DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: historiografia
e história. São Paulo: Edições SESC, 2019. 168 p.
Neste livro iluminador, Petrônio acordo com isso. “Florestan Fernandes
Domingues nos oferece uma intro- não percebeu, em vários aspectos, como dução compreensiva às pesquisas os ex-escravos e seus descendentes recentes sobre a história e a cultura eram dotados de vontades próprias, negra em São Paulo, muitas delas reali- procuraram reorganizar a vida a partir zadas por estudiosos afro-brasileiros. de sua própria perspectiva, inventaram O livro começa com as obras e reinventaram cotidianamente a clássicas de Roger Bastide e Florestan liberdade, emprestando significados Fernandes, e o muito debatido conceito singulares (nem sempre convencionais) deste sobre ser a vida comunitária a suas ações” (p. 32). afro-paulistana caracterizada pela Esta refutação de Fernandes abre anomia social. Domingues habilmente caminho para o conceito organizador resume os autores que criticaram este do livro: o “protagonismo negro” em conceito, desde várias perspectivas. São Paulo. Quer dizer, uma visão O que Fernandes via como anomia, dos afro-paulistas ― e, na verdade, Domingues sugere, era na verdade os de qualquer grupo humano ― como afro-paulistas a desenvolverem suas intérpretes ativos de seus mundos próprias interpretações da realidade sociais, protagonistas ativos em seus social, com base em suas próprias mundos sociais e, como resultado, tradições e valores culturais, e agindo de criadores de seus mundos sociais.
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Isto não quer dizer que eles inter- como os dois grupos se entrelaçavam pretaram, agiram e criaram em nessas organizações: “comunicavam-se condições de liberdade total. Ao permanentemente, em mão dupla, de contrário: viveram suas vidas dentro cima para baixo e de baixo para cima” das estruturas econômicas, políticas (p. 88). e sociais que impunham (e impõem) Depois de examinar a vida organi- graves limites sobre o domínio do zacional negra, o livro muda seu foco possível. O objetivo de qualquer para métodos e abordagens históricos pesquisa histórica, sugere Domingues, que se mostraram especialmente deve ser o resgate e a análise, prin- frutíferos nas pesquisas recentes. cipalmente no nível micro, das Domingues destaca a importância constantes interações entre estrutura das biografias para lançar luz sobre e ação, e os resultados históricos que as histórias individuais que, no seu elas produzem. conjunto, compõem a história de um Dentro desse quadro analítico, povo. A biografia também se presta à Domingues empreende um levan- narrativa e, de fato, alguns dos trechos tamento minucioso das pesquisas mais interessantes do livro relatam históricas publicadas desde os anos as vidas de figuras históricas como 1980 até os 2010. Ele começa com a Esmeraldo Tarquínio (eleito prefeito vida institucional e organizacional, de Santos em 1968, mas impedido de revisando os livros, as teses e os artigos assumir o cargo pela ditadura), Virgínia sobre os movimentos negros, sobre a Leone Bicudo (como seu antecessor participação negra nos movimentos Juliano Moreira, uma psicanalista políticos multirraciais (por exemplo, pioneira) e Helenira Resende (uma no republicanismo, nos sindicatos, líder estudantil carismática que morreu nos partidos políticos etc.), sobre os na guerrilha armada do Araguaia). clubes sociais negros, sobre as irman- A biografia tem suas armadilhas, dades católicas e sobre os cordões Domingues adverte, uma das quais é carnavalescos e as escolas de samba. a tentação de apresentar seus sujeitos Esta seção conclui com uma discussão como figuras sem máculas e miti- lúcida das relações entre as elites negras camente heroicas. O mesmo perigo e as camadas populares negras, e de aplica-se à história oral, quando os
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pesquisadores acriticamente trans- na PUC-SP e em outras universidades crevem e reproduzem depoimentos que paulistas. Domingues conclui que apresentam o passado duma maneira “a escola é o lugar onde se impõem idealizada ou simplificada. Mas sérios obstáculos aos negros; porém, adotando as precauções devidas, ambos foi lá que Cesarino encontrou os inters- métodos são componentes necessários tícios do sistema normativo por onde dos dispositivos que os historiadores passou”, através dos quais ele foi capaz trazem a seu trabalho. de realizar seu “protagonismo negro” Um aspecto curioso do livro: ao (p. 131). descrever as tentativas de várias orga- Não tenho dúvida de que, mesmo nizações negras no início do século os leitores bem lidos na história XX de criar escolas para as crianças afro-paulista, vão encontrar neste da comunidade, Domingues levanta a livro trabalhos e tópicos que eles questão: “por que esse estrato popu- não conheciam. (No meu caso, não lacional acreditava tanto no virtual sabia do livro do periodista Flávio poder emancipador da educação?” Carrança sobre o ativista Hamilton (p. 81). Ele pede mais pesquisa sobre Cardoso, nem o livro de Luciana Maia essa questão, mas parece-me que a sobre o movimento Black São Paulo, resposta já se encontra na biografia que nem vários outros mais).1 Os leitores começa e termina o livro, a de Antonio menos familiarizados com essa história, Ferreira Cesarino Júnior (1906- e que estão procurando uma introdução 1992). Nascido na pobreza, Cesarino concisa e abrangente, já encontraram formou-se em direito e em medicina e um caminho neste tomo elegante e traçou uma carreira distinguida na USP, esclarecedor.
George Reid-Andrews The University of Pittsburgh
doi: 10.9771/aa.v0i64. 46512
1 Flávio Carrança (org.), Hamilton Cardoso:
militante, jornalista e intelectual, São Paulo: Instituto do Negro Padre Batista, 2008; Luciana Maia, Força negra: a luta pela autoestima de um povo, São Paulo: Autografia, 2015.