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Uma introdução elementar à Teologia da libertação latino-

americana.
Prof. Levy Bastos

I. Questões históricas: a gênese da Teologia da Libertação.


Nos anos 1950 inicia-se um processo renovador de questionamento da
realidade socioeconômica na América latina. A começar por Cuba, eclodem
episódios de mudança da forma de compreender o estado de atraso
econômico do povo latino-americano. Um fato novo é a constatação de que a
miséria na América latina fosse mera casualidade, mas sim resultado de
mecanismos de dominação orquestrada pelas elites destas nações. Isto ocorria
também numa relação de locupletação ou conivência com os governos de
nações economicamente mais poderosas.
O que subjazia às percepções dos críticos sociais daquele período foi a
detecção de que o atraso econômico das nações latino-americanas não
poderia ser vista dissociadamente de um processo amplo e demorado de
colonização e neo-colonização. Primeiro praticado pelos reinos de Portugal e
Espanha, depois pelo Império britânico e, por fim, pelos Estados Unidos da
América. Um marco deste processo mais recente de exploração das riquezas
naturais e da instauração de um modelo mais que eficiente de dominação é a
doutrina Monroe. Evocada em 1823 pelo Presidente estadounidense James
Monroe. Sua doutrina se converteu na expressão da política externa dos
Estados Unidos para todo o continente americano. Presumia a rejeição de
qualquer forma de ingerência das nações européias em interesses diretos do
norte-americanos neste continente. Por meio desta doutrina os EUA se viam no
direito e no dever se garantir a segurança dos países do continente americano.
No século XX esta doutrina se metamorfoseou em ações que combinavam
pressão política governamental com a inserção de Multinacionais com sede
nos EUA atuantes nas nações latino-americanas. Como resultado disso se deu
uma a fragilização permanente das economias latino-americanas e sua
conseqüente dependência em relação aos EUA.
No continente americano sempre houve movimentos de rebelião e
resistência à dominação. Já nos tempos dos primeiros conquistadores,
passando pelo período de domínio norte-americano, não faltaram vozes
descontentes. De norte a sul, na América latina sempre houve ações
articuladas que propunham a libertação econômica. Em diferentes âmbitos
(cultural, econômico, etc.) elaboraram-se estratégias de ação reivindicatórias
por mudanças substanciais na realidade social. Movimentos estudantis,
sindicais e populares se colocaram em marcha visando a questionar a pobreza
da maioria da população.
Neste contexto de libertação econômica e social, surge outra questão
inquietante: qual a posição da Igreja e dos cristãos e cristãs nesta luta? Mais
do que isso, se perguntou pelo “teológico” das libertações socioeconômicas. Se
fosse possível e necessário destacar o próprio da Teologia da libertação, não
encontraríamos expressão melhor. Ela surge, sim, como o esforço por dar
sistematização teórico-teológica a estas lutas por libertação na sociedade.
Os teólogos e teólogas da libertação sempre entenderam que Cristo é,
por excelência o “lugar” da libertação e das liberdades humanas. Nele é que se
encontra o modelo de vida verdadeiramente libertada. Pode ser que este seja o
mais adequado eixo interpretativo da teologia da libertação e sua relação com
as lutas dos povos latino-americanos, visando a sua libertação econômica.

