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TEMA VIII

SÃO BOAVENTURA

A polêmica antiaristotélica

Os filósofos muçulmanos e hebreus dos séculos XI, XII e XIII exerceram uma forte
influência sobre a Escolástica latina, sobretudo através da grande quantidade de obras de
Aristóteles que eles deram a conhecer.
Se na época da Patrística – especialmente em Santo Agostinho – deu-se mais importância
a fe que a razão, o enfoque aristotélico que adquire a Escolástica a partir de então, fez que a
balança se inclinasse a favor da razão.
O século XIII será testemunha de um enorme trabalho de tradução dos escritos de
Aristóteles, encabeçada por alemães e franceses, estes últimos apoiados no auge da Universidade
de Paris.
Apesar disto, alguns filósofos latinos começaram a colocar dúvidas. Sem deixar de considerar
que Aristóteles era o cume do pensamento racional, perguntaram-se pelo valor de suas obras, em
parte pela sua procedência, pois muçulmanos e hebreus poderiam ter filtrado as traduções para
resolver suas próprias inquietações, e em parte pelo distanciamento que Aristóteles representava
em relação à tradição cristã.
Exceto Maimónides, todos os demais haviam chegado a conclusão de que o mundo é eterno, tema
que não coincidia com as Escrituras, para as quais Deus criou o mundo, e tendo-o criado, não
pode ser eterno, já que antes de criá-lo não existia.

Quase todos os filósofos aristotélicos giravam em torno da Universidade de Paris. E Paris


foi também a primeira a proclamar o antiaristotelismo.
Em fevereiro de 1229, e coincidindo com o Carnaval, organizou-se um tumulto tão grande
que obrigou a fechar a Universidade. Uns dois anos depois, o papa Gregorio XI voltou a abri-la,

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proibindo aos professores o uso dos livros de Aristóteles até que não estivessem livres da menor
suspeita de erro. A partir de então começa a renovação agostiniana.

VIDA E OBRAS (1221 –1274)

São Boaventura constitui o modelo da reação escolástica diante do avanço do aristotelismo.


Trata-se de uma reação de caráter místico, com o particular acento do retorno a Santo Agostinho.
Todos os que seguiram esta nova corrente, partiram da base de que de Aristóteles se pode extrair
algumas idéias válidas, selecionando-as com cuidado e dentro de uma ordem.

Boaventura é o nome que Juan Fidanza assumiu ao ingressar na ordem franciscana. Nasceu em
Viterbo, Italia. Quando era ainda muito pequeno, adoeceu gravemente; sua mãe o levou diante de
São Francisco, com a promessa de dedicá-lo à vida religiosa caso se salvasse. Efetivamente, com
o passar dos anos converteu-se no general dos franciscanos e reorganizou notavelmente a Ordem.

Teve numerosos e importantes cargos, entre eles o de Reitor da Universidade de París com
apenas 32 anos.
Foi amigo de São Tomás, embora não coincidesse com ele em várias de suas idéias. Assim
mesmo, participaram juntos na luta pela defesa das ordens mendicantes diante do papado.
Franciscanos e dominicanos pretendiam um retorno à pureza original do cristianismo, à pobreza,
às virtudes naturais. Conjuntamente, aparecem todas as “heresias” que fariam historia ao redor do
ano 1200: albigenses, cátaros, templarios, que buscavam também um retorno as fontes, para
desprender-se do grande aparato eclesiástico.
Quando São Boaventura encabeça a defesa das ordens mendicantes, foi retirado de seu posto na
Universidade de París. Mais tarde, quando o papa pronunciou-se a favor dessas ordens em
conflito, recuperou seu cargo
Foi nomeado bispo, depois cardeal e passou para a historia com o nome de Doutor Seraphicus.

Suas obras foram muitas, destacaremos por sua importância o “Comentario das Sentenças
de Pedro Lombardo” (famoso compilador da época Patrística), assim como “Itinerário da mente

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para Deus”, seu livro místico por excelência. Também escreveu comentários sobre a Biblia,
opúsculos místicos, tratados em relação com a Ordem Franciscana.

FÉ e CIÊNCIA

Na tradicional oposição entre fé e razão, fé e ciência, São Boaventura se inclina como é


natural pela fé. Embora não rejeite a ciência, estabelece a superioridade da fé com relação a ela.

Estabelece dois tipos de certezas: umas próprias da fé e outras da razão.


Ambas têm suas próprias vias para chegar à certeza.
Mas em quanto às questões da fé, é mais certa a fé que a ciência. Embora um filósofo
possa chegar a demonstrar racionalmente uma verdade religiosa, por exemplo, que deus criou o
mundo, essa demonstração racional nunca posui o tipo de certeza que o homem de fé leva em seu
interior.
A certeza da fé é superior por que contém a força da adesão (algo similar a intuição e sua
possibilidade de captar certezas sem as elucubrações do intelecto). Enquanto que a ciência utiliza
a certeza da especulação, na fé há uma adesão à verdade. Um cientista, um filósofo, podem
eliminar duvídas, porém o homem de fé não necessita eliminá-las porque nem sequer as têm; sua
adesão o une sem mais à verdade. Enquanto que a certeza científica é um fato teórico e
intelectual, que não exige nenhuma fidelidade pessoal, o sentimento de adesão da fé implica a
entrega total da pessoa. (Uma vez mais perdeu-se o sentido original da Filosofía como forma de
vida, que sim requer a fidelidade ao pensamento que sustenta)

Em sínteses, embora a fé seja superior, fé e razão podem coexistir enquanto a razão


corrobora, certifica e reforça o sentimento da fé.

TEORIA DO CONHECIMENTO

Diante da questão de se todos os conhecimentos chegam ao homem através dos sentidos,


indica que não, pois a alma, por exemplo, pode conceber a Deus, conhecer-se a sí mesma e seus

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próprios estados interiores sem necessidade dos sentidos externos. Assim, estabelece que há
conhecimentos que chegam ao homem pelos sentidos e outros mais sutis que são próprios da
alma.

No entanto, a alma não pode prescindir dos sentidos, já que eles a colocam em contato
com o mundo material, corporizado. Mas é ela que realiza o trabalho de conhecer, de abstrair-se
da matéria, do espaço e do tempo graças a uma luz diretriz que vem ao homem diretamente de
Deus (ver semelhança com Santo Agostinho) e que lhe permite conhecer mais profundamente do
que teria apenas com a razão.

Embora isto confirme uma relação direta entre o homem e Deus, não significa que o
homem possa conhecer a Deus de maneira direta. Pode sim conhece-lo através de suas pegadas e
de suas criações, ou seja, através de suas criaturas, especialmente o ser humano.

A alma toma contato com o mundo das criaturas através dos sentidos. A partir daí tem lugar: a
apreensão (o que se capta), o gozo e o juízo. O gozo provêm da proporção entre o objeto (ou
melhor, sua imagem) percebida e o sentido que o percebe. Quanto ao juízo é parte da razão
iluminada por Deus, uma razão purificadora que pode ir mais além da matéria e abarcar as idéias
gerais.

METAFISICA

Sobre a existencia de Deus, utiliza o argumento de Santo Anselmo: desde o momento em que a
mente humana faz perguntas sobre Deus, ainda que seja para negá-lo, o está reconhecendo e
dando-lhe existência.

O mundo não é eterno; São Boaventura retorna às primeiras teses cristãs de Deus como criador
de um mundo que antes não era e que, por isto mesmo, pode deixar de ser. Além do mais, se o
mundo fosse eterno, isto suporia a existência de infinitas almas eternas, já que cada homem
dispõe de uma...

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Deus não é apenas a causa criadora de todas as coisas, mas também é seu modelo: a idéia
arquetípica de todas as coisas está na mente divina. E embora os arquétipos se multipliquem na
relação com a matéria, não faz que Deus seja múltiplo nem fracionado.

Também, e seguindo a Aristóteles, todos os seres se compõem de matéria e forma. A matéria é o


que se aprecia concretamente; a forma é como a essência da matéria, o que a individualiza e
permite reconhecê-la. A matéria é múltipla; a forma é universal embora tenha a propriedade de
infundir-se em muitos corpos.

São Boaventura elaborou também uma teoría física da luz.


A luz é a forma universal que penetra todas as formas. Nos corpos influem ao menos duas
formas: a sua própria, que o distingue dos demais corpos, e a luz como forma comum a todos os
corpos materiais. (Esta afirmação é similar a que provêm da filosofía antiga tradicional, segundo
a qual, o corpo físico está infundido pela “forma” psíquica, a “formal” mental, a “forma
espiritual...)
Segundo a participação que tem os diferentes corpos da forma luminosa universal, assim será seu
valor e dignidade dentro da hierarquia dos seres.

