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REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DA INSTITUCIONALIZAÇÃO E O

DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Solange Correia Picado*

Mônica Furtado Rodrigues**

Este texto tem por objetivo socializar algumas questões advindas da prática do

Serviço Social num esforço de problematizar as evidências reveladas no trato da

medida protetiva de abrigo.

Quando a questão é a política de atendimento à infância e juventude, cabe o

questionamento acerca do lugar destinado historicamente a essa parcela da população

brasileira. Logo, é inerente à discussão o aspecto da institucionalização de pessoas em

desenvolvimento, com necessidades especiais.

Fomentar um debate na esfera dos direitos fundamentais, embora possa soar

ultrapassado, mostra-se atual e urgente, considerando que a mudança do paradigma

jurídico, ilustrada na Constituição Federal (CF) e no Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), implica a revisão da construção histórica da infância na nossa

sociedade.

Em diversas partes do mundo efervescem produções científicas que apontam

para o redirecionamento das instituições de proteção ao contingente infanto-juvenil,

destacando-se o princípio da continuidade familiari.

Atualmente, o princípio da continuidade familiar perpassa as sociedades como

preocupação mundial que ganha força para penetrar nos marcos das instituições de

abrigo: últimos vestígios de espaços totais.

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O ECAii inscreve-se na era dos direitosiii ao redefinir o lugar da infância, na

medida em que proclama seus direitos fundamentais e reordena as relações entre

Estado, sociedade e família.

“O problema fundamental em relação aos direitos do


homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de
protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico,
mas político”.iv

No entanto, dez anos após a promulgação da Legislação Menorista, ainda

predomina a cultura do Código de Menores, fruto do legado sócio-histórico que imputa

à institucionalização a solução para crianças (e suas famílias) em situação de risco (ou

“situação irregular”?).

O ECA, respeitado como dispositivo legal, tem seu impacto amortecido no jogo

das relações de poder vigentes, haja vista que a letra legal é amplamente divulgada, mas

não incorporada ao contexto institucional, alterando apenas conceitualmente os modelos

de assistência à infância.

“A cidadania da criança e do adolescente foi


incorporada na agenda dos atores políticos e nos
discursos oficiais muito recentemente, em função da
luta dos movimentos sociais no bojo da elaboração
da Constituição de 1988. Na cultura e estratégias de
poder predominantes, a questão da infância não se
tem colocado na perspectiva de uma sociedade e de
um Estado de direitos, mas na perspectiva do
autoritarismo/clientelismo, combinando benefícios
com repressão, concessões limitadas, pessoais e
arbitrárias, com disciplinamento, manutenção da
ordem ao sabor das correlações de forças sociais ao
nível da sociedade do governo”. v

A medida de abrigo proposta pelo ECA ainda se debate com os resquícios de um

caldo de cultura fundado na filantropia e nos ditames legais do superado Código de

Menores.

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Com o advento do ECA, a função social das entidades de abrigo ganha uma

dimensão promocional, que dá destaque ao direito à convivência familiar e comunitária,

ressaltando a excepcionalidade e provisoriedade da medida de institucionalização.

Embora o ECA legalize uma nova concepção de infância, é visível o

descompasso entre a letra legal e a realidade desvendada nos abrigos.

Fundamentado na doutrina de proteção integral, o ECA preconiza um

reordenamento institucional com base na redefinição de concepções e métodos no trato

dos direitos e garantias de que são titulares as crianças e os adolescentes.

A convivência familiar e comunitária, no patamar de direito fundamental,

consolida-se em preceito legal que se contrapõe à perversa lógica da institucionalização

compulsória.

A visão de criança-cidadão e adolescente-cidadão é o divisor de águas com a

herança cultural cristalizada no Código de Menores. A liberdade associada ao princípio

da convivência familiar e comunitária tece o fio condutor da atual Legislação

Menorista.

Preservação e fortalecimento dos vínculos familiares; integração em família

substituta; orientação e apoio sócio-familiar; apoio sócio-educativo em meio aberto são

princípios que se impõem à medida de internação configurada, na atual Legislação,

numa condição excepcional e breve.

No entanto, a história revela o confinamento da criança e adolescente em

situações de risco como procedimento rotineiro para dar conta da situação desses

desvalidos.

