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INTRODUÇÃO
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1. O CONTO A IGREJA DO DIABO
O conto A Igreja do Diabo foi publicado em 1884 no livro Histórias sem data
de Machado de Assis. O breve conto é apresentado em quatro capítulos: De
uma ideia Mirífica; Entre Deus e o Diabo; A boa nova aos homens; e Franjas e Franjas.
O conto inicia, sem muitas explicações, com a ideia do diabo de “fundar uma
Igreja” 6 com ritos, escritura, orações, novenas, missa, credo próprio. Segun-
do o diabo, “enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha
igreja será única: não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero. Há
muitos modos de afirmar; há só um de negar”7. O diabo se mostra perspicaz
ao perceber que deus é cultuado de vários modos e por variadas religiões: cris-
tianismo, islamismo, judaísmo, budismo etc. Mais ainda, dentro de cada uma
das religiões há outras divisões profundas. Sunitas e xiitas são os dois grupos
Ver obra: COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Vecchi Editora, 1940.
2
Ver obra: REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis. Disponível em http://www.
3
10
Idem, Ibidem, p.162.
11
Idem, Ibidem, p.161.
12
Idem, Ibidem, p.162.
13
Idem, Ibidem, p.163.
Tabulæ - Revista de Philosophia - ISSN 1980-0231
profundo e certeiro do diabo foi aniquilar todo o “amor do próximo” 14. Di-
zia ele que o amor ao próximo só era permitido quando se tratasse de amar a
mulher do próximo. O diabo, ao começar a propagar sua catequese doutrinal,
estava convencido de que os vícios capitais são mais próprios do ser humano
do que as virtudes cristãs.
O quarto - e último - capítulo retrata a enorme decepção do diabo e o
abandono de seu projeto em plena pujança: “notou o Diabo que muitos dos
seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes” 15. O diabo assom-
brado voa até o céu e ansioso espera uma explicação divina para o singular
fenômeno e ouve de deus: “Que queres tu, meu pobre diabo? [...] É a eterna
contradição humana” 16.
14
Idem, Ibidem, p.164.
15
Idem, Ibidem, p.165.
16
Idem, Ibidem, p. 165.
17
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas, p.99. Acesso em: 11 jan. 2016.
O conto machadiano a Igreja do Diabo e a paradoxalidade da natureza humana
procura senão atacar e combater” 23, por isso, acrescenta Rousseau “não iremos,
sobretudo, concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma ideia de bondade,
seja o homem naturalmente mau” 24.
Ao que parece, segundo Hobbes, o ser humano comportar-se, na ausência
de um poder soberano, como se estivesse num estado “de guerra de todos
contra todos”. Neste estado, não há lugar para o altruísmo, mas somente para
a conservação própria da vida.
Na esteira de Hobbes, porém séculos mais tarde, fazendo parte de outra
tradição, com intenções filosóficas distintas de Hobbes, contemporâneo de
Machado de Assis, influenciado por Schopenhauer, encontra-se Nietzsche
(1844-1900). Há semelhanças entre o diabo de machado e o pensamento de
Nietzsche: para o diabo do conto, as pessoas eram naturalmente egoístas,
contudo foi-lhes ensinada, desde a infância, a compaixão cristã. A semelhança
com o alemão encontra-se na obra O Anticristo (1888), onde ele diz:
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Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde
seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é pernicioso. 25
[...]
Todas as citações dos textos bíblicos foram retiradas da BÍBLIA DE JERUSALÉM. 7ª edição.
34
Gn 1,27.
37
Gn 2,8.
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O conto machadiano a Igreja do Diabo e a paradoxalidade da natureza humana
A única regra exigida por Deus, segundo o mito bíblico, era “Podes comer de
todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal
não comerás, porque no dia em que dela comeres terá que morrer” 39. Porém,
uma serpente, presente no jardim, persuade Eva a comer o fruto dizendo “Não,
não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos
se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” 40. Eva come
o fruto e o dá a Adão. Quando comem, diz o mito, “abriram-se os olhos dos
dois” 41 e, como consequência, Deus expulsa-os do paraíso, impondo-lhes o
castigo da dor, do sofrimento e da morte. A partir de então a espécie humana,
embora em alguns aspectos semelhantes ao criador, encontra-se num estado de
tendência para o mal. Este é, em linhas gerais, o que se denomina na teologia
cristã de pecado original ou “queda do primeiro homem”:
[...]
Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada para o mal, dá lugar a
graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes43.
Gn, 2,16.
39
Gn 3,5.
40
Gn 3,7.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 2ª ed., Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 1995.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores).
_______. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro, 3ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
______. Para a Genealogia da Moral. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 337-370. (Col. Os Pensadores).