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TRANSIÇAO DO TRABALHO

ESCRAVO AO TRABALHO
ASSALARIADO
Após abolição, negro foi excluído do mercado de trabalho
Adaptado de http://www.usp.br/agen/?p=130331 [11/03/2013]

Entre 1912 e 1920, a população negra da cidade de São Paulo perdeu postos de trabalho, foi
prejudicada por leis municipais que de forma explicita ou não a proibiam de exercer certas profissões,
além de ter sido retirada de terras onde desenvolvia a agricultura de subsistência. “Esses fatores podem
ser considerados indícios de que houve uma construção ideológica gestada pelas elites que visava a
exclusão do negro da sociedade brasileira”, aponta o pesquisador Ramatis Jacino, em sua tese de
doutorado pela USP.

Lei Municipal de 1886 proibia escravos do exercício de algumas profissões

Jacino analisou cerca de 43 mil boletins de ocorrência emitidos na cidade na segunda década após a
abolição da escravatura, entre 1912 e 1920. “Com o fim da escravidão, os únicos documentos oficiais
que mencionavam a cor da pele e a profissão exercida eram os boletins de ocorrência da polícia”,
explica. O pesquisador também analisou anúncios de jornais da época e alguns processos criminais.

No mestrado, que abordou o mesmo tema, a análise esteve focada na população negra que vivenciou o
período pré e pós abolição. Jacino pesquisou os anos de 1872 e 1890 (datas em que houve
recenseamento na cidade) e pode verificar quais profissões os negros exerciam na época. A maioria
eram ligadas à baixa qualificação e mal remuneradas: trabalhadores domésticos, criados, ama-secas,
jornaleiros, carregadores, operários da construção civil, artíficies, parteiras, etc, mas havia também
alguns jornalistas, professores e intelectuais.

No doutorado o foco foi a primeira geração de negros que nasceu após a abolição. O pesquisador
comparou os dois períodos e ficou surpreso ao perceber que, de 1912 a 1920, com a industrialização da
cidade, os negros haviam perdido as ocupações que antes exerciam. Profissões de ama-seca, domésticas
e criados começaram a ser exercidas por imigrantes. Isso levou a um processo de marginalização da
população negra.

Exclusão legalizada
Para o pesquisador, esse processo de exclusão ocorreu devido a três fatores. O primeiro foi a
promulgação de uma série de leis que proibia, de forma implícita ou explícita, que escravos exercessem

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certas profissões. “Em 1886, por exemplo, uma lei municipal determinava que as profissões de
cocheiros, aguadeiros [que carregavam baldes d’água], caixeiros viajantes [vendedores que percorriam
longas distâncias] e guarda-livros[contadores] não poderiam ser exercidas por escravos”, explica.

O segundo motivo é que muitos escravos libertos, antes da abolição, se dedicavam à pecuária e à
agricultura familiar de subsistência em lotes de terra pela cidade. Porém, o poder público determinou
que esses lotes deveriam ser concedidos aos chamados “homens bons”, ou seja: brancos, cristãos e pais
de família. Os negros – todos excluídos desse critério – foram obrigados a abandonar as terras e a se
mudar para outras regiões: as mais remotas da cidade.

O terceiro motivo é que uma série de leis gerais acabaram por marginalizar os negros. A Lei de Terras,
de 1850, determinava que a posse da terra seria feita mediante a compra. No Império, as terras eram
divididas por meio de sesmarias e muitos posseiros [pessoa que ocupa terra devoluta ou abandonada e
passa a cultivá-la] eram brancos pobres, índios, caboclos e negros. Com a Lei de Terras, a maioria teve
dificuldade em comprar os lotes.

Segundo o pesquisador, muitos empregadores publicavam em jornais anúncios de oferta de emprego.


Na maioria, explicitavam a necessidade de o candidato ser branco e imigrante (italiano, alemão), etc.
“Em anúncios de grandes empresas da cidade, não encontrei um texto explícito sobre a cor do
candidato. Entretanto, na composição do quadro de funcionários, a maioria era estrangeiro e havia
pouquíssimos negros”, comenta.