Hoje a tônica das Legislações não é a prática do asilamento, como também não

cabe um impasse entre liberdade ou internação. O ECA, quando proclama a criança e o

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adolescente como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais, imprime novas

diretrizes.

Esses são os sinais do novo tempo que imprimem a filosofia de proteção integral

à criança e ao adolescente, redefinindo seu lugar de direito: a família.

No final do século XX a história registra uma mudança de paradigma: a absoluta

prioridade dada à criança e ao adolescente, quer dizer: cuidar da a criança e

adolescente começa pela atenção aos valores de convivência familiar e social.

A partir dessa prerrogativa determina-se que a política de atendimento dos

direitos da criança/adolescente imprima à medida de abrigo a natureza de “provisória e

excepcional como forma transitória para colocação em família substituta, não

implicando privação de liberdade.”vi

A prática de institucionalização de crianças e adolescentes é atingida em sua

dinâmica e organização, propiciando a inversão da lógica tradicional, a partir do

investimento nos vínculos familiares em oposição aos internatos.

O aprisionamento da infância e da juventude mostra o lugar que o contingente

mais vulnerável da população ocupou ao longo da história: indivíduo de segunda classe.

DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Apontam-se, a seguir, as razões apresentadas para o predomínio do uso da

medida de abrigo em contraposição ao investimento na convivência familiar:

 Condições precárias ou ausência de moradia;

 Desemprego;

 Condições precárias ou ausência de capacitação profissional;

 Condições precárias e instáveis de geração de renda;

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 Envolvimento com drogas;

 Violência doméstica;

 Violência de gênero.

Os aspectos acima constituem o quadro multifacetado da exclusão social, que é a

tônica das famílias brasileiras, vulnerabilizando suas dinâmicas relacionais e

condenando o projeto familiar. As crianças e adolescentes, o elo mais frágil desse

processo, sujeitos a toda espécie de riscos sociais, são os primeiros a sofrer os efeitos da

exclusão, quando se vêem apartadas de sua rede parental.

Corroborando para legitimar a lógica da institucionalização, há outros

agravantes, de caráter mitológico:

 o mito da família ideal;

 o mito de que o abrigo é melhor do que as famílias;

 o mito de que abrigo é uma família substituta.

A massificação da infância pobre e a precariedade de políticas de atendimento às

famílias vulnerabilizadas socialmente favorecem a desconexão do correlato família-

criança, que redimensiona a questão da reintegração familiar.

O desmonte do paradigma da institucionalização vincula-se aos entraves e

desafios da materialização do Estatuto na vida de seus protagonistas, no que tange a

seus direitos pessoais e sociais. Em contrapartida, as possibilidades de a infância ser

conduzida na perspectiva de uma sociedade e Estado de direitos se dá a partir da

consolidação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos

Conselhos Tutelares, legítimos para traçar um diagnóstico social preciso quanto à

situação da infância no país, promovendo ações específicas junto às prefeituras e

Estados para a implementação e funcionamento do ECA.

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A coesão dos Conselhos Tutelares e sua parceria com segmentos da sociedade

civil e do Estado tornam-se estratégia viável para garantir a superação de um tratamento

estigmatizante dado à infância em risco social.

A reintegração familiar só será passível de sair do campo das possibilidades a

partir da atuação dos Conselhos, que embora acusem problemas de infra-estrutura,

capacitação e retaguarda, são os órgãos políticos que garantem a defesa dos direitos

fundamentais da criança e do adolescente.

No trato da cultura da institucionalização vislumbram-se alguns indicativos para

a continuidade da convivência familiar:

 a necessidade urgente de se formar uma rede articulada de serviços que

possibilite a descentralização e democratização dos projetos, recursos e

informações;

 a criação de política de atendimento às famílias de modo a favorecer uma

reflexão crítica sobre a prática da institucionalização e gerenciamento das

verbas públicas;

 o investimento na capacitação dos jovens preparando-os para a autonomia,

sobretudo daqueles privados de referência afetivo-familiar;

 o investimento na abordagem interdisciplinar da infância;

 a parceria entre as equipes técnicas (abrigos, Conselhos Tutelares e

Judiciário), visando uma prática complementar e articulada;

 a aproximação das equipes técnicas com Universidades, visando capacitação

e pesquisa.

