou dão para o jacaré comer. (Trecho de entrevista com um morador da
Cidade de Deus.)
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