Mito fundador
Durante o Império (1822-1889), diz Jacino, o mito fundador do Brasil era representado pela união de
brancos, negros e índios na luta contra os invasores holandeses, nas figuras de Antonio Felipe e Clara
Camarão (índios), Henrique Dias (negro) e Matias de Albuquerque (português).

Já na República, proclamada em 1889, esse mito foi alterado pelas elites e a formação do Brasil passou a
ser associada à índia Bartira e ao português João Ramalho. “É mais um indício de que a intenção das
elites era excluir a figura dos negros da história da fundação do país. O índio era considerado como o
“bom selvagem”; já o negro era o “mau selvagem” “, diz.

Na transição do trabalho escravo para o assalariado, intelectuais da Faculdade de Direito de São Paulo,
da Faculdade de Direito do Recife, da Escola de Medicina na Bahia e do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) foram construindo um discurso ideológico que foi apropriado pelas oligarquias de que
a população negra não era adequada para o trabalho assalariado; que a miscigenação levava à doenças;
e que os negros tinham problemas de caráter e que sua idade mental era inferior a dos brancos. “A meu
ver, esse discurso tinha a intenção de branquear a sociedade. Para as elites, a sociedade moderna e
capitalista que eles almejavam precisava ser branca”, finaliza.

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A longa transição de escrava a empregada doméstica
Adaptado de http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/a-longa-transicao-
entre-escrava-e-empregada-domestica/ [3/09/2014]

J.Baptiste Debret, Um jantar brasileiro, 1927

A origem e permanência do trabalho doméstico, tal como é organizada no Brasil, está claramente
derivada do escravismo e foi privada por cem anos de direitos trabalhistas.

A despeito de vários estudos realizados nas últimas décadas, a transição da escravidão para o trabalho
assalariado no Brasil é um tema que ainda precisa ser esmiuçado. Que destinos tiveram os ex-escravos?
Que novas relações de trabalho lhes foi possível estabelecer? Que profissões exerceram? Como
conviveram com a chegada maciça de imigrantes europeus? Onde habitavam e em que condições?

O livro Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920), de
Lorena Féres da Silva Telles lança luz sobre algumas questões.

“O sujeito desse estudo foi constituído por mulheres, trabalhadoras domésticas na cidade de São Paulo,
algumas escravas, outras libertas, outras já nascidas livres”, disse a autora.

“Fiz o trabalho com base em documentos policiais: um livro de inscrições e um livro de contratos de
trabalho. Esses livros foram produzidos em função de uma lei, posta em prática em 1886 em São Paulo,
que obrigava os trabalhadores domésticos a se inscreverem na polícia”, disse.

Nessa época, dois anos antes do fim da escravidão, quase não havia mais escravos na cidade de São
Paulo. A maioria deles estava nas fazendas de café do Sudeste do país. Essa lei, obrigando os registros,
tinha o propósito de controlar os trabalhadores livres, principalmente o ex-escravos.

“As inscrições eram fichas de polícia, com nome, filiação, sinais característicos, profissão, nome do
patrão, estado civil etc. Enfim, uma documentação de controle, estritamente policialesca”, explicou a
historiadora.

Lorena procurou entender quem eram essas trabalhadoras domésticas. “Eu dispunha de uma
amostragem com cerca de mil inscritos e 1,3 mil contratos. Dos inscritos, pouco mais de 600 eram
mulheres e dessas 490 eram negras”, contou.

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O estudo exigiu uma boa dose de imaginação. Foi preciso ler nas entrelinhas e fazer várias suposições a
partir das poucas informações disponíveis.

“Por exemplo, quando a filiação era desconhecida, eu podia supor que provavelmente se tratava de
uma escrava. Se o pai tinha um nome como ‘José Congo’, eu podia supor que ela era filha de um
africano. Dessa forma, fui juntando os fios para tecer histórias de vidas. E, com base nesse
levantamento, busquei as origens escravistas do trabalho doméstico”, disse.