O HOMEM

Deus criou o homem de duas naturezas distintas, corpo e alma, mas as uniu em uma só pessoa. A
alma não é igual ao corpo: é incorruptível e imortal, e sua existência não se deve ao fato de estar
unida a um corpo, mas a criação direta de Deus. O fim da alma é alcanzar a beatitude, ou seja,
voltar a Deus.

No campo do conhecimento, o homem goza de iniciativa.


E no campo moral, goza de liberdade, pois se sua finalidade é a beatitude, esta será produto da
liberdade para eleger e atuar meritoriamente. De modo que o livre arbitrio é uma faculdade da
vontade que ninguém pode tirar.

Porém, o que é que faz com que o homem se determine na direção do bem? A sindéresis.

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A sindéresis já havia sido utilizada pelos Padres da Igreja, por exemplo, para São Jeronimo é a
“chispa da consciência, que não se extinguiu do peito de Adão depois de ser expulso do Paraíso”.
Para São Boaventura é a “chispa da consciência”, o fogo que a estimula e anima a eleger o bem, e
ainda produz remorso quando elege o mal. É, em outras palavras, o “ápice da mente” que se
corresponde com o último grau de elevação para Deus, o que precede ao rapto final ou teofanía.

O extase da união com Deus está descrito na sua mencionada obra “Itinerario da mente para
Deus”. Onde distingue tres “olhos” ou formas de ver da mente: aquele que olha as coisas
exteriores, ou a sensibilidade; aquele que olha dentro de si mesmo, ou o espírito (alma?); e aquele
que olha por cima de si mesmo, ou a mente (inteligencia?). Por sua vez, estes tres olhos têm um
duplo aspecto cada um, interior e exterior, com o qual se abrem seis potências da alma:
Os sentidos e a imaginação
A razão e o intelecto
A inteligencia e o ápice da mente ou sindéresis.

Após a sindéresis, fica apenas a união direta com Deus. Neste sexto grau de elevação termina a
investigação mística, que entretanto continua avançando sem meios mentais até fundir-se
totalmente na divindade. A alma se torna “docta ignorante”: docta, porque transcendeu todo
conhecimento, e ignorante porque conhece com absoluta dependência de operação mentais. Este
supremo sentimento místico inclue a piedade, a alegría interior e a essência criadora.

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SANTO ALBERTO MAGNO

VIDA E OBRAS (1193- 1280)

Santo Alberto foi quem produziu a readmissão de Aristóteles na Escolástica medieval do século
XIII, depois de tirar-lhe o matiz duvidoso que havia ganho naquela época. Será ele, e mais tarde
seu discípulo São Tomás, os que contribuiram para que o pensamento aristotélico volte a ser
utilizado para sistematizar a doutrina escolástica, sem por isso abandonar os principios
tradicionais cristãos.

Santo Alberto é um personagem curioso que tem sido objeto de elogios e de críticas. Ao mesmo
tempo que se reconhece seu trabalho de recuperação aristotélica, se desconhecem quase
deliberadamente – ou são menosprezadas – outras facetas de seu saber dirigidas às ciencias
naturais (por exemplo, a botánica e a zoología), a alquimia, a astrología e outras ciencias ocultas.
É estranho que seja tratado de inculto, e até de louco, e se aceite por outro lado que uma
inteligencia privilegiada como a de Santo Tomás o tenha seguido como mestre.

Era de familia nobre. Nasceu em Suabia e começou a estudar em Pádua. Lá conheceu o general
dos Domenicanos, por cuja influência entrou na Ordem. Chegou a ser mestre de teología em París
depois de ter ensinado em varios conventos. Neste período entrou em contato con seu discípulo
Tomás de Aquino, o qual seguiu seus passos até Colonia onde foi convidado a dar cursos na
recém fundada Universidade.
Chegou a ser provincial dos Domenicanos e bispo de Ratisbona.

Sua obra é muito longa, e nela continua as divisões da obra aristotélica.


Santo Alberto divide a Filosofía em tres partes:
Filosofía racional ou lógica (onde expõe os escritos de Aristóteles sobre o tema)
Filosofía real, cujo objeto é tudo aquilo que não seja obra humana (física, matemática e
metafísica), e,
Filosofía moral, cujo objeto são as ações humanas (ética e política).

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Escreveu diversos tratados teológicos, um livro contra a doutrina averroísta (Sobre a unidade do
intelecto) e uma Metafísica.

SUA FILOSOFIA

Embora seu ponto de partida seja a exposição explicada da obra de Aristóteles, uma de suas
conquistas fundamentais é a separação da Filosofía e a Teología, não como elementos opostos,
mas como dois campos cujos principios e finalidades são diferentes. Enquanto a Teología se
baseia na revelação e na inspiração, a Filosofía o faz na razão.

Retoma os argumentos de Santo Agostinho ao expressar que Deus se revela aos homens de 2
maneiras: uma, é uma iluminação de caráter geral, comum a todos os homens, tal como se revela
aos filósofos; e a outra é uma iluminação superior que permite compreender as questões
sobrenaturais, em que se baseia a Teología. A primeira iluminação vale para as coisas que podem
ser conhecidas por sí mesmas; a segunda é para os artigos de fe. A fé, que é tudo no campo da
religião, converte-se em mera credulidade no campo da filosofía. Daí que a filosofía é a ciencia
das demonstrações, e Santo Alberto o aplica também para investigar a Natureza baseando-se na
experiência.

Quanto a sua METAFISICA e sua ANTROPOLOGIA não apresentam maiores inovações.

Também a existencia de Deus tem de ser demonstrada pela experiencia, e para isto repete as já
conhecidas provas que havia utilizado a Escolástica. Deus é o entendimento universal e está
relacionado com suas criaturas da mesma maneira como um artesão está unido às coisas que
produz. Em Deus estão todas as idéias de todas as coisas que, embora se diferenciem entre si
enquanto coisas, não são enquanto a idéias divinas.

Matéria e forma resumem-se nas condições de existencia e essência. A essência é a realidade de


cada coisa, e a existência é a característica que a diferencia acidentalmente.

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Não admite que a alma do homem esteja composta de matéria e forma; em todo caso, aceita que
na alma há essência e existencia, ou seja, um aspecto real e outro sujeito ao corpo no qual se
manifesta. As almas são individuais, e esta individualidade não se perde com a morte.

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TEMA IX

SANTO TOMAS DE AQUINO

Santo Tomás marca um momento decisivo na escolástica, ao completar de maneira mais rigorosa
a tarefa empreendida por Santo Alberto, e ao flexibilizar a doutrina aristotélica de tal forma que
servisse sem problemas ao dogma religioso. Sua notável erudição como filólogo lhe permitiu ter
acesso aos textos de Aristóteles (com as mudanças impostas pelo tempo e as diferentes edições),
obviando os comentaristas hebreus e muçulmanos.

Santo Tomás expõe que Aristóteles, com sua filosofía, chegou ao limite que pode alcançar a
razão humana. Mais além nos encontramos com as verdades sobrenaturais da fé. Este será então
seu labor: unir a filosofía com a fé, mas antes terá que separar claramente seus objetivos, para ver
como poderão relacionar-se entre elas.

A filosofía utiliza a investigação racional a partir de principios evidentes; a teologia utiliza como
suposição prévia a revelação divina. Entendendo assim, a filosofía pode servir de preparação e
auxiliar da teología, que é sua verdadera culminação; portanto, a filosofía fica subordinada à
teología.

Além do mais fica por estabelecer outra distinção: o fim da filosofía é o homem e o fim da
teología é Deus, de modo que é necessário definir o ser das criaturas e o ser de Deus. Estas duas
formas de ser não são idénticas nem tampouco absolutamente distintas, senão que existe uma
correspondência proporcional entre o Ser de Deus e o ser das criaturas: o ser divino é a causa dos
seres finitos.

Por outra lado, e contrariamente aos filósofos muçulmanos, Santo Tomás utiliza o aristotelismo
para demonstrar que o mundo não é eterno – Deus sim o é – e depende em tudo de seu criador.

