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PARTE 2

A IMAGEM DE DEUS NO HOMEM

Hoekema diz que “o conceito da imagem de Deus é o


coração da antropologia cristã.” Essa doutrina é fundamental
para o entendimento de outros aspectos da antropologia, como
por exemplo, o do efeito do pecado na vida do homem,
especialmente quando estudamos a imagem de Deus após a
queda.

Segundo Herman Bavinck, o homem não carrega ou tem


simplesmente a imagem de Deus, mas ele é a imagem de Deus, e
diz também que a imagem de Deus não é um acidente, mas algo
essencial a ele, sem a qual ele não pode ser o que e.

“Da doutrina de que o homem foi criado à imagem


de Deus segue-se a implicação clara que a imagem de
Deus estende-se ao homem em toda a sua inteireza.
Nada no homem é excluído da imagem de Deus.
Todas as criaturas revelam traços de Deus, mas
somente o homem é a imagem de Deus. E ele é a
imagem totalmente, na alma e no corpo, em todas as
faculdades e poderes, em todas as condições e
relacionamentos. O homem é a imagem de Deus
porque e ao grau em que ele é verdadeiro homem, e
ele é homem, homem verdadeiro e real, porque e ao
grau em que ele é a imagem de Deus.”1

Isto quer dizer que a imagem de Deus não é acidental, mas


algo extremamente importante e essencial à natureza humana.
O homem não pode ser homem sem a imagem de Deus. Por isso
o homem é a imagem de Deus, não simplesmente a tem, como
1
Herman Bavinck, Dogmatiek, 2:595-96, citado por Hoekema, p. 65.
algo que foi acrescentado depois de sua formação.

Esta imagem foi deformada pela queda, mas foi restaurada


por Cristo, e será aperfeiçoada até que volte de novo a ser como
era.

O domínio que Deus deu ao homem sobre todas as obras


de Sua criação, indica que Deus deixou o homem como seu
representante e governador da criação. Deus governa através do
homem, a quem deu o domínio sobre tudo. Por essa razão, a
responsabilidade do homem aumenta, pois ele tem que fazer
exatamente o que Deus faria, como um embaixador de Deus que
e.

SOBRE O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS: “IMAGEM” E


“SEMELHANÇA”

1. A IMAGEM CRIADA

As duas palavras aparecem juntas e Gn 1.26, mas não se


referem a coisas diferentes, como, por muito tempo, creu-se na
história da igreja.

As duas palavras, imagem e semelhança, são sinônimas e


usadas indistintamente. Em Gn 1.26 aparecem as duas palavras,
enquanto que em Gn 5.1 aparece somente a “semelhança”, e em
Gn 5.3 as duas novamente. Em Gn 9.6 aparece somente a
palavra “imagem”, como que indicando a idéia total do homem.

Hoekema assevera que “se estas palavras pretendessem


descrever aspectos diferentes do ser humano, elas não seriam
usadas, como as temos visto sendo usadas, isto é, quase
indistintamente”.

A palavra hebraica para “imagem” é {elec: (tselem)


derivada de uma raiz que significa “esculpir” ou “cortar”.
Portanto, podemos entender “imagem” como sendo o homem
uma representação de Deus.

A palavra hebraica para “semelhança” é "tUm:di (demuth),


que vem de uma raiz que significa “ser igual”. “Alguém poderia
dizer que em Gn 1.26 a palavra imagem é igual a semelhança,
uma imagem que é igual à nossa. As duas palavras juntas dizem-
nos que o homem é uma representação de Deus, que é igual a
Deus em certos aspectos.”

Relacionamento ligado à imagem de Deus no homem:

a) Relacionamento com Deus

A harmonia com Deus originalmente era patente. Ele


respondia perfeitamente aos apelos da revelação natural de
Deus. A comunhão dele com Deus no Éden era perfeita. A
Escritura diz que Deus “andava no jardim pela viração da tarde”
(Gn 3.8). Não há erro em dizer que Adão amava a Deus “sobre
todas as coisas”, e dependia totalmente dEle. No sentido mais
pleno da palavra, podemos dizer que Adão vivia coram Deo, isto
é, na presença de Deus.

Deus criou o homem capaz de responder ao Seu amor e


providência. E foi assim no Éden, até que o homem decidiu
voluntariamente desobedecer.

Esse relacionamento perfeito com Deus determinava os


outros relacionamentos. Os relacionamentos horizontais eram
diretamente relacionados com o relacionamento vertical. Do
nosso relacionamento com Deus dependem todos os outros
relacionamentos.
b) Relacionamento com o semelhante

Como um resultado de andar bem com Deus, era perfeito o


relacionamento de Adão com sua mulher. Gn 2.18 diz que não
era bom para o homem viver só. Por isso Deus quis uma vida
ainda melhor para ele, uma vida que incluía o relacionamento
com um semelhante.

Certamente, a vida com Eva foi de perfeição relacional. Este


foi o propósito de Deus para os seres humanos. Uma pessoa,
como pessoa, não pode viver em isolamento e, por isso, Deus fez
a mulher, para ser sua companheira, sua ajudadora, seu par, de
tal forma que um não seria completo sem o outro. As palavras de
Gn 2.18 indicam que a mulher complementa o homem,
suplementa-o, completa-o, é forte onde ele pode ser fraco, supre
suas deficiências preenche suas necessidades. O homem e,
portanto, incompleto sem a mulher. Isto vale tanto para o
homem quanto para a mulher. A mulher também é incompleta
sem o homem; o homem suplementa a mulher, complementa-a,
preenche suas necessidades, e é forte onde ela é fraca.

O casamento indica o melhor relacionamento que pode


haver entre dois seres humanos, e ilustra como podem ser os
outros relacionamentos com os nossos semelhantes. O que
queremos dizer é que o ser humano não é completo sozinho.
Não podemos viver sem as afeições do relacionamento.

