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Conflito bélico ou genôcídio?
Sob a instigação da lngl<tterrât a guerra contra-o
'Paraguai - o mais impott(jnléconflito em que o
Brasil se envolveu, ao iado da Argentina e do
Uruguai - revela crimes de guerra cometidos.por
mitos. heróicos como Coxias, Tamandarê,
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Enfoque corajoso de uma realidade .
sistematicamente ignorada pela história oficial, a
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Júlio José Chiavenato

Obras do autor: •

Cai o Império
Cangaço, a Força do Coronel
A GUERRA CONTRA
República vou ver Colombo, Fato e Mito
Lilia Schwarcz/Angeli
Genocídio Americano
~OPARAGUAI
o Ensino de História A Guerra do Paraguai
Revisão urgente
Conceição Cabrini e .outras () Negro no Brasil 2~ edição
Da Senzala à Guerra do
Da Monarquia à República Paraguai
Momentos decisivos
Emília Viotti da Costa
Coleção Tudo é História

o Caudilhismo
Julio Pímentel Pinto

A Guerra do Paraguai 'roMBO: 119666


z: Visão
Francisco Doratiotto

As Independências na
América Latina
Leon Pomer

o Militarismo na América
Latina
Clóvis Rossi

editora brasiliense
~Q5 Copyright © by Júlio José Chiauenato, 1990.
T~1.D Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
\J ~~ reproduzida por meios mecânicos ou outros
2~. quaisquer sem autorização prévia do editor .

.>L ISBN:, 85-11-02131-0


Primeira edição, 1990

2 f edição, 1993
sUMÁRIO

Revisão: Shizuka Kuchiki


Capà e ilustrações: Simone M. Basíle
Introdução . . . 7
O Paraguai . , , 10
DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI Os agentes da guerra 24
905 A guerra contra o paraguai. As causas da guerra . 35
T912 O exército brasileiro 48
v.131
2.ed. Roubo, traição, crime 60
O fim de um povo livre 73
//111111/1111/1111/11/1111/1111/11111111111111/111/1111111111111/
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Indicações de leitura 83

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Av. Marquês de São Vicente, 1771
01139-903 - São Paulo - SP
Fone (011) 825-0122 - Fax 67-3024

IMPRESSO NO BRASIL I lJ I
\

INTRODUÇÃO

Ao começar a guerra o Paraguai tinha 800 000


habitantes. Morreram 606000 (75,75%). Sobreviveram
194000 (24,25%). Entre eles apenas 14000 (1,75%)
eram homens e, destes, só 2 100 (0,26%), maiores de
vinte anos. Homens maiores de vinte anos mortos:
99,74%.
Por que esse genocídio?
Antes da resposta é preciso lembrar que a historio-
grafia tradicional é servil à ideolo gia dominante. A guer-
ra contra o Paraguai foi o mais importante conflito em
que o Brasil se envolveu. Aumentou o endividamento e
a dependência à Inglaterra; acelerou a campanha abo-
licionista; deu força aos republicanos e facilitou a queda
do Império.
., No entanto, ela só aparece esparsamente nos livros
de história. Destacam-se batalhas, enaltece-se o patrio-
tismo de mitos heróicos como Caxias, Tamandaré, Osó-
8 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 9

rio, etc., reduzindo a história a uma cruzada do bem É conhecendo-o que compreendemos as raízes da nossa
contra o mal. Mocinhos e bandidos digladiam-se. Natu- formação política e social.
ralmente, "nós" somos os mocinhos. Posto isso, podemos começar a procurar a respos-
É raríssimo um estudo mais sério que critique a ta:
natureza dessa guerra. Existem centenas de teses e - Por que o genocídio dos paraguaios?
ensaios de historiadores-brasileiros. Mas nada se produz
sobre a guerra do Paraguai. É que os mitos não se
sustentam apenas pela falsificação da história. A omis-
são também ajuda a permanência da mentira. E os
omissos não correm o risco de ser desmascarados.
go após a guerra, os historiadores ligados ao
Império trataram de justificar e encobrir o genocídio e
o caráter subimperialista da luta. Foi a fase da constru-
ção dos mitos, que se prolongou até a década de 20.
Depois, um silêncio de mais de cinqüenta anos. Com a
ditadura militar de 1964, as tentativas de revisar nossa
história foram acusadas de impatrióticas, especialmente
se focalizavam os "heróis militares".
Uma abordagem crítica desse conflito revela cri-
mes de guerra cometidos por Caxias, pelo conde d'Eu;
põe a nu a matança de meninos de nove a quinze anos;
destaca a covardia e a corrupção de muitos generais;
enfim, dá-nos o perfil inteiro do massacre de um povo
c, mais do que isso, mostra o Império do Brasil a serviço
da Inglaterra, esmagando um país livre para não dese-
quilibrar o sistema de dominação que o imperialismo
inglês mantinha na América do Sul.
Nenhum povo que pretenda entender o presente
e construir um futuro digno pode desprezar o passado.
I b I
"lh!!.
A Guerra Contra o Paraguai 11

fletos que a antiga classe dominante expulsa do Para-


guai introduz clandestinamente no país. Quanto mais o
denunciam como tirano, mais ele tem o apoio do povo.
Não é difícilentender essa situação aparentemente
paradoxal.
Antes de Francia assumir o poder o Paraguai era
como todos os países da América do Sul. A elite branca,
de origem espanhola (ou portuguesa, no Brasil), man-
o PARAGUAI -, dava e desmandava, aproveitando-se do trabalho de
índios e escravos. A independência dos Estados ameri-
canos não mudou esse tipo de sociedade. A exceção foi
o Paraguai.
Francia encarcerou os ricos. Acabou com a grande
o ditador subversivo propriedade. Distribuiu a renda entre o povo. Liquidou
a tradicional hierarquia política. Nivelou socialmente o
Ao libertar-se da Espanha em 1811, o Paraguai país, simplesmente exterminando - é a palavra - a
começa uma profunda subversão nos costumes políticos velha classe dominante. -
latino-americanos. Quando José Rodríguez Gaspar de A terra era propriedade coletiva.' Surgiram as
Francia assume o governo em 1814, nomeando-se El estancias de Ia patria - fazendas onde todos trabalha- ~
Supremo, as elites começam a perder o poder político
vam coletivamente e dividiam a produção entre si, dei-
e econômico. Se reagem, são presas. Os mais precavidos
xando a metade para o Estado. Em resumo, Francia
fogem para Buenos Aires. Os conformados refugiam-se
no interior. acabou com a pobreza. Deu dignidade ao homem: no
EI Supremo tem poder absoluto. Espiões infor- Paraguai do seu tempo, o povo composto por mais de
mam-lhe de tudo. Seti:'governo é inquestionável. Ele é oitenta por cento de índios é livre pela primeira vez,
El Supremo Dictador Perpetuo. Quem discorda da dita- desde a invasão espanhola. Só deviam obediência a um
dura vai para a prisão. homem: EI Supremo. E ele, ditador perpétuo, os liber-
E apoiado pelo povo e despreza os bajuladores. tara.
Maliciosamente incentiva os difamadores. As ofensas e A subversão de Francia é radical e conquista o
os insultos chegam de Buenos Aires, em cartas e pan- povo. Mas a elite destruída, branca, de origem espanho-
-
12 Júlio José Chiavenato 13
A Guerra Contra o Paraguai

Ia, vê na política do ditador um barbarismo. Os herdei- produção. Tratam o gado e comem sua carne. Conhe-
ros do colonialismo não se conformam em perder a cem a liberdade: se lhes dissessem que são escravos não
riqueza e a posse da terra - e reagem lançando ao acreditariam. Pois já não sofrem castigos dos senhores,
mundo a acusação de que Francia tiraniza o povo, inves-
casam-se sem a interferência dos padres, comem e mo-
te contra a civilização e não poupa sequer a Igreja,
ram bem. Se entregam a metade do que produzem ao
agride a Deus.
Estado, poderiam .dar até mais, pois os paióis estão
Do seu ponto de vista os ricos têm razão: para eles,
a nação são eles - índios não eram seres humanos. A cheios.
civilização que eles representam, na verdade, foi liqui- A produção aumenta. O progresso chega lenta-
dada pelo ditador. Os templos perderam seus emble- mente. Francia introduz novos métodos na agricultura,
mas, substituídos pelos da' República. Francia naciona- incentiva a instrução pública e os índios podem apren-
. liza a Igreja, expulsa o clero romano. Quando o amea- der a ler e a escrever sem a camisa-de-força da gramática
çam com a excomunhão papal, ele desàfia: "Se o papa artificial dos jesuítas .:
viesse ao Paraguai, eu o faria meu capelão!" Em 1823 Francia está forte o suficiente para pro-
, O ódio contra Francia não é só da elite paraguaia. mover a primeira grande reforma agrária da América do
E também dos seus companheiros de classe: em Buenos Sul. Racionaliza-se o uso da terra. Em conseqüência, a
Aires os argentinos ricos percebem que o ditador para- produção aumenta ainda mais. Mas para modernizar o
guaio é um perigoso exemplo, que deve ser contido país é necessário dinheiro. O ditador vai buscá-Ia com
antes que ultrapasse as fronteiras guaranis. Em breve os as exportações do excedente de sua produção.
jornais de todo o mundo publicarão artigos indignados Então o Paraguai é isolado.
contra a "barbárie" que assola o Paraguai. Para exportar, o Paraguai teria que usar o porto de
Buenos Aires. Começa o cerco: os argentinos - ressen-
tidos com a queda da elite social paraguaia, pois se
o cerco ao Pan.guai acumpliciavam com ela para pagar preços insignifican-
tes pelos produtos do país - cobram altas taxas pelo
uso do seu porto.
Dentro do Paraguai a "indiada" não toma conhe- Os tratados entre Buenos Aires e Paraguai, para
ó

cimento dessa desaprovação dos "civilizados". Está ocu- a livre passagem de navios paraguaios pelo rio da Prata,
pada em usufruir os benefícios que a "barbárie" de não são cumpridos. Francia tenta fazer os argentinos
Francia proporciona. Lavram a terra, aproveitam-se da respeitarem o combinado. Mas nessa época Buenos
14 A Guerra Contra o Paraguai 15
Júlio José Chiavenato

Aires já é a sede dos interesses britânicos na região. Promove principalmente a educação. Quando ter-
Lutar contra Buenos Aires é também lutar contra os mina o seu governo, com sua morte em 1840, não havia
ingleses. analfabetismo. Sábios como o naturalista belga Du Gra-
Para exportar, o Paraguai se vê espoliado por Bue- ty, Buffon, Larousse, etc., atestam que o paraguaio era
nos Aires. Por esse motivo o Paraguai se isola, ou o povo mais bem alimentado do continente. Não há
melhor, é isolado na tentativa de frustrar a revolução de roubos, o crime praticamente inexiste. Vive-se muito
Francia. As notícias que o mundo recebe sobre o Para- bem. E o resultado de uma política conseqüente. Para
guai são dadas pelos inimigos de Francia: a classe rica isso Francia apoiou-se nos "camponeses, modestos in-
expulsa do país; os padres estrangeiros que ele mandou dustriais e comerciantes, peões e artesãos, para esmagar
embora ao nacionalizar a Igreja; e os negociantes argen- I
a oligarquia de grandes proprietários, altos hierarcas e
tinos que aproveitavam os baixos preços possíveis com
a exploração do povo paraguaio. Tudo com o aval da
l ricos traficantes", como lembra o historiador argentino
Viván Trías.
Inglaterra, beneficiária de um antigo sistema que lhe Um depoimento da época, do botânico francês
possibilitava comércíalizar para a Europa - e até para Aimé Bonpland que ficou retido por Francia cerca de
o Brasil - o fumo, o chá, a carne e outros produtos do vinte anos, informa que o Paraguai contrastava com
Paraguai. todos os países que ele tinha conhecido na América do
Exportando só o necessário para conseguir algum Sul: "...viaja-se no Paraguai sem armas; as portas das
dinheiro, o Paraguai isola-se. O isolamento imposto faz casas apenas se encostam, pois todo ladrão é condenado
aumentar-lhe a fama de "barbárie". Francia fecha as com a pena de morte, e até mesmo o proprietário da
fronteiras para defender-se de espiões e sabotadores. casa ou a comunidade onde o roubo é cometido estão
Em conseqüência o país passa a desconfiar de tudo o obrigados a indenízá-lo. Não se vêem mendigos, todo
que é estrangeiro. No entanto, progride: a estrutura - mundo trabalha".
social é adequada às suas necessidades e mais que justa Ao contrário; os países vizinhos sofrem as violên-
emrelação ao passado recente. cias de caudilhos em guerra pelo poder, há milhares de
De "bárbaro" Francia não tem nada. Ao contrário, vagabundos esmolando, roubando, sem falar na escra-
é mais "avançado" culturalmente que os políticos de vidão brasileira.
Buenos Aires ou do Rio de Janeiro. Leitor de Rousseau Em resumo, o Paraguai inaugura com Francia um
e Volta ire, tinha idéias positivistas antes do apareci- oásis de paz política e harmonia social.
mento do positivismo: .tanto que chegou a ser um dos Tudo isso não se faz sem risco. Enquanto organiza
ídolos de Comte. um Estado soberano, não permitindo a infiltração
.Júlio José Chiavenato 1 A Guerra Contra o Paraguai 17
16