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VIDA E OBRAS (1225 ou 1226 – 1274)

Nasceu no seio da nobre família dos condes de Aquino, no castelo de Rocasecca, perto de
Cassino. Aos 18 anos ingressou na Ordem dos Domenicanos em Nápoles, e daí foi enviado a
París onde estudou com Santo Alberto, ao qual acompanhou à cidade de Colonia desde 1258.
Depois regressou a París onde demonstrou sua capacidade para a docência e começou a escrever
suas obras mais reconhecidas. Mas, enquanto isto travou-se na universidade parisiense uma luta
entre os professores laicos e professores das ordens mendicantes. Após o juízo favorável do papa
para com estas ordens, compartilhou com São Boaventura o cargo de mestre na Universidade de
París.
De volta a Italia, reorganizou em Roma os estudos de sua Ordem. Este foi seu período mais rico
em produção de obras, entre elas sua famosa Suma Teológica.
Esteve novamente na França, depois outra vez na Italia, e numa viagem para Lyon onde assistiria
a um Concilio, adoeceu e morreu. Tinha uns 48 ou 49 anos e uma amplíssima obra escrita que
aparece catalogada no seu processo de canonização.

TEORIA DO CONHECIMENTO

Primeiramente, Santo Tomás deixa bem assentado a relação que existe entre a razão e a fé, ou a
razão e a revelação.

O homem tem como finalidade ultima chegar a Deus, mas não pode fazê-lo pela via da razão,
porque Deus excede a razão humana. A razão tem suas possibilidades de investigação, mas
também tem seus limites e seus erros. Por isto se torna necessária a certeza absoluta que procede
da revelação divina.

A revelação não anula nem invalida a razão: aperfeiçoa. Utilizando corretamente a razão, o
homem pode chegar às mesmas verdades da fé, porém nunca pode contradizer a revelação divina.
Com o qual a razão estará sempre subordinada à fé.

Embora não possa demonstrar as coisas que pertecem à fé, a razão pode servir de auxiliar de tres
maneiras diferentes:

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- Demonstrando os preambulos da fé (por exemplo: o fato de que Deus existe).
- Aclarando (não explicando) as verdades da fé, mediante comparações.
- Rebatendo as objeções contra a fé.

Uma das limitações da razão está em sua necessidade de tomar as coisas sensíveis como ponto de
partida, embora pretenda chegar a Deus. Pode conhecer a Deus através de suas criaturas, mas não
pode ter acesso aos misterios da religião. Os mistérios são os verdadeiros “artigos de fe” que a
razão pode aclarar ou defender, mas não demonstrar. Os elementos que a razão pode demonstrar
com suas próprias forças são os “preámbulos da fé”.

Quanto ao conhecimento humano, é um ato de abstração. Conhecer é abstrair a forma da matéria


individual (a matéria própria de cada individuo), é extrair o universal do particular.

Este entendimento humano que abstrai as formas da matéria individual, é o entendimento agente.
E há tantos entendimentos agentes como almas humanas, tesis com a que combate a dos
averroístas que defendem a unicidade de um entendimento universal.

Santo Tomas distingue tres formas de entendimento:


- Entendimento divino: Deus apreende – ou cria se assim o quer – todas as coisas em um só
ato simples e perfeito de Inteligencia.
- Entendimento angélico: este entendimento conhece a forma separada da matéria, porque
pode prescindir da matéria.
- Entendimento humano: conhece a matéria junto com a forma, mas pode abstrair a forma.
Porém não chega a conhecer uma coisa em um só ato, mas necessita passos sucessivos no
tempo. É um entendimento finito que somente tem a potencia ou possibilidade de conhecer; é
um entendimento possível. Proporciona um conhecimento racional, discursivo e, por isso,
sujeito a erros.

METAFÍSICA

Embora aceite os postulados básicos de Aristóteles – potência e ato, matéria e forma – introduz e
acentua os conceitos de essência e existência.

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Para Aristóteles, potência e ato estão em relação direta com matéria e forma: não há potência que
não seja matéria, nem ato que não seja forma, e ao revés. Mas Santo Tomás entende que também
a essência e a existência contém a mesma relação que a potência e o ato.

Potência Matéria Essência


Ato Forma Existência

A essência está em potência com relação à existência; a existência é o ato da essência. Mas para
que se produza a união entre essência e existência, para passar da potência ao ato, é necessário a
intervenção criadora de Deus.

Somente Deus é essência e existência em um mesmo ato; Deus é ato puro, simplesmente É; e por
isto é eterno e necessário.
Por outro lado, os humanos estão compostos de matéria e forma, o ser lhe é dado por Deus, e
portanto são criados e finitos. É a matéria a que outorga o principio da individualização e de
multiplicação, coisa que não ocorre em Deus nem nos seres angélicos.

A distinção estabelecida por Santo Tomás entre essência e existência, faz com que só Deus seja o
Ser por essência, enquanto as criaturas têm seu ser por participação. O ser de todas as coisas,
exceto Deus, é sempre um ser criado. Consequentemente, Deus é o único Ser necessário.

A metafísica é a ciência que trata sobre as sustâncias criadas e utiliza princípios que são evidentes
para a razão humana. Por outro lado a teología trata sobre o Ser necessário e seus princípios
procedem diretamente da revelação divina, pelo qual suas certezas são superiores as da
metafísica.

Assim, com este corte entre o Ser Eterno e os seres criados, determina-se a trascendencia absoluta
de Deus em relação com o mundo e fecha a passagem a qualquer forma de panteísmo que
pretenda identificar o Ser de Deus com o ser do mundo.

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TEOLOGIA E PROVAS DA EXISTENCIA DE DEUS

Ainda que Deus seja o primeiro enquanto a ser, não o é enquanto aos conhecimentos humanos
que têm seu ponto de partida nos sentidos. Por isto é necessária uma demonstração da existência
de Deus partindo de seus efeitos sensíveis.

Santo Tomas coloca cinco vias para chegar desde o mundo sensível à demonstração da existência
de Deus.

1.- Via cosmológica: Tudo o que se move, é movido por outro. Mas como é impossível que esta
corrente seja infinita, tem de haver necessariamente um primeiro motor que mova aos demais e
não seja movido por ninguém: Deus.

2.- Via causal: Toda coisa tem uma causa. Do mesmo modo, a corrente de causas acaba na Causa
Primeira, que é Deus.

3.- Via da relação entre o possível e o necessário: as coisas possíveis só existem em virtude das
necessárias; porém estas últimas tampoco podem constituir uma corrente infinita, porque deve
haver algo que seja necessário por si mesmo: Deus.

4.- Via dos graus: nas coisas existe mais ou menos verdade, bem, e o mesmo enquanto a outras
perfeições. Por isso deve existir um grau máximo nessas perfeições que é a causa dos graus
menores: Deus.

5.- Via do governo das coisas: as coisas naturais que estão privadas de inteligencia, dirige-se
para um fim. Isto é possível porque estão governadas por um Ser que sim possui Inteligencia:
Deus.

Fora destas demonstrações estão os artígos de fé, que a razão pode aclarar mas não demonstrar: a
Trindade, a Encarnação de Jesus Cristo e a Criação do Universo.

Sobre a Trindade: as Tres Pessoas estão unidas por sua relação, e não estão divididas.

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A Encarnação concilia as duas naturezas de Jesus Cristo da seguinte maneira: sua natureza divina
se identifica com Deus, e é Deus; mas tem a possibilidade de tomar uma natureza humana sem
por isto converter-se em uma pessoa humana.
A Criação é artigo de fé enquanto início no tempo, e não enquanto a que é produzida do nada.
Como não pode demonstrar-se no começo no tempo nem na eternidade do mundo, fica livre a
opção de crer na Criação no tempo.

O HOMEM

O homem é um conjunto de corpo e alma. Mas a alma, contrariamente ao que afirmavam os


filósofos muçulmanos e hebreus, não está composta de matéria e forma, mas é somente forma.
Ao ser puramente forma, a alma é imortal e não pode corromper-se; por outro lado, a matéria
pode corromper-se quando a forma se separa dela.

Além do mais, o desejo natural que tem a alma de existir, é o melhor indício de sua imortalidade.
Depois da morte, uma vez destruído o corpo, a alma subsiste tal como era quando estava unida ao
corpo. Assim, no dia da ressurreição dos corpos, cada alma poderá recuperar sua própria matéria,
com as próprias dimensões que lhe haviam dado sua individualidade.

Tanto o homem como todas as criaturas estão dirigidos pelo governo divino para seu fim
supremo. Este governo é a Providencia. Mas a Providencia não anula a liberdade do homem, já
que seu livre arbítrio também forma parte da predestinação divina e lhe permite escolher por si
mesmo a forma na qual chegará à felicidade da beatitude.