II. Limites e alcances de uma metodologia.


A Teologia da libertação (doravante TdL) surge nos anos 1960. Em 1968,
na cidade Medellin, a Conferência episcopal latino-americana assume como
seu desafio o tema da libertação. Mais especificamente, o da salvação de
Jesus Cristo e os processos de libertação histórica. A pergunta central foi: que
relevância possui o processo de libertação histórica, no contexto da fé cristã?
Subjacente a isso estava a convicção de que o povo empobrecido deveria ser o
verdadeiro sujeito das transformações sociais (Boff, L; Boff, L, 22). Os Bispos
reunidos na Conferência episcopal de Puebla ratificaram o que havia sido
iniciado em Medellin, posto que viram a evangelização como a criação de
comunhão e participação de um processo de libertação integral. A libertação
plena começaria agora. Puebla sinalizou também a necessidade da superação
do simples reformismo e de uma ação visando a promover mudanças
estruturais. Criou-se, desse modo, o consenso teológico-pastoral de que a
missão da evangelização é libertar o “Não-homem” e fazê-lo Homem (Boff, L;
Boff, L, 43).
O Marxismo
A realidade social não é facilmente descortinada e compreendida. Sim,
ela não é uma grandeza autoexplicativa. Tem lá seus mecanismos ideológicos
que mascaram suas verdadeiras intenções. Por conta disso, o crente engajado
deve sempre se perguntar: qual o melhor quadro teórico para a captação do
real social, afim de atuar de modo transformador (Boff, 271). Neste contexto é
que se explica o uso, por parte da TdL, de ferramental de análise marxista. O
que, entre 1976 e 1979, fez surgir uma onda de críticas por parte de alguns
teólogos europeus (Boff, Boff, 30). Não somente por estes, no seio da própria
Igreja latino-americana houve vozes descontentes com aquilo que lhes pareceu
ser uma adesão ingênua e a-crítica à uma ideologia que consagrava o ateísmo.
Sabe-se que a realidade social pode ser compreendida de duas formas:
Uma funcionalista (reformista), a qual vê a realidade como um todo orgânico,
sem contradições internas. E outra, de corte dialético, que entende a sociedade
como um conjunto de forças em tensão e em conflito (Boff/Boff, 51). O
Marxismo, tal qual foi utilizado pela TdL, não se prestou a entender a Deus, a
graça, o Reino, etc (conceitos eminentemente teológicos), mas a formação, os
conflitos e o desenvolvimento das sociedades humanas (Boff, 278).
Exatamente por isso, pode-se dizer que o Marxismo foi um instrumento
adequado para descobrir e erradicar as contradições socioeconômicas
patentes em nossa sociedade. A TdL negou com veemência, entretanto, o
materialismo dialético, por ser este explicitamente ateu, preferindo o
materialismo histórico. Na base disso estava o ideário socialista, que no
entender dos teólogos e teólogas da libertação, pode oferecer mais elementos
ou possibilidades que o sistema capitalista, no que tange a realizar topicamente
a utopia cristã acerca do novo homem e da sociedade redimida pela graça de
Deus (Boff, 275).
Para os teólogos e teólogas latino-americanos sempre esteve claro que,
todas as vezes que o Marxismo nega qualquer referência transcendente à
história e um sentido para além do espaço e do tempo e quando faz de Deus
um vocábulo vazio, deve ser rejeitado pelos cristãos e cristãs (Boff, 276).
Para a TdL, a dimensão política traz consigo uma dimensão teológica. O
contrário também é verdadeiro: todos os temas da teologia têm (ou podem ter)
uma dimensão histórica da libertação. As libertações históricas são antecipadas
em concreções (sempre limitadas) da salvação. Não revelam a libertação total
e perfeita, mas sua sinalização germinal. Só a fé permite ver o político no
teológico e no econômico (Boff/Boff, 25). Na verdade, os cristãos e cristãs
vivem a angústia de terem que reconhecer que a libertação histórica, não é
bastante. Ela deve ser uma libertação histórica, mas sempre a partir da fé.Na
verdade, trata-se de uma libertação eminentemente religiosa, mas porque é
integral, inclui também a dimensão socioeconômica e cultural.

A opção pelos empobrecidos


Um dos aspectos que melhor tem caracterizado a TdL é sua opção
preferencial pelos pobres. Tal opção tornou possível uma releitura e
reinterpretação da história da América latina a partir da ótica dos índios, dos
negros, das mulheres e de outros grupos que sofrem opressão. Este aspecto
da TdL também não ficou isento de críticas, especialmente por parte de
cristãos e cristãs das Igreja norte-atlânticas. A estes, parecia que a TdL estava
sendo excludente. O Evangelho não é uma oferta da graça para todos os
povos, sem acepção? Na verdade, a Igreja latino-americana optou pelos
pobres sim, mas sempre de modo preferencial e nunca de modo exclusivo. Aos
cristãos e cristãs ricos foi sempre feito o convite de conversão à causa dos
mais pobres.

