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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA
Salvador
2017
HILDEBERTO DA SILVA REIS JUNIOR
Salvador
2017
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO 9
1 O QUE HÁ NO TEXTO: UMA PROPOSTA DE LEITURA A PARTIR DAS 18
LINGUAGENS DO FILME
2 MESCLAGEM ESTILÍSTICA: AMOR, SEXO, EROTISMO E 38
HOMOSSOCIABILIDADE
3 INTERSECÇÕES DE IDENTIDADES SEXUAIS EM PRIVATE ROMEO 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS 74
REFERÊNCIAS 79
INTRODUÇÃO
1
Os exemplos aqui citados são apenas recortes. A produção cinematográfica sobre tal tema é vasta. A lista
completa de exemplos está disponível em: < http://acapa.virgula.uol.com.br/cultura/70-anos-de-cinema-gay-
confira-os-filmes-de-tematica-lgbt-que-marcaram-as-ultimas-7-decadas/3/9/16057>. Acesso em: 08 ago. 2016
2
Sigla para Lesbians, Gays, Bissexuals, Transgender and Queers. A escolha do uso de tal sigla para o trabalho se
propõe a seguir o pensamento teórico da filósofa Judith Butler.
3
Trata-se de um trecho da palestre The Danger of a Single Story. Transcrição integral da palestra disponível em:
<https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=en#t-
756000>. Acesso em: 11 fev. 2016.
movimentos e discussões mais fortes em torno da violência contra o sujeito não-heterossexual
(algo representado timidamente na trajetória do cinema). Judith Butler relaciona a discussão em
torno da legitimação do casamento entre indivíduos homossexuais com a ideia de parentesco
socialmente associada à heterossexualidade. Butler aponta para a existência de uma proposta
contemporânea “na qual se lança mão do Estado para conferir o reconhecimento que ele pode
outorgar ao casal do mesmo sexo e para se opor ao controle regulador sobre o parentesco
normativo que o Estado continua a exercer” (BUTLER, 2003). No entanto, tal proposta, de
sancionar ou legitimar a sexualidade de um indivíduo não-heterossexual através do casamento,
pode significar a preservação de um pensamento conservador, que vai ratificar a secundarização
desse sujeito. Esses temas estão representados no filme De repente, Califórnia (2007) dirigido
por Jonah Markowitz, cujo enredo apresenta um protagonista gay dentro de um contexto de
homofobia familiar, numa trajetória que termina de modo similar ao enredo de um drama
cômico: o final feliz. O oposto de tal enredo, no entanto, é muito mais comum. Como exemplo,
em O segredo de Brokeback Mountain (2001), dirigido por Ang Lee, não há espaço para que a
narrativa de amor dos dois protagonistas termine em harmonização e celebração.
Produzir textos é um exercício criativo que toma forma e se constrói a partir de uma
série de ferramentas de apropriação e retomada de histórias. O texto é adaptação desde a
primeira palavra escolhida pelo escritor, que se imprime (e se adapta) em seu trabalho. Traduzir
e adaptar são, pois, sinônimos desse processo criativo envolvendo sujeito, cultura e texto, num
movimento propulsionado pela demanda de se contar e reinventar histórias. Isso enfatiza o
caráter interpretativo das traduções fílmicas 5, por exemplo, que, através de um recorte do texto
anterior, transformam e ressignificam esse texto, de modo a tensionar e problematizar
semelhanças e diferenças.
A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a
fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre
seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se
processa o movimento de transformação de estrutura e eventos. (PLAZA, 2007, p. 1)
Texto e contexto não podem ser lidos separadamente, do mesmo modo que não pode
ser ignorado o fato de que o leitor (re)contextualiza aquilo que lê. Jacques Derrida apresenta o
4
Minha tradução de: “the presence in the armed forces of persons who demonstrate a propensity or intent to engage
in homosexual acts would create an unacceptable risk to the high standards of morale, good order and discipline,
and unit cohesion which are the essence of military capability.” Service members are not to be asked about, nor
allowed to discuss, their sexual orientation.”