Precisamente é o livre arbítrio humano o que faz aparecer o mal no mundo. Na verdade, o mal
não tem realidade, senão que é apenas uma falta de bem, um grau inferior do bem. Embora às
vezes os homens elegem deliberadamente atuar mal, têm no entanto uma tendência natural para
reconhecer o bem; é a consciência a que conduz a atuar segundo os princípios da ordem
universal.

As virtudes são disposições práticas para viver segundo o bem e evitar o mal. Santo Tomás volta
a expor as quatro virtudes morais dos clássicos gregos: justiça, temperança, prudência e fortaleza.

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Mas estas quatro não bastam para alcançar a beatitude, que apenas se consegue através das
virtudes teológicas: fé, esperança e caridade.

A mesma predestinação divina é a que estabelece uma Lei Eterna que governa todo o universo.
Os homens participam desta Lei Eterna e a refletem como a lei da natureza. Além do mais,
existem outras 2 classes de leis: as humanas, inventadas pelos homens, e a divina que leva aos
homens para sua finalidade beatífica.

O Estado está em condições de conduzir aos humanos para a virtude, mas não usufruir de Deus,
motivo pelo qual o governo espiritual só concerne a Jesus Cristo. Este princípio marca a teoria
política tomista, segundo a qual o governo civil tem de subordinar-se ao religioso, ou seja, ao
papa.

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TEMA X

O SECULO XIII E A LÓGICA

Ao mesmo tempo que São Boaventura promove seu retorno à mística de Santo Agostinho e Santo
Tomas define os ambitos da razão e a fé, o século XIII é o cenário de várias correntes de
pensamento que preparam paulatinamente a ruptura da Escolástica.

Se bem o tomismo havia assentado o princípio de que “é impossível que uma verdade de fé seja
contrária à verdade demonstravel”, nem todos estavam de acordo com isto, especialmente os
seguidores de Averroes que sustentavam precisamente o contrario. Para Averroes, a filosofía
contém tudo o que o filósofo deve crer, ou seja, tudo o que pode demonstrar, tanto que a religião
revelada é uma forma aproximada e mais imperfeita de chegar às mesmas verdades naqueles que
não estão capacitados para a ciencia e a demonstração.

Assim surgiu uma corrente de averroísmo latino para que tornava possível uma oposição entre as
afirmações da ciência e das crenças da fé. Mas devido as condenações teológicas que esse
movimento sofreu, há muito pouco matérial histórico ao respeito.

Não é de extranhar, então, que a investigação filosófica tenha se dirigido para outras vias,
distanciando-se do campo teológico no qual havia se mantido durante o primeiro período da
Escolástica. A busca se dirigiu aos terrenos da física, da antropología e da lógica, considerados
mais acessíveis ao pensamento humano e mais abertos a resultados práticos.

Estes serão os tres aspectos predominantes da Escolástica na segunda metade do século XIII e no
XIV, que desembocarão numa atitude cada vez mais crítica para com a metafísica tradicional e a
teologia.

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Merece especial menção a mudança que sofre o conceito da lógica nestes momentos. Embora se
continue utilizando a lógica aristotélica, esta passará a ser conhecida como a via antiga, enquanto
que a via moderna se refere a uma lógica estreitamente relacionada com as palavras consideradas
como signos convencionais. Da lógica aristotélica são retiradas suas implicações metafísicas e é
deixada reduzida ao seu esqueleto formal.

Esta orientação nominalista se difundiu graças a Pedro Hispano (português, da segunda década
do século XIII) ao qual se deve o mais famoso compendio medieval de lógica. São retomados
conceitos da lógica estoica, apoiada sobre tudo no raciocínio hipotético, na dialética como
faculdade do provável. Seguindo o pensamento estoico, esta lógica é fundamentalmente prática;
não se busca nas palavras a ordem metafísica do mundo, mas objetos de experiência.

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RAMON LLULL (RAIMUNDO LULIO) (1235 – 1315)

Estamos uma vez mais diante de um personagem controvertido, do qual se conhece somente uma
parte de sua vida e de sua obra, e que pela variedade dos temas que tratou, merece situar-se na
história da lógica, embora esta não tenha sido sua finalidade fundamental.

Nasceu em Palma de Mallorca e durante anos foi cortesão junto a Jaime II, mas devido a uma
visão mística abandonou a vida mundana e dedicou-se à vida religiosa.

Escreveu várias obras contra a filosofía muçulmana, especialmente contra Averroes, mas também
se dedicou a outros muitos temas, como a lógica, poemas, novelas filosóficas, metafísica, tratados
místicos...

Sua vida foi agitada e itinerante, viajando de cidade em cidade para dar a conhecer suas idéias:
Paris, Tunísia, Nápoles, Oriente em geral, para voltar novamente as capitais européias, e daí a
Tunísia onde, segundo a lenda, morreu apedrejado pelos muçulmanos em 1315.

Lutou contra o averroismo porque não considerava que houvesse oposição alguma entre a razão e
a fé. Ao contrário, em sua opinião, a mesma fé produz no crente as razões necessárias para
justificá-la. Graças à fé, o entendimento pode chegar até Deus.

Mas o mais original de Lulio é sua obra “Ars magna et ultima” onde expõe uma lógica que ele
concebe como uma ciencia universal, base de todas as ciências. Como cada ciência tem seus
próprios princípios, tem que haver uma ciência geral cujos princípios incluam os de todas as
outras ciências particulares.

Esta ciência geral não é a metafísica; é uma lógica baseada em uns termos que, habilmente
combinados, podem converter-se em princípios utilizáveis por todas as ciências.

Estes termos são:


- 9 predicados absolutos: bondade, grandeza, eternidade ou duração, potência, sabedoria,
vontade, virtude, verdade e gloria.
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- 9 predicados relativos: diferença, concordância, contrariedade, principio, meio, fim, maioria,
igualdade e minoria.
- 9 questões: sim, que, de que, por que, quanto, qual, quando, onde, de que modo ou com que.
- 9 sujeitos: Deus, anjo, céu, homem, imaginação, sensíveis, vegetativos, elementais e
instrumentais.
- 9 virtudes.
- 9 vicios.

A Ars Magna converte-se assim numa arte combinatoria, relacionando os termos simples de tal
maneira que daí surjam todas as verdades possíveis para o entendimento humano. Este conceito
teve entusiastas seguidores no Renascimento (Agrippa, Bruno, Leibnitz), que viram
possivelmente algo mais que um jogo de palavras. Foi Leibnitz quem tomou estas idéias como
fundamento de uma lógica inventiva, dirigida a desentranhar as verdades das ciencias em geral.

Nisto reside a visão antecipada de Lulio: em ir mais além de uma lógica analítica de termos, para
encontrar nestes termos um procedimento sintético e criativo, que alcance não somente as
verdades já conhecidas, mas que sirva para descobrir outras novas, e não em uma, mas em todas
as ciências.

121
TEMA XI

O SÉCULO XIII E A FILOSOFIA DA NATUREZA

Outro aspecto importante a assinalar no século XIII é o florecimento da investigação científica,


seguindo os passos da Escola de Chartres do século anterior, que havia considerado a Natureza
como parte da criação divina, e portanto, digna de ser abordada pela filosofía.

Se bem é certo que durante toda a Idade Media foram realizados estudos deste tipo, estiveram no
geral fora do campo dos conhecimentos oficiais, ficando relegados aos magos, alquimistas e
outros doutores “diabólicos”.

Mas a força que cobram tanto a filosofía muçulmana como o pensamento de Aristóteles, fez que
as disciplinas científicas, assim como o método experimental no qual elas se baseiam, atraiam a
atenção dos filósofos. As matemáticas, a óptica, a astronomía, a física, a medicina, começam a
ocupar um posto importante no afazer filosófico.

Esta linha de pensamento entusiasma igualmente aristotélicos como agostinianos. Entre os


místicos seguidores de Santo Agostinho, são os Franciscanos da escola de Oxford os que se
dedicam seriamente à ciência experimental, a partir de Roberto Grossetete (1175-1253), que pode
ser considerado como o iniciador desta corrente.

Embora os resultados destas investigações estejam enlaçados com elementos teológicos, místicos
e mágicos, assinalam já uma mudança importante na concepção filosófica que havia prevalecido
até agora no mundo medieval.

