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Koselleck para Ouro Preto

1 – É a tensão entre conceitos e realidade que define o achado teórico do


filósofo da história alemão mais influente hoje no mundo. Claro que há
Heidegger e Gadamer mais nem um dos dois dedicou-se à teoria da história
(que tem como objeto aquilo que fazem os historiadores quando fazem
história) como o sábio de Bielefeld.

2 – Estes são os conceitos e procedimentos centrais da teoria da história de


Koselleck: extratos do tempo (há temporalidades naturais e históricas
distintas e simultâneas em cada objeto das ciências da cultura e em cada
coisa tocada pelo ser humano. Há infinitos tempos no universo e a
interpretação os multiplica), história como singular coletivo (história é
processo humano e historiografia), era da passagem (fronteira entre
temporalidades semanticamente distintas), campo semântico (conceitos
analisados e interpretados em relação sincrônica e diacrônica permitem
localizar as condições de possibilidade dos eventos), contra-conceito (cada
conceito possui seu par, complementar e oposto como antes/depois,
dentro/fora, alto/baixo), meta-história (o texto é apenas testemunho: não há
realidade última, mas há condições meta-históricas da constituição da
história. Em pares categoriais são elas: viver para a morte e sobrevivência,
amigo e inimigo, interior e exterior, natividade e estar-lançado, senhor e
escravo), linguisticidade (conceitos são centrais para a constituição da
sociedade e nela todo objeto já aparece linguisticamente constituído),
inexequibilidade da interpretação absoluta (o texto já é resultado de textos
além deles há apenas categorias transcendentais de caráter existencial,
temporal e espacial), narratividade (um incidente só se torna evento quando
tratado narrativamente), semântica política (como repositório e antecipação
não necessária os conceitos são armas utilizadas em batalhas por definição
e alimentam uma guerra simbólica por posições formuladas e ocupadas
linguisticamente), a teoria das determinações existenciais (seres humanos
se matam, elegem inimigos, se identificam diante de um outro, estão
sujeitos ao ciclo da vida e das gerações, se dividem entre senhores e
escravos e usam linguagem), um conceito de conceito (conceito é a
realidade político-social condensada simbolicamente que promove
realidade semântico-interacionalmente concretizada), uma antropologia (a
sociedade é função do tempo histórico, ou seja, da diferença entre passado
e futuro nasce uma condição determinante da existência como agregado
categorial de experiência e expectativa: memórias e projeções orientam a
ação no presente), texto (registro codificado de estados de coisas extra-
textuais), tempo histórico (mudanças naturais e sociais, sincrônica e
diacronicamente relacionadas, que apreendidas por metáfora espacial
interconectam eventos), estrutura (interconecção inrredutível à sucessão
por sua duração e fixidez mas empiricamente inseparável dela), Historik
(tematização das estruturas de possibilidade das histórias).

3 – Koselleck trabalha no entre-lugar disciplinar que divide e aproxima a


história intelectual (ideias e indivíduos), a história social (sociedade e
mudança) e a história dos conceitos (deslizamentos de significados que
alteram o sentido das palavras podem ser estudados por uma ciência que
funde o saber do nexo de acontecimentos e o conhecimento do passado
lógica e empiricamente controlado). Sua intenção política está próxima do
que com Oakeshott, Berlin e Popper denomina-se racionalismo crítico.
Uma disposição conservadora quer denunciar a redução da experiência a
princípios. O Iluminismo é inimigo do costume e do preconceito. O
iluminismo detesta a autoridade e é incapaz de lidar com mistérios,
detalhes e incertezas. O iluminista gosta de teoria e da capacidade que ela
possui de impor-se aos eventos. O iluminista produz ideologia criticando
ideologias. Mais que isso, ele é incapaz de fazer política parlamentar. O
reino da negociação, da pluralidade, do convencimento é avesso às suas
certezas. Koselleck insiste no patrimônio cognitivo, no conhecimento
prático, nos universais. É um conservador que denuncia no racionalista o
técnico que ignora a necessidade de vínculos sociais que sustentam a ordem
moral. Contra tal fatal engano reforcemos uma antropologia histórica que
enfatize as estruturas de repetição. Há condições permanentes e
atualizáveis dos acontecimentos. A crítica do racionalismo é uma variante
do racionalismo. A pluralização das épocas nos permite analisar, comparar
e compreender etnogêneses, migrações, mesclas. Uma história preparada
para os desafios globais porque está preparada para lidar com fissuras e
deslocamentos. Esse é um velho sonho do historicismo: uma história
universal que dialoga com histórias especiais. Só não podemos achar que
descobrimos a nova forma da história: repetitividade constante e inovação
permanente como paraíso. Não podemos achar que uma perspectiva da
eternidade é agora possível para filósofos da história. O que temos agora é
uma divina teoria da história? Perdemos Freud e o inconsciente? Será que
Weber só vale por seu etnocentrismo? Será que Einstein vale para analisar
cultura? Será que a história dos conceitos derrotou Durkheim? É nisso que
deveremos ter fé?