O investimento no correlato família-criança pode traduzir-se em uma nova

ordem de alocação e aplicação de verbas públicas, de modo a minar o ciclo do abandono

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social, político, familiar.

Estes são alguns pontos vislumbrados a partir do processo de trabalho do

Serviço Social da 1ª Vara da Infância e Juventude da cidade do Rio de Janeiro.

É inegável a necessidade de se aprofundar as discussões que permeiam a prática

de atendimento à infância e juventude, em especial as ações voltadas à

institucionalização de crianças e adolescentes.

Com o presente texto, esperamos ter contribuído, ainda que de forma limitada,

para uma maior reflexão sobre a temática, envolvendo outros profissionais e outras

instituições.

Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Federal nº. 8.069 de 13/07/90.

Brasília: Governo Federal, 1990.

BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 10ª ed. Rio de Janeiro: Campus,1992.

BOWLBY, John. Cuidados Maternos e Saúde Mental. 3ª ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1995.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva,

1992.

PILOTTI e RIZZINI. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da

legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula/Amais

Livraria e Editora, 1995.

VICENTE, Cenise Monte. “O direito a convivência familiar e comunitária: uma política

de manutenção do vínculo”. In: Família Brasileira, a base de tudo. 3ª ed. São Paulo:

7
Cortez/UNICEF, 1998.

_________, Reintegração familiar como tema prioritário. Conference for Children

and Residential Care. Stockholm, Sweden, maio/1999 (xerox)

*
Assistente social da 1ª Vara da Infância e Juventude da comarca da capital do Estado do Rio de Janeiro
e mestre em Serviço Social.
**
Assistente social da 1ª Vara da Infância e Juventude da comarca da capital do Estado do Rio de Janeiro
e pós-graduada em Serviço Social.
i
_______. Reintegração familiar como tema prioritário. Conference for Children and Residential Care.
Stockholm, Sweden, maio/1999 (xerox).
ii
A organização da sociedade civil e sua articulação com segmentos do Estado nos anos 80 propiciaram a
edificação de uma Legislação inovadora, na medida em que rompe com o tratamento estigmatizante dado
a um contingente significativo da infância, considerada em situação irregular. O ECA, aprovado em
13/06/90, decorre da mobilização nacional na luta pela democratização, direitos e participação nas
políticas públicas visando resgatar o exercício da cidadania.
iii
Bobbio discute a importância do reconhecimento e proteção dos direitos do homem na atualidade,
destacando algumas teses: os direitos naturais são direitos históricos; nascem na era Moderna, juntamente
com a concepção individualista da sociedade; tornando-se um dos principais indicadores do progresso
histórico.
iv
Bobbio, Op. cit.: 24.
v
FALEIROS. “Infância e o Processo Político no Brasil”. In: A arte de governar crianças: a história das
políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. p.51.
vi
Ibid., artigo 100º, parágrafo único.

RESUMO
Ao longo de séculos, o imaginário social consubstanciou-se na crença de que o lugar
comum da criança era fora da família. A rede configura-se numa referência distante, que
repassava as funções de proteção e socialização de suas crianças a terceiros. Atualmente, em
diversas partes do mundo efervescem produções científicas que apontam para o
redirecionamento das instituições de proteção ao contigente infanto-juvenil, destacando-se o
princípio da continuidade familiar.
No entanto, dez anos após a promulgação da Legislação Menorista ainda predomina a
cultura do Código de Menores. O ECA tem seu impacto amortecido no jogo das relações de
poder vigente, haja vista que a letra legal é amplamente divulgada, mas não incorporada ao
contexto instituicional, alterando-se apenas conceitualmente os modelos de assistência à
infância.
Nesse cenário a contradição entre a Lei e a realidade oferece espaço para a
permanência de instituições que se utilizam de uma rotina de atendimento privativa de
liberdade, cerceando os vínculos familiares e sociais.
O desmonte do paradigma da institucionalização vincula-se a materialização do ECA na
vida de seus protagonistas, no que tange a seus direitos fundamentais. Em contrapartida, as
possibilidades de a infância ser conduzida na perspectiva de um Estado de direitos se dá a partir
da consolidação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos
Conselhos Tutelares, legítimos para traçar um diagnóstico social preciso quanto a situação da
infância no país, promovendo ações específicas junto às prefeituras e Estados para a
implementação e funcionamento do ECA.

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