122
ROGER BACON (1210/1214? – 1292?)

Este discípulo de Roberto Grossetete é o máximo representante da ciencia experimental do século


XIII. O próprio Bacon destaca como seu mestre a Pedro Peregrino, da zona de Picardía, do qual
só se sabe que compôs um tratado sobre o magnetismo.

Roger Bacon, chamado Doctor Mirabilis pelos seus contemporaneos, nasceu perto de Ilchester
entre 1210 y 1214. Estudou em Oxford e depois em Paris, chegando a ser Mestre de Teología.
Ingressou na Ordem franciscana e se dedicou ao intenso estudo da filosofía, gramática grega e
hebréia, matemáticas, física, óptica, historia natural, astronomía... Dentro de sua própria Ordem
foi objeto de perseguições, e só gozou por uns anos do apoio do papa Clemente IV. Morto este
papa, o general da Ordem condenou suas doutrinas e lhe impôs uma estrita ordem de claustro que
não se sabe quanto durou. Os dados de Bacon se perdem no ano 1292, no qual escreveu seu
Compendio dos Estudos Teológicos.

Suas obras principais são: Obra Maior (a única completa), Obra Menor e Obra Terceira (estas
duas últimas apenas esboçadas), sem que chegasse a conseguir seu sonho de compor uma
enciclopédia completa das ciencias.

Em todas suas obras se observa sua grande liberdade de espírito. Expressa que a verdade só é
conquistada por aqueles que a buscam com paixão e paciência, sem descartar o fator positivo do
tempo, pois as investigações se somam e se integram paulatinamente. Embora não rejeite a
grandeza de Aristóteles, está convencido de que este filósofo não chegou aos últimos segredos da
Natureza, do mesmo modo que os sábios do presente ainda ignoram coisas que serão habituais
para os pensadores do futuro.

Indica que os caminhos pelos quais se pode chegar ao conhecimento são tres: a autoridade, a
razão e a experiência. No entanto, faz pouco caso da autoridade, pois esta não se dirige à
inteligencia mas a credulidade e é uma das fontes mais comuns de erro. Ficam então, as outras
duas vias: a demonstração racional e a experiência.

123
Mas também as demonstrações racionais são incompletas e necessitam da experimentação para
conseguir a sabedoria. Sem a experiência, não se pode conhecer nada de maneira correta; ela
outorga uma visão direta das coisas que se assemelha a intuição com que se captam as verdades
com certeza. A experiência é válida tanto para os conhecimentos naturais como para os
sobrenaturais.

A experiência é dupla: externa e interna. A externa é a que nos chega através dos sentidos. A
interna é a que provêm da iluminação divina. Da externa procedem as verdades naturais e da
interna as verdades sobrenaturais, sendo ambas as que levam ao homem para a felicidade. Aqui
une a teoria da iluminação agostiniana com o experimentalismo, negando a lógica aristotélica
como instrumento de investigação da realidade. Por outro lado, a experiência é um conhecimento
imediato, que põe o homem frente a frente com a realidade.

Quanto a experiência interna, reconhece tres tipos de iluminação:


- a iluminação ou revelação geral que é comum a todos os homens;
- a iluminação primitiva ou tradicional relativa as verdades naturais que foram reveladas
primitivamente por deus.
- a iluminação especial, sobrenatural e devida a graça.
A primeira, talvez a mais destacada, é uma condição própria do conhecimento humano; é o
caminho da filosofía como sabedoria que esta ao alcance de todos os humanos, pois Deus outorga
a todos esta possibilidade.

A experiência interna é um verdadeiro caminho místico que conduz por fim até o êxtase. A
culminação do percurso passa por 7 graus:
- As iluminações puramente científicas
- As virtudes
- Os sete dons do Espírito Santo
- As bem aventuranças que menciona o Evangelho
- Os sentidos espirituais
- A paz de Deus, que supera todos os sentidos
- O êxtase em todas suas modalidades, porque cada homem a percebe a sua maneira, nem
tampouco pode expressar o que experimenta.

124
Estamos, então, diante de uma ciência da Natureza cheia de mística e de magia, tal como haviam
planejado os alquimistas. É inegável o caráter excepcional de Bacon que, sem deixar de ser um
monge franciscano, era também um místico e um alquimista, ao par que um verdadeiro precursor
da chamada ciência moderna por que havia reconhecido que as matemáticas constituem o
fundamento de toda investigação experimental.

125
JOÃO DUNS ESCOTO

“Doctor Subtilis”

Duns Escoto produz uma mudança radical dentro da corrente escolástica, tanto que assinala
praticamente o final de seu ciclo.
Se Santo Tomás havia utilizado o aristotelismo para melhor explicar o catolicismo, Duns Escoto
o usa para restringir o dominio da fé e determinar com claridade o da ciência.

VIDA E OBRAS (1266 ou 1274 – 1308)

Nasceu na Escócia, em datas duvidosas para os autores. Bem cedo ingressou na Ordem
Franciscana e estudou em Oxford. Com mais ou menos 30 anos se transladou a Paris, de onde
saiu rápidamente já que se definiu a favor do papa Bonifacio VIII, enfrentado a Felipe o Belo.
Voltou um ano depois e foi nomeado Mestre na Universidade de París. Após um novo retorno a
Inglaterra, foi chamado a Colonia, onde faleceu poucos meses depois de sua chegada.
Ao morrer tinha uns 40 anos, os quais ocupou intensamente contando pelas suas viagens e obras,
das quais nem todas são atribuidas a sua pluma com absoluta certeza. Mencionamos entre as mais
conhecidas o tratado “De primo principio”, as “Cuestiones metafisicas”, o “Opus oxoniense”
(comentário as Sentenças escrito em Oxford) e “Reportata parisiensia” (comentários as Sentenças
escrito em París)

CIÊNCIA E FÉ

Para compreender as definições que Escoto estabelece, há que partir de sua separação e antítesis
entre ciência e fé, ou entre o teorético e prático.

O teorético é o dominio das coisas necessárias, e por isto mesmo, das demonstrações racionais e
da ciência. O prático é o domínio da liberdade, do arbitrio pessoal, das decisões da própria

126
vontade, do que não pode ser demonstrado, e consequentemente, da fé. A metafísica é a ciência
teorética por excelencia, enquanto que a teología é a ciência prática por excelencia.

Escoto inicia sua obra “De primo principio” com uma oração a Deus: “Tu és o verdadeiro Ser, Tu
és todo o Ser... Ajuda-me, oh! Senhor, a buscar este conhecimento do verdadeiro Ser... que nossa
razão natural possa alcançar”. Aqui vemos que não pede a Deus uma iluminação sobrenatural,
mas um conhecimento que seja próprio da razão humana com seus limites naturais. Há um
contraste entre a verdade racional da metafísica própria da razão humana e válida para todos os
homens, e a verdade da fé que a razão pode aceitar e que é absolutamente certa apenas para os
católicos, nas palavras do próprio filósofo.

A fé não tem nada a ver com a ciência; a fé e a crença não recorrem a especulação. Tudo o que
vai mais além dos limites da razão refere-se à finalidade que deve tender o homem e aos meios
ou normas para consegui-lo. Então, por que foi necessária a revelação divina para os homens?
Porque o homem, apenas com sua razão, não pode perceber da finalidade a qual está destinado,
nem dos meios para consegui-lo; só pode sabe-lo através da revelação. Não há uma conexão
necessária entre a razão humana e seu final sobrenatural; este fim é algo que Deus quis conceder
livremente ao homem e o homem não pode alcançar com seus conhecimentos demonstrativos o
que Deus decidiu em virtude de seu livre albítrio.

Delimitando com maior precisão a separação entre ciência e fé, Escoto indica que o objeto da
teología não é apagar a ignorância, mas convencer o homem da necessidade de sua salvação; não
tem uma finalidade teorética, mas educativa, porque repete constantemente seus ensinamentos
para que o homem as coloque em prática. Assim, a teologia não é uma ciência no sentido estrito.
Se queremos considerá-la uma ciência, temos que dar-lhe seu lugar especial, já que não está
subordinada a nenhuma outra ciência, nem nenhuma outra ciência está subordinada a ela.
O objeto da metafísica, a ciência por excelencia, que é demonstrar os princípios do ser enquanto
ser, não pode ser alcançado através de nenhuma proposição teológica.