“Encontrei, por exemplo, o caso de uma cozinheira denominada pelo patrão de ‘Preta Felicidade’. O
simples fato de ele chamá-la de ‘Preta’ já indicava que, provavelmente, se tratava de uma ex-escrava.
Outro caso foi de uma africana, de 60 anos, que escandalizou sua patroa ao dizer: ‘Não sou sua escrava’.
Isso foi anotado no livro. E me trouxe a imagem de uma altiva africana, destemida e zelosa por sua
liberdade”, disse.

Em 1872, por ocasião do primeiro censo realizado no Brasil, havia no país pouco mais de 10,1 milhões
de habitantes. Destes, cerca de 1,5 milhão eram escravos. O recenseamento de 1890 revelou que a
população havia crescido para aproximadamente 14,3 milhões.

Três anos antes, em 1887, a apenas alguns meses do dia 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel
sancionou a Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil, o contingente escravo somava 723.419
pessoas, menos da metade daquele do início da década anterior.

Essa curva descendente da população escrava, que não mudou de inflexão desde o fechamento dos
portos africanos, em 1850, estimulou o tráfico interno, direcionando a mão de obra cativa para as
regiões de maior dinamismo econômico, como o oeste paulista, fronteira da expansão da cafeicultura.
Como consequência, na última década do período escravista, a cidade de São Paulo tornou-se
notavelmente desprovida de escravos.

“O censo de 1886 computou na cidade aproximadamente 48 mil habitantes, dos quais pouco mais de 10
mil foram classificados como negros ou mulatos. Desse segmento de ascendência africana, mais de 95%
eram constituídos por homens e mulheres livres. O recenseamento apontou 268 escravas e 225
escravos”, disse Lorena.

A forma predominante de moradia desses “negros” e “mulatos” livres eram as habitações coletivas de
aluguel. Com cômodos subdivididos, de forma a abrigar um número cada vez maior de pessoas, essas
habitações se multiplicavam nos bairros do Bixiga e do Brás, bem como naquele bairro que, à época,
constituía ainda uma área periférica, com características rurais: a Penha.

“Havia escravas que negociavam com suas donas e donos moradia em pequenos cômodos, fora da casa
senhorial. Por outro lado, no caso de muitas mulheres livres ou libertas, empregadas domésticas, a
moradia, a roupa e a alimentação eram a única forma de pagamento. Ou, então, seus salários eram tão
baixos que frequentemente inviabilizavam o pagamento de um cômodo de aluguel, razão pela qual os
cômodos e seus custos eram compartilhados”, disse a historiadora.

O salário de uma trabalhadora doméstica responsável por todo o serviço da casa variava de 12 mil réis a
20 mil réis. E o aluguel de um cômodo custava, às vezes, 15 mil réis. Assim, era praticamente impossível,
para essas empregadas, morarem sozinhas. “Se não moravam com os patrões, era muito provável que
morassem com parentes, companheiros, filhas e filhos”, conjecturou Lorena.

Um capítulo especialmente interessante do livro é aquele que a autora dedicou às trabalhadoras que já
possuíam uma certa especialização: cozinheiras, quitandeiras, lavadeiras, engomadeiras, amas de leite.
Sua atividade profissional e sua vida cotidiana são descritas de forma muito vívida, como neste
parágrafo dedicado às lavadeiras:

“Enfrentando a lida diária de longas caminhadas, expostas ao frio, à chuva e ao sol a pino, equilibristas
de trouxas pesadas e prazos de entrega, as lavadeiras foram fundamentais à sociedade da higiene, com
seus lençóis e roupas brancas. Circulando nas imediações urbanas, em direção às beiras de rios e
chafarizes, à procura de emprego, eram impelidas às ruas pela necessidade do ofício, dependentes de si
mesmas e dos parcos ganhos auferidos do exercício desse trabalho desqualificado”, disse Lorena.