estrangeira para subtrair sua riqueza e dando um exem- e não havia meio de escapar a isso sem perder a sobe-
plo prático de participação comunitária na economia do rania do país. A fatal incapacidade histórica de Francia
país, paralelamente começa a enfrentar o problema I Jill - que vai expressar-se vinte e cinco anos após sua
capital, resultante dessa política nacionalista e.autôno- morte - foi não criar uma classe dirigente interessada
na riqueza nacional, capaz de abrir politicamente os rios
ma: a cobiça dos seus vizinhos.
O Paraguai tém superprodução. Se ela sobra para
o povo, falta ao Estado exportá-Ia para transformar esse
da Prata e Paraná para a livre passagem dos seus barcos. II
excedente em investimentos que venham impulsionar o
progresso interno, modernizando os meios de produ- :) O modelo imperialista
ção.
I
Em 20 de setembro de 1840 Francia morre. Deixa
um país organizado, sem analfabetos, livre de burocra-
A incapacidade fatal tas, cortesãos e parasitas que sugam o Estado. Com sua
morte, os ricos ficam esperançosos. Os exilados em
Buenos Aires fazem planos para voltar e readquirir suas
A grande incapacidade de Francia, que seria tam-
bém de seus sucessores, foi não criar uma classe dirigen- posses. Os poucos que ainda sobram no Paraguai espe-
ram um governo mais "compreensivo".
te à altura para administrar a crise oriunda do progresso
do Paraguai. Francia exterminou as oligarquias do seu Mas agora há também o povo.
país e não criou uma nova classe dirigente para substi- Quem sobe ao poder é Carlos Antonio López, de
tuí-Ias; Nem conseguiu atrair ou cooptar administrado- família muito católica (dois irmãos eram padres, um
res do velho regime para gerir a crise do desenvolvimen- chegou a bispo). E um advogado sóbrio, gordo, acostu-
to paraguaio em choque com os interesses econômicos mado à solidão, morando no interior. E o primeiro
de Buenos Aires ou do Brasil, aliados à Inglaterra. Esta presidente constitucional do Paraguai, eleito por uma
é a semente da guerra do Paraguai, que massacra o país assembléia de deputados. Ele orienta a modernização
do país.
entre 1864 e 1870.
A longo prazo, tais motivos econômicos se cobri- Progresso e modernidade naquela época era seguir
ram de razões políticas para a destruição do Paraguai. o modelo inglês. O "progresso" conseguia-se importan-
Resumindo: para exportar, o Paraguai precisava deixar do a tecnologia inglesa financiada com empréstimos dos
grande parte dos seus 1ucros nos portos de Buenos Aires bancos de Londres. Quando Carlos Antonio López
L-

_. -~.
18 Júlio José Chiavenaés Guerra Contra o Paraguai 19

manifestou a intenção de modernizar o país, esperava- nufaturadas, alargavam o mercantilismo auxiliado pelas
se que o modelo fosse, finalmente, aceito no Paraguai, "fontes de progresso" exportadas pela Inglaterra -
Um exemplo clássico desse modelo era a constru- estradas de ferro, telégrafos, estruturas metálicas, pré-
ção de uma ferrovia. O país "beneficiado" pagava a a
dios inteiros, como Estação da Luz em São Paulo, e
importação da tecnologia e o empreendimento acabava .até a própria imprensa, tudo em nome do mito do "livre
por favorecer o sistema de exploração estrangeira. O comércio".
lucro ficava com a companhia inglesa, que explorava o Quando essas matérias-primas se tornavam um
serviço. O aspecto importante era o transporte de ma- bom negócio o capital inglês acabava por absorvê-lo: a
térias-primas do interior para os portos de exportação exploração dos minérios no Brasil é um caso clássico.
"nativos": a escolha da rota da ferrovia orientava a Para esse negócio tornar-se possível era preciso
economia do país, que seguia a linha de ferro, subme- uma classe dirigente aliada aos interesses estrangeiros.
tendo-se às necessidades de abastecimento das indús- Se Carlos Antonio López fosse modernizar o país, na
trias inglesas. A ferrovia facilitava a penetração dos visão dos antigos privilegiados do Paraguai, eles seriam
produtos ingleses, além de receber benefícios, como a chamados para "gerir" a modernização.
doação de uma faixa de terra ao longo dos trilhos, com A classe dirigente aliada ao capital estrangeiro era
o pretexto de fornecer lenha para as locomotivas. uma tradição no Brasil e na Argentina. Os paraguaios
exilados em Buenos Aires pensaram que seria a hora de
Para sustentar sua indústria, a Inglaterra necessi-
voltar e ajudar Carlos Antonio López nessa "transição"
tava de um mercado consumidor. Assim,era necessário
para o progresso.
manter ã América do Sul como simples fornecedora de
Não foi o que aconteceu.
matéria-prima - e isso era feito de tal modo que, ao
mesmo tempo em que o instrumento da penetração dos
produtos ingleses era implantado, ele se tornasse tam-
bém uma fonte de lucro, pois as ferrovias pertenciam a o modelo paraguaío
empresas da Inglaterra, financiadas por bancos ingleses,
e",para fechar o círculo, ajudavam a manter os países A revolução de Francia foi radical. Além disso
nativos como meros fornecedores de matéria-prima. Carlos Antonio López tinha suas idéias. Ele orientou a
, As matérias-primas, pela característica do sistema, modernização do país com métodos originais e princi-
como até hoje, tinham baixos preços e garantiam a palmente contrários ao imperialismo da época. Carlos
lucratividade das indústrias inglesas: manipuladas" ma- Antonio López promoveu o progresso sem precisar de
A Guerra Contra o Paraguai 21
20 Júlio José Chiavenato

Enfim, o velho López segue Francia, moder-


um centavo .dos empréstimos internacionais, consoli- nizando o estilo de governo. Cria condições para que o
dando a autonomia do país. Paraguai progrida sem atrelar-se ao capital inglês. Em
O seu método é simples: ele ,traz ao Paraguai os poucos anos jovens que ele manda estudar na Europa
técnicos de que necessita para a implantação de uma voltam e começam a trabalhar. O resultado é um novo
base industrial. Ao mesmo tempo seleciona os melhores país; com a independência econômica legada por Fran-
alunos das suas escõlas e manda-os à Europa e aos cia. .
Estados Unidos para especializarem-se. O Paraguai conhece um vigoroso progresso. As
Isso acontece na metade do século XIX, quando a colheitas de fumo, algodão, erva-mate, arroz, cana-de-
tecnologia é fácil de ser copiada e é incipiente a legisla- açúcar e mandioca são abundantes. Vinte anos depois
ção de patentes. Dessa maneira não houve dificuldades da posse de Carlos Antonio López, é um dos maiores
para o Paraguai criar uma estrutura básica de desenvol- produtores de fumo e erva-mate do mundo e tem um
vimento industrial. . significativo rebanho de sete milhões de gado bovino
A primeira ferrovia do país é planejada por um {8,75 por habitante).
técnico inglês contratado, Paddison. Tem setenta e dois Toda essa riqueza se exporta, estimulando a cobiça
quilômetros e visa unicamente satisfazer aos interesses internacional.
paraguaios. O governo compra uma locomotiva, des- Tudo o que o Paraguai consome, ele próprio pro-
monta-a no Paraguai e usa suas peças como modelo, duz. Mesmo os navios que levavam suas mercadorias
copiando-a numa fundição feita inteiramente com capi- para a Europa eram fabricados no país. Iam cheios de
tais paraguaios. fumo, erva-mate e outros produtos nacionais e voltavam
Em 1845 Carlos Antonio López inaugura a Fundi- abarrotados de máquinas e aparelhos científicos.
ção de Ibicuí, que produz uma tonelada de ferro por dia. Em relação ao Brasil e à Argentina, presos ao
Nesse tempo o Brasil importa até alfinetes da Inglater- imperialismo econômico britânico, o Paraguai era mais
ra. Técnicos de todo o mundo chegam ao Paraguai. São que um país livre: um péssimo exemplo de autodetermi-
empregados do Estado: arquitetos, engenheiros, médi- nação, ameaçando o sistema de dominação. Os resulta-
cos, professores, militares. Nomes famosos como o ar- dos dentro do Paraguai são evidentes: o povo participa
quiteto italiano Alexandre Ravizza, o naturalista belga do governo e acredita nele, à medida que é beneficiado
Alfred Du Graty, o militar brasileiro Villagran Cabrita, por essa onda progressista.
ou o pedagogo argentino Juan Pedro Escalada, respon- Félix de Azara, almirante e cronista espanhol, já
sável pelo primeiro plano de instrução pública na Amé- observara que "o respeito à coisa pública existe até na
. rica do Sul, no Paraguai.
-'
22 Júlio José Chiavenato 23
A Guerra Contra o Paraguai

classe mais ínfima da população. Não saberia citar um no Prata, deixou o Paraguai desarmado no contexto da
exemplo de falta de probidade do Estado ou até mesmo política internacional.
da parte da gente mais necessitada". Carlos Antonio Lópezmorreu em 10 de setembro
Essa coesão moral entre governo e povo levou o de 1862, deixando o mais progressista e próspero país
Paraguai a ser em poucos anos a mais desenvolvida da América do Sul. O Paraguai era o único país do
república americana .."o exemplo paraguaio é perigoso continente que não tinha dívida externa. O único com
e pernicioso. Perigoso: pode estimular correntes políti- uma indústria de base. O único sem analfabetos. Apre-
cas nacionalistas na Argentina e no Brasil. Pernicioso: sentava saldo favorável de exportações. Era o mais
priva a economia inglesa do seu mercado interno e da estável regime político das Américas.
compra de matérias-primas a baixo custo. .. Todo esse progresso é, paradoxalmente, a sua sen-
tença de morte. Quando Francisco Solano López, filho
de Carlos Antonio, assume o poder, não percebe isso:
como -seu pai, repetirá Francia e caminhará para um
o choque dos modelos conflito previsível sem o apoio de uma classe dirigente.
Muito já se escreveu sobre "o tirano Solano Ló-
pez". Foi general aos dezoito anos e aos trinta e seis era
Mas se Carlos Antonio López pôde construir uma presidente do país, designado pelo Congresso, em ses-
economia livre sem enfrentar oposição interna porque são tumultuada que questionou a legalidade de passar
Francia tinha eliminado a classe dirigente, vai encontrar o governo de "pai para filho". Seu governo foi uma
dificuldades para gerir esse progresso justamente por- continuação dos anteriores. Viajou à Europa, conti-
que, repetindo Francia, não soube ou não quis criar a nuou trazendo técnicos e mandandojovens se especia-
"sua" classe dirigente com uma visão mais ampla da lizarem. Ligou-se a uma irlandesa divorciada, Madame
política internacional. Lynch, com quem teve quatro filhos. Governou o país
Quando começam as inevitáveis pressões do Brasil no seu momento mais crítico.
e da Argentina, estimuladas pelos interesses britânicos, Foi grande e mesquinho. Lutou e morreu com o
a falta de uma classe dirigente ligada aos interesses Paraguai. E pagou o preço comum das lutas libertárias:
nacionais paraguaios, que poderia estabelecer uma infâmia e glória. Execrado como tirano e exaltado como
estratégia diplomática de moderamento dos padrões herói. Com ele à frente o Paraguai escreverá a mais
-ingleses de domínio ou criar condições de uma aliança trágica página da história da América do Sul.
de comércio visando um relativo equilíbrio econômico
I J.l I
A Guerra Contra o Paraguai 2S