E os primeiros seres humanos viviam em perfeito


relacionamento entre si, antes da queda. Quando Jesus estava
tratando da quebra do casamento, do divórcio, em Mt 19, Ele
disse, em palavras bem claras: “Não foi assim desde o princípio”.
Isso quer dizer que, no Éden, havia um perfeito relacionamento
entre os seres humanos.
c) Relacionamento com a natureza

Este também era perfeito. Gn 1.26-28 descreve como Deus


quis que os seres humanos vivessem com a natureza.

Deus colocou o homem no mundo para viver em perfeita


harmonia com a sua criação. Deus o colocou para ter domínio
sobre a vida vegetal e animal. E isto o que está claro em Gn 1.28-
29. Tudo estava colocado para o bem-estar do homem, que a
tudo dominava. A natureza foi feita para servir ao homem, e este
deveria viver em perfeita harmonia com ela, cuidando dela. Do
cuidado dela dependeria toda a sua subsistência.

“O homem é chamado por Deus para desenvolver


todas as potencialidades encontradas na natureza e
na raça humana como um todo. Ele deve procurar
desenvolver não só a agricultura, horticultura,
afazeres domésticos com os animais, mas também a
ciência, tecnologia e arte. Em outras palavras, nós
temos aqui o que e freqüentemente chamado de
mandato cultural: a ordem para desenvolver uma
cultura que glorifica a Deus.”

Mas não foi assim até o fim. O pecado fez com que essa
harmonia fosse quebrada, e subsistência do homem ficou
prejudicada pela desarmonia com a natureza.

Posse Non Peccare

O posse non peccare de Agostinho, era a condição natural


do homem antes da queda. Ele poderia perfeitamente viver sem
transgredir as leis de Deus, porque ele possuía a habilidade para
tal. Ele não possuía natureza pecaminosa, e nada no seu interior
que o levasse a pecar. A obediência plena era perfeitamente
possível para Ele.
Ele poderia agir perfeitamente de acordo com a sua
natureza. Os escolásticos chamaram essa condição de libertas
naturae. Adão possuía o potentia non peccandi. No jardim,
enquanto não pecou, Adão, portanto, refletia perfeitamente a
imagem de Deus, com a qual havia sido criado.

Mas o posse non peccare, não era uma condição imutável.


Hoekema diz que:

“a integridade na qual Adão e Eva existiram, não


foi um estado de perfeição consumada e imutável.
Para ser exato, o homem foi criado à imagem de Deus
no começo, mas ele não era ainda um “produto
terminado”. Ele ainda necessitava crescer e ser
testado. Deus desejou determinar se o homem seria
obediente a Ele livre e voluntariamente, em face de
real possibilidade de desobediência. Por esta razão,
Deus pôs Adão à prova (Gn 2.16-17). Se Adão e Eva
houvessem guardado aquela ordem, quem sabe igual
a quê seria a história humana. Mas é triste dizer, eles
desobedeceram a ordem, e lançaram-se a si mesmos,
e toda a raça humana que veio depois, no estado de
pecaminosidade.”2

É esta também a opinião da Confissão de Fé de


Westminster: “O homem, em seu estado de inocência, tinha a
liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e
agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse
decair dessa liberdade e poder.” (IX, 2)

Adão foi criado de tal forma que pudesse cair desse estado.
E foi exatamente isso o que aconteceu, com todas as suas
consequências.

2
Hoekema, p. 83.
2. A IMAGEM DESFIGURADA

A imagem de Deus permanece depois da queda, mesmo


embora não vejamos mais os vestígios da justiça original. Todas
as suas capacidades intelectuais, afetivas, sua liberdade moral,
seu domínio sobre a criação, etc., foram afetados pela Queda,
mas mesmo depois da Queda, é dito que o homem é a imagem
de Deus (Tg 3.9 e Gn 9.6).

A condição da humanidade agora caída, portanto, é a da


impossibilidade de não pecar. Neste estado o non posse non
peccare é uma realidade indiscutível. Não há forças no pecador
para fugir do pecado. Nesse estado, é também dito que o
homem tem impotentia bene agendi, isto é, ele é incapaz de
fazer o bem.

Calvino diz “mesmo embora concedamos que a imagem de


Deus não tenha sido totalmente aniquilada e destruída no
homem, ela foi tão corrompida que, qualquer coisa que
permaneça, é uma deformidade horrenda”. Possivelmente
pensando na justiça original, Calvino acrescenta:

“Agora, a imagem de Deus é a excelência perfeita


da natureza humana que brilhava em Adão antes da
queda, mas que subseqüentemente foi viciada e
quase apagada, de tal forma que nada permanece
após a ruína, exceto que ela e confusa, mutilada e
doentia.”

Com a queda, a imagem ficou pervertida, e o homem


quebrou os relacionamentos com os quais Deus o havia dotado:
O homem quebrou o relacionamento com Deus, com o seu
semelhante e com a natureza.
A QUEBRA DO RELACIONAMENTO LIGADO
À IMAGEM DE DEUS NO HOMEM

a) O Homem quebrou o relacionamento com Deus

Depois da queda, ele passou a adorar a criatura ao invés do


Criador (Rm 1.20-23). A idolatria antiga era bastante primitiva,
pois o homem adorava estátuas de barro, madeira, coisas
bastante rudimentares.

Hoje, não existe diferença de idolatria, apenas a confecção


mais elaborada dos ídolos modernos. Hoje os homens fazem
outros tipos de idolatria sem se ajoelharem literalmente diante
delas, mas têm o dinheiro, a fama, o poder, os prazeres, as
posses, etc., como objetos de culto.

Não podemos, contudo, nos esquecer, de que mesmo


nesta nossa sociedade contemporânea, ainda há idolatria à
moda antiga, ou seja, o curvar-se diante de ídolos feitos à
imagem e semelhança de homens e animais. O homem se
esqueceu dAquele de quem foi feito imagem e semelhança.

b) O homem quebrou o relacionamento com seu


semelhante

Ao invés de ser bênção para o seu semelhante, agora o


homem perdeu a verdadeira comunhão com eles. Hoekema diz
que ao invés de ser útil para eles, os “homens caídos agora usam
o dom do relacionamento para manipular os outros como
ferramentas para os seus propósitos egoístas. Ele usa o dom da
linguagem para falar mentiras ao invés da verdade, para ferir o
seu vizinho ao invés de ajudá-lo.”