III. Temas candentes da Teologia latinoamericana.

Libertação como salvação


Como foi afirmado no início deste texto, uma das mais importantes (se
não, a maior) das questões levantadas pela TdL. Diríamos, o seu verdadeiro
eixo temático e conceitual, foi a pergunta pela relação existente entre a
experiência de salvação cristã e as libertações históricas (Gutiérrez, 199). Os
teólogos e teólogas latino-americanos se deixaram interrogar pelo teológico no
político. Sua grande preocupação foi ajudar as pessoas crentes, em sua luta
por libertação econômica e social.
Por isso é que, provavelmente, o acento mais forte da TdL seja sua
soteriologia. Quem nos salva e para que o faz? Que conseqüências há na
experiência salvadora de Cristo entre os homens e mulheres deste nosso
tempo? A resposta da TdL se fundamenta numa confissão de fé (em harmonia
com a grande tradição milenar da Igreja) de que salvação é o coração de toda
teologia. Mas, uma vez que a salvação de Deus é uma realidade pluriforme, ela
carece sempre de uma nova apresentação, sob o risco de perder sua
relevância. Sem uma nova interpretação da salvação a fé cristã estaria sob
ameaça de apresentar um discurso sem conexão com a vida, incapaz, portanto
de comunicar a vitalidade à fé. De fato, o modo como compreendemos a
salvação de Jesus Cristo demanda uma reinterpretação. E isso,
permanentemente.
O grande problema da doutrina da salvação é que ela, com a
secularização, se desligou do mundo (Greshake, 230). Passou a se tratar
apenas de uma salvação que só atinge o homem no seu íntimo. Passou a ser
coisa do coração. Algo íntimo. Mas, rigorosamente falando, salvação é ser
íntegro, isto é, ser livre de tudo o que compromete a integridade da pessoa. A
“salvação é o termo técnico com o qual expressamos a situação escatológica
do homem já na plenitude do Reino de Deus e na eternidade, ressuscitado e
divinizado”. (Boff/Boff, 56).
Quando somos salvos por Deus em Cristo, abre-se diante de cada um
de nós a possibilidade da realização plena de todas as potencialidades. A
salvação nos dá paz com Deus e conosco mesmos. Mas isso não significa se
isolar ou fugir da vida e do mundo. A salvação é o nome para uma experiência
subjetiva, pela qual Cristo nos redime do pecado e do peso da Lei, fazendo
surgir, não somente a nova criatura, como também uma comunidade de vida
plena (Greshake, 226). Somos salvos do pecado. Dele Cristo nos cura
(Gutiérrez, 201). Mas a TdL não vê o pecado como algo que se aloja apenas
nos limites da alma humana. Pecado é também compreendido como uma
realidade histórica, que exige libertação radical. Libertação esta que só
acontece realmente quando também ocorre a libertação política. A salvação
não poderia coroar, portanto, o individualismo da pessoa salva. Na verdade,
para a TdL, a salvação deve se concretizar numa relação de doação aos
irmãos e irmãs e na reconciliação com o nosso semelhante (Greshake, 233) e
como o cosmos (meio ambiente). Uma das mais contundentes afirmações da
TdL é a de que só é realmente salvo quem se abre para os outros (Gutiérrez,
202). Quem se vê desafiado a fazer do mundo o espaço privilegiado de sua
ação misericordiosa. A salvação plenifica desta forma a história. É uma
realidade intra-histórica (Gutiérrez, 203). Com os teólogos e teólogas da
libertação pode-se dizer ainda hoje que a obra redentora de Cristo abrange
todas as dimensões da existência humana. A história da salvação é, também a
história humana. Deus salva na história, ainda que saibamos que a salvação só
se realizará plenamente no final da história (Boff/ Boff, 26). Neste processo de
participação na transformação do mundo, os seres humanos forjam a si
mesmos. Numa palavra: trabalhar e transformar o mundo é também salvar.
A experiência totalizante da salvação não se esgota, é verdade, na
dimensão sócio-política (Greshake, 238). Essa constatação esteve sempre
presente na consciência dos teólogos e teólogas da libertação, ainda que nem
sempre tivessem sido capazes de articular de modo equilibrado e harmônico as
dimensões política e religiosa da fé. Não faltaram momentos em que a
salvação foi reduzida mero militantismo. A TdL nem sempre foi capaz de se
desvencilhar de uma relação de dependência com determinados grupos e
movimentos partidários de uma orientação ideológica.
O que marca efetivamente a TdL? Como ela trabalhou os clássicos
temas da fé cristã e lhes deu força permitindo que iluminassem a luta por
libertação política e econômica do povo cristão? Responder a estas perguntas
é também dar substância para o discurso teológico permitindo sua crítica e
reelaboração permanente. A TdL tem por isso sabido se reinventar cumprindo
sua missão enquanto elaboração teológica instrumental.