car, algodão e fumo) e ajuda a deslocar o centro produ-


tivo para o sul, desestabilizando a economia brasileira.
O Império, acostumado com a mão-de-obra escra-
va, nunca se preocupou em formar trabalhadores livres.
Cai a quantidade de trabalhadores e, como não há uma
, política imigratória para substituí-Ios, a produção dimi-
nui. As finanças desequilibram-se provocando déficit no
orçamento. Para equilibrar suas contas, a partir de 1852
o Império recorre cada vez mais aos empréstimos britâ-
OS AGENTES DA GUERRA .nicos. A dívida externa cresce perigosamente ..
Em 1864 o país está em bancarrota. Casas bancá-
rias quebram, pequenos capitalistas são arrastados na
crise e entram em falência. As coisas se complicam, pois
anos antes um barco inglês naufragara no sul e fora
A crise do servilismo saqueado, provocando o rompimento de relações diplo-
máticas com a Inglaterra .
o Brasil é um gigante anêmico. A crise econômica, . Apesar das relações rompidas os empréstimos con-
agravada pelo sistema escravista em declínio, intensifi- tinuam, avolumarido a dívida externa e colocando o
ca-sç a partir de 1850, quando cessa o fluxo de escravos Brasil na dependência econômica da Inglaterra.
da Africa, por proibição da Inglaterra, cuja indústria Em 1865, já com a guerra do Paraguai em curso,
começa a expandir-se com a introdução da máquina a reatam-se rapidamente as relações diplomáticas. Os
vapor em larga escala e a necessidade de exportação. O banqueiros ingleses, especialmente Rothschild, injetam
Brasil é um dos seus principais mercados. Como escra- dinheiro no país através do seu testa-de-ferro, o barão
vos não consomem porque não têm salários, os ingleses de Mauá, que funda um banco e investe no Uruguai,
tentam substituí-los por trabalhadores assalariados, que onde era o maior industrial e proprietário de terras.
possam comprar seus produtos. Por isso, proíbem a O país está falido, mas a sua elite econômica vai
vinda de escravos africanos, chegando a afundar navios bem. A caricata nobreza, detentora das terras, dos
negreiros dentro dos nossos portos. escravos e da precária indústria, manipulando o comér-
Essa intromissão inglesa acontece quando há uma cio, é aliada do imperialismo inglês. As casas exportado-
acentuada queda de produção no norte (cana-de-açú- ras no Brasil, trabalhando com capitais ingleses, expor-
27
26 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paragu'!i

tam nossos produtos a preços ínfimos: a exploração do saldo favorável do comércio exterior eram destinados a
trabalho escravo e a corrupçâo política fazem desse pagar apenas o juros dos empréstimos ingleses. Desde
processo o meio de sobrevivência dos privilégios das 1850 quase toda a exportação de café era feita por
elites. Os déficits, como já Vimos, são equilibrados com firmas inglesas. Dos restantes produtos exportados cin-
mais empréstimos, juros sobre juros, e conseqüente- qüenta e cinco por cento iam para a Inglaterra. Se
mente há o crescimento da dívida externa. lembrarmos que os minérios estavam nas mãos de com-
Enfim, o Brasil é ~ protótipo do servilismo econô- panhias inglesas e que os serviços públicos eram explo-
mico e da corrupção política de que necessitava o impe- rados também por elas, veremos que praticamente não
rialismo inglês para manter o status quo da dominação existia uma economia brasileira: aqui, tudo era inglês,
internacional. E justamente por submeter-se ao sistema inclusive os grandes bancos, agindo diretamente ou
imposto pela Inglaterra, representa a "civilização", em através de aliados, como Mauá.
contraste com a "barbárie" paraguaia, que nega o "livre Aclara-se mais o envolvimento da Inglaterra na
comércio". economia brasileira, e seu estímulo à guerra contra o
Por momentos supera-se o problema do escravis- Paraguai, quando se sabe que de 1825 a 1865 osemprés-
mo, que já não interessa ao modelo exportador inglês. timos feitos ao Brasil somam 17 737320 libras. Desse
Essa contradição será resolvida após a guerra do Para- total sessenta e cinco por cento chegam no ano de 1865
guai, com o Brasil adotando a política do branqueamen- quando se faz a guerra, e muito mais virá ainda para
to, como veremos.
custeá-Ia.
Dentro desse conteúdo econômico é lógico espe- Em 1864 a fala do trono de Pedro 11demonstra que
rar-se que razões formais da política e contrastes inter- o país está em bancarrota. No entanto, em 1865 a
nos acabem transformando-se em "razões de Estado"
Inglaterra aumenta em sessenta e cinco por cento seus
. que levem o Império do Brasil a assumir internacional-
empréstimos. E essa "economia de guerra" que salva
mente posições que sirvam ao imperialismo inglês, do
momentaneamente o Império; sem a guerra, o Brasil
qual já é uma submetrópole.
. estaria enfrentando a sua mais séria convulsão social em
decorrência da economia falida. A guerra, com seus
empréstimos, ajuda o Império a saldar seus compromis-
Os ingleses dominam tudo sos internos, além de fomentar uma indústria que pro-
porcionará negócios rendosos e fará o Exército absor-
Para se ter uma idéia da dependência do Brasil ver os desempregados e vagabundos. Momentanea-
destaca-se que, a partir de 1861, setenta por cento do mente haverá uma falsa impressão de prosperidade.
28 Júlio José Chiavenato 29
A Guerra Contra o Paraguai

Esse novo quadro econômico, de falsa prosperida- Como sempre, chegam os empréstimos. Com eles
de, não esconde a realidade social: o Brasil é um país as regras para a importação e exportação, que arruínam
miserável, doente de sífilis e tifo, um povo morrendo de os pequenos produtores e beneficiam a grande burgue-
fome, uma elite parasita sobrevivendo à custa do traba- sia. O latifúndio é a base da economia, servindo espe-
lho escravo - e principalmente marionete do imperia- cialmente para criar gado. Nada se faz para implantar
lismo inglês, que domina totalmente a economia e dita uma indústria: compram tudo o de que necessitam dos
a política internacional. ingleses. A Argentina exporta principalmente carne,
É este o país que vai à guerra. couro, charque, lã e sebo. Tem um rebanho de 3,5
milhões de bovinos e vinte milhões de ovinos.
Essa sociedade é politicamente instável, as lutas
A Argentina penhorada entre os caudilhos são uma constante na sua história.
De 1,9 milhão de habitantes, 1,1 moram no campo. Mas
esses 1,1 milhão de camponeses não têm ocupação fixa:
Não irá à guerra solitariamente; Terá como 'aliados
vivem do trabalho esparso ou da caça e pesca - e do
a Argentinaeo Uruguai. A Argentina praticamente não
tradicional esporte sul-americano de matar índios.
existe: é um aglomerado de províncias disputando com
Asituaçâo argentina é tão estranha que a província
Buenos Aires a supremacia política do país, onde os
de Buenos Aires cria, legalmente, o "cidadão vagabun-
caudilhos pontificam com cupidez e violência.
do". Declaram-se "vagos" (vagabundo, errante) todos
Durante anos os argentinos tentam consolidar uma
confederação, sempre ameaçada pelas rebeliões regio- os que não provem ter uma ocupação definida. Na
nais. Aliás, uma das investidas do caudilho Urquiza prática isso significa rebaixar o camponês a vagabundo,
contra Buenos Aires, em 1859, foi contornada por Fran- forçando-o ao nomadismo para escapar da lei. O que
cisco Sola no López, que o convenceu a retomar a Entre favorece Ü' controle dos latifundiários sobre a força de
Ríos. trabalho. .
A infiltração inglesa lançou-se contra Buenos Aj- Apenas dois por cento das suas terras dedicam-se "\

res em duas invasões, em 1806 e 1807, ambas frustradas. ao cultivo. O resto fica para o gado e as ovelhas, que
A partir desses fracassos usou meios mais eficazes, su- ocupam multo espaço e pouca gente. Os latifundiários
bornando a nascente burguesia "crioula" e financiando associam-se fi burguesia comercial, que exporta os pro-
seus negócios. Uma pequena elite deslumbrada com-a dutos do campo. O resultado é a aliança submissa ao
"civilização" abriu o país à Inglaterra. capital estrangeiro;
31
30 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai

integridade do Uruguai seria considerada causa de


Como o Brasil, a Argentina sofre constantes défi-
guerra e determinaria a pronta intervenção dos para-
cits orçamentários, cobertos por empréstimos ingleses.
Quando acontece a guerra contra o Paraguai, a guaios em defesa dos uruguaios.
Pelo tratado de 1850, a ocupação de qualquer parte
Argentina está penhorada aos bancos ingleses. Mais
do território uruguaio mobilizaria automaticamente o
que isso, enfrenta uma série de rebeliões civis e de
Paraguai em sua defesa. O tratado foi ratificado em
caudilhos, ameaçando-a unidade da nação. Com a guer-
1855 num encontro no Rio de Janeiro entre Francisco
ra resolverá os dois problemas: os empréstimos equili-
Solano López- que ainda não era o presidente do país
bram o orçamento; a campanha militar unirá as provín-
cias contra o "inimigo comum". _ e o diplomata uruguaio Andrés Lamas.
Nessa época, apesar de o Uruguai ser um Estado
Durante a guerra, talvez bem mais que no Brasil, o
soberano, foi usado pelos pecuaristas do Rio Grande do
roubo e as grandes negociatas que ela proporcionará
Sul como um pasto particular. Os rebanhos eram leva-
vão enriquecer a grande burguesia, que se aproveita
magistralmente do conflito. dos para as gordas pastagens uruguaias e ali criados por
escravos dos brasileiros. Eles compravam ou tomavam
terras, em expedições caudilhescas, batizadas de "cali-
fórnias". Na hora de vender o gado, contrabandeavam-
Uruguai: o nosso pasto no de volta ao Brasil, sem pagar impostos e julgando-se -
com pleno direito.
Em Buenos Aires o diplomata inglês Pelhan Hor-
o outro aliado do Brasil não passa de um contra- ton Box dizia que os caudilhos brasileiros "necessitavam
peso nessaguerra. Mas o Uruguai é a peça fundamental
de liberdade de ação para fazer pastar sua numerosa
para a sobrevivência do Paraguai como nação livre. A
fazenda de gado nos prados orientais, com um mínimo
posição geopoIítica do Uruguai 'impõe-lhe estrategica-
de moléstia por parte dos funcionários públicos; neces-
mente que seja um Estado livre - espécie de tampão
sitavam exportar gado brasileiro das estâncias brasilei-
entre o Brasil e ~ Argentina, equilibrando o jogo do
ras do Uruguai, quando e como lhes aprouvessem. Eram
poder na bacia do Prata.
os grandes chefes econômicos e políticos e exigiam o
A absorção do Uruguai pelo Brasil ou pela Argen-
tina poria em risco a existência do Paraguai como nação.
latssez-faire e o direito de fazer com o seu o qae lhes
soberana. Pensando nisso, em 1850, o Paraguai firmou aprouvessem" .
Para o~ políticos e latifundiários gaúchos o Uru-
um tratado com o Uruguai que é de exemplar clareza:
guai não passava de um pasto. Sentiam-se tão seguros
os dois países concordaram em que qualquer ameaça à
~ 2
1 ~
33
32 Júlio José Chiavenato .' A Guerra Contra o Paraguai

Não cabe aqui fazer um retrospecto de como a


do seu uso que já eram quarenta mil proprietários de
Inglaterra se torna a maior potência mundial da época.
ranchos na região uruguaia fronteiríça ao Rio Grande
do Sul. Basta lembrar que a prosperidade inglesa começa com
a acumulação primitiva pela pirataria: seus piratas,
O Império apoiava essa invasão através do Banco
transformados em duques e barões, assaltam caravelas
Mauá, que desde 1857 atuava no país. E o Banco Mauá,
de ouro da Espanha e de Portugal, através dos séculos.
como já se disse, representava os ingleses, com capitais
fornecidos por Rothschild. Expandindo-se, o Império Britânico domina povos in-
O Uruguai prende-se à dominação econômica in- teiros: China, Egito, India e dezenas de outros.
glesa por meio de Mauá: em 1862 o nosso barão já é o Com o advento da máquina a vapor a indústria
maior exportador do país e investe em várias empresas, inglesa transforma-se na maior expressão econômica do
com ou sem sócios uruguaios. A força econômica de mundo. Na metade do século XIX a Inglaterra produz
Mauá era tanta que exportava do porto de Montevidéu cinqüenta vezes mais ferro per capita que o resto do
mais lã que toda a exportação argentina. Possuía várias planeta. E cem vezes mais tecido de algodão e lã que
indústrias, exportava carne-em conserva e era o maior todo o mundo junto. Setenta por cento dessa produção
produtor de trigo do Uruguai. A capital do país foi é exportada; quase o total da matéria-prima consegue-
remodelada com seus empréstimos. Nada no Uruguai se nos países atrasados, a baixíssimo custo.
se fazia sem a presença financeira de Mauá. Mas esse extraordinário poder cria novas relações
Por seu lado, o povo uruguaio era expulso das sociais dentro da Inglaterra. Para produzir, as fábricas
fronteiras pelos brasileiros. Vivia em estado de miséria. necessitam de trabalhadores. Surge um novo proletaria-
Mas a grande burguesia vivia bem, aceitando a intromis- do que, para ser eficiente, precisa pelo menos comer.
são de Mauá e associando-se à rapina. As relações comerciais em quase todo o mundo, condu-
~ zidas pela Inglaterra, recebem redobrada atenção: qual-
quer interrupção no fornecimento de matéria-prima
pode paralisar as suas fábricas, gerar crises, provocando
Inglaterra, o império desemprego e convulsão social.
Por esse motivo, entre outros, o Império Britânico
não pode permitir alterações nostatus quo mundial, por
Em um dos seus mais famosos discursos, o presi-
~ mais insignificantes que elas pareçam.
dente argentino Bartolomé Mitre perguntou qual era a
força que impulsionava o progresso da Argentina. E ele . O leão britânico é poderoso e prepotente. Vigia as
i
mesmo respondeu: "Senhores, é o capital inglês". áreas que domina com astúcia e violência. Sua aristocra-
11
b.... I ._ _ IJ
34 Júlio José Chiavenau