Os relacionamentos entre os caídos tornou-se altamente


prejudicado. O amor não mais é a tônica, e sim o ódio. O real
interesse pelo bem estar dos outros tornou-se em indiferença e
descaso. Apenas nos interessamos pelos que são do sangue, e
ainda assim quando eles não nos decepcionam. Ninguém ama
ninguém, porque a imagem de Deus está terrivelmente
desfigurada.

c) O homem quebrou o relacionamento com a natureza

Como os outros dois relacionamentos, este também é fácil


de ser percebido. O homem foi colocado no mundo para ser o
guardador da terra que belamente Deus havia criado, mas depois
da queda, o mundo vem sendo estragado e suas riquezas tem
sido usadas para propósitos tremendamente egoístas. A
exploração das riquezas tem sido somente para o
enriquecimento de alguns mais “espertos”, em prejuízo da
grande maioria de desfavorecidos.

A natureza que deveria ser para o bem de toda a


humanidade, tem sido estragada para o beneficio de alguns
exploradores poderosos. Isso é tremendamente triste, porque o
homem está se alienando de seu próprio habitat.
Modernamente, o homem pensa no futuro, mas não sem pensar
antes em seus próprios interesses, sem levar em conta os
interesses do Criador. O interesse da humanidade está aquém de
Seus próprios interesses.

Embora possamos ver resquícios da imagem de Deus, é


fácil perceber que ela está bem distorcida, pervertida,
desfigurada. E o homem revela muito bem essa condição de
pecador com a imagem de Deus desfigurada. Por isso uma
grande Providência foi tomada para recuperar aquilo que havia
sido quase totalmente perdido.
Non Posse Non Peccare

Nesta altura o homem perdeu a capacidade de fazer o bem


(o que é agradável a Deus). Agora, escravo do pecado, faz com
que o pecado seja uma necessidade nele.

A condição pecaminosa dele o obriga a pecar porque é a


única coisa que ele sabe fazer, pois de agora em diante, como
um livre-agente que é, só poderá fazer o que está de acordo com
a sua natureza. Como ele só possui a natureza pecaminosa, ele
só fará o que lhe é próprio. Por isso que ele não tem capacidade
de viver sem pecar. Daí a expressão latina non posse non
peccare.

3. A IMAGEM RESTAURADA

Cristo Jesus é considerado na Escritura a imagem perfeita


de Deus. Em vários lugares é dito que Ele reflete Seu Pai de
maneira perfeita.3
Por isso é dito na Escritura que Deus nos predestinou para
sermos “conformes à imagem” de Jesus Cristo. Ser igual a Jesus é
ter de volta a imagem de Deus.

Rm 8.29 — “Porquanto aos que de antemão


conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele
seja o primogênito entre muitos irmãos.”

Os eleitos foram predestinados para se parecerem com


Jesus Cristo, para refletirem a Sua perfeita varonilidade, a
humanidade plena de Jesus Cristo. Este texto de Romanos indica
que alguma coisa errada aconteceu com a imagem de Deus no
homem após a queda, imagem essa que precisava ser refeita. A
conformidade com a imagem de Jesus Cristo é o mesmo que ser
3
Cl 1.15; Hb 1.3
feito à imagem de Deus. Jesus é a imagem e o reflexo exato do
ser de Deus.

A meta final da obra redentora de Cristo é devolver ao


homem aquilo que foi perdido na queda, isto é, a imagem de
Deus. Ser conformado à imagem de Jesus Cristo é ser
conformado à imagem de Deus. E é para isso que fomos
destinados de antemão.

A completação da obra da redenção será o sermos


semelhantes a Cristo, nosso Redentor. Esta restauração da
imagem já começou, mas ainda não está completada. Ainda
temos sementes do pecado em nós que impedem que a imagem
de Deus seja completamente vista em nós. À medida que Deus
completa a sua salvação em nós, restaurando-nos, Sua imagem
será plenamente vista, e Cristo será visto em nós.

Essa transformação é paulatina, pouco a pouco,


“transformados de glória em glória”, até que reflitamos
perfeitamente, amanhã, a glória de Jesus Cristo. Assim como
Cristo reflete a glória de Seu Pai, como Ele é a expressão exata
do Seu Ser, também nós haveremos de refletir perfeitamente a
imagem daquele que nos redimiu.

Embora tenhamos a imagem do Senhor restaurada em nós,


ainda não podemos vê-la plenamente, porque há embaraços, há
ainda pecaminosidade em nosso ser. Mas não podemos negar
que, de algum modo, já refletimos algo de nosso Senhor.

O processo de transformação pelo qual passamos, até que


reflitamos perfeitamente a imagem de Cristo, é paulatino, pois o
verbo grego metamorfou/meta (“estamos sendo
transformados”) indica essa idéia. O verbo dá a idéia de um
processo continuo, ainda não acabado. Já refletimos a imagem
de Cristo, mas ainda não fomos transformados completamente a
sua imagem.

Com a imagem de Deus restaurada em nós, Cristo restaura


também em nós os relacionamentos perdidos:

a) Restaura a nossa comunhão com Deus;

b) Restaura a nossa comunhão com os semelhantes;

c) Restaura a nossa comunhão com a natureza.

Posse non peccare (?)

4. A IMAGEM APERFEIÇOADA

Aprendemos que a queda causou aos homens a


necessidade de serem transformados para terem de volta aquilo
que perderam quando da sua criação. A meta final de Deus para
os redimidos é a perfeição de Cristo.
Que esta condição se dará somente depois da nossa
ressurreição, está claro de alguns textos da Escritura.

1 Co 15.49 — “E, assim como trouxemos a imagem


do que é terreno, devemos trazer também a imagem
do celestial”.