O Reino de Deus: irrupção germinal do futuro.


O Reino de Deus foi tema central da pregação de Jesus Cristo. Seu
ministério, Ele o iniciou anunciando a irrupção de um tempo novo. Tempo de
salvação para todos os povos. Tempo de subversão da (des)ordem deste
mundo. Com a chegada do reinado de Deus, os últimos seriam os primeiros.
Maior seria quem serve e não quem fosse servido. O Reino de Deus engloba
todas as realidades humanas e cósmicas. Jesus não pregou um Reino que se
circunscrevesse apenas ao íntimo das pessoas. A adesão ao Reino importa,
então, em mudança de vida. Em rompimento com o isolamento e o egoísmo.
Por isso mesmo é que ele está associado à vida em comunhão. A supressão
da miséria é um sinal do Reino de Deus por excelência. Por conta disso é que,
na compreensão da TdL, o Reino de Deus é antecipado historicamente na
justiça (Boff/Boff, 37).
Mas paradoxalmente, temos que reconhecer que o Reino de Deus não é
deste mundo. Ele é procedente da graça de Deus. Presume uma diferenciação
entre o que fazemos nesse mundo, e aquilo que é ação exclusiva de Deus e de
Sua graça. O Reino de Deus está em nosso meio manifestando-se em
processos de libertação histórica, mas será sempre mais do que isso. Há entre
nosso empenho por paz e justiça, por um lado, e a implantação da justiça
definitiva e perfeita por parte de Deus, por outro, uma diferença qualitativa.
Neste sentido é que podem ser vistos os milagres de Jesus Cristo: eram uma
antecipação de um tempo de cura total, mas que ainda aguardava sua
plenificação. Muitos, mas nem todos, foram curados por Jesus Cristo. Estas
curas tinham, pois, um caráter sacramental (indicativo): apontavam para algo
ainda maior; um tempo em que não haverá mais doenças ou doentes.
O Reino de Deus toca na questão dos mais pobres. Daqueles que
sempre foram desqualificados e colocados à margem. A TdL fez dos
empobrecidos a coluna estruturante de seu discurso. Isso porque na totalidade
das Escrituras Sagradas e da grande Tradição da Igreja cristã, os teólogos e
teólogas latino-americanos viram a paixão de Deus e da Igreja pelos que não
tinham voz nem vez, pelos que viviam na condição de subumanidade.
A expressão “empobrecidos” é pertinente na medida em que, com ela, a
TdL realçou o fato de que a pobreza na América latina foi engendrada. Tratou-
se de um processo multissecular de dominação. Pobreza neste continente não
é resultado do destino, mas é fruto de um sistema perverso de exclusão
socioeconômico. Nesta linha de reflexão a TdL viu a pregação do Reino de
Deus conectada com a implantação de uma nova sociedade, na qual houvesse
justiça para todos.
Quando a TdL deu especificação aos grupos sociais com os quais mais
se identificou, ficou patente a proximidade de seu discurso com o de Jesus
Cristo mesmo: os preferidos e preferidas de Deus são todos aqueles e aquelas
que estão em condição de risco, que sofrem discriminação, padecem pela
opressão política, econômica e social. Se para Jesus Cristo os preferidos e
preferidas de Deus eram mulheres, crianças, doentes e discriminados de toda
forma, a TdL não fez diferente ao se pôr em luta pela libertação daqueles e
daquelas que hoje também estão experimentando formas similares de exclusão
e opressão. Mas o Reino de Deus é também e acima de tudo, espaço e
experiência de perdão sem condições. Daí se explicar o fato de que Jesus
também esteve entre pessoas ricas e influentes. A estas Ele (ontem) e a TdL
(hoje em dia) convida para uma conversão de causa. A causa dos
empobrecidos e excluídos socialmente.