cia tem uma visão racista dos povos colonizados. Não


lhe custa mandar seus exércitos matarem, invadirem,
exterminarem, quando a diplomacia e o poder econô-
mico falham.
Os capitais ingleses estão solidamente enraizados
na economia do Brasil, da Argentina e do Uruguai. A
Inglaterra não permitirá que um país "bárbaro" como o
Paraguai perturbe a "ordem" que lhe permite grandes
lucros - especialmente quando se sente ameaçada pela
perda de fornecimento de algodão do sul dos Estados AS CAUSAS DA GUERRA
Unidos, devido à guerra civil e à resistência que se
esboça em outros pontos do seu vasto domínio.
Brasil, Argentina, Uruguai e Inglaterra - estes são
os protagonistas de uma das maiores guerras do século o peso da história
XIX. Contra o Paraguai.
Será ingenuidade acreditar que a guerra do Para-
guai foi o resultado de uma conspiração da Inglaterra
contra um país insignificante no interior da América do
Sul. Não foi conspiração, nem o país era tão insígnifi-
cante.As causas imediatas da guerra encontram-se na
J
soma de uma situação histórica e econômica que se
recheia de pretextos políticos e diplomáticos.
A guerra foi causada, em conteúdo, por motivos
econômicos. Naturalmente há as questões de limites, as
reivindicações territoriais da Confederação Argentina
e do Império do Brasil. Mas pela sua falta de propósito
para causar uma guerra, essas questões são meros pre-
textos para criar condições de uma invasão do Paraguai.
Mesmo as questões políticas derivam da causa primor-
dial: a econômica. As "razões ideológicas" são forjadas
I - • J
Júlio José Chiavenat. A Guerra Contra o Paraguai
37
36

pela propaganda de guerra, acusando o governo de Inglaterra inaugura um novo tipo de domínio: deixa as
López de ser uma tirania, uma "barbárie" que era pre- intervenções armadas diretas com suas tropas e financia
ciso exterminar para "libertar" o povo paraguaio. governos corruptos para atingir seus fins.
Se os pretextos são vários, a mentira é usada larga- A guerra basicamente delineia-se já em 1850 quan-
mente e prevalece até hoje. As causas fundamentais do o Paraguai começa a desenvolver uma forte econo-
para a destruição do'Paraguai, é bom repetir, são niti- mia autônoma. O então presidente Carlos Antonio Ló-
damente econômicas. O que não impede que se mani- pez, incapaz de antever a evolução das relações inter-
pulem motivos paralelos que tentam justificar o genocí- nacionais, governa o país como se lhe bastasse o forta-
dio que se cometeu, como as questões de limites, aci- lecimento da sua economia. E cai na cilada que destrói
dentes políticos e diplomáticos forjados, calúnias urdi- o Paraguai: quanto mais forte e organizado internamen-
das dentro das embaixadas e uma grotesca cruzada civi- te, mais fraco externamente se torna um país em desen-
lizatória para "libertar" o Paraguai dos seus tiranos. volvimento que enfrenta uma grande potência. O Para-
Mas não são apenas as causas econômicas que guai acaba enfrentando em 1864, no governo de Fran-
provocam a guerra. Não são só o desenvolvimento in- cisco Solano López, um processo que provoca o con-
dustrial, a estabilidade política e uma estrutura social fronto de igual para igual de forças desiguais: de um
que soam como um perigoso exemplo aos vizinhos que Estado emergente e livre contra uma potência mundial
. provocam a guerra. Acontece que o Paraguai está den- superdesenvolvida, utilizando seus satélites econômi-
tro de um contexto continental, .que, por sua vez, é cos como braço armado.
dirigido como um teatro de marionetes da metrópole
inglesa. Esse contexto tem suas peculiaridades políticas
e desejos de expansão. De um lado, o Brasil sempre A visão objetiva
pretendeu os territórios que com a vitória acabou con-
quistando. De outro, a Argentina cobiçava terras que
iam até o Chaco Boreal. Se a economia é a mola inicial Isolado durante anos o Paraguai não consegue
a irritar os interesses ingleses, não são desprezíveis os criar uma classe dirigente capaz de articular-se em nível
motivos secundários dos seus satélites na América do .diplomático. Seus inimigos não só têm essa classe diri-
Sul. ) gente como também uma visão ampla e clara do que
No seu processo de dominação, nunca o imperialis- enfrentam. Brasileiros e argentinos sabem que é preciso
mo inglês foi tão sutil na forma e tão contundente no destruir o Paraguai porque têm objetivos históricos
conteúdo, como na condução dessa guerra. Com ela a definidos:
39
38 A Guerra Contra o Paraguai

a Argentina são resolvidos, embora não definitivamen-


1) arrasar uma economia autônoma e progressista;
te. A própria fragilidade econômica destes países - o
2) garantir o equilíbrio econômico na bacia do
Paraguai constr~indo-se, Brasil e Argentina falidos -
Prata;
não os candidatariam a uma guerra onerosa.
3) salvar o Império do Brasil e a Confederação É o fortalecimento da presença financeira inglesa
Argentina da desagregação; na região que vai provocar a guerra. Se a Inglaterra não
4) satisfazer os desejos expansionistas do Brasil e se empenha diretamente para desencadeá-Ia, favorece
da Argentina; as condições que levam ao conflito. Mais que isso: sem
5) estabilizar definitivamente a situação do Uru- a ajuda e a vontade política da Inglaterra a guerra seria
guai, consolidando-o como Estado-tampão entre o Bra- inviável. .
sil e a Argentina. Há todo um conteúdo econômico nessa guerra,
Esses motivos não são muito edificantes. É preciso oriundo principalmente do modelo paraguaio de desen-
inventar pretextos que justifiquem a guerra e encubram volvimento, que é sua causa fundamental. Em certo
as suas verdadeiras razões. momento, esse conteúdo alia-se aos pretextos de Brasil
O Brasil teve várias pendências com o Paraguai e Argentina e é impulsionado pela.perspectiva de uma
pelo uso dos seus rios. Com razão, sempre reivindicou crise dentro da Inglaterra, ameaçando sua indústria.
a livre passagem dos seus barcos pelo rio Paraná, única
forma na época de se atingir o Mato Grosso.
O Paraguai negava o uso das suas águas, segundo
I As contradições do imperialismo
os diplomatas do Império, porque temia a concorrência
.dos. produtos do Mato Grosso, os mesmos que os para-
guaíos exportavam. Mas esse problema é resolvido em De 1860 a 1865 acontece a Guerra de Secessão nos
1~58, quando o governo paraguaio abre seus rios a todas Estados Unidos. Durante a guerra, o norte bloqueia o
as'r~ções. Se o Brasil ganha com isso, ganha principal- litoral sul, impedindo a saída do algod~o norte-america-
merite a Inglaterra; os barcos brasileiros são uma garan- no, qu~ abastece as fábricas inglesas. E o primeiro golpe
tia para os ingleses introduzirem seus produtos manu- que recebe o grande parque industríal: suas fábricas
faturados e trazerem matéria-prima barata. paralisam-se quase totalmente em 1861 e 1862.
Essa parada provoca uma baixa nas reservas ban-
Alguns' outros incidentes pelo uso dos rios são
cárias e o aumento da taxa de juros. Para uma potência
superados. A disputa das águas não será motivo paria
econômica que se tornava complexa no seu funciona-
guerra. Enfim, os incidentes do Paraguai com o Brasil e
I Ij
40 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 41

mento como a Inglaterra, mais que um sério golpe isso seria superior ao norte-americano. Mas os interesses
é um dramático aviso. O que acontecerá se a massa internacionais, na época, obrigam a compra do algodão
proletária crescente ficar sem trabalho? Quais as con- dos Estados Unidos.
seqüências para uma economia que exporta setenta por Na crise atual, a realidade muda. Porém agora as
cento, da sua produção, sem produzir? contradições do capitalismo inglês oferecem uma inte-
As respostas óbvias, junte-se que a mecanização ressante particularidade: se o algodão pode ser adquiri-
das indústrias já provoca desemprego. A máquina li do nos Estados Unidos na forma tradicional das trocas
vapor, teares mais modernos e outros melhoramentos internacionais, não o poderá ser no Paraguai. Um co-
mecânicos substituem, às vezes, cem operários por dois mércio Inglaterra/Paraguai de igual para igual quebrará
ou três. Além disso, o proletário europeu começa a o status quo na bacia do Prata, do qual depende a
tomar consciência histórica e de classe. dominação do imperialismo econômico inglês. No Prata
. A falta de algodão para as indústrias atinge vários as relações comerciais haverão de ser estabelecidas exa-
outros setores. As companhias de navegação terão que tamente como se verificam com a Confederação Argen-
parar seus navios. As ferrovias ficarão sem cargas dos tina-s- através de uma burguesia mercantilista aliada às
portos às fábricas. Ocorrerá mais desemprego. E o cír- forças espoliadoras estrangeiras.
culo amplia-se, atingindo casas bancárias, comerciantes, O Paraguai, porém, não se submeterá a ser um
fornecedores, etc. simples exportador de matéria-prima e consumidor de
Ao lado disso o domínio colonial é posto à prova produtos industrializados, nos moldes estabelecidos pa-
em várias partes do mundo. O nacionalismo dos povos ra a América do Sul.
submetidos pelos ingleses começa a provocar movimen- Paralelamente há um fato importante: o cresci-
tos libertários na India, na China, na Pérsia. mento da indústria inglesa, a partir da máquina a vapor,
7 A Inglaterra alia-se a outras subpotências imperia- exige a conquista de novos mercados, além, é claro, da
listas, como a Espanha. Ela tem uma herança colonialis- manutenção dos existentes. O Paraguai terá que ser
ta pela qual zelar, e um fracasso da sua indústria poderá conquistado como um novo mercado.
trazer graves problemas. Mas aí vem o principal: comprar algodão do Para-
A Guerra de Secessão é um fato novo que pode ter guai, aceitando as condições da jovem república, será
sérias conseqüências. A principal: falta matéria-prima, estimular o fortalecimento da sua economia, possibili-
.algodão. Era preciso procurar outras fontes de forneci- tando investimentos em um parque industrial que fará
mento. Acontece que desde 1857 o Paraguai oferece concorrência ao imperialismo inglês justamente na Ar-
seu algodão aos europeus. Para alguns técnicos, ele gentina e no Brasil.
i
42 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 43

o abastecimento de matéria-prima, portanto, dei- quer ser imperatriz e o ditador planeja conquistar Bue-
xa de ser um problema de solução urgente para resta- nos Aires e coroar-se rei. O público não tem outra
belecer o crescimento da indústria inglesa: passa a ser informação sobre o Paraguai. Esses artigos repercutem
um dado que traz à tona toda a contradição do sistema na Europa e o mundo realmente vê no Paraguai. uma
imperialista. ameaça à liberdade.
Esse conflito se désenvolve enquanto dura a guerra Nessa campanha de ódio e mentira engajam-se
civil nos Estados Unidos. É a partir dele que o imperia- intelectuais famosos, de duvidosa moral política porém,
lismo inglês estimula veladamente às vezes, descarada- como Sarmiento.
mente outras, uma possível guerra que mude o caráter Em 1862, ele escreve que "para salvar nossa liber-
da economia paraguaia, "civilizando-a", abrindo-a para dade e nosso futuro, temos o dever de ajudar a salvar o
a conquista de matéria-prima de baixo custo. Como se Paraguai, obrigando os seus mandatários a entrar na
percebe, não só o baixo custo é desejável, mas princi- senda da civilização". Depois da guerra Sarmiento vai
palmentea manutenção de um sistema que garanta a além, culpando López pelo genocídio do povo guarani:
dominação econômica da Inglaterra. "É providencial que um tirano tenha feito morrer a todo
esse povo guarani. Era preciso purgar a terra de toda
essa excrescência humana".
Tira a máscara. Festeja o genocídio de um poyo.
A guerra ideológica Domingo Faustino Sarmiento não é um qualquer. E o
grande escritor do seu tempo, autor de um excepcional
. Como explicar à opinião pública mundial as causas livro; o Facundo, e foi presidente da Argentina em
reais da guerra? Não é possível. Inventam-se motivos 1868-1874.
numa campanha de propaganda que começa bem antes Se um intelectual da sua categoria pode destilar
do conflito. Os jornais de Buenos Aires lançam-se desde tamanho ódio, é fácil entender os grosseiros panfletos
1850. a .denunciar a. "barbárie" que sacrifica o povo . de propaganda de guerra, que se estampam nos jor-
guarani e ameaça seus vizinhos. O Paraguai é apresen- nais de Buenos Aires e depois no Brasil. Porém, mais
tado Como um foco de tirania, cujo ditador sonha coro- explícito que ele é o próprio presidente da Argentina
ar-se imperador da América. em 1865, Bartolomé Mitre, também historiador de
Jornalistas de. renome assinam artigos afirmando grande fama, que escreve em seu jornal, La Nación
que Madame Lynch - a "amásia" de Solano López - Argentina:
A Guerra Contra o Paraguai 45
44