Toma de Aristóteles o ideal de uma ciência necessária e fundamentada somente em princípios


evidentes e demonstrações racionais, utiliza Aristóteles, e pela primeira vez, para limitar o
conhecimento humano. O conceito de ciência de Escoto vai unido ao reconhecimento dos limites

127
desta ciência humana. O que não é demonstrável, não é necessário, e sim contingente, arbitrário e
prático, ou seja, produto da ação divina ou humana, enfim: fé.

Esta postura não deve ser interpretada como agnóstica ou cética; somente concede uns limites
rigorosos ao conhecimento humano. Com esta doutrina de que o impossível de demonstrar
racionalmente é um puro objeto de fé, a investigação escolástica que pretendia integrar em uma
unidade lógica todas as verdades da fé fica vazia de conteúdo.

TEORIA DO CONHECIMENTO

Está inspirada em Aristóteles e seu conceito de abstração, mas Escoto faz da abstração a forma
fundamental do conhecimento, convertendo-a em conhecimento científico.

Temos que fazer uma diferença, entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo.
Existe um tipo de conhecimento que abstrai ao objeto de sua existência presente, e há outro que
apenas conhece o objeto enquanto existe e está presente. Escoto chama abstração ao primeiro
conhecimento porque não depende da existência ou não-existência do objeto; este é o
conhecimento da ciência que não pode limitar-se em sua própria existência ao nascimento e
morte de um objeto.
O segundo conhecimento é intuitivo porque é obtido diretamente na presença do objeto existente
visto tal como é; intuitivo não significa que seja um conhecimento imediato nem oposto ao
procedimento discursivo da razão, mas indica a presença do objeto que se vê.

Estes são os dois graus fundamentais do conhecimento: o abstrato que se dedica a essência lógica
das coisas e é próprio da ciência; e o intuitivo que se dirige a realidade enquanto está presente.
Não devemos pensar que o conhecimento intuitivo fica relegado somente aos sentidos, mas que
ambos, abstrato e intuitivo, são graus do mesmo entendimento humano.

Esta dupla função do conhecimento intelectual é o fundamento de toda a metafísica de Escoto.


Há uma essência sustancial ou natureza comum que aparece tanto nos objetos individuais e nos
conceitos universais. Esta natureza comum, enquanto aparece nas coisas individuais, é o objeto

128
do conhecimento intuitivo, enquanto que o conhecimento abstrato dirige-se aos conceitos
universais.

DEUS

Seguindo também a Aristóteles, Escoto aborda o tema central da metafísica, o ser, afirmando que
é unívoco, ou seja, o mesmo para Deus e para todas as criaturas, e não análogo, como ensinou
Santo Tomás.

Se não se admite a noção de um ser comum a todas as coisas, seria impossível para o homem
conhecer a Deus e determinar algum de seus atributos. No entanto o fato de que o ser seja
unívoco em Deus e em suas criaturas, não exclui as diferenças entre um e outras: Deus e suas
criaturas são diversos em suas realidades expressadas.

A existência de Deus e o conceito que os homens formam Dele, também terão de ser
demonstrados. Há apenas uma característica intrínseca da Deidade: é a infinitude, que leva até o
máximo limite todos os outros atributos possíveis. Entre os outros atributos, Deus é
fundamentalmente inteligência e vontade. Como inteligência, conhece a essência e todas as
coisas criadas como realidades presentes, sem necessidade de intermediários. Enquanto a
vontade, é o verdadeiro fundamento da essência divina, a causa primeira e absoluta, sem que
nenhum outro motivo possa precedê-la nem determiná-la.

Este é o “princípio do voluntarismo” de Escoto, que se baseia na vontade divina: tudo o que não
se pode submeter a uma rigorosa demonstração científica, pertence ao domínio da liberdade, ao
arbitro da vontade. A vontade divina é absolutamente livre, embora não deva entendê-la como a
humana, como possibilidade simultânea de atos opostos, pois seria uma imperfeição impensável
em Deus. A liberdade de Deus está em querer um número infinito de coisas diversas, sem que
isto altere sua eternidade nem imutabilidade.

O HOMEM

A alma intelectiva é a forma sustancial do corpo, e esta é uma verdade demonstrável.

129
O homem pensa e seu pensamento não pode ser referido a nenhum órgão corporal, porque vai
mais além dos objetos sensíveis e dirige-se ao suprasensível, aos conceitos universais. Assim, o
sujeito do pensamento há de ser a alma. E se o homem é homem porque pensa, a alma, que é o
veículo do pensamento é a sustancia ou forma (como elemento sutil, em relação com a matéria)
do homem.

A alma intelectiva não é a única forma do homem; há outra forma sustancial, que é a do corpo
enquanto corpo, uma “forma mixta” própria do corpo, anterior a sua união com a alma e que o
predispõe a esta união.
Segundo esta teoria, a matéria tem uma realidade própria, independente da forma. No entanto, a
matéria não tem nenhuma relação com a individualidade da alma que é algo próprio e prévio a
sua união com a matéria; esta individualidade é sua entidade última.

Mas conhecer a natureza da alma não é suficiente para deduzir sua imortalidade. Isto significaria
que nem sequer Deus pode cria-la ou destrui-la, e isto é falso. A imortalidade da alma fica
reduzida a uma questão de fé.

Escoto coloca muita ênfase na liberdade da vontade humana; igual que no plano divino, no
homem a vontade não tem outra causa mais que ela própria. Inclusive o entendimento nos atos
voluntários, depende da vontade que o utiliza e o submete às exigências da ação. A supremacia
da vontade faz que a vida moral fique sujeita ao arbitrio, ou seja, que pode optar livremente, ou
não, pelo bem.

A única lei moral válida para os homens é o mandato da vontade divina, embora fique claro que
Deus não pode querer algo que não seja justo. De modo que os homens podem ou não adaptar-se
a lei estabelecida por Deus, e esta lei é a sua vez o produto do arbitrio divino.

É também o arbitrio divino o que dirige a salvação do homem caído originalmente no pecado. O
homem poderia ter sido redimido de um modo diferente a morte de Cristo que, como toda outra
decisão, responde a providência.

130
Por rigorosa e cética que possa resultar a figura deste pensador franciscano, não podemos deixar
de recordar a defesa que fez da Imaculada Conceição de Maria, crença que a própria igreja
católica não reconheceu como dogma até o século XIX.

131
GUILLERMO DE OCKHAM

Estamos diante da última figura importante da Escolástica, que atua na primeira metade do século
XIV. Assinala o final de sua época, e em boa medida já apresenta elementos que irão marcar a
Idade Moderna.

A aspiração que havia motivado a Escolástica desde sua aparição, ou seja, o acordo entre a
investigação filosófica e a verdade revelada, é declarado impossível e esvaziado de todo
significado por Ockham. O ciclo da Escolástica medieval fica fechado, a fé se separa da
investigação filosófica a que, por sua parte, dirige-se definitivamente para outros temas, em
especial a Natureza, da qual o homem é integrante e, por isto mesmo, pode conhecê-la com sua
própria razão.

O argumento do qual se vale Ockham para levar a cabo a dissolução da Escolástica é a


experiência. Se Escoto havia planteado a teologia como uma ciência prática que propõe normas
de ação embora incapaz de alcançar a verdade pela especulação, Ockham expõe que a
experiência é o único fundamento do conhecimento, descartando o que vai mais além deste
limite. Este empirismo exagerado determinou a queda da Escolástica.

Isto o leva a propor uma clara separação entre a Igreja e o Estado. A Igreja, que é o domínio do
espírito, deve ser o reino da liberdade; o Estado tem de se ocupar dos corpos e nisto tem absoluta
autoridade. Dentro deste Estado deve poder praticar-se uma livre investigação científica que já
não reconheça como guia a verdade revelada e apenas busca a realidade, tal como se vê e se vive.
A Igreja deve abster-se de todos os temas que não lhe sejam próprios.

VIDA E OBRAS (ao redor de 1290 – 1348 ou 1349)

Chamado pelos seus contemporaneos “Doctor invincibilis” e “Princeps nominalium”, Guillermo


tomou seu nome da sua aldeia de nascimento, condado de Surrey. Embora não se saiba
exatamente a data, existe uma primeira constância de sua vida em 1324, quando foi citado diante
do papa de Avinhón para responder sobre algumas tesis suspeitosas contidas no seu “Comentario
132
as Sentenças”. Naquele momento já existia uma clara divergência entre o papa de Avinhón e os
franciscanos que sustentavam firmemente o princípio de pobreza predicado pelo fundador da
Ordem; e também se agudiza a ruptura entre João XXII e o rei Luis IV da Baviera, aspirante ao
trono do Império do Ocidente.