Escatologia se realizando
Um importante lugar teológico que historicamente se prestou à
preservação de uma mentalidade mais passiva e conservadora é a escatologia.
O além alimentou o sonho e a esperança de muitos cristãos e cristãs e com
isso, enfraqueceu sua sensibilidade para as questões deste mundo. Não é,
portanto, despropositada a suspeita de K. Marx de que o Cristianismo fosse um
ópio para o povo. Isto na medida em que anestesiava as pessoas de seus reais
problemas, em nome de um futuro paradisíaco de paz e de felicidade na vida
futura. A TdL percebeu que desde os profetas da Bíblia somos informados de
que sempre que se falava de uma realidade futura, isto estava vinculado
também a uma realidade histórica e temporal. O objetivo da salvação começa
já no homo viator. Isto é: os cristãos e cristãs esperam pelo futuro,
transformando o presente.
Segundo a percepção da TdL, abordar a escatologia de forma
libertadora pressupõe, então, uma atitude crítica ante as formas como o futuro
de Deus tem sido tratado pelas teologias mais conservadoras, como é o caso
do “dispenscionalismo milenarista”, tão presente em ambientes protestantes na
América latina. Estas teologias mais conservadoras desconsideram o fato de
que, em Cristo ressuscitado, o futuro já começou (Moltmann, 66)
Com Jürgen Moltmann os teólogos da libertação têm dado um sentido
novo à idéia da Promessa. Na verdade, a promessa é o coração da Bíblia
(Gutiérrez, 215). Ela cumpre-se em Cristo e, partir dEle, comunica sentido
libertador à história. Trata-se aqui de uma relação dialética, da qual a TdL
procurou não se esquecer. Isto é: o “já” e o “ainda não”. Há aqui uma “reserva
escatológica”. Com a qual Jürgen Moltmann quis dizer que Deus tem feito e
fará sempre o algo mais e maior. Nossas realizações sempre estão sob a
condição de provisoriedade. Sempre há algo por fazer. A história está repleta
de possibilidades. Neste sentido, e somente neste sentido, pode-se dizer que a
salvação em Cristo aguarda anda sua plena consumação.

A cruz de Cristo e suas implicações


A TdL pretende ser uma elaboração teológica que surge e é alimentada
desde a vida do povo empobrecido e oprimido da América latina. A temática da
cruz de Cristo encontrou, por isso mesmo, tratamento privilegiado. Isso porque
neste continente ainda temos uma multidão de homens e mulheres que
vivenciam sua via crucis diária. Ainda são muitos os que morrem antes do
tempo. Que têm que suportar as mais duras condições de vida. São
sobreviventes. Também com Jürgen Moltmann a TdL procurou interpretar a
morte de Cristo como resultado das opções de Sua vida. Ele morreu sim, mas
não morreu como simples cumprimento das profecias do AT. Sua morte foi
“causada” pelos Seus enfrentamentos com os poderosos. Sua morte tem, por
isso mesmo, caráter redentor. Morreu para redimir-nos de todas as formas
brutais e injustas de morte. Jesus Cristo se converte para os cristãos e cristãs
engajado da América latina numa referência de luta, visando à transformação
da sociedade.
Sabemos que o sofrimento é sempre uma experiência absurda, pois
opõe-se ao propósito de Deus para a Sua criação. O sofrimento que se vive só
tem sentido quando é resultante de uma opção clara pela vida, pelo fim de toda
e qualquer forma de sofrimento, especialmente quando se trata de sofredores
inocentes. Os sofrimentos do mundo não podem acontecer sem que sejamos
“perturbados” por eles. A TdL viu, por isso, nas contradições da vida humana,
bem como as angústias experienciadas pelo povo empobrecido um inequívoco
apelo de Deus. Deus se revela, nestas pessoas aguardando por uma reação
compromissada de Seus filhos e filhas. Deus se apresenta absconditamente
naqueles que estão à margem da vida, que sofrem sem um sentido interno
para o seu sofrer (Mt. 25,31-46).(Moltmann, 240).
O Cristianismo, se quiser, de fato, ser experiência de autêntica libertação
não pode ser tomado de apatia, por isso que a TdL quer ver libertos do
sofrimento absurdo (injustificado portanto), todos os que sofrem.(BOFF, 145-
157). Daí se depreende que, todas as vezes em que uma pessoa (cristã ou
não) é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem sofre, liberta de
preconceitos ou interesses mesquinhos, está vivendo a forma “teopática” de
amar, o que para J. Moltmann é evidência inconteste de amadurecimento
enquanto ser humano que atendeu à vocação Divina.(Moltmann, 290)
A TdL vê no comprometimento dos cristãos e cristãs com a
transformação do mundo, pela erradicação de todo sofrimento, não é outra
coisa senão a vivência do seguimento de Cristo nas situações concretas da
vida. A verdadeira religião não se deixa conhecer senão na conversão do
crente em favor de seus irmãos e irmãs que sofrem, Quante este fazr da causa
daqueles a sua mesmo. Quando consegue fazer do cuidado solidário para com
os deserdados do mundo, o eixo determinante de sua existência.