"A República Argentina está no imprescindível tado dessa forma era um obstáculo no caminho da
dever de formar aliança com o Brasil a fim de derrubar civilização. Insignificante em si mesmo, o Paraguai po-
essa abominável ditadura de López e 'abrir ao comércio dia impedir o desenvolvimento e o progresso de todos
do mundo essa esplêndida e magnífica região, que pos- os seus vizinhos. Sua existência era nociva e sua extinção
sui, talvez, os mais variados e preciosos produtos dos como nacionalidade ou a queda da família reinante
trópicos e rios navegáveis para serem explorados", devia ser proveitosa para seu próprio povo como tam-
bém para todo o mundo".
Mais claro impossível: "abrir o comércio", etc. Mas
nem tanto ao compreendermos o que pensava o diplo- Seria um insulto à inteligência do leitor comentar
mata inglês Pelhan Horton Box: . tão antológico escrito, bastando ressaltar que a "extin-
ção como nacionalidade", que foi efetivada, não bene-
ficiou "todo o mundo", mas o imperialismo britânico.
"Se o Brasil não tropical havia de ter um centro que
Este livro teria o dobro de páginas se fôssemos
dominasse a rede de rios que lhe servem de sistema
nervoso, esse centro seria Montevidéu, que capacitaria relacionar todos os pronunciamentos oficiais da época,
ao Império controlar o rio Uruguai e a dominar o rio da aconselhando a destruição do Paraguai. Lembraremos
Prata e a desembocadura de seu outro grande tributá- apenas o representante norte-americano, Charles
rio, o Paraná". Washburn, que, em 1862, um mês antes de Francisco
Solano López assumir, já informava ao seu governo:
Traduzindo a sutil linguagem geopolítica: há que
se destruir o Paraguai como nação livre. O repre- "Até onde pude coligir, era quase universal o sen-
sentante diplomático da Inglaterra na bacia do Prata, timen to de que seria a coisa mais afortunada que alguma
Edward Thornton·- um dos artífices do Tratado da potência poderosa enviasse aqui uma força que o obri-
gasse (o Paraguai) a respeitar as leis de hospitalidade
Tríplice Aliança -, seguirá fielmente as indicações de
Box. A vontade de destruir o Paraguai fica novamente nacional e internacional".
clara na explicação de Horton Box:
Ele propunha que os Estados Unidos invadissem o
"O Paraguai estava representado como a Abissínia Paraguai, antes que a Inglaterra o fizesse usando o .
e López como o rei Teodoro. Um despotismo implan- Brasil e a Argentina ...
47
46 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai

mas para a Tríplice Aliança, negócio bem estranho para


Traidores, mentirosos, ladrões
um diplomata "neutro".
Enfim, são esses diplomatas, escritores e políticos,
que são pilhados pela pesquisa histórica mais de cem
Enquanto isso, bem antes da guerra, os paraguaios
anos depois, como conspiradores, mentirosos e ladrões,
da classes ricas, exilados em Buenos Aires, formam uma
que produzem a literatura da época - quando são
Legião Paraguaia, que.se alia aos argentinos e é finan-
figuras oficialmente impolutas -, denunciando a. Re-
ciada pelos ingleses para atuar nas forças que invadirão pública do Paraguai como sede de uma tirania.
o Paraguai, Eles esperam assumir os cargos públicos, E preciso usar essa escória política e diplomática
assim que se vença Francisco Solano López. Um dos para encobrir a realídade: o Paraguai é um país livre e
seus organizadores é Loizaga, que desde 1851 tenta progressista que ameaça o sistema imperialista britânico
convencer argentinos e ingleses a invadirem o seu país. e por isso tem que ser destruído.
Depois da guerra ele será recompensado com importan- E a destruição se faz, com o mundo acreditando
tes cargos, servindo de testa-de-ferro para as forças de que se promove a guerra contra a "barbárie". Comete-
ocupação. se um genocídio, que fica bem claro na confissão de
Poder-se-iam lembrar outras figuras, como o côn- Sarmiento:
sul da França em Assunção, Laurent Cochelet, que
junto a Washhurn faz intrigas e suborna militares e "A guerra do Paraguai conclui pela simples razão
funcionários, com dinheiro fornecido pelo marquês de de que matamos todos os paraguaios maiores de dez
Caxias. anos".
Voltando a Washburn, destaca-se que ele foi
espião de Caxias, tentando também conspirar para a
derrubada de Solano López pelo irmão. Além de ter
roubado dinheiro do governo paraguaio, que ele rece-
beu para comprar armas nos Estados Unidos. Depois da
guerra foi preso pelas autoridades norte-americanas e
, respondeu a processo, sendo condenado por traição e
roubo. Talvez seja demais lembrar que Washburn, du-
rante a guerra, associou-se ao inglês Edward Augusr
Hopkins numa empresa ~e transportes que levava ar-
~ L-I ---lt I
49
A Guerra Contra o Paraguai

Praticamente o Brasil não tem Exército até a guer-


ra. Há a Guarda Nacional, uma milícia de senhores,
destinada a manter a ordem interna. O Exército, quase
nulo, é um amontoado de bêbados, vagabundos e negros •
imprestáveis para a escravidão, que Pedro II chama de
"força bruta". Nos conflitos externos a tradição era
recorrer a mercenários estrangeiros, que comandavam
e engrossavam nossas tropas.
Até a guerra contra o Paraguai, entrar para o
o EXÉRCITO BRASILEIRO Exército era desonroso. Escapava dessa "desonra"
quem podia apresentar atestados de boa conduta. Esse
o quadro moral do Exército daqueles tempos: provan-
do-se ser um homem de respeito, era dispensado; os
criminosos, bêbados crônicos e malandros de todo tipo,
Voluntários? Da pátria? eram recrutados como castigo.
Em 1864, quando o Brasil invade o Uruguai e
prepara-se para fazer a guerra, o Exército tem, oficial-
A historiografia brasileira dá como causa da guerra mente, 15 091 praças e 1 733 oficiais. Porém só no
a invasão paraguaia no Ma~o Gross~ e.no Rio Gra~de I' papel. Metade dos soldados não existe: constam na
do Sul, desprezando as razoes economicas do conflito. - folha de pagamento, mas seus vencimentos são embol-
Além disso, a guerra não começa em 1865, mas em 1864, sados pelos oficiais encarregados dos soldos.
quando o Império do Brasil ocupa Montevidéu e desti- Com a guerra há a necessidade de formar um Exér-
tui o governo constitucional, dando aoParaguai o mo- cito real. O Império pretende que a força seja composta
tivo para cumprir o tratado de 1850. O governo consti-
porvolUntárí6s que se apresentem para defender o país.
tucional do Uruguai não aceita ser envolvido na agres-
Em 7 de janeiro de 1865, o decreto 3 371 cria os corpos
são ao Paraguai, por isso, antes de qualquer ação, é
para a guerra, chamados Voluntários da Pátria.
preciso trocá-lo - uma esquadra comandada pelo almi-
Mas os voluntários não aparecem. Joaquim Nabu-
rante Tamandaré, com apoio argentino, derruba o pre-
sidente legal e substitui-o por Venancio Flores, submis- co, seis meses depois da criação dos Corpos de Volun-
so à política externa brasileira. tários, reconhece que ninguém se oferece para derra-
50 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 51

mar seu sangue pela pátria. E recomenda: "Temos que


empregar, sem embargo; todos os meios, ainda os extra- VOLUITÁRIS
ordinários, para conseguir tal fim".
Os meios não são tão extraordinários: o Império
apenas repete o que sempre tem feito. Contrata mais

mercenários na Europa e começa a seqüestrar e com-
prar gente no país para mandá-los ao Paraguai.
Qualquer vagabundo de dezoito a sessenta e cinco
anos pode ser "preado" nas ruas e vendido ao Exército: .
~
Ü
o governo paga 5$000 por voluntário. Algemados e
-.l acorrentados uns aos outros, são entregues aos milita-
u, res. Surgem quadrilhas especializadas em seqüestrar
u, cidadãos desprevenidos e vendê-los ao governo, o que
<,
dprante algum tempo é rendoso negócio. Num dos
O
CO
avisos governamentais fala-se mesmo que se admite "o
engajamento espontâneo", tão raro é.
~ Até grupos de oficiais "pream" incautos, que são
incorporados à tropa. São comuns as festas com bandas
,-
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de música e farta distribuição de cachaça para reunir ,; ;/: •.$.

homens que repentinamente são cercados e presos,. /./~I'·~

vendidos ao Exército como "voluntários".


Aos escravos oferecem terras e alforria após a
,,'
.~.~' ~."
guerra, se eles se dispuserem a entrar para o Exército.
O horror à guerra, provocando falta de soldados, per- t'"
~!
mite abusar de todas as formas do decreto 3371. Escas-
seando "voluntários"; chega-se a pensar, como propõe
Joaquim Nabuco, na libertação em massa dos escravos
pata transformá-los em soldados. Mas tudo falha e só os
seqüestros dão resultado.
52 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 53

A grande caçada. entes, raquíticos, até 'aleijados e débeis mentais são


"preados" e vendidos ao Exército. Os documentos ofi-
ciais falam que a maioria dos "voluntários" não presta
Os magotes de homens esquálidos, notoriamente sequer para o "serviço da paz".
incapazes para o serviço militar, acorrentados para se- Um ofício do presidente do Rio Grande do Sul,
rem "voluntários", é a.solução possível. A 5$000 a ca- Sousa Gonzaga, ao ministro da Guerra, Silva Ferrás,
beça rendem tanto que uma "onda de patriotismo" pondera" ... a conveniência de fazer voltar à Corte, a fim
varre o Rio Grande do Sul, a ponto de o presidente da de lhes dar baixa, o não pequeno número de praças dos
província ter dificuldades para receber tanta gente. Corpos de Voluntários, que, tendo aqui sido inspecio-
Os abusos são tão atrevidos que o governo imperial nados, a junta médica declarou a uns incapazes de todo
faz reviver umalei de quarenta e três anos (10-7-1822), o serviço de paz e guerra, e a outros precisarem de três
proibindo o uso de correntes e ferros que ferissem os e mais meses de tratamento. Há oficiais nas mesmas
"voluntários". Em São Paulo o presidente da província condições" .
tem que intervir porque o roubo de homens para servir Esses "voluntários" partem do Ceará, da Bahia, de
~
como "voluntários" está tão alarmante que o abasteci- São Paulo e de Pernambuco, vendidos ao Exército e
mento da cidade é ameaçado. Os grupos que seqües- finalmente são dispensados, pois não têm as mínimas
tram os "voluntários" começam a "prear" vendedores condições físicas para os "serviços de paz e guerr.a".
de alimentos para vendê-los ao Exército, deixando suas
carroças abandonadas. Os jornais publicam uma ordem
do governo paulista, em 12 de janeiro de 1865, alertan-
do: Até Caxias se revoltou