“Terreno” aqui se refere ao primeiro Adão. “Celestial”


refere-se ao segundo Adão, Jesus Cristo. O contexto dessa
passagem está no ensino sobre a ressurreição. Somente depois
da completação de nossa salvação é que refletiremos a perfeição
da imagem de Jesus Cristo. A glorificação do homem é o estado
final da redenção do pecador por quem Cristo morreu. Somente
no estado de glorificação é que o remido refletirá perfeitamente
a imagem de Cristo. Por enquanto, ele ainda está no processo,
mas então, o processo já estará terminado. Nesse tempo, até o
corpo refletirá aquilo que Cristo já é. Teremos um corpo
semelhante ao corpo de Sua glória (Fp 3.21).

Hoje não somos o que seremos, mas quando Cristo se


manifestar, isto é, na completação de nossa salvação, haveremos
de refletir perfeitamente Jesus Cristo. Por essa razão, João diz:
“ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que,
quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque
havemos de vê-lo como Ele é.” (1 Jo 3.2). A idéia de imagem de
Cristo, está perfeitamente delineada nesse verso. Após a nossa
ressurreição, haveremos de exibir tudo aquilo para o que fomos
destinados de antemão.

Non Posse Peccare

A reflexão da imagem de Cristo, nessa época, será vista na


capacidade de não pecar. Não teremos a impecabilidade 4 de
Cristo, porque continuaremos a ser homens, mas o Senhor Deus
nos livrará da presença do pecado e o non posse peccare de
Agostinho, será uma grande e maravilhosa realidade.

PARTE 3

O PACTO DAS OBRAS E A LEI DE DEUS

Não há como se questionar que Deus deu lei para Adão. A


lei foi dada para Adão como um principio regulativo para a sua
vida. Ela declara ao homem o que é bom e o que não é bom e,
4
Impecabilidade que advém do fato de Sua natureza humana estar inseparavelmente
unida á natureza divina.
por virtude de ser de autoridade divina, ela obriga o homem à
obediência.

A lei dada no Éden indica que o homem é um ser moral,


não um ser moralmente neutro ou indiferente.

Deus deu duas espécies de lei a Adão no Éden: a lei da


natureza e a lei expressa em palavras.

1. Deus deu ao homem uma lei natural.

Paulo nos diz que há uma lei impressa nos corações dos
homens desde que foram criados (Rm 2.14-15). Esta é a lei da
natureza. Essas leis não foram escritas nos corações dos homens
depois da Queda, mas na criação do homem. Se o homem depois
da Queda ainda possuem essas leis, quanto mais o homem antes
da Queda! Essas leis fazem parte da natureza constitucional do
homem, e o tornam um ser absolutamente moral, com padrões a
serem seguidos.

Essas leis naturais refletem não somente o caráter moral de


Adão, mas também a natureza de Deus. A natureza de ambos
exige a presença de leis, porque um reflete o primeiro reflete a
imagem do segundo. Se Deus é um ser moral, o homem também
tem que ser e, portanto, há algumas normas dadas por Deus que
refletem a moralidade do Criador na criatura. Por virtude de Sua
natureza, Deus está acima da criatura e tem a prerrogativa de
estabelecer leis para ser obedecido. Deus é soberano e o homem
é criatura dependente dEle em todas as coisas, sendo sujeito a
Ele em tudo.

Essas leis naturais são uma sombra daquilo que foi


posteriormente dado em forma escrita no tempo de Moisés. Elas
refletem os 10 Mandamentos quase que na sua inteireza. Essas
leis naturais são perfeitas, e Adão estava em posse dela. Ainda é
possível perceber a impressão delas na alma humana, embora os
homens tenham sido afetados moralmente pela Queda, mesmo
os homens que vivem numa civilização muito distante daquela
que conhecemos como “civilização cristã ou ocidental”.

Todos eles têm noções básicas das leis morais de Deus, a


quem devem obedecer. Após a Queda, Paulo diz, essa lei tornou-
se enferma por causa da natureza pecaminosa do homem que
obsta o homem de obedecê-la plenamente (Rm 8.3). A
inadequacidade não é da lei, mas daquele que se torna incapaz
de obedecê-la, mas há algo claro no texto: essa lei, se obedecida,
concederia vida, porque ela é espiritual.

Portanto, desde a sua criação, Adão tinha deveres de


obediência, embora estas leis impressas não revelem um caráter
pactual.

2. Deus deu ao homem uma lei expressa em palavras.

Elas estão afirmadas nas proibições de Gn 2.15-17. A lei


natural dada na criação expressão o caráter moral de Deus. Estas
leis são a expressão da Sua soberania que agora é formalmente
declarada. Elas são expressão de Sua soberania porque Ele não
precisava dá-las se não quisesse. Ao homem foi ordenado o
cuidado do jardim e a proibição de não comer da árvore do
conhecimento do bem e do mal.

Por quê Deus deu esta ordem a Adão? Se Deus não a


houvesse dado, Adão não teria pecado. A resposta a esta
objeção é que Deus não costuma dar justificativa de todos os
Seus atos, e Ele agiu assim conforme o conselho da Sua vontade.
Além disso, uma lei não significa necessariamente que alguém
deva desobedecê-la.

De uma coisa podemos todos estar absolutamente certos:


Com essa ordem Deus declara formalmente a Sua soberania, que
Ele era o Senhor, e que Ele requeria a obediência da criatura de
maneira inequívoca, sem que esta lhe pedisse qualquer
justificativa. Era dever do homem obedecer à lei e fazer a
vontade de Deus desejosamente, pois esta era a maneira de
continuar em boas relações com o Criador.

A alegria e a santa comunhão só poderiam continuar e


tornar-se ainda num grau maior e definitivo com a continuada
obediência da lei. Isto significava que o homem deveria estar
contente com aquilo que o Criador lhe havia dado até então,
sem desejar qualquer coisa superior a ela.

A resposta à pergunta feita logo acima não pode, portanto,


ser respondida, a menos que a entendemos à luz da soberania
divina, que faz todas as coisas segundo o conselho da sua
vontade.

