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Valor Econômico, 17 de maio de 2017

O Brasil não deu certo

Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli


EPGE-FGV e FGV Crescimento e Desenvolvimento e EPGE-FGV

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O Estado brasileiro sempre foi arcaico, patrimonialista e concentrador. Nossa
estagnação desde 1980 não era um destino inescapável. Foi uma escolha. É
compreensível que a FIESP e os ruralistas lutem pela manutenção de seus privilégios.
Mas espanta que grande parte da população continue a acreditar num modelo que
pouco a favorece, e que não tem entregado crescimento há quatro décadas.
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Em artigo recentemente publicado neste espaço, Armando Castelar pergunta: como


um país que, entre 1900 e 1980, multiplicou por 12 seu produto por trabalhador,
logrou aumentá-lo menos que 30% nos 40 anos seguintes? Utilizando a categoria de
análise adotada no livro "Sapiens: A Brief History of Humankind", de Yuval Harari,
Castelar vai além e pergunta: que narrativa, ou a “realidade virtual”, ou desculpa
coletiva os brasileiros apresentam para esse fracasso? Afinal, de 1980 até hoje, o país
passou por diferentes regimes políticos, modelos econômicos, planos de estabilização,
mas não saiu do lugar. Surpreendentemente, os brasileiros não encaram o fiasco de
frente, nem se dão conta de sua magnitude, muito menos se sua evitabilidade.
Em 1980, estagnação não era um destino inescapável. Foi uma escolha. Tome-se o
exemplo de dois países que, no pós-guerra, eram semelhantes ao Brasil: Chile e Coréia
do Sul. A figura abaixo apresenta as trajetórias dos produtos por trabalhador desses
dois países, do Brasil e de um Brasil imaginário, denominado “BrasilQDC” – o Brasil que
poderia ter dado certo. Em 1950, o Chile era cerca de 60% mais produtivo que o Brasil,
mas foi alcançado pelo Brasil no começo dos anos 1980. Hoje, entretanto, o produto
por trabalhador chileno é quase o dobro do brasileiro. Até o início dos anos 1980, a
Coreia do Sul era mais pobre e menos produtiva que o Brasil, mas hoje sua
produtividade média é uma vez e meia a brasileira. O Brasil ficou muito para trás.
Produto por Trabalhalhador, 1950-2015
80000
70000
60000
50000
40000
30000
20000
10000
0
1965
1950
1953
1956
1959
1962

1968
1971
1974
1977
1980
1983
1986
1989
1992
1995
1998
2001
2004
2007
2010
2013
Coreia do Sul Brasil Chile BrasilQDC

Fonte: Bonelli, Veloso e Castelar Pinheiro (2017), A Anatomia da Produtividade no Brasil

No imediato pós-guerra, esses dois países, assim como o Brasil, eram


predominantemente agrícolas. Posteriormente, como observado no Brasil, passaram
por uma transformação estrutural caracterizada por rápida urbanização, com perda de
importância da agricultura e ascensão da indústria e dos serviços. O que explica o
sucesso de Coreia e Chile não foi, como erroneamente diagnosticado pela Nova Matriz
Econômica, uma especialização nos setores “certos”, enquanto o Brasil teria apostado
nos setores “errados”. Ao contrário, a baixa produtividade brasileira é generalizada,
atingindo quase todos os setores da economia. Em algum momento esses países
fizeram políticas corretas e o Brasil equivocadas.
Entre 1950 e 1980 a produtividade brasileira aumentou 3,5% ao ano, embora 40%
disto (1,4% ao ano) se explicasse por mudanças setoriais, um ganho que se esgotou
naquele período e não poderia ter se repetido. Mas os 60% restantes (2,1% ao ano)
servem como indicador de qual poderia ter sido o crescimento desde 1980, caso as
políticas adotadas no país tivessem sido outras. Se, após 1980, a produção por
trabalhador no Brasil tivesse crescido à mesma taxa observada no Chile – 1,8% ao ano
– a produtividade brasileira seria hoje 70 % maior. Esta é a linha “BrasilQDS” do
gráfico acima, o que poderíamos ter sido.
Entre 1900 e 1980, o Brasil cresceu muito, mas durante todo o século XIX passou por
uma longa estagnação. A partir da virada do Século XIX, reformas econômicas e sociais
impulsionaram significativamente a produtividade no país. Países atrasados, ao se
abrirem ou se reformarem, mesmo que limitadamente, geram inúmeras
oportunidades de investimento, que estimulam o crescimento. O Brasil saiu de seu
gigantesco atraso e caminhou para seu pequeno atraso. Entretanto, colheram-se
apenas as frutas mais baixas da árvore. A partir dos anos 1980, o país foi engolfado na
armadilha da renda média, tendo parado de crescer.
Castelar identifica no cidadão brasileiro uma concepção de mundo onde o Estado teria
todas as soluções para os problemas econômicos. Essa “narrativa fantástica” explicaria
não só o subdesenvolvimento, mas principalmente o fracasso recente. O Estado-mãe
só não conseguiria resolver os problemas recorrentemente enfrentados pela
população devido à sua captura por "elementos do mal”. Entre estes elencam-se os
políticos corruptos, o mercado financeiro, a mídia golpista, ou algum outro bode
expiatório da vez que impediria o Estado de prover o paraíso na Terra.
Essa visão inspirou a Constituição de 1988 que prometeu tudo a todos, descuidando
do financiamento das despesas e do seu impacto no longo prazo. De lá para cá, o gasto
primário do Estado explodiu, e toda uma estrutura tributária repleta de distorções foi
criada para financiá-lo. Esse projeto de Brasil revelou-se inviável e explica a
estagnação. Chile e Coreia do Sul, por outro lado, liberaram suas economias e implantaram
modelos onde o papel do Estado é ainda importante, mas bem mais limitado que aqui.

O Estado brasileiro sempre foi arcaico, patrimonialista e concentrador. Suas políticas,


foram capturadas por elites rurais, industriais, mercantis, entre outros grupos
dominantes, e excluíram a grande maioria da população. A educação foi sempre
virtualmente ignorada. O país cresceu no século XX, apesar do Estado, e não devido a
ele. Ainda assim o brasileiro continua a esperar que esse mesmo Estado, que fracassou
no passado, possa resolver todos seus problemas no futuro, eliminando a pobreza,
dando-lhe universidade gratuita, aposentadoria confortável para a qual não contribuiu
suficientemente, e outras benesses. O brasileiro ainda se opõe à privatização de
empresas estatais ineficientes, aparelhadas, que lhe custam caro e oferecem pouco.
É compreensível que a FIESP lute pela manutenção do velho Estado patrimonialista e
sonhe com o generoso BNDES de sempre. É previsível que os ruralistas imponham,
como condição para apoiar a reforma da previdência, um refinanciamento das dívidas
do Funrural em condições de pai para filho. Mas espanta que grande parte da
população continue a acreditar num modelo que pouco a beneficia, e que não tem
entregado crescimento há quatro décadas. A melhoria do bem-estar do brasileiro
exigirá uma reforma radical do Estado. Mas o brasileiro, em grande medida, ainda não
se deu conta disso e continua preso ao passado.

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