"...não se deverá recrutar para o serviço do Exérci- O povo foge do recrutamento. Cidades e vilas fi-
to a indivíduo algum que entrar nesta capital conduzin- cam desertas. Taunay encontra São José do Rio Preto
do gêneros alimentícios, lenha e quaisquer outros obje- vazia, "por causa do recrutamento". Diz ele que os
tos de primeira necessidade". pobres, fugindo ao recrutamento forçado, põem em
prática o dito que circula por todo o Brasil: "Deus é
Ao con trário do que a historiografia tradicional diz, grande, mas o mato é maior".
raros se apresentam voluntariamente. A absoluta maio- Se os pobres caem no mato, fugindo ao destino do
ria é seqüestrada. Não há exagero em afirmar que do- "voluntariado", os ricos safam-se mais comodamente. O
54 A Guerra Contra o Paraguai
ss
Júlio José Chiavenato

decreto 3 513, de 12 de setembro de 1865, regulando a e coercitiva de homens, agarrando, por este meio, a pais
lei 1 101, possibilita aos homens de posses livrarem-se
de família, a anciões, a toda classe de trabalhadores e
artistas, e até crianças, para encarcerá-tos e mandá-los a
do Exército pagando 600$000 - "que entrará para os
cofres públicos para se aplicar ao ajuste de voluntários". nossos Exércitos ..."
Assim, por 600$000 esçapa-se da guerra. Mas mes-
Caxiasdemite-se do' comando do Exército em
mo aí as negociatas oêorrem. Porque é facultado ao
1869. Sai "em desgraça". Não é reconhecido durante e
cidadão branco e rico, em vez dos 600$000, apresentar
nem logo depois da guerra, porque denuncia os crimes
outra pessoa em seu lugar. Não raro ele compra alguém,
que estão ocorrendo. Muito depois a historiografia o
pagando bem menos que os 600$000, para apresentar-
transforma em herói, ignorando suas denúncias sobre o
se em seu lugar: não importa se o substituto seja manco
ou meio cego ... que aconteceu na guerra contra o Paraguai. É de se
lembrar que, em 1870, velho e doente, Caxias teve que
É fato comum cidadãos responsáveis apresenta-
ir ao Senado defender-se até da acusação injusta de que
rem em seu lugar dois, três ou mais escravos e serem
recompensados por esse fornecimento de sangue à pá- roubara mulas durante a campanha ...
tria com medalhas honoríficas.
Essa situação merece uma análise mais profunda.
De um lado, mostra corno nosso Exército foi composto A matança dos negros
à força, com pobres e vagabundos seqüestrados com
brutalidade para a guerra. E de outro, apesar de toda a
evidência, como a historiografia oficial em mais de cem Noventa por cento dos soldados brasileiros são
anos desprezou os fatos, apresentando os Voluntários negros. São os escravos que fazem e ganham a guerra.
da Pátria como homens que livremente se ofereceram É evidente que eles não têm motivos para defender
para lutar pelo Brasil. I" quem os escraviza. Na luta, porém, trata-se de matar ou
Não bastassem os documentos oficiais que tratam morrer - e, muito mais morrendo que matando, eles
especificamente dessas transações, o marquês de Caxias dão a vitória à Tríplice Aliança.
em carta ao imperador, de 18 de novembro de 1867, Com referência ao negro brasileiro, °mais impor-
queixa-seda má qualidade das nossas tropas justamente tante porém é que a guerra contra o Paraguai dá se-
pelo modo como ela foi aliciada: qüência à política que o Império vem seguindo tradicio-
"...V. Majestade, sobrepondo-se ainda ao direito nalmente: a matança dos pobres que ameaçam o sistema
constitucional (...) havia ordenado a apreensão capciosa de poder.
56 57
Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai

Desde a metade do século XIX as elites brasileiras Os negros morrem durante a guerra, sofrendo
sabem que o escravismo têm os dias contados. Como se maus-tratos, vítimas de deslocamentos absurdos, doen-
sabe, escravo não tem salário, logo não consome. Já não tes de epidemias várias e freqüentemente de fome,
interessa ao imperialismo inglês manter na sua colônia quando são abandonados no transporte, pela desorga-
econômica trabalhadores sem salários. nização do Exército.
A elite branca, racista, vê-se diante.de um dilema. O fato é chocante - mas de forma alguma novo na
. Libertando-se os escravos, a maioria da população livre nossa história. A maioria absoluta dos historiadores não
seria de cor preta. Teme-se que essa maioria negra- se detém no sofrimento de negros e índios. Esse geno-
acrescida dos mulatos - alcance força política para cídio já vinha acontecendo. Por exemplo, índios e ne-
ameaçar a classe dominante branca. gros foram exterminados após a Cabanagem, em 1840.
A ideologia do branqueamento, em curso desde Em 1835, vencidos os balaios, os sobreviventes foram
1850, ganha força com a guerra. As elites brasileiras massacrados numa cilada - todos negros. Na batalha
preparam-se para terminar com o escravismo pela con- final da Revolução Farroupilha, em 1845, os soldados
tramão da história: liquidando os negros antes de eles negros dos dois lados foram traiçoeiramente postos
se tornarem livres. frente a frente, no combate de Porongos, para que se
Quando a guerra começa os negros escravos são matassem - e não sobrevivessem para "perturbar a
2500 000. Quando a guerra termina eles são 1 510 806 ordem". Na Balaiada e em Porongos o mesmo homem
- de acordo com o recenseamento oficial de 1872. avalizou a matança: Caxias. Portanto, nada de novo,
Durante a guerra desaparecem um milhão de negros, apenas o comportamento tradicional aumentàdo pela
reduzindo-se a 15,2 por cento da população brasileira. guerra maior.
É evidente que um milhão de negros não morrem Essa prática tinha seus teóricos. Para as elites bra-
na guerra. Desaparecem durante a guerra. Como? ,. sileiras o negro era um "animal inferior". Matá-lo, quan-
Noventa mil negros vão ao Paraguai. Morrem se- do preciso, seria um processo de "aperfeiçoamento da
tenta mil e voltam cerca de vinte mil - eles têm a raça", que haveria de ser branca. Mesmo os "defenso-
promessa de que serão libertos e ganharão terras: al- res" dos negros viam neles uma "mancha vergonhosa"
guns conseguem a liberdade, mas raríssimos recebem na nossa nacionalidade, corno Nina Rodrigues.
terra. O comum é a maioria, desamparada num regime Joaquim N abuco, o grande tribuno, político consa-
escravista, regredir à escravidão, depois de ser estigma- grado, em O Abolicionismo, explica uma das vantagens
tizada como vagabunda. de se acabar com a escravidão: absorver "o sangue
59
58 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai

caucásico vivaz, enérgico e sadio" que os imigrantes que se amotinam para não seguir para os campos de
trariam para nos livrar da "mancha negra". batalha.
Poderia citar inúmeros exemplos dos grandes vul- Os uruguaios praticamente não contam: o Uruguai
tos da inteligência brasileira, proclamando o extermínio é envolvido por uma questão estratégica, liberando a
da "raça negra", como SílvioRomero, ou Oliveira Lima, bacia do Prata para a passagem dos aliados contra o
para quem "a raça superior", naturalmente "branca", Paraguai.
"mais cedo ou mais tarde vai eliminar a raça negra . Durante a campanha tudo isso se reflete. Os longos
daqui". cinco anos para vencer o Paraguai, mais que a incrível
Não basta analisar a guerra pelas batalhas, atos de resistência do pequeno país, são conseqüência da pés-
sima qualidade do nosso Exército. Os próprios oficiais
heroísmo ou coragem, etc. Nela há um conteúdo mais
brasileiros, para justificarem a deserção e fuga dos nos-
fundo. Como os vencidos apenas começam a resgatar
sos soldados, muitas vezes criam a imagem de que o
sua história, esses fatos causam estranheza. No Brasil o
Exército guarani é sobrenaturalmente "fanático" e luta
povo sempre é o vencido, sufocado econômica e politi-
camente; por isso sua história é tão desconhecida! As como "demônio".
E finalmente a campanha vai começar. Veremos
classes dominantes nunca perdem, sempre ganham e,
como isso se faz atingindo várias metas:
para melhor dominar, escrevem "li história à sua maneira, 1) destruição do Paraguai;
impondo-a pelo controle dos meios de comunicação. 2) genocídio do povo guarani;
3) submissão ao imperialismo britânico; e, por fim,
não menos importante:
4) a matança dos negros brasileiros, ponto mais
E os nossos aliados ...
dramático da ideologia do branqueamento.

o Exército brasileiro fará o grosso da campanha.


Os argentinos têm os mesmos problemas que os brasi-
leiros e desagregam-se em campanha. Freqüentemente
o presidente Mitre retira suas tropas de frente para
levá-Ias de volta à Argentina, onde sufocam rebeliões,
ocasionadas, não raro, pela discordância da guerra con-
tra o Paraguai. Ou então enfrentando batalhões inteiros
IL----:..---- li I
A Guerra Contra o Paraguai 61

obrigando o conde d'Eu a expulsar seis comandantes e


ameaçar outros de prisão. .
Enfim, é preciso providências urgentíssimas. Os
comandantes militares, apoiados pelo embaixador
H\ Francisco Otaviano de Almeida Rosa, pedem dinheiro
ao governo para pagar soldos vencidos e comprar cava-
los. O dinheiro chega e não resolve: oficiais continuam
. aumentando o número dos soldados inexistentes, com-
pram cavalos imprestáveis ou assinam recibos falsos,
ROUBO, TRAIÇÃO, CRIME repartindo o dinheiro entre compradores e vendedores.
O governo está impotente para conter a corrupção, .
mesmo quando ela é comprovada e confessada, pois os
maiores corruptos são políticos importantes no Rio
Generais ladrões de cavalos Grande do Sul e muitos deles comandam unidades
estratégicas - como Canabarro, Jacuhy e outros.
o general Osório comanda o Exército que partirá Provavelmente nunca houve tanto roubo de cava-
de Montevidéu para invadir o Paraguai. Seus soldados los no mundo, como no Rio Grande do Sul às vésperas
refletem a irracionalidade da formação da tropa: mais de o Brasil invadir o Paraguai. Há troca de ofícios entre
de mil estavam doentes. Em cartas a generais amigos, o ministro da Guerra e o presidente da província, con-
ele lastima a "pequena estatura e fraca constituição" firmando os roubos. O ministro mostra o absurdo dos
dos seus combatentes, pois "logo aos primeiros passos, preços e percebe que, quanto mais se compram cavalos,
viam-se os homens caídos aqui, ali e acolá". O quadro mais faltam animais no Exército. O presidente da pro-
que Osório pinta é sombrio: "Estamos mal; estão adoe- víncia concorda, mas alega que nada pode fazer.
cendo muitos soldados e têm morri do já alguns, e os Da mesma forma que desaparecem cavalos, somem
médicos sempre gritando que não há remédio. (...) Nos- uniformes e armas. Não há solução, o jeito é ignorar a
sas cavalhadas têm morri do aos montes. Tem havido fraude, porque é urgente "arrumar" os "voluntários"
deserções; (...) Os soldados estão muito nus e sem sol- desse Exército. Dessa maneira, fecham-se os olhos e o
dos". presidente do Rio Grande confessa ao ministro "que
Oficiais declaram-se doentes para fugir à luta - muitos desperdícios e muitos roubos tem havido. ( ...)
um comportamento que perdurará até o fim da guerra, Isso não é de agora, porque as tradições que há de outras
63
62 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai
"

épocas são ainda mais horríveis. E como evitar esse


mal?"
Em vários ofícios - que ocupariam dez ou vinte
vezes mais páginas que este livro -o governo imperial I
resolve "engolir" a versão de que os cavalos comprados \
"morreram" e as armas-c os uniformes desaparecidos
"extraviaram-se". O governo desiste de investigar as
denúncias do presidente gaúcho de que o general Ca-
nabarro é o maior comprador de cavalos do Exército,
mas suas tropas nunca' têm montarias. Canabarro e
Jacuhy, aliás, quando os paraguaios estão invadindo o
Rio Grande do Sul, chantageiam o presidente da pro-
víncia, pedindo dinheiro para comprar cavalos, do con-
trário não os enfrentarão. São pagos pelos cavalos que
não compram e nem assim aparecem para defender as
fronteiras.
Em 31 de agosto de 1865 o governo suspende as
remessas de dinheiro para "comprar" cavalos. Mas nin-
guém responde pelos roubos. Os generais ladrões de
cavalos são desmascarados e denunciados de, aprovei-
tando-se da guerra, invadirem o Uruguai para roubar
gado, usando as forças brasileiras. É o que afirma o
coronel José Bernardino Bormann, do Estado-Maior
do Exército, refeundo-se ao general Canabarro:

"É preciso que não se confunda 'estratégia' com


surpresa às estâncias para arrebanhar gado e cavalhada;
degolar capatazes; incendiar a propriedade do adversá-
rio; e não dar quartel aos vencidos".
,7
64 Júlio José ChiavenatoA Guerra Contra o Paraguai 6S