O HOMEM NO ESTADO DE PECADO

A LIBERDADE E A MUTABILIDADE PARA O PECADO

Deus criou o homem com capacidade de auto determinar-


se, um agente livre, para agir sempre de acordo com as
disposições do seu coração. Ele poderia fazer tanto o bem, que
era próprio de sua natureza, mas também poderia,
mudavelmente, fazer o que era contrário à sua natureza,
pecando contra o Senhor Deus e Suas leis.

Novamente a CFW diz:

O homem, em seu estado de inocência, tinha a


liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é
bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte
que pudesse decair dessa liberdade e poder. (IX.2)

Deus criou o homem com uma santidade mutável. Como já


foi dito acima, a santidade no homem não era parte essencial
nele, como o é em Deus. Santidade não é um atributo
constitucional do homem. A prova disso é que ele a perdeu e,
ainda assim, continua sendo homem. Deus é livre na expressão
da Sua santidade, e ela é sempre a mesma, por causa da própria
natureza imutável de Deus.

Deus nunca vai fazer alguma coisa diferente daquilo que


Ele é. Por isso Ele não pode pecar. Sua vontade quer sempre
aquilo que a Sua natureza determina. Na Sua infinitude há a
exclusão da idéia de mudança na vontade. Deus não tem o poder
de escolha contrária, isto é, de fazer algo que vá de encontro à
Sua natureza. Deus é um ser moral livre, todavia só faz aquilo
que é próprio da Sua natureza. Portanto, em Deus liberdade e
necessidade moral São a mesma coisa. Para que haja liberdade,
não há a necessidade de haver o poder de escolha contrária.

A liberdade em Deus é uma auto-determinação imutável,


mas no homem, como ser finito que é, a capacidade de auto-
determinação ou seja, a capacidade de fazer as coisas de acordo
com a natureza, é mutável. Deus deu ao homem, no principio,
aquilo que Ele próprio não possuía, a capacidade de escolha
contrária. O homem era livre para expressar a santidade com a
qual Deus o havia criado, mas de tal modo que pudesse também
fazer algo contrário à sua santidade.

Para que Adão fosse livre, ele não precisava ter o poder de
fazer algo reverso. “O poder de reverter a auto-determinação
existente não é a substância da liberdade, mas é um acidente
dela.”5 Deus é livre sem esse acidente. Mas Deus deu ã criatura
essa capacidade de escolha contrária, e ela a usou para a sua
própria vergonha.

Por isso é possível entender como uma pessoa santa como


Adão poderia fazer o que fez. Ele usou a capacidade de escolha
contrária que lhe foi dada por Deus.

Há que se olhar essa atitude de Adão de um outro prisma.


Ele era Simplesmente uma criatura perfeita. Como criatura,
contudo, dependia de Deus para todas as coisas da vida natural,
como dependia de Deus para que sua vida de comunhão com Ele
continuasse. E próprio de toda a criação essa dependência de
vida. Vida é algo que é dado, mantido e renovado por Deus. E
Adão era santo, mas apenas uma criatura, desprovida de
qualquer senso de onisciência, passível de ser enganada, que
poderia pensar no mal como algo que não fosse tão mal assim.
Embora a condição moral do homem fosse de excelência, sem
tendência para o mal, todavia, poderia cair desse estado.

Toda a criatura tem algo que Deus não tem —


mutabilidade. Esta é uma das grandes distinções entre Deus e a
criatura. Imutabilidade e impecabilidade são atributos do
Criador, não das criaturas, sejam elas homens ou anjos.

A liberdade de Adão e Eva consistia no fato de fato deles


poderem escolher ou abraçar aquilo era bom e agradável ao seu
entendimento, como Deus queria, ou para colocar de outro
modo, em recusar aquilo que era mau. Ele tinham o poder de
continuar no estado em que foram criados. Era só agirem de
acordo com a natureza santa que Deus lhes havia dado. Mas não
foi assim que fizeram. Simplesmente puseram em ação a
capacidade de fazer aquilo que era contrairão à natureza deles.

5
Shedd, vol. 2, p. 107.
Contudo, desobedeceram a Deus, agindo voluntariamente,
constituindo-se numa situação singular em toda a história
humana. Usaram da liberdade de escolha contrária que tiveram
para perderem-se a si mesmos, imergindo-se a si mesmos e toda
a raça na escravidão da miséria.

O HOMEM NO ESTADO DE PECADO

I. A Origem do Pecado
O problema do mal que há no mundo sempre foi
considerado um dos mais profundos problemas da filosofia e
da teologia. É um problema que se impõe naturalmente à
atenção do homem, visto que o poder do mal é forte e
universal, é uma doença sempre presente na vida em todas as
manifestações desta, e é matéria da experiência diária na vida
de todos os homens. Os filósofos foram constrangidos a
encarar o problema e a procurar uma resposta quanto à
origem de todo mal, e particularmente do mal moral, que há
no mundo. A alguns, pareceu uma parte de tal modo
integrante da vida, que buscaram a solução na constituição
natural das coisas. Outros, porém, estão convictos que o mal
teve uma origem voluntária, isto é, que se originou na livre
escolha do homem, quer na existência atual quer numa
existência anterior. Estes acham-se bem mais perto da verdade
revelada na Palavra de Deus.