Depois de um juízo de tres anos, uma comissão de doutores censurou 51 artigos de Ockham e, em
geral, o nominalismo. Isto obrigou a Guillermo a fugir juntamente com o rei bávaro e o superior
da Ordem, chegando na cidade de Pisa.

Em 1329 o papado decretou sua excomunhão por cismático e hereje, mas não passou por ser uma
medida formal, porque o poder terrenal do papa havia diminuído notavelmente. Por convite de
Luis IV da Baviera, Ockham se trasferiu e foi viver em Munique onde residiu até sua morte. Seu
corpo foi sepultado na igreja franciscana de Munique.

Entre suas obras cabe destacar: Comentario as Sentenças, 7 livros de Quodlibeta, Centiloquium
theologicum (uma exposição de 100 conclusões teológicas), Philosophia naturalis, Summa totius
logicae; também obras inéditas de física e várias de política.

TEORIA DO CONHECIMENTO

Ockham utiliza fundamentalmente o conhecimento intuitivo, que já havia planteado Escoto,


para expor sua doutrina da experiência.

O conhecimento intuitivo é aquele que permite reconhecer de maneira evidente se uma coisa
existe ou não, e julgar sua realidade ou irrealidade, assim como as diferentes relações entre as
coisas particulares.

Mas o conhecimento intuitivo pode ser perfeito ou imperfeito. O perfeito é a experiência e é o


princípio da arte e da ciência; sempre tem por objeto uma realidade atual e presente.
O imperfeito refere-se a uma experiência passada ou transmitida por outra pessoa que a teve. O
conhecimento abstrato (que mencionava Escoto) não pode abstrair nada que não tenha partido
antes de uma experiência intuitiva.

133
Além do mais, o conhecimento intuitivo pode ser sensível e intelectual. O entendimento não
apenas abstrai, como pode conhecer intuitivamente as coisas individuais que são percebidas pelos
sentidos, pois se não fosse assim, não poderia emitir nenhum juízo sobre elas. E também conhece
os movimentos do próprio espírito, como o prazer, a dor, o ódio, etc.

Se o conhecimento intuitivo equivale a uma relação direta entre o sujeito que conhece e a
realidade que é conhecida, significa que não existe nenhuma “especie universal” que sirva de
intermediária no ato de conhecer. Ockham nega a realidade dos universais em qualquer grau, e
nisso radica seu nominalismo.

Diante desta postura radical, que valor tem os conceitos? Um conceito tem, efetivamente, uma
realidade mental, mas esta realidade não é mais que a ação própria do entendimento. A
universalidade do conceito está somente em sua função significativa, ou seja, que significa ou
representa uma realidade; o conceito é um símbolo que está no lugar da realidade nos juízos e
raciocínios.

Posto que o único conhecimento possível é a experiência e a única realidade cognoscível é a


Natureza, qualquer outra realidade não poderá ser alcanzada por meios naturais nem humanos.
Assim separam-se totalmente a ciência e a fé.

A fé religiosa apenas poderia ser demonstrada se tivesse um conhecimento intuitivo de Deus e da


realidade sobrenatural, mas este conhecimento é impossível para o homem. (mas, se não fosse...?)
A partir deste princípio, a teologia deixa de ser uma ciência e passa a converter-se num conjunto
de noções práticas carentes de evidências racionais e de valor empírico.

METAFISICA

A metafísica de Ockham é simplesmente uma crítica à metafísica tradicional


Rejeita a distinção tomista entre essência e existência. Se queremos saber algo sobre a existência
de uma coisa qualquer, só podemos nos remeter ao conhecimento intuitivo que temos dela, e não
a sua essência.

134
A essência ou sustância não pode ser conhecida se não for através de seus acidentes, por ex., não
conhecemos propriamente o fogo mas seu calor; de modo que a substância é um fator
desconhecido das qualidades, as quais, por outro lado são reveladas pela experiência.

Tampouco aceita o conceito tradicional da causa. Do conhecimento de um fenômeno, não


podemos chegar ao conhecimento de outro fenômeno que seja a causa ou o efeito do primeiro,
pois causa e efeito são coisas diferentes e necessitam dois atos diferentes de experiência.
Isto leva a crítica da idéia aristotélica da causa final, já que não é possível demonstrar de maneira
evidente nem experimental que um efeito tenha necessariamente uma causa final.

PRELIMINARES DE UMA FISICA NASCENTE

Na medida em que a investigação se desliga da teología, começa a se preocupar pela Natureza. A


Natureza passa a ser o domínio próprio do conhecimento humano; a experiência perde os matizes
mágicos que ainda mantinha com Bacon, e se converte numa ferramenta ao alcance de todos os
homens.

A crítica que faz da física aristotélica o leva a novas concepções do mundo que floresceriam
pouco depois durante o Renascimento, e serviriam de fundamento à ciência moderna.

A física aristotélica e toda a filosofía medieval, haviam sustentado que a natureza dos corpos
celestes e dos corpos sublunares era diferente. Ockham admite, no entanto, que todos os corpos
estão constituídos pela mesma matéria, por um simples princípio de economia da Natureza.

Também, contra Aristóteles defende a possibilidade de mais mundos habitados. Deus, em sua
infinita potência, pode produzir outra matéria além daquela de nosso mundo, e também pode
produzir infinitos indivíduos das mesmas espécies que vemos em nosso mundo. Esta mesma
teoria foi a que tantos problemas trouxe depois para Giordano Bruno.

135
A pluralidade dos mundos, supõe a possibilidade do infinito real. Como logo será dito no
Renascimento, no infinito o centro pode estar em todas as partes. E nada impede que Deus
continue criando infinita quantidade de matéria para agregar a já existente.

E a outra possibilidade interessante que plantea Ockham é a eternidade do mundo. Reconhece


que a idéia de eternidade exclui a criação, mas ainda assim considera que é altamente provável
porque é muito difícil conceber o começo do mundo no tempo.

A pluralidade dos mundos, sua infinitude e eternidade, são importantes possibilidades que
Ockham apresenta diante da investigação filosófica. Apenas um século depois estas
possibilidades se converteriam em certezas, e sua visão do mundo será aceita como real.

O HOMEM

O pensamento de Ockham põe em tela de juízo a idéia da alma como forma imaterial
incorruptível.

A vida espiritual também está regida pela experiência; é através da intuição que conhecemos
nossos estados interiores, os pensamentos, as volições. Mas este conhecimento intuitivo não nos
diz nada sobre a incorruptibilidade da alma. Enfim, que bem poderia ser o corpo mesmo aquele
que pense já que não há mais dados seguros para o raciocínio neste aspecto.

Entre o entendimento e a vontade não há outra diferença que seus nomes. São identicos entre si e
com a essência da alma. A vontade é livre, ou seja, pode inclinar-se segundo seu arbitrio. A
liberdade de querer não é demonstrável pela razão, mas resulta evidente diante da experiência,
pois embora a razão nos indique uma via, a vontade pode quere-la ou não.

Esta livre vontade é o fundamento das valorizações morais. Não é suficiente que as ações
humanas estejam de acordo com a reta razão; é necessário além do mais, que sejam o produto de
uma livre determinação da vontade. Se os atos estivessem determinados por Deus, estes atos não
seriam meritórios nem virtuosos.

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Outro elemento mais de ruptura com a Idade Media é que a fé não é uma condição necessária
para a salvação eterna. Também a livre investigação, que confere ao homem uma especial
nobreza, pode levá-lo ao mesmo fim.

PENSAMENTO POLITICO

Ockham foi um dos maiores adversários de seu tempo da supremacia do papado. Não se detém
apenas nas relações entre o estado e a Igreja, mas que, contra o absolutismo papal, reclama a
liberdade de consciência religiosa e da investigação científica.

Segundo Ockham, a lei de Cristo é lei de liberdade. Ao papado não lhe corresponde, então, o
poder absoluto em matéria espiritual nem em matéria política. O poder papal foi instituído como
magistério e não como dominação, para beneficiar a seus súditos, e não para tirar-lhes a
liberdade que Cristo veio a aperfeiçoar no mundo.