Para não voltarmos mais adiante à corrupção, an- Império a instituir um Conselho de Guerra para apurar
tecipemos que ela acontece durante toda a guerra. Ho- o comportamento de alguns generais.
mens como o barão de Mauá aproveitam-se do momen- . Nessa investigação descobre-se o mais grave: o
to, lucrando absurdos. Já ao fim da guerra ele vende 3,6 Exército deixa os paraguaios invadirem o Brasil. Não se
milhões de rações ao conde d'Eu, mas entrega só a deve julgar surpreendente essa "revelação"-o surpre-
metade. Agravante: o alimento apodrece nos depósitos endente é nossos historiadores ignorarem-na, quando
e no transporte, a cinqüenta quilômetros de onde os existe uma riquíssima documentação no Arquivo do
soldados morrem de fome. O testemunho é do visconde Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.
de Taunay, nas suas Memórias. Apesar da corrupção e da má qualidade do Exérci-
Deixemos os pormenores apenas para lembrar de to, os paraguaios podem ser facilmente contidos no Rio
na invasão paraguaia do Rio Grande do Sul "só haverem
Grande do Sul. E por que não o são?
aparecido no lugar do combate cerca de duzentos pra-
Porque o planejamento da defesa das fronteiras do
ças da força da P Brigada, quando, segundo os mapas
sul não é feito. por brasileiros, mas orientado desde
que me transmite e que envio inclusos à Vossa Excelên-
cia, o efetivo dessas forças é de 2 423". Buenos Aires, pelo presidente Mitre, colocando os seus
É ofício ao ministro da Guerra, informando por interesses em primeiro lugar. A diplomacia imperial e o
que tão facilmente os paraguaios entraram no Rio próprio general Osório concordam em "entregar" o Rio
Grande. Quando os paraguaios cruzaram o rio Uruguai Grande ao aceitar a "defesa de Buenos Aires". O Con-
e puseram os pés em terras brasileiras, "o 1.0 Batalhão selho de Guerra, investigando a irresponsabilidade de
de Voluntários deu a primeira descarga e fugiu". Fugiu, Canabarro, Menna Barreto, Frederico Caldwell e do
e conta o coronel Antônio Fernandes Lima, ficou "com- barão de J acuhy, logo é desativado, quando se descobre
pletamente desmoralizado" e os soldados "COMPLE- que todos contiveram suas tropas em obediência às
T AMENTE NUS porque perderam a pouca roupa que ordens superiores do comando da Tríplice Aliança. As
tinham". forças aliadas resistiriam em Corrientes, no lado argén-
tino. Tudo é confirmado pelo general Osório, respon-
dendo afirmativamente ao Conselho de Guerra se havia
A traição do comando um plano combinado para permitir a invasão:

Roubo, covardia, deserção, inválidos transforma- "Respondo à Vossa Excelência que houve um pla-
dos em militares - esse conjunto deprimente força o no combinado".
A Guerra Contra o Pa,aguai 61
66 Júlio José Chiavenato

Defendendo-se, Osório afirma acreditar que a in- Matando de ódio, morrendo de fome
vasão do Rio Grande terá "por fim desviar a atenção do
Exército aliado", dizendo que age "de acordo com o A maioria dos comandantes aliados são caudilhos
general Mitre". Porém, mal maior não virá, segundo argentinos e gaúchos do Rio Grande de Sul. Agem de
Osório: "Alguns males fará por aí o inimigo, mas isto é acordo com seu caráter, que é claramente exposto por
da guerra e pagarão Com a derrota esses estúpidos Sarmiento:
escravos que talaram o país".
Moral da história: Osório coloca acima do dever de "Os caudilhos se distinguem por seu ódio à espécie
defender sua pátria a obediência ao comando de Mitre humana. Matar é sua missão; morram, seu credo; o
e com isso absolve a corrupção e a covardia de Canabar- extermínio, seu objetivo. Morram os cidadãos de opi-
ro e seus companheiros, que agiram obedecendo às suas niões contrárias; morram os chefes e oficiais do Exérci-
ordens. tos; na derrota não se dá quartel, e Exércitos inteiros
O Conselho de Guerra dá em nada: a partir desses são degolados".
documentos o principal réu será o próprio comandante
do Exército brasileiro, o general Osório, Essa tradição prevalece contra o Paraguai. Depois
de expulsarem os paraguaios do Rio Grande do Sul e
Anos mais tarde, em Um Estadista do Império,
Mato Grosso, à medida que lentamente as tropas alia-
Joaquim N abuco absolve a todos, afirmando que, afinal,
das se infiltram no Paraguai os crimes de guerra se
vencemos â guerra. Porém, seria uma "estratégia" ne-
sucedem.
cessária entregar o Rio Grande do Sul à pilhagem? Quando não degolam os vencidos, eles são incor-
Uma investigação mais funda mostra que não. O porados à força ao Exército invasor e mandados à fren-
que Mitreconseguiu foi desviar o ataque paraguaio, que te, como bucha de canhão, para- abrir caminho. A con-
se dirigia para Corrientes e Entre Ríos, ao sul brasileiro. taminação das águas é uma constante. Caxias informa
Por quê? Porque se as tropas paraguaias conquistassem ao imperador, em carta de 18 de setembro de 1867, que
aquelas províncias, o próprio Mitre seria deposto da se jogam cadáveres contaminados com cólera "nas
presidência da Argentina. águas do rio Paraná (...) para levar o contágio às popu-
O cómando militar brasileiro "entregou" o Rio lações ribeirinhas". Vestem prisioneiros paraguaios
Grande aos paraguaios, submetendo-se às manobras de .com roupas dos mortos pelo cólera e os soltam para que
Mitre para manter-se no poder. transmitam a doença ao seu povo.
68 Júlio José Chiavenato A Guerra Contra o Paraguai 69

Os prisioneiros paraguaios são vendidos pelos bra- Com o Paraguai praticamente vencido, em 1869,
sileiros como escravos. Os jornais europeus começam a soldados brasileiros morrem de fome. O conde d'Eu
divulgar a matança. O EveningStar, de Londres, publica manda um exército de Caraguataí a San Joaquín, sob' o
que 1 400 prisioneiros paraguaios, "depois de desarma- comando do general Resin, As peripécias dessa expedi-
dos, haviam sido degolados e abandonados no campo de ção são contadas pelo coronel Rodrigues da Silva. Os
batalha". , soldados atravessam campos incendiados pelos para-
A guerra, principalmente no seu final, transforma- guaios, perdendo calçado e roupa. Falta comida e eles'
se numa carnificina, -quando o conde d'Eu assume o têm que caçar "e regressavam ainda mais enfraquecidos
comando dà campanha em 1869. Em Peribebuy, em por não depararem com coisa alguma". Comem capim
represália à morte em combate do general Menna Bar- e, finda e marcha, mais de dois mil tinham morrido de
reto, ele manda degolar todos os prisioneiros. Não satis- fome.
feito, cerca o hospital, lacra com tábuas janelas e portas, É um Exército que mata às cegas e morre de fome.
incendiando-o com os doentes dentro. No caso desses mortos na expedição a San Joaquín, a
Esses crimes se cometem em nome de uma "causa" culpa recai sobre oficiais que não sabiam interpretar os
apresentando-se' ao mundo como defensora da "civili- mapas, perdendo-se na jornada.
zação"contra a "barbárie".
O Exército paraguaio é seguido pelas mães e mu-
lheres dos soldados, que recolhem os mortos e feridos A violência das borboletas
após os combates. Na batalha de Avaí, quando o general
Osório é ferido e morrem três mil brasileiros, a vingança
cai sobre essas mulheres, que são mortas por uma carga o famoso episódio imortalizado por Taunay emA
de cavalaria ao recolherem seus mortos e feridos. Retirada da Laguna é um dos mais dramáticos do Exér-
De cada cem mortos brasileiros, apenas oito mor- cito brasileiro. E a saga de uma coluna que segue de São
rem de ferimentos da luta: as diarréias, a fome, as Paulo para socorrer o Mato Grosso e tem que retomar,
epidemias de tifo e cólera matam noventa e dois por fugindo de um inimigo invisível e das pestes. Dos três
cento dos soldados. A única doença que mata menos batalhões que a compunham umdeles é dizimado pelas
que as balas paraguaias é a 'bronquite, responsável por epidemias antes de partir. O planejamento da marcha é
2,9 por cento das baixas, segundo os relatórios médicos feito no Rio de Janeiro. "Todos os planos (...) eram
do Exército. Os feridos morrem muito mais das infec- errados e só patenteavam a incompetência dos que os
ções que das próprias feridas. formulavam e o absoluto desconhecimento das vastíssi-
70 lúlKllosé Chiavenato A Gum-a Coittra ôPtuagrmi 71

mas regiões e~ que havia sido abandonada, aos azares panha da Cordilheira, em dezembro de 1869, quando os
da sorte, a nossa triste e resumida coluna", diz Taunay brasileiros perseguiam Solano López, que se refugiava.
nas suas Memórias. . nas suaves montanhas paraguaias, seguido por uma co-
Nos pantanais mato-grossenses muitos morrem luna de famintos, burros e cavalos caíam exaustos, tendo
afogados no barro. Taunay conta fatos apavorantes, a morte acelerada pelas picadas dos insetos, em doloro-
como o afogamento na.lama de "uma desgraçada mu-
sa agonia.
lher a bradar por socorro com o filhinho nos braços e
E as borboletas atacam.
agarrada aos chifres de um boi, que ia sendo gradual-
As conhecidas 88 - esse número parece impresso
mente sorvido pela voragem do lodo. E todo o grupo
nas suas asas -, em vôo aos milhares, atacam bois e
em breve desaparecera ..."
cavalos. Taunay conta que milhares de borboletas
Ele calcula que mais de duas mil pessoas morrem
amontoavam-se "nos cantos dos olhos e nas ventas dos
nessa expedição desastrosa. No auge do sofrimento
surge a epidemia do cólera-morbo. Os soldados come- animais, buscando qualquer umidade corpórea, e em
çam a desertar. Os paraguaios espreitam a tragédia de breve provocaram nos pontos desse teimoso pouso tal
longe. Os doentes de cólera são abandonados para não irritação que não tardava em provocar abundante cor-
contaminar os outros. O coronel Camisão, comandante rimento, a princípio de aguadilha e logo após copiosfs-
da coluna, diz que os coléricos atrasam a fuga. Deixam- simo pus! Um horror!"
nos em clareiras no mato, com cartazes pedindo aos
paraguaios "compaixão para os coléricos". Quando al- Indefesos, os bois caem, em pouco tempo estão
guns desesperados tentam reagrupar-se à coluna são cegos e "cada órbita tornava-se medonha e nojenta
mortos à lança pelos companheiros. Não tarda e o . fonte de purulentos rios, que atraíam ainda maior por-
. próprio comandante contrai o cólera e morre. ção das tão terríveis borboletas".
Em A Retirada da Laguna e mais analiticamente
em suas Memórias (livro interditado até 1949, teve duas Para prosseguir, o Exército improvisa máscaras de
edições e encontra-se esgotado e ninguém se lembra de palha para os animais. Ao final da marcha chegam a
republicá-Io) conta-se não só a tragédia, mas demons- Caraguataí, onde o coronel Fidelis degola "não pouca
tra-se a criminosa indiferença do governo para com os gente".
"voluntários".
Nessa guerra até as borboletas ficam cruéis. Antes,
houvera a rebelião das moscas e mosquitos. Na Cam-
~'
72 Júlio José Chiavenato

Os vencidos não têm história?

E quem é o inimigo?
São esquálidos soldados meninos, vencidos desde
1869, quando Caxias toma a capital e dá a guerra por
encerrada. Mas a Tríplíee Aliança não aceita o fim da ..
guerra sem a morte de Solano López. Por isso, demitin-
do-se Caxias, o conde d'Eu assume o comando e se
incumbe de realizar o genocídio do povo guarani.
O Exército em perseguição a López, entre comba- o FIM DE UM POVO LIVRE
tes esparsos com tropas formadas por velhos e meninos,
vai encontrando grupos "de doze a dezesseis crianças,
umas mortas, outras deitadas ou sentadas, que nos olha-
vam com indiferença, todas em um estado de indescri-
Saque e destruição
tível magreza", conta-nos o coronel Oliveira Nery. A
resistência é feita por essa gente, afirma o coronel: "( ...)
Conquistando Assunção, Caxias dá a guerra por
e era este, pode-se dizer, o pessoal do exército do tirano
encerrada em 14 de janeiro de 1869. Ele sabe que daí
que, já sem armamento, munições e força moral, não
para a frente será um massacre. Demite-se do comando
pôde resistir aos nossos valentes e vigorosos soldados".
por não concordar em ser o coveiro do Paraguai. Já
Esse massacre arranca do sóbrio coronel brasileiro
tinha alertado o imperador que para submeter o Para-
Bormann o desabafo sentido: "Mas que campos de
. guai teria que matar até as crianças no ventre das suas
batalha! Que cenas comoventes! Quantos crianças de
mães.
onze a quinze anos despedaçadas pela metralha!"
Há uma cláusula secreta no Tratado da Tríplice "
Nossa historiografia tradicional - e na verdade
todos os historiadores - não se importam com "esse Aliança - tratado que sintomaticamente só ficou co-
lado" da guerra: os vencidos não têm história ... nhecido quando o Parlamento inglês o denunciou, em
Londres - permitindo aos brasileiros e argentinos o
saque do país. .'
A capital do Paraguai é assaltada durante' três dias:
roubam templos, derrubam casas na ânsia de encontrar
ouro escondido, tornam móveis, pianos, ete. .
I . ~ I
74 Júlio JoséChiavenato A Guerra Contra o Paraguai 7$