5
Os termos “tradução” e “adaptação” serão usados neste trabalho como sinônimos, referindo-se à tradução
intersemiótica. Tal posicionamento está fundamentado nas discussões sobre Tradução Intersemiótica propostas
por Julio Plaza (2007) e adaptação, por Linda Hutcheon (2013).
conceito de rastro como “unidade de um duplo movimento de protensão e retenção em que um
elemento sempre se relaciona com outro, guardando em si a marca do elemento passado e
deixando-se já moldar pela marca de sua relação com o elemento futuro” (DERRIDA, 1972
apud RODRIGUES 1999, p.199). Além disso, “ser segundo não significa ser secundário ou
inferior; da mesma forma, ser o primeiro não quer dizer ser originário ou autorizado”
(HUTCHEON, 2013, p.13).
Talvez não existam contos mais antigos do que os que falam de amor proibido. Os
amantes desafortunados, que, por motivos diversos, são impedidos de viver o seu romance –
este é um enredo conhecido e perpetuado através de cantos populares, reescrituras e, porque
não dizer, diferentes adaptações midiáticas. O que torna a história do romance proibido tão
popular é o seu caráter arquetípico. A diferença está no modo como ela é contada e recontada.
Porém, através das semelhanças é que se pode reconhecer o arquétipo. A magia que permeia os
primeiros atos em direção à paixão em Tristão e Isolda, presente tanto na poção mágica do
amor quanto na imagem dos cabelos loiros da heroína, também está no canto do rouxinol que
desperta os enamorados Julieta e Romeu, e em tantos outros detalhes mágicos dessas e de outras
histórias.
Embora Romeu e Julieta seja geralmente interpretada como um conto romântico sobre
o jovem amor, frustrado por uma briga entre famílias, releituras recentes me
convenceram de que a peça é, de fato, bem mais moderna e uma narrativa importante
sobre identidade e desejo sexuais confrontando a sociedade e suas instituições; sobre a
liberdade e os direitos individuais contra a autoridade [...]6.
6
Minha tradução de: Though Romeo and Juliet is usually interpreted as a romantic tale of young love thwarted by
a family feud, recent re-readings convinced me that it is actually a much more modern, and relevant story about
sexual identity and desire pitted against society and its institutions; about personal freedom and rights versus
authority […]. Disponível em: http://www.privateromeothemovie.com/about/. Acesso em: 09 ago. 2016.
desestabilizando a ideia de originalidade e pureza do “modelo ideal”, bem como os preceitos
hierárquicos que o separavam dos simulacros. Propõe-se, então, com a análise do filme em
questão, a reflexão de que esses simulacros se constroem a partir da diferença – uma espécie de
devir subversivo que não carrega em seu corpo o desejo de se tornar o mesmo, o ideal. Ao
contrário, quando exposto, o próprio corpo provoca (e mostra em si) rasuras na superfície, na
“superioridade” do modelo.
1 O QUE HÁ NO TEXTO: UMA PROPOSTA DE LEITURA A PARTIR DAS
LINGUAGENS DO FILME
O filme Private Romeo começa de silêncio em silêncio, enquanto a câmera passeia pelos
espaços vazios: uma quadra de esportes, o lado de fora do prédio, uma academia de ginástica.
That marry is the very theme I came to talk of (Pois casamento é justamente o tema dessa
conversa.7) é a frase que emerge de dentro de uma sala, quebrando o silêncio, sem perturbar a
quietude dos espaços. Há, agora em cena, oito rapazes com uniformes de instituições militares.
A câmera apresenta então a quem pertence aquela voz. Tell me, daughter Juliet, how stands
your disposition to be married? (Diga-me aqui, Julieta, como se sente quanto ao casamento?).
Na sala de aula, os oito rapazes fazem uma leitura da peça Romeu e Julieta. No centro da
imagem, de pé, um jovem rapaz segura um livro, lendo as falas da Sra. Capuleto. Outros dois
também estão de pé e participam da leitura naquele instante – um deles, pouco mais alto e
magro, faz a leitura das falas de Julieta; o outro, o menor dos três, de cabelos louros, o corpo
um pouco mais musculoso, lê as falas da Ama, fazendo graça, com uma voz aguda e “feminina”,
numa espécie de caricatura da personagem que interpreta.