4 – Não há sentido último da história e a interpretação da história é uma


linguagem vã. O que fazemos aqui só serve o agora. Não tem função
sistêmica, não está ligado ao eterno ciclo nem ao fim de todas as coisas. É
só história, mas nós gostamos disso. Koselleck demonstra o nascimento da
ideia de história que orientou o Iluminismo e o Historicismo O preço foi
atribuir um valor idealista a todas as histórias produzidas desde então.
Minha opinião é que a teorias do tempo em camadas e da sociedade em
dimensões amortece esse efeito e nos fornece uma opção metodológica que
possibilita a manutenção do projeto de uma história diferencial,
comparativa, compreensiva, logicamente bem orientada e preparada para a
reflexão sobre o papel do historiador na construção do passado.

5 – Não há texto genuíno na história. Não há palavra de deus, casuística ou


forma e objeto poético: só testemunhos. O texto é indício, pista ou sintoma.
Só a tradução pode enfrentar a ausência de sentido. Há processos que
dispensam o texto, geralmente eles são de longa duração ou estão ligados à
nossa herança animal. Ao mesmo tempo não há como ir além do texto, só
se pode alcançar o limite do texto. No limite do texto passa-se para um
outro texto ou para o absurdo que não tem texto e é violência e morte do
sentido. Mas há uma soleira, um entre-lugar, uma fronteira, uma sela ou um
vale. São lugares de conflito e diálogo, nesses espaços tudo é possível. Há
tantos textos como tempos. Entre os textos há outros textos, assim como
entre os tempos há outros tempos. Os textos, assim como os tempos são
passagens. Eles selam e abrem os tempos e os textos que eles ao mesmo
tempo unem e separam.

6 – Koselleck alimenta hoje as críticas ao essencialismo. A tese da


multiplicidade de tempos produziu argumentos que potencialmente
desarmam qualquer disposição política que se apoie em ontologia. A única
saída para a direita é o fundamentalismo anti-moderno. Estamos diante de
uma ameaça radical à modernidade e suas conquistas. O mais importante é
que essas tendências encontram lugar de florescimento no interior da
própria estrutura da modernidade: exclusão social, neo-liberalismo,
antropoceno, racismo, autoritarismo, sexíssimo são as bandeiras de um
programa totalitário que se aproveita da neutralização das esferas de valor
que caracteriza a liberal-democracia. O Estado se alimenta das disputas
políticas, mas quando a neutralização produz a identificação de sociedade e
Estado, surge o ambiente da estatização da sociedade. Todas as esferas de
valor são politizadas e perdem autonomia. Surge daí a ameaça de regressão
ao pré-moderno. Koselleck aprendeu com Schmitt e abasteceu a política
anticomunista da guerra fria. Hoje podemos aprender com Koselleck e
mobilizá-lo contra o populismo fundamentalista e proto-fascista. Não há
princípios da obrigação política nem formas dos poderes constitucionais.
Em determinadas condições só há poder discricionário. Aquele que possui
os recursos para instalação do estado de exceção só pode ser enfrentado
politicamente. O estado de exceção está na fronteira entre direito público e
fato político. Como forma legal do que não pode tê-la, o estado de exceção
mostra o que é soberania e o que significa agir politicamente.

7 - Hoje, a teoria do estado de exceção deve nos servir para a defesa da


ordem jurídica. Ao contrário do entre guerras ela não está sendo atacada de
fora, mas erodida por dentro. Nem Benjamin ou Agamben (a denúncia do
estado de exceção como regra) nos servem. É Koselleck que poderá nos
ajudar a localizar os estratos de tempo aos quais poderemos recorrer na luta
contra a abolição da diferença entre legislativo, executivo e judiciário que
caracteriza essa forma não mediada por regras da vida política. Norma sem
força e atos com força demonstram o sentido eficaz da soberania. Norma e
realidade são identificadas e instalam o paradoxo da eliminação da história.
Ela se caracteriza pela tensão entre ser e dever e o estado de exceção
destrói essa situação. Não se trata de suspender a lei para defendê-la, trata-
se de lutar por ela, resistir à sua destruição. O respeito ao contexto que a
teoria das camadas de tempo de Koseleck apresenta nos coloca aquém da
defesa da política pura como estado de exceção em Benjamin e da defesa
do estado de exceção como condição do direito em Schmitt. Estamos
perdendo espaço e nosso grande pecado será não perceber isso. Não
podemos decidir entre decisão (usar o estado de exceção) e indecisão (não
usá-lo de forma alguma). Nossa tarefa é a defesa da ordem democrática,
aquela que permite o ambiente meta-decisivo.

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