A. Conceitos Históricos a Respeito da Origem do Pecado.


Os mais antigos “pais da igreja”, assim chamados, não
falam muito definidamente da origem do pecado, conquanto a
idéia de que se originou na voluntária transgressão e queda de
Adão no paraíso já achasse nos escritos de Irineu. Esta se
tornou logo a idéia dominante na igreja, especialmente em
oposição ao gnosticismo, que considerava o mal inerente à
matéria e, como tal, produto do Demiurgo. O contato da alma
humana com a matéria imediatamente a tornou pecaminosa.
Essa teoria naturalmente priva o pecado do seu caráter
voluntário e ético. Orígenes procurou manter isso com a sua
teoria do preexistencialismo. Segundo ele, as almas dos
homens pecaram voluntariamente numa existência anterior e,
portanto, entraram no mundo numa condição pecaminosa.
Esta idéia platônica estava tão sobrecarregada de dificuldades
que não pôde encontrar aceitação geral. Contudo, durante os
séculos dezoito e dezenove foi defendida por Mueller e
Rueckert, e por filósofos como Lessing, Schelling e J. H. Fichte.
Em geral os chamados pais da igreja grega, do terceiro e do
quarto século, mostravam certa inclinação para reduzir entre o
pecado de Adão e o dos seus descendentes, ao passo que os
“pais” da igreja latina ensinavam cada vez com maior clareza
que a atual condição pecaminosa do homem encontra a sua
explicação na primeira transgressão de Adão no paraíso. Os
ensinos da igreja oriental culminaram finalmente no
pelagianismo, que negava a existência de alguma relação vital
entre ambos, enquanto que os da igreja ocidental chegaram
ao seu ponto culminante no agostinianismo, que acentuava o
fato de que somos culpados e corruptos em Adão. O
semipelagianismo admitia a conexão adâmica, mas sustentava
que isso explica apenas a corrupção do pecado, não a culpa.
Durante a Idade Media reconhecia-se geralmente essa
conexão. Às vezes era interpretada à maneira agostiniana, mas
com mais freqüência, à maneira semipelagiana. Os
reformadores compartilhavam os conceitos de Agostinho, e os
socinianos os de Pelágio, enquanto que os arminianos
moviam-se em direção ao semipelagianismo. Sob a influencia
do racionalismo e da filosofia evolucionista, a doutrina da
queda do homem e de seus efeitos fatais sobre a raça humana
aos poucos foi descartada. A idéia do pecado foi substituída
pela do mal, e este mal era explicado de varias maneiras. Kant
o considerava como uma coisa pertencente à esfera super-
racional, que ele confessava não ter condições de explicar.
Para Lebnitz, devia-se às necessárias limitações do universo.
Schleiermacher via sua origem na natureza sentimental do
homem, e Ritschl na ignorância humana, ao passo que o
evolucionista o atribui à oposição das propensões inferiores à
consciência moral em seu desenvolvimento gradativo. Barth
fala da origem do pecado como o mistério da predestinação. O
pecado originou-se na Queda, mas a Queda não foi um evento
histórico; pertence à super-historia (Urgeschinchte). Adão foi
de fato o primeiro pecador, mas a sua desobediência não pode
ser considerada a causa do pecado do mundo. De algum
modo, o pecado do homem está ligado à sua condição de
criatura. A narrativa do paraíso apenas transmite ao homem a
prazerosa informação de que ele não tem por que ser
necessariamente um pecador.

B. Dados Bíblicos a Respeito da Origem do Pecado.


Na Escritura, o mal moral existente no mundo transparece
claramente como pecado, isto é, como transgressão da lei de
Deus. Nela o homem sempre aparece como transgressor pó
natureza, e surge naturalmente a questão: Como adquiriu ele
essa natureza? Que revela a Bíblia sobre esse ponto?

1. NÃO SE PODE CONSIDERAR DEUS COMO O SEU AUTOR.


O decreto eterno de Deus evidentemente deu a certeza da
entrada do pecado no mundo, mas não se pode interpretar
isso de modo que faca de Deus a causa do pecado no sentido
de ser Ele o seu autor responsável. Esta idéia é claramente
excluída pela Escritura. “Longe de Deus o praticar ele a
perversidade, e do Todo-poderoso o cometer injustiça”, Jó
34.10. Ele é o santo Deus, Is 6.3, e absolutamente não há falta
de retidão nele, Dt 32.4; Sl 92.16. Ele não pode ser tentado
pelo mal, e Ele próprio não tenta a ninguém, Tg 1.13. Quando
criou o homem, criou-o bom e à Sua imagem. Ele
positivamente odeia o pecado, Dt 25.16; Sl 5.4; 11.5; Zc 8.17;
Lc 16.15, e em Cristo fez provisão para libertar do pecado o
homem. À luz disso tudo, seria blasfemo falar de Deus como o
autor do pecado. E por essa razão, todos os conceitos
deterministas que representam o pecado como uma
necessidade inerente à própria natureza das coisas devem ser
rejeitados. Por implicação, eles fazem de Deus o autor do
pecado e são contrários, não somente à Escritura, mas
também à voz da consciência, que atesta a responsabilidade
do homem.

2. O PECADO ORIGINOU-SE NO MUNDO ANGÉLICO. A Bíblia


nos ensina que, na tentativa de investigar a origem do pecado,
devemos retornar à queda do homem, na descrição de Gn 3 e
fixar a tenção em algo que sucedeu no mundo angélico. Deus
criou um grande número de anjos, e estes eram todos bons,
quando saíram das mãos do seu Criador, Gn 1.31. Mas ocorreu
uma queda no mundo angélico, queda na qual legiões de anjos
se apartaram de Deus. A ocasião exata dessa queda não é
indicada, mas em Jó 8.44 Jesus fala do diabo como assassino
desde o princípio (kat’arches), e em 1 Jo 3.8 diz João que o
diabo peca desde o princípio. A opinião é a de que a expressão
kai’ arches significa desde o começo da história do homem.
Muito pouco se diz sobre o pecado que ocasionou a queda dos
anjos. Da exortação de Paulo a Timóteo, a que nenhum neófito
fosse designado bispo, “para não suceder que se ensoberbeça,
e incorra na condenação do diabo”, 1 Tm 3.6, podemos
concluir que, com toda a probabilidade, foi o pecado do
orgulho, de desejar ser como Deus em poder e autoridade. E
esta idéia parece achar corroboração em Jd 6, onde se diz que
os que caíram “não guardaram o seu estado original, mas
abandonaram o seu próprio domicílio”. Não estavam
contentes com a sua parte, com o governo e poder que lhes
fora confiado. Se o desejo de serem semelhantes a Deus foi a
tentação peculiar que sofreram, isto explica por que tentaram
o homem nesse ponto particular.