A partir daí a guerra é uma expedição de ladrões e o massacre das crianças


vândalos agindo ao lado dos que massacram o resto do
povo. Toda a documentação em que se baseia para
afirmar isso é brasileira, de oficiais que comandaram o A guerra poderia terminar já em 1867. Continua
genocídio. porque - além do interesse em destruir uma nação
O Diário do Exércitô, de 18 de maio de 1869 e dos outrora livre - "nossos aliados não querem acabar com
dias seguintes, vai narrando os acontecimentos. Como a guerra, porque com ela estão lucrando e empobrecen-
se sabe, o Paraguai tinha uma fundição em Ibicuí. Ela é do o Brasil. Desde que Mitre chegou tem procurado por
totalmente destruída a mando do conde d'Eu. A parte
todos os meios possíveis demorar a marcha das opera-
oficial do Diário do Exército, de 9 de junho de 1869, diz:
ções", informa Caxias ao imperador, em 20 de setembro
de 1867.
"A fundição de Ibicuí fora totalmente destruída
pelo engenheiro Jardim, o qual encontrara grande nú- O Paraguai está vencido. López foge resistindo.
mero de máquinas ainda aproveitáveis. (...) Dirigindo a Não tem mais exército. Arma crianças e velhos. Há fome
obra de destruição dos oitenta homens que com ele e desmoralização entre os guaranis. Seus irmãos conspi-
haviam seguido, aquele engenheiro desmontou peças ram para matá-Io, na esperança de uma paz conveniente
importantes no fabrico de pólvora e fundição de ferro, com o Império do Brasil. López reage, mandando fuzi-
lançou fogo aos edifícios e oficinas de fundições, carpin- lar os conspiradores e até sua mãe é condenada à morte
taria, tornearia, ferraria e armaria". mas não executada.
Nesse quadro arma-se uma das últimas batalhas, a
Parte-se então para o saque da casa da mulher de mais trágica da guerra. De um lado, vinte mil brasileiros.
López, Madame Lynch, em Peribebuy. O mesmo Diário De outro, 3500 crianças paraguaias de nove a quinze
do Exército descreve os "trastes ricos, porcelanas, camas anos, comandadas pelo, general Bernardino Caballero.
douradas, e possuía até um piano", que são divididosentre É a batalha de Acosta Nu (ou Nu Guaçu, Campo Gran-
os oficiais- o protocolo secreto do Tratado da Tríplice de), que se dá em 16 de agosto de 1869.
Aliança, nos artigos 3 e 4, permite esse "confisco". As crianças paraguaias ficam cercadas num círculo
Paulatinamente o Diário do Exército vai relacio- de fogo, descreve o general Tasso Fragoso, um dos
nando a destruição de estações telegráficas, tipografias, historiadores militares da campanha. Os brasileiros ata-
estradas, etc., pois já não havia resistência, a não ser de cam por quatro lados - o comando geral foi do conde
mulheres e adolescentes. d'Eu. Ao seu lado, Taunay assistiu à matança.
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As crianças resistem um dia inteiro às ondas de ressecada, levara todo o dia, de modo que muitos des-
ataque dos brasileiros. Finalmente, ao cair da tarde, graçados feridos foram queimados, subindo espesso fu-
estão mortas ou feridas. Os soldados brasileiros conti- mo aos céus..."
nuam degolando a esmo. Escondidas no mato, as mães
entram no campo de batalha tentando resgatar seus Não diz que os feridos são crianças: o Exército não
filhos. Não poucas pegam em lanças e enfrentam nossos pode macular-se e registra burocraticamente o massa-
cre. Mas nas suas Memórias ele conta o que não pôde
soldados.
escrever no Diário do Exército: -
Por fim, o conde d'Eu manda incendiar o capim
seco. No braseiro vêem-se crianças feridas correrem até "Parece-me ainda estar vendo como as lanças se
cair, vítimas das chamas. Muitas choram e pedem que abaixavam, fulgurantes, vertiginosas, atirando alto ao
as matem para abreviar-lhes o sofrimento. ar, como que simples novelas de algodão, os corpos que
Nas suas Memórias, ao contrário da forma seca iam ferindo e que, no geral, caíam agachados, acocora-
como o Diário do Exército relata Acosta Nu, Taunay dos e, mais que isto, enrolados sobre si mesmos".
demonstra o horror:
Élongo o seu relato das misérias do Acosta Nu. Ele
"Oh! a guerra, sobretudo a guerra do Paraguai! viu os meninos paraguaios mataram-se mutuamente,
Quanta criança de dez anos, e menos ainda, morta quer para escapar das torturas do fogo ou dos soldados que
de bala, quer lanceada junto às trincheiras que percorri os capturavam. O massacre é fácil de perceber: morre-
a cavalo, contendo a custo as lágrimas!" ram dois mil paraguaios e sessenta e dois brasileiros -
deviam ter sobrado lS00 meninos, mas eles não foram
Taunay conta que, depois da vitória, enquanto se encontrados: viraram cinzas.
faziam prisioneiros, "ainda se matava, bem inutilmente
aliás". No Diário do Exército, redigido pelo próprio
Taunay, a linguagem é mais sóbria: A "civilização" venceu a "barbárie"
"Esse lugar tem o nome de Nu Guaçu ou Campo
Grande. Os resultados foram brilhantes: talvez para A guerra vai terminar.
mais de dois mil cadáveres atestavam a tenacidade ini- Francisco Solano López é cercado em Cerro Corá
miga. (...) Este incêndio; aliment·ado pela macega alta e em 1.° de março de 1870. Restam-lhe cerca de cem
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soldados. Atacados pelas tropas do general Câmara há O corpo mutilado de Francisco Solano López é
uma pequena resistência. López, com a espada na mão, entregue à sua companheira, Madame Lynch, que, com
é cercado à margem do riacho Aquidabán-Nigui. Recu- a ajuda de uma filha menor, cava-lhe a cova com as
sa-se a render-se e é morto. próprias mãos, enterrando com ele seu filho Pancho.
Chico Diabo perfura-lhe o ventre com a lança; Com sua morte morre o Paraguai livre.
outro soldado acerta-lhe'a testa com o sabre. Perdendo Enfim, a guerra está terminada.
sangue, cai do cavalo ao tentar atravessar o riacho. O Paraguai, destruído. Perdeu cento e quarenta
Novamente o general Câmara pede-lhe que se renda. mil quilômetros quadrados, a maioria deles tomados
Ele diz não, e grita: "!Muero con mi Patria!" Brande pelo Brasil, uma outra parte pela Argentina. O imperia-
frouxamente a espada, está quase desmaiando. Um sol- lismo inglês, destruindo o Paraguai por meio dos seus
dado aproxima-se para desarmâ-lo, mas ele o ataca satélites, mantém o status quo no Cone Sul. Ao fazer
debilmente. Éentão que um tiro o atinge nas costas. Cai isso, fica credor implacável do Império do Brasil e -da
morto. Confederação Argentina.
Seu filho Pancho, de dezoito anos, luta defenden- O Paraguai, que tinha uma estrutura social baseada
do a mãe, Madame Lynch. Também é morto por recu- no acesso à terra, terá essa organização destruída pelos
sar-se a render-se. O general Câmara registra oficial- anos de ocupação inimiga. Suas terras são vendidas para
mente a morte de López: estrangeiros: passam a ser seus proprietários capitalistas
de Amsterdam, Londres ou Nova York.
,
"O tirano foi derrotado, e não querendo render-se Resta um país mutilado, que nunca mais pôde
foi morto à minha vista. Intimei-o com ordem de ren- reerguer -se: mataram 96,50 por cento da sua população
der-se, quando já estava completamente derrotado e masculina. Os governos títeres impostos pela Tríplice
gravemente ferido, e não querendo foi morto". Aliança sucedem-se. Depois da ocupação, o país conhe-
ce uma série de ditaduras que esmagam o povo e per-
O tenente Genésio Gonçalves Fraga lança-se so- duram mesmo hoje, com o governo falsamente demo-
bre o cadáver de López, cortando-lhe uma orelha. Um cratizante de Rodríguez. A corrupção finalmente en-
soldado arranca-lhe um dedo; outro, o couro cabeludo trou no Paraguai,
e um último arrebenta-lhe a boca com a coronha do fuzil Destruiu-se o Paraguai assassinando um povo. Ge-
para recolher seus dentes. O cadáver é cuspido e chu- rações e gerações de historiadores - mais ou menos
tado pela soldadesca. oficiais -continuam ignorando essa história, talvez em
80 Júlio José Chiavenato

nome de um "patriotismo" caolho, que impede uma


visão mais objetiva dos fatos. Se a verdade não fosse
deturpada ou omitida por gerações de' historiadores,
restaria hoje pelo menos o exemplo de um povo livre,
condenado ao extermínio pelo "crime" da sua liberda-
de. ,
Uma lição útil para que nunca mais ninguém pu-
desse comentar os resultados desse genocídio com o
grotesco cinismo de lorde Palmerston:

"A Inglaterra tem tanta força, que pode cagar em


APÊNDICE
todas as conseqüências".

A "civilização" venceu a "barbárie".

1. O genocídio em números

População do Paraguai no
começo da guerra 800 000 100,00%
População morta durante
a guerra 606000 76,75%
População sobrevivente 194000 24,25%
Mulheres sobreviventes 180 000 22,50%
Homens sobreviventes 14000 1,75%
Homens sobreviventes
menores de dez anos 9800 1,23%
Homens sobreviventes
até vinte anos 2 100 0,26%
Homens sobreviventes
maiores de vinte anos 2 100 0,26%

I lt I
82 JúlioJosé Chiavenato

2. População brasileira antes e depois da guerra

brancos negros mulatos índios total


1850- 2486000 2500000 2732000 302000 8020000 t
)
31,0% 31,2% 34,0% 3,8%
1872- 3787289 1510&06 4245428 386955 9930478 I'
,I
38,1% 15,2% 42,8% 3,9%

3. Receita e despesa do Império durante a guerra INDICAÇÕES PARA LEITURA,

Anos Receita Despesa


1863/1864 58356845$210 59 393 004$568 São poucos os livros editados nos,últimos anos sobre a guerra contra
1864/1865 61058419$862 86 325 372$087 o Paraguai. Praticamente só se encontram nas livrarias os meus Genocidio
1865/1866 63511500$842 125366 074$524 Americano, a Guerra do Paraguai (Brasiliense), O Negro-no Brasil (Brasiíien-
1866/1867 70 086 253$534 124489 259$163 se) e Os Voluntários da Pátria (Global) - eles dão uma visão mais ampla
1867/1868 75668416$862 169536838$076 sobre as causas e conseqüências do conflito, resumidos aqui neste trabalho.
1868/1869 92586 038$574 154558272$061 Há ainda A Guerra do Paraguai, de Le6n Pomer (Global), observando mais
1869/1870 101335401$827 102405 859$794 a guerra do lado argentino.
Entre vários outros livros interessantes, que poderão ser encontrados
Totais 522602876$711 822074680$272 em qualquer; boa biblioteca, estão: Diário do Exército, Campanha da Cordi-
lheira, e Campanha de Campo Grande, a Aquidabã (Biblioteca do Exército
Déficit de 1863a 1870 299471803$561 Editora); Memôrias, de Alfredo d'Escragnolle Taunay (Instituto Progresso
Editorial); A Invasão Paraguaia, de Walter Spalding (Cia, Editora Nacio-
nal); A História Militar do Brasil, de Nélson Wemeck Sodré (Civilização
Brasileira). .
4. Evolução dos empréstimos ingleses ao Império do Brasil

de 1825a 1864 6208192 libras


1865 11529388 libras
até 1870 31000000 libras
I lt I lt I
Sobre o Autor

Júlio 'José Chiavenato é jornalista, nasceu em Pitangueiras (SP) e


desde a infância vive em Ribeirão Preto. A partir de 1971, impressionado
com a expansão do subimperialismo brasileiro no Paraguai, começou a
estudar a história daquele país, ponto de partida para uma série de livros
analisando o grau de dependência da América do Sul aos imperialismos da
Inglaterra e dos EUA.
Percorreu praticamente todos 0S países da Américado Sul por terra,
numa velha motocicleta, acreditando que é impossível escrever corretamen-
te a história destes povos oprimidos sem um contato direto com a sua
realidade. .
Tem publicado artigos e reportagens em diversos Jornais, especial-:
mente sobre.a América do Sul. Hoje dedica todo seu tempo 'à pesquisa da
história latino-americana.
Livros publicados pela Brasiliense: O Negro 110 Brasil; Curumim Ca-
bano, A Cabanagem e Olha lá o Brasil (em colaboração com Miguel Paiva),
Genoctdio Americano: a Guerra do Paraguai e Cangaço, a Força do Coronel.

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