Perspectivas: os caminhos da libertação.

Uma espiritualidade embebida de mistério


Desde o primeiro momento, os teólogos e teólogas da libertação
estiveram cônscios dos riscos de uma espiritualidade que, em vez de
engajamento transformador, pudesse causar, isto sim, a evasão deste mundo
(Gutiérrez, 201). Toda teologia saudável e útil à Igreja e ao nosso tempo,
necessita de uma mística. De uma santidade. Mas como identificar essa
santidade. O que determina a santidade do Espírito de Deus, não é qualquer
possível isolamento em relação ao mundo. O atributo “santo” dado ao Espírito
refere-se à Sua ação santificadora da vida em geral e da renovação de toda a
face da terra. O Espírito de Deus revela Sua condição de santidade no
engajamento libertador da história, visando a irrupção definitiva da Nova
Criação, quando da implantação do Reino eterno de Deus. Entretanto, é
necessário reconhecer os equívocos da Igreja e da teologia cristãs quanto à
vivência da espiritualidade. Estas distorções foram altamente maléficas e se
deram como conseqüência das influências do platonismo, quando este
hostilizava o corpo, além de afastar os cristãos e cristãs do mundo.(Rubio, 75-
90). A compreensão helênica de Deus (apático e impotente antes aos
sofrimentos do mundo) espalhou-se na espiritualidade cristã, na medida em
que esta concebeu a vida cristã como fuga dos reais conflitos da existência
humana. O pensamento estóico contaminou a fé cristã por meio de seu
dualismo (corpo mau/ alma boa), tornando a espiritualidade cristã um exercício
ascético, não poucas vezes desumanizante. Ao contrário disto, a TdL vai
reforçar que a espiritualidade cristã deve, conduzir à glorificação do corpo e
não à sua destruição. Deve desencadear uma nova vitalidade, uma nova
alegria e prazer pela vida, o que necessariamente deve levar à superação da
apatia doentia e possibilitar a paixão pela vida, tendo aí o seu critério de
verdade e relevância. Quanto mais próxima deste ideal ela estiver, mais
libertadora será. Mais do que isso, a TdL reconhece que a experiência com o
Espírito de Deus deve promover transformação. Isto pressupõe, o rompimento
com uma espiritualidade exclusivamente intimista, dissociada dos eventos da
vida real. Precisamos com urgência de uma pneumatologia integral e
integradora que saiba relacionar de modo mais harmônico os binômios
corpo/alma, ser humano/criação, fé/política. Esta forma de espiritualidade é,
indubitavelmente, a que mais se adequa ao projeto eclesial da TdL. A
manifestação do Espírito deve fazer surgir o clamor pela vida libertada. Ela
deve permitir a redescoberta da santidade da vida e o mistério Divino no
interior da criação, defendendo-a da manipulação da violência.

Um Cristo servo e o modelo diaconal de ser Igreja


A grande inquietação da TdL sempre foi de se manter fiel aos oprimidos
de toda espécie. De estar ao seu lado em sua luta por libertação. Na medida
em que é na comunidade fraterna que se pode antecipar aquilo que ocorrerá
no mundo futuro e na vida eterna (Greshake, 227), a TdL encontra na vida
eclesial um ambiente fecundo para antecipar e vivenciar intensamente o futuro
de um mundo novo. Precisa sim de uma forma mais democrática e diacônica
de ser Igreja. Uma Igreja que não tenha a si mesma como um fim. Que não
prega a si mesma, mas a Cristo e que nEle se inspire.
Deixar-se inspirar por Jesus Cristo tem conseqüências revolucionárias.
Em Calcedônia falou-se da unidade humano-divina de Cristo. Ele é, sem
confusão, sem separação e simultaneamente, Deus e homem. Ali se
articularam harmonicamente tanto a libertação quanto a salvação: sem divisão
e sem confusão de uma na outra. Sempre que a Igreja afirma a salvação, sem
as libertações históricas, esta incorrendo no pecado do monofisitismo. Mas
também será refém do Nestorianismo quando realçar as libertações históricas
sem a abertura à salvação. O que precisamos é de uma ação integral da Igreja
no mundo. Uma Igreja que anuncie o mistério e que lute vida libertada.

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