3. A ORIGEM DO PECADO NA RAÇA HUMANA. Com respeito


à origem do pecado na história da humanidade, a Bíblia ensina
que ele teve início com a transgressão de Adão no paraíso e,
portanto, com um ato perfeitamente voluntário da parte do
homem. O tentador veio do mundo dos espíritos com a
sugestão de que o homem, colocando-se em oposição a Deus,
poderia tornar-se semelhante a Deus. Adão se rendeu à
tentação e cometeu o primeiro pecado, comendo do fruto
proibido. Mas a coisa não parou aí, pois com esse primeiro
pecado Adão passou a ser escravo do pecado. Esse pecado
trouxe consigo corrupção permanente, corrupção que, dada a
solidariedade da raça humana, teria efeito, não somente sobre
Adão, mas também sobre todos os seus descendentes. Como
resultado da Queda, o pai da raça só pôde transmitir uma
natureza depravada aos pósteros. Dessa fonte não santa o
pecado flui numa corrente impura passando para todas as
gerações de homens, corrompendo tudo e todos com que
entra em contato. É exatamente esse estado de coisas que
torna tão pertinente a pergunta de Jó, “Quem da imundícia
poderá tirar cousa pura? Ninguém”, Jó 14.4. Mas ainda isso
não é tudo. Adão pecou não somente como o pai da raça
humana, mas também como chefe representativo de todos os
seus descendentes; e, portanto, a culpa do seu pecado é posta
na conta deles, pelo que todos são passíveis de punição e
morte. É primariamente nesse sentido que o pecado de Adão é
o pecado de todos. É o que Paulo ensina em Rm 5.12:
“Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou
a todos os homens, porque todos pecaram”. As últimas
palavras só podem significar que pecaram em Adão, e isso de
modo que se tornaram sujeitos ao castigo e à morte. Não se
trata do pecado considerado meramente como corrupção,
mas como culpa que leva consigo o castigo. Deus adjudica a
todos os homens a condição de pecadores culpados em Adão,
exatamente como adjudica a todos os crentes a condição de
justos em Jesus Cristo. É o que Paulo quer dizer, quando
afirma: “pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre
todos os homens para condenação, assim também por um só
ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a
justificação que dá vida. Porque, como pela desobediência de
um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também
por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos”,
Rm 5.18, 19.

C. A Natureza do Primeiro Pecado ou da Queda do


Homem.
1. SEU CARÁTER FORMAL. Pode-se dizer que, numa
perspectiva puramente formal, o primeiro pecado do homem
consistiu em comer ele da árvore do conhecimento do bem e
do mal. Não sabemos que espécie de árvore era. Poderia ser
uma tamareira ou uma figueira ou qualquer outra árvore
frutífera. Nada havia de ofensivo no fruto da árvore como tal.
Comê-lo não era pecaminoso per se, pois não era uma
transgressão da lei moral. Quer dizer que não seria
pecaminoso, se Deus não tivesse dito: “da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás”. Não há opinião
unânime quanto ao motivo pelo qual a árvore foi denominada
do conhecimento do bem e do mal. Uma opinião das mais
comuns é que a árvore foi chamada assim porque o comer do
seu fruto infundiria conhecimento prático do bem e do mal;
mas é difícil sustentar isso face à exposição bíblica segundo a
qual, comendo-o, o homem passaria a ser como Deus, no
conhecimento do bem e do mal, pois Deus não comete pecado
e, portanto, não tem conhecimento prático dele. É muito mais
provável que a árvore foi denominada desse modo porque
fora destinada a revelar (a) se o estado futuro do homem seria
bom ou mal; e (b) se o homem deixaria que Deus lhe
determinasse o que era bom ou mau, ou se encarregaria de
determina-lo por si e para si. Mas, seja qual for a explicação
que se dê do nome, a ordem de Deus para não comer do fruto
da árvore serviu simplesmente ao propósito de pôr à prova a
obediência do homem. Foi um teste de pura obediência, desde
que Deus de modo nenhum procurou justificar ou explicar a
proibição. Adão tinha que mostrar sua disposição para
submeter a sua vontade à vontade do seu Deus com
obediência implícita.

2. SEU CARÁTER ESSENCIAL E MATERIAL. O primeiro pecado


do homem foi um pecado típico, isto é, um pecado no qual a
essência real do pecado se revela claramente. A essência desse
pecado está no fato de que Adão se colocou em oposição a
Deus, recusou-se a sujeitar a sua vontade à vontade de Deus
de modo que Deus determinasse o curso da sua vida; e tentou
ativamente tomar a coisa toda das mãos de Deus e determinar
ele próprio o futuro. O homem, que não tinha absolutamente
nenhum direito para alegar a Deus, e que só poderia
estabelecer algum direito pelo cumprimento da condição da
aliança das obras, desligou-se de Deus e agiu como se
possuísse certos direitos contra Deus. A idéia de que o
mandado de Deus era de fato uma infração dos direitos do
homem parece que já estava na mente de Eva quando, em
resposta à pergunta de Satanás, acrescentou as palavras, “nem
tocareis nele”, Gn 3.3. Evidentemente ela quis salientar o fato
de que a ordem não fora razoável. Partindo da pressuposição
de que tinha certos direitos contra Deus, o homem promulgou
o novo centro de operações, que viu nele próprio, onde agir
contra o seu Criador. Isto explica o seu desejo de ser como
Deus e a sua dúvida quanto às boas intenções de Deus ao dar-
lhe a ordem. Naturalmente podem distinguir-se diferentes
elementos do seu primeiro pecado. No intelecto revelou-se
como incredulidade e orgulho, na vontade, como o desejo de
ser como Deus, e nos sentimentos, como uma ímpia satisfação
ao comer do fruto proibido.
D. O Primeiro Pecado ou a Queda como Ocasionada pela
Tentação.
1. OS PROCEDIMENTOS DO TENTADOR. A queda do homem
foi ocasionada pela tentação da serpente, que semeou na
mente do homem as sementes da desconfiança e da
descrença. Embora indubitavelmente a intenção do tentador
fosse levar Adão, o chefe da aliança, a cair, não obstante
dirigiu-se a Eva, provavelmente porque (a) não exercia a chefia
da aliança e, portanto, não teria o mesmo senso de
responsabilidade; (b) não recebeu diretamente a ordem de
Deus, mas apenas indiretamente e, por conseguinte, seria mais
suscetível de ceder à argumentação e duvidar; e (c) seria sem
dúvida o instrumento mais eficiente para alcançar o coração
de Adão. O curso seguido pelo tentador é bem claro. Em
primeiro lugar, ele semeia as sementes da dúvida pondo em
questão as boas intenções de Deus e insinuando que Sua
ordem era realmente uma violação da liberdade e dos direitos
do homem. Quando nota, pela reação de Eva, que a semente
tinha criado raiz, acrescenta as sementes da descrença e do
orgulho, negando que a transgressão resultaria na morte e
dando a entender claramente que a ordem divina fora
motivada pelo objetivo egoísta de manter o homem em
sujeição. Ele afirma que, ao comer da árvore, o homem
passaria a ser como Deus. As elevadas expectativas assim
geradas induziram Eva a observar com atenção a árvore, e
quanto mais olhava, melhor lhe parecia o fruto. Finalmente, o
desejo lhe moveu a mão, e ela comeu do fruto e também o
deu ao marido, e ele comeu.

