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CINEMA

(HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/ILUSTRADA/CINEMA)

Machado de Assis volta ao cinema de Julio Bressane no


filme 'Capitu e o Capítulo'
Longa que adapta mais a forma que o enredo de 'Dom Casmurro' não vê o 'traiu ou
não traiu' como questão central

8.out.2021 às 4h00

Henrique Artuni (https://www1.folha.uol.com.br/autores/henrique-artuni.shtml)

CAMPINAS (SP) Machado de Assis (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2021/09/machado-de-


assis-chega-ao-seculo-21.shtml) teve epilepsia, Marcel Proust
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/07/nascido-ha-150-anos-proust-marcou-cultura-brasileira-e-fez-sucesso-ate-

na-tv.shtml)teve asma, e Julio Bressane (https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/10/1928687-julio-


bressane-cineasta-prolifico-nada-convencional-e-de-plateias-restritas.shtml) carrega uma patologia desde

que ganhou sua primeira câmera, em 1958, aos 12 anos —e da qual o diretor,
aos 75 anos, não pretende se ver curado tão cedo.

Seu cinema segue vigoroso, e "Capitu e o Capítulo" —que tem sua primeira
exibição para o público brasileiro no festival online Olhar de Cinema
(https://www.olhardecinema.com.br/) e deve chegar ao circuito no início de 2022— é seu mais

recente colírio.

Ou seria melhor nomear a obra como um par de óculos de lentes grossas —qual
os que o diretor usa para identificar este repórter na tela do computador—, já
que exigem olhos abertos a imagens fora do comum. Não espanta que sua visão
do "Dom Casmurro" (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj201109.htm) traduza mais a forma
que o enredo do romance. Em suma, esqueça o “traiu ou não traiu”
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq25069914.htm).

O nome da adaptação ele já tinha desde os anos 1980, quando o poeta Haroldo
de Campos (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0512200510.htm) sugeriu que, no romance, o
capítulo era mais importante que Capitu —são 148 ao todo em cerca de 200
páginas. "Anos depois, li uma análise sobre as frases longas do Proust, que
funcionavam como uma maneira de respirar e eram atribuídas à asma dele",
aponta Bressane. “Sugeri que o capítulo poderia ser também um sinal artístico
da epilepsia do Machado (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/12/1840811-em-livro-sobre-machado-
silviano-santiago-une-critica-e-romance.shtml)”.

Foi a oportunidade para introduzir imagens descoladas da trama, mas que


pertencem ao "signo Machado de Assis". Nisso, entram a tradução de “O
Corvo”, de Edgar Allan Poe (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/05/conto-de-edgar-allan-poe-traz-
narrativa-de-panico-e-horror-a-colecao-folha.shtml), a paixão por Shakespeare
(https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/william-shakespeare/),
além de diversas opiniões sobre
poesia brasileira —que saem da boca de Enrique Diaz, que faz o Casmurro, o
Bentinho maduro.

Esse é o terceiro filme que o escritor carioca evocou a Bressane —depois de


“Brás Cubas”, de 1985, e a “A Erva do Rato”, de 2008
e agora o diretor recupera suas
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2506200910.htm)—,

produções. Destaque para o “necrofone” de “Brás Cubas” —um microfone que


rela em um esqueleto, produzindo um barulho seco, em referência ao verme
que roe as frias carnes. “São imagens sobreviventes”, afirma Bressane, para
quem esses trechos não são autorreferências, mas “copiões de autoria
anônima”.

Sua Capitu também é uma reaparição. Mariana Ximenes empresta suas íris
esverdeadas aos olhos de ressaca. Ela já havia feito uma ponta em “Dias de
Nietzsche em Turim” (https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u392.shtml), filmado há
mais de 20 anos, quando começava a se tornar um rostinho conhecido na
Globo.

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“O Bressane tem um entusiasmo pela vida e pelo cinema, e tudo isso


transborda no set”, comenta a atriz que está nas telinhas como a Condessa de
Barral na novela “Nos Tempos do Imperador” (https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2021/09/nos-
tempos-do-imperador-historiador-aponta-erros-e-acertos-da-trama.shtml). “A gente tem que se jogar. Eu

fiquei muito focada em desfrutar desse exercício de experimentação”, afirma


Ximenes, feliz por retomar a parceria.

Bastaram algumas semanas de ensaio, com leituras do texto no apartamento de


Bressane, aliadas a uma série de pinturas, para encontrar o tom cínico da
personagem. E nem mesmo entrando na cabeça dela Ximenes consegue intuir
se houve traição ou não. “Prefiro ficar com o mistério."