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Para compor sua narrativa, uma das fontes documentais utilizadas pela pesquisadora foram processos
criminais de mulheres presas por vadiagem. “Muitas dessas mulheres eram lavadeiras, que tinham uma
mobilidade maior pela cidade, pois iam às casas para buscar ou entregar roupas. E foram presas por
estarem desempregadas ou bêbadas. Percebemos, assim, como havia um forte controle social e policial
sobre os negros, pobres e mendigos nas ruas”, comentou.

A introdução das redes de abastecimento de água e dos tanques domésticos, iniciada na década de
1880, enclausurou esse trabalho, antes exercido extramuros. Posteriormente, os próprios rios seriam
enclausurados, em dutos subterrâneos, invisíveis aos olhos dos habitantes, cada vez mais ignorantes
acerca da topografia e dos recursos naturais de sua cidade.

Amas de leite
Outra mudança fundamental foi constituída pela entrada maciça de imigrantes europeus.

Desde 1870, com a Lei do Ventre Livre e a perspectiva de que não nasceriam mais escravos no Brasil, a
solução da imigração começou a ser levada a sério pelas elites econômicas e políticas. E as
consequências práticas logo se fizeram notar.

“As brasileiras negras continuaram a ser maioria entre as amas de leite, mas surgiu uma competição
entre elas e as imigrantes – portuguesas, italianas e alemãs. Isso aparece de forma bem clara no livro de
inscrições”, afirmou.

Como uma das conclusões de sua pesquisa, a historiadora enfatizou o quanto o trabalho doméstico
ficou marcado, no país, pela herança escravista.

“A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943, ignorou a categoria, sob a alegação de
que as trabalhadoras domésticas desempenhavam atividades de caráter não econômico. E a
Constituição Federal de 1988 limitou o acesso delas a somente 9 dos 34 direitos garantidos aos demais
trabalhadores”, afirmou.

“Apenas em 26 de março de 2013, quase 125 anos depois do fim da escravidão, a aprovação do projeto
de emenda constitucional conhecido como ‘PEC das Domésticas’, defendida pela presidenta Dilma
Rousseff do PT estendeu à categoria direitos básicos, como jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44
horas semanais, pagamento de horas extras e adicional noturno, fundo de garantia por tempo de
serviço e seguro-desemprego. Benefícios como auxílio-creche, seguro para acidentes de trabalho e
salário-família carecem ainda de regulamentação”, disse.

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Algumas considerações importantes SOBRE O 13 DE MAIO 1888 na
visão do Movimento Negro.
1 - Não foi a Princesa Isabel quem fez a Lei "Áurea". Ela sancionou o projeto aprovado na assembleia
geral do império, objeto de muitas festividades na Corte (a então capital do Império, Rio de Janeiro);
2 - Os escravos representavam à época pouco mais de 5% da população brasileira. Era, portanto, um
regime de exploração do trabalho em declínio;
3 - Não se previu nenhuma medida para a inserção do ex-cativo na sociedade. O samba-enredo da
mangueira, no centenário da abolição, diz muito: "Livres do açoite da Senzala/Presos na miséria da
favela";
4 - Os verdadeiros abolicionistas foram os próprios negros, que resistiram desde o século XVI, fugindo
para formar quilombos e organizando associações para combater, também no plano das leis, o regime
escravista;
5 - As releituras da História fizeram com que, atualmente, o 20 de novembro, dia de Zumbi e da
Consciência Negra, seja considerado mais importante que o 13 de Maio.

Charles Darwin sobre a escravidão.

Ao chegar no Brasil e ver de perto a escravidão, Darwin escreveu esse relato:

“Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era uma velha senhora que tinha umas tarraxas com
que esmagava os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era,
todos os dias e a todo momento, insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz de desencorajar
até o mais inferior dos animais. Vi como um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na
cabeça com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um
pouco turva… E essas são coisas feitas por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos,
que acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! O sangue ferve em
nossas veias e nosso coração bate mais forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes
americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, fomos e somos culpados desse enorme
crime.”

(Charles Darwin, A Viagem do Beagle)

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