2, INTERPRETAÇÃO DA TENTAÇÃO. Freqüentes tentativas


têm sido feitas, e continuam sendo feitas, para explicar a
Queda negando-lhe o caráter histórico. Alguns acham que
toda a narrativa de Gênesis 3 é uma alegoria que representa
figuradamente a autodepravação do homem e sua mudança
gradativa. Barth e Brunner consideram a narrativa do estado
original e da queda do homem um mito. Para eles, tanto a
Criação como a Queda pertencem, não à história, mas ao que
denominam super-história (Urgeschichte) e, daí, ambas são
igualmente incompreensíveis. A narrativa dada em Gênesis
ensina-nos meramente que, embora o homem seja
atualmente incapaz de realizar algum bem e esteja sujeito à lei
da morte, não há por que ser necessariamente assim. É
possível ao homem livrar-se do pecado e da morte por uma
vida de comunhão com Deus. Tal é a vida retratada para nós
na narrativa sobre o paraíso, e ela prefigura a vida que nos é
assegurada naquele de quem Adão foi apenas um tipo, a saber
Cristo. Mas não é a classe de vida que o homem vive agora, ou
que sempre viveu, desde o início da história. O paraíso não é
uma certa localidade que podemos assinalar mas existe onde
Deus é Senhor e o homem e as demais criaturas Lhe são
sujeitos voluntariamente. O paraíso do passado está além dos
limites da história humana. Diz Barth: “Quando a história do
homem começou; quando o tempo do homem teve seu
começo; quando o tempo e a história começaram onde o
homem tem a primeira e a última palavra, o paraíso
desapareceu”.6 É do mesmo teor o que Brunner fala, quando
diz: “Assim como com respeito à Criação perguntamos em vão:
Como, quando e onde aconteceu?. Também se dá com a
Queda. Tanto a Criação como a Queda estão por trás da
realidade histórica visível”.7

Outros, que não negam o caráter histórico da narrativa de


Gênesis, afirmam que pelo menos a serpente não deve ser
considerada como um animal literal, mas apenas como um
nome ou um símbolo da cobiça, do desejo sexual, do raciocínio
pecaminoso, ou de Satanás. Ainda outros asseveram que, para
dizer o mínimo, o falar da serpente deve ser entendido
figuradamente. Mas todas estas interpretações, e outras
quejandas, são insustentáveis à luz da Escritura. As passagens
que precedem e se seguem a Gn 3.1-7 manifestam evidente
propósito de construir uma pura e simples narrativa histórica.

6
Gd’s Search for Man, p. 98.
7
Man in Revolt, p. 142.
Pode-se provar que assim foram entendidas pelos escritores
bíblicos, mediante muitas referências, como por exemplo, Jó
31.33; Ec 7.29; Is 43.27; Os 6.7; Rm 5.12, 18, 19; 1 Co 5.21; 2
Co 11.3; 1 Tm 2.14, e, portanto, não temos o direito de afirmar
que os referidos versículos, que constituem parte integrante
da narrativa, devem ser interpretados figuradamente. Além
disso, certamente a serpente é considerada como um animal
em Gn 3.1, e não daria bom sentido substituir “serpente” por
“Satanás”. O castigo de que fala Gn 3.14, 15 pressupõe uma
serpente literal, e Paulo não a entende doutro modo, em 2 Co
11.3. E, apesar de poder-se entender num sentido figurado a
serpente falar por meio de gestos astutos, não parece possível
imaginá-la mantendo dessa maneira a conversação registrada
em Gn 3. A transação toda, a fala da serpente inclusive, sem
dúvida acha sua explicação na operação de algum poder
sobrenatural, não mencionado em Gn 3. A Escritura dá a
entender claramente que a serpente foi apenas um
instrumento de Satanás, e que Satanás foi o real tentador, que
agiu na serpente e por meio dela, como posteriormente agiu
em homens e em porcos, Jo 8.44; Rm 16.20; 2 Co 11.3; Ap
12.9. A serpente foi um instrumento próprio para Satanás, pois
ele é a personificação do pecado, e a serpente simboliza o
pecado (a) em sua natureza astuta e enganosa, e (b) em sua
picada venenosa, com a qual mata o homem.
3. A QUEDA PELA TENTAÇÃO E A SALVABILIDADE DO
HOMEM. Tem-se sugerido que o fato de que a queda do
homem foi ocasionada pela tentação proveniente de fora,
pode ser uma das razões pelas quais o homem é salvável,
diversamente dos anjos, que não estiveram sujeitos a uma
tentação externa, mas caíram pelas incitações da sua própria
natureza interior. Nada de certo se pode dizer sobre este
ponto, porém. Mas, seja qual for o significado da tentação a
este respeito, certamente não será suficiente para explicar
como um ser santo como Adão pôde cair em pecado. É-nos
impossível dizer como a tentação pôde encontrar um ponto de
contato numa pessoa santa. E mais difícil de explicar ainda, é a
origem do pecado no mundo angélico.

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