No lugar dos takes repetidos à exaustão, Ximenes conta que foram pouco mais
de dez dias de gravações —e raramente se fez mais de um take.

“Fiquei surpreso quando um não deu certo, e o Bressane veio pedir desculpas”,
relembra Vladimir Brichta, que faz o alucinado Bentinho. “A gente tem que
trabalhar com o risco do primeiro take dar certo. Isso coloca a gente em um
lugar muito precioso.”

Por mãos que já conduziram Guará Rodrigues


(https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u58158.shtml) e Fernando Eiras, o ator mineiro

constrói, literalmente, o “Homem Desesperado” de Gustave Courbet


em cena. As gravações foram em 2019 e
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq250225.htm)

Brichta ainda não viu o filme pronto, mas ficou contente ao saber que uma
improvisação sua —que envolve a distorção de um violino— está no corte final.

“Eu penso o cinema como uma grande herança da pintura de ateliê


(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1206200024.htm),
que era feita por muitas mãos",
sintetiza o diretor. "Você tem que deixar espaço para que todas se unam, isso é
o conjunto do fotograma.”

Muitos, aliás, já pintaram nos seus estúdios –Alessandra Negrini, Josie Antello e
Marjorie Estiano são apenas alguns dos nomes que brilham nos últimos longas
—sem falar da luminosa Helena Ignez nos trabalhos de 1970,
(https://www1.folha.uol.com.br/serafina/2018/09/1979796-segredo-da-vitalidade-e-trabalho-mental-afirma-helena-ignez.shtml)

e cuja prole está aqui, com Djin Sganzerla fazendo Sancha, mulher de Escobar
—Saulo Rodrigues.
Uma atitude como a de Bressane parece ir contra o tempo. “Estamos em um
momento amuso, contrário às musas”, lamenta Bressane a respeito da
condução da cultura no país —e não é de hoje. "Essa ideia de arruinar vem
desde Canudos", aponta, em referência à guerra ocorrida na cidade baiana no
final do século 19 (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/destruida-duas-vezes-canudos-sobrevive-em-
meio-a-escombros-e-miseria.shtml), sugerida de relance em "Capitu e o Capítulo".

“Eu não sei se isso tem fim. É uma situação de horror”, comenta, lembrando o
incêndio em julho em um galpão da Cinemateca
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/07/incendio-atinge-deposito-da-cinemateca-brasileira-na-zona-oeste-de-sao-

paulo.shtml). “Mas não é por isso que se possa desistir de coisa alguma."

Durante a pandemia, Bressane —agora em visual diferente, com uma barba e


bigode cheios, qual os retratos do são Jerônimo que ele mesmo levou ao cinema
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1205200134.htm)— tem frequentado a sala de edição à

procura de seu mastodonte com o montador Rodrigo Lima. Falamos de “A


Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, que deve somar mais de cinco horas.

Cenas de 54 filmes seus vão ser confrontadas numa "imagem ideogrâmica e


dialética" com registros de uma viagem nos anos 1970 ao lado de sua mulher,
Rosa Dias, e do amigo e cineasta Andrea Tonacci
(https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/12/1842230-diretor-do-cinema-marginal-andrea-tonacci-morre-em-sao-paulo.shtml),

morto em 2016, por sete meses entre Londres, Veneza e Katmandu, no Nepal.

A parte final do longa já está pronta e traz as últimas gravações de Bressane —


em Paris, em fevereiro de 2020, pouco antes da Covid-19 se espalhar pelo
mundo. Esse trecho se chama “A Peste” e deve evocar menos Albert Camus que
o assustador “Fausto” de Murnau, clássico de 1926
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac17079904.htm).

Ele conta que não trata os filmes como reminiscências, mas como um material
de outro autor —qual as imagens sobreviventes em “Capitu”. Bressane não quis
se aprofundar em como recuperou e preservou esses tesouros pessoais
—“foram salvos pelo destino”, diz—, mas que seja uma oportunidade de
conservar sua obra sem condescendência.
CAPITU E O CAPÍTULO

Quando Segunda (11)


Onde Site do Festival Olhar de Cinema
Preço R$ 5
Elenco Mariana Ximenes, Vladimir Brichta, Enrique Diaz
Direção Julio Bressane
Link: https://www.olhardecinema.com.br/ (https://www.olhardecinema.com.br/)

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