Recordando que a Igreja é “a multidão de todos os católicos que houve desde os tempos dos
profetas e apóstolos até agora”, se opõe ao papado de Avinhón, ansioso de riquezas, autoritário e
despótico, que pretende subordinar a consciência de todos os fiéis e dominar políticamente todos
os impérios e reis da terra. Se o papado de Avinhón sustenta que o papa possui autoridade
absoluta tanto nas coisas espirituais como nas temporais, Ockham adverte que os impérios não
foram fundados pelo papa, que o império romano, por exemplo, já existia antes da chegada de
Cristo. De modo que volta a plantear a independencia do Imperio e da Igreja, idéia que já havia
afirmado pela primeira vez o papa Gelasio I (492-496) e que se manteve durante quase toda a
Idade Media.

A ÚLTIMA ESCOLÁSTICA

Depois do desaparecimento de Ockham, não aparecem grandes pensadores nem grandes sistemas
na Escolástica. Uma vez concluída sua função histórica, só vive do passado, especialmente do
tomismo, do escotismo e do ockhamismo.

137
Enquanto o tomismo e o escotismo representam a “via antiga”, o ockhamismo representa a “via
moderna”, precisamente a que critica e abandona a tradição escolástica. Os modernos são os
“nominalistas”, os que confiam apenas na razão e não aceitam nenhuma possibilidade de explicar
as verdades reveladas.

Em 1339 a doutrina ockhamista foi proibida em París e um ano mais tarde foram condenadas
muitas de suas proposições. Mas ainda assim, estas doutrinas se difundiram rápidamente por
várias universidades européias e ganharam muitos discípulos, os quais acentuaram seu sentido
crítico, aplicando não só as questões teológicas mas também as filosóficas.

A medida que caíam os elementos constitutivos da tradição escolástica, somavam no horizonte


novas idéias que se desenvolveriam com toda sua força no Renascimento.

138
TEMA XII

O MISTICISMO ALEMÃO

A dissolução da escolástica e a divisão entre ciência e fé, não apenas destaca a investigação
racional, mas também põe em primeiro plano o problema da fé. Se as verdades da fé não têm
fundamentos racionais, se não são evidentes, não podem demostrar-se nem justificar-se, qual é
então o valor da fé?

Embora a Escolástica, nem sequer em seu período final, nunca negou a fé, tirou-lhe por outro
lado o apoio da razão. A razão, como potência netamente humana, dedicou-se a investigar as leis
da Natureza. Era necessário, então, justificar a fé, dando-lhe o papel de vínculo direto entre os
homens e Deus; havia que reconhecer outros poderes humanos que estivessem acima da razão
para chegar a divindade.

Esta foi a tarefa que abordou o misticismo especulativo alemão, em especial através da
relevante figura do Mestre Eckhart. Se até este momento a mística havia sido um complemento
da investigação escolástica, visto que a investigação tomava outros rumos, correspondia à via
mística transformar os critérios escolásticos para conquistar uma justificação por si mesma.

Este misticismo especulativo não consiste numa simples descrição da elevação do homem até
Deus, mas na investigação da possibilidade desta elevação, partindo do reconhecimento da
unidade essencial entre Deus e o homem.

139
MESTRE ECKHART

VIDA E OBRAS (1260 – 1327)

João Eckhart foi o verdadeiro fundador da mística alemã. Nasceu perto de Gotha. Entrou a formar
parte da Ordem dos Domenicanos e estudou em Colonia, onde foi seguramente discípulo de
Alberto Magno.

Daí passou a París, onde foi nomeado doutor pelo papa Bonifacio VIII. Além de exercer vários
cargos em sua Ordem, dirigiu a escola teológica de Estrasburgo e ensinou em Colonia durante os
últimos anos de sua vida. O arcebispo desta cidade tentou processá-lo por heresia en 1326;
Eckhart retratou-se com algumas condições de doutrina e apelou ao papa, mas morreu antes de
que se publicasse uma bula onde se condenavam 28 proposições tomadas de suas obras.

Entre suas obras se contam “Opus Tripartitum”, algumas “Questões”, “Sermões e Tratados”, e
alguns escritos nos quais se defende das acusações de heresia que lhe imputaram.

DOUTRINA

Toda sua obra é uma teoria da fé. Trata de estabelecer a unidade essencial entre o homem e Deus,
entre o mundo natural e o mundo sobrenatural, justificando assim o valor da fé.

As 28 proposições que foram condenadas, contém os elementos fundamentais de sua doutrina


mística. Vejamos algumas delas.

- A eternidade do mundo que foi criado por Deus simultaneamente com o Verbo.
- Na vida eterna, a natureza humana se transforma em natureza divina.
- A perfeita identidade entre o homem santo e Deus.
- A perfeita unidade de Deus.
- O não-ser das criaturas enquanto criaturas corporais.
- O valor indiferente das obras externas (jejuns, vigilias, mortificações...)

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Estas teses apresentam a unidade essencial do homem com Deus, e esta unidade é a que oferece
ao homem a possibilidade de uma relação direta com o mundo sobrenatural e com Deus, ou seja,
a possibilidade do vínculo da fé.

Para fundamentar esta unidade, Eckhart nega, por um lado, que as criaturas tenham uma realidade
própria, e por outro, reduz ao verdadeiro ser das criaturas ao Ser de Deus. "Todas as criaturas são
um puro nada. Tudo o que não é essência, é nada.” Mas diante da nulidade destas criaturas
materiais, está a realidade do ser; e o Ser é Deus.

Eckhart utiliza alguns dos princípios da Escolástica, por exemplo, a analogia do ser de Santo
Tomás, e a distinção entre essência e existência, mas o faz a sua maneira, para negar realidade a
criatura em sua existência, e reduzir sua essência a de Deus. A analogia serve para explicar que
todas as criaturas têm em Deus e por Deus, não por si mesmas, o ser, a vida e o saber.

Todas as coisas estão em Deus, da mesma maneira que as idéias estão na mente de um artífice.
Mas estas idéias das coisas não são criadas nem criáveis, mas surgem de Deus junto com o
Verbo. Desta postura se deduz a coeternidade e unidade sustancial do mundo com Deus.

Deus é o ser, todo o Ser em sua absoluta unidade. Mais que Deus, é a essência da divindade a que
constitui o fundamento das tres pessoas divinas, superior as relações entre elas e a sua atividade
criadora: a divindade é um repouso “vazio” onde só há unidade.
A este centro final deve tender a vida do homem, e bem pode fazê-lo considerando a natureza de
sua alma.

Eckhart admite, seguindo os ditados da Escolástica, que na alma há tres partes: a racional, a
irascível (emoções) e a apetitiva (sensível); mas agrega a memória, a inteligência e a vontade. No
entanto, a maior potência da alma não é nenhuma destas faculdades, mas que sua essência é a
racionalidade (talvez o entendimento, como uma inteligência superior?). É a racionalidade a que
faz que a alma do homem seja a imagem de Deus e, como tal, é também incriada e eterna; por
outro lado, a alma dotada de faculdades é criada e múltipla.

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A racionalidade é “a cidadela da alma”, é a chispa que o fogo divino ascendeu nela. E só através
desta chispa que o homem pode elevar-se por cima das atividades sensíveis e intelectuais para
chegar a contemplação. Comparada com o conhecimento comum, a contemplação é um não-
conhecimento, é um não-saber; no entanto é possessão perfeita, gozo da verdade, é fé.

A fé consiste, então, na união em sua ultima identidade, da alma com Deus; é a fé a que revela ao
homem a deidade de Deus e a substância da alma, ambas idênticas.
A fé é o nascimento de Deus no homem; deste modo, o homem se converte em filho de Deus.
Este nascimento tem como condição distanciar-se do pecado e desinteressar-se das coisas finitas
e perecíveis, refugiando-se na chispa eterna da racionalidade. A este nascimento não ajudam as
obras externas e aparentemente meritórias, mas as obras internas, ou seja, aprofundamento na
relação com Deus. Deus é buscado com a alma.

Em linhas gerais, estas são as idéias do Mestre Eckhard, que, como é natural, suscitaram várias
controvérsias. Foi um escolástico ou apenas um místico? É evidente que conheceu e empregou os
princípios da Escolástica porém os levou a seu próprio terreno místico, como o único que conduz
às verdades reveladas que não se alcançam apenas pela investigação filosófica.
Foi ortodoxo em suas especulações? Talvez não se seguimos as linhas tradicionais escolásticas.
Mas suas especulações constituem a última tentativa medieval de dar um fundamento metafísico
à fé.
Foi panteísta? Não, se considerarmos a diferença radical que estabelece entre Deus e as criaturas
como “nada”, mas sim enquanto à identidade do Ser com as almas e com o mundo.

Outra vez encontramos esboços de pensamentos que iriam encontrar uma expressão mais
definida no Renascimento.

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