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É preciso enegrecer o Brasil: o porquê de uma consciência negra

A ida da história do poeta, político e guerrilheiro baiano Carlos Marighella as telas do


cinema brasileiro, dirigido por Wagner Moura, e a escolha do canto e ator Seu Jorge
para o papel do inimigo número um da ditadura militar suscitou polêmicas recorrentes
no racismo à brasileira, ou como bem definiu a antropóloga Lélia Gonzalez, sintomas da
neurose cultural brasileira. Em um país fundado a partir das lentes da miscigenação
racial, a qual não buscava reparar as profundas desigualdades oriundas das bases
fundacionais escravocratas em nosso país, e sim erguer pontes ilusórias para a
população negra de que era possível se aproximar da branquitude, enegrecer ainda mais
um personagem negro da nossa história causa alvoroço e estremece os alpendres da
Casa Grande.

O mais comum dentro dos processos de representação histórica no Brasil perpassava por
operações de branqueamento de figuras negras históricas, como ocorreu com Machado
de Assis, Chiquinha Gonzaga e tantas outras personagens. Como bem descreve o
filósofo camaronês Achille Mbembe, a raça não existe enquanto fato natural físico, mas
enquanto uma construção fictícia útil de dominação de um sujeito sobre o outro. Para
além de um efeito perceptivo, o racismo opera enquanto “afeto, instinto e speculum, a
raça tem de se transformar em imagem, forma superfície, figura e, sobretudo,
imaginário”. O racismo constrói estereótipos e estigmatizações em torno das
populações negras, como também busca excluir qualquer tipo de representação de
negritude dentro do imaginário social. O Brasil alicerçado pela escravidão alimentou o
mito da democracia racial por meio da figura do “mestiço”, lugar confortável para elites
excluírem da história brasileira os personagens negros/as. Não por acaso, como cita o
historiador Clóvis Moura a partir do censo realizado em 1980, nada menos que 136
“cores” distintas foram identificadas para descrever tons de pele não-brancos no Brasil,
uma fuga criada pelo projeto de embranquecimento afastar os não-brancos da sua
identidade.

Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) surge e realiza um esforço para


elaborar na consciência social da população de pretos, pardos, mestiços, dentre outras
identificações para não-brancos, a necessidade da afirmação de sua negritude. Uma das
consequências práticas do mito da democracia racial, como nos lembra Lélia, é o
estilhaçamento, fragmentação da identidade racial, logo, a negação da cor, da própria
cultura. Por outro lado, como destaca a professora Mara Viveros Vigoya, ao nomearmos
a branquitude enquanto um modelo identitário, estamos deslocando esse lugar de
neutralidade e posicionando os efeitos de dominação racial provocado pela ideologia do
embranquecimento fundado sobre a imagem do branco enquanto “norma” ou “cor
ideal”.

A criação do Dia da Consciência Negra, no 20 de novembro, no mesmo dia em que


Zumbi tombou resistindo e defendendo o quilombo dos Palmares da invasão dos
bandeirantes, é tomar para si a tarefa histórica invocada pela experiência do
aquilombamento. “Nascer negro é consequência, ser negro é consciência”, disse Zumbi.
Diante das tentativas incansáveis da branquitude em seduzir, dispersar, dividir as
populações negras, enegrecer o Brasil, se constitui num dos grandes desafios para
dinamitar as bases estruturais racistas de nosso país. Por fim, cito a canção de Emicida
“Principia”, do verbo principiar, início, começo, partida, “Tudo que nós têm é nós!”. O
primeiro passo da luta antirracista é tornar-se negro, lembrando Neusa Santos Souza, e
assim, unir negros e negras na luta contra o racismo.

Felipe Nunes é poeta, compositor, historiador, antropólogo e doutorando em


Antropologia Social pelo PPGAS/UFRN.

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