O que acabara de ser lido não é a única referência ao texto dramático shakespeariano
naquele momento. Logo em seguida, a câmera percorre os detalhes daquele único ambiente
ocupado e oferece contexto. O sinal para o fim da aula toca, a câmera captura a imagem da
mesa de um dos alunos, para mostrar a capa de uma edição da peça. A leitura continua, porém,
numa nova voz, na posição de tutor. O nome da peça aparece escrito no quadro, junto com as
informações 3 themes, 1000 words; 1 character, 500 words (3 temas, 1000 palavras; 1
personagem; 500 palavras).
7
Todas as traduções das falas retiradas do filme são retiradas da peça, e aqui são inseridas através da tradução de
Barbara Heliodora. Referência da edição: SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução: Barbara
Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
Figura 1: Fotograma do filme Private Romeo. A quadra de esportes vazia.
[...] o fato de representar, de mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um
ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a propósito desse objeto. Assim, a
imagem de um revólver não é apenas o equivalente do termo “revólver”, mas veicula
implicitamente um enunciado do tipo “eis um revólver” ou “isto é um revólver”, que
deixa transparecer a ostentação e a vontade de fazer com que o objeto significa algo
além de sua simples representação” (AUMONT, 2012, p. 3)
8
Private Romeo, Alan Brown, 2011.
Cuja derrota, em trágicos perigos,
Com sua morte enterra a luta de antes.
Ao iniciar deste modo, o filme indica uma opção de fazer intertextual que tem sido
discutida nas pesquisas sobre adaptação. A construção da imagem no processo de tradução
intersemiótica torna-se um ato de criação a partir de uma rede de associações simbólicas com
o texto de partida, ao mesmo tempo em que é responsável pela própria modelagem, pelo seu
nascimento como texto de chegada (a tradução como resultado, produto de um processo de
interpretação e ressignificação do texto anterior) dentro do novo contexto, uma realidade com
traços e relações próprias. A imagem cinematográfica produz e contempla referências, material
visual importante para possíveis elaborações interpretativas futuras. Como declara o autor
Lauro Maia Amorin (2005), não se trata de reconhecer a imagem como fonte da realidade, como
aquilo que torna possível a existência de uma realidade. Tampouco se trata de reduzi-la a uma
cópia daquilo que se propõe a representar, do mesmo modo que a tradução não é simplesmente
falsificação, simulacro, que rasura e desafia a suposta autoridade do texto original.
9
Tradução de: Two housholds both alike in dignitie, (In faire Verona where we lay our Scene) From auncient
grudge, breake to new mutinie, Where ciuill bloud makes ciuill hands vncleane: From forth the fatall loynes of
these two foes, A paire of starre-crost louers, take their life: 0.10Whose misaduentur'd pittious ouerthrowes, Doth
with their death burie their Parents strife. The fearfull passage of their death-markt loue, And the continuance of
their Parents rage: Which but their childrens end nought could remoue: Is now the two houres trafficque of our
Stage. The which if you with patient eares attend, What heare shall misse, our toyle shall striue to mend.
O que caracteriza a relação imagem-realidade (passado-presente, ou ainda, original-
tradução) é o uso da linguagem com o objetivo de propor um exercício de interpretação daquilo
por ela descrito, apresentado, narrado. A tradução/imagem, ao propor atualização, atua sobre a
anterioridade com um olhar crítico, estabelecendo seu próprio diálogo com o
original/passado/realidade. É o exercício da tradução como poética sincrônica (PLAZA, 2007,
p.5), que evidencia o movimento do olhar do artista-tradutor em direção ao passado; a
apropriação e recuperação da história e sua acomodação à historicidade do presente.
10
Amor e sexualidade serão tratados nos capítulos seguintes desta dissertação.
Figura 3: os cadetes, em forma.
Porém, na montagem do filme, a cena que apresenta o tema do amor aparece antes da
sequência do príncipe Éscalo. O cenário é o banheiro/vestiário dos dormitórios do colégio onde
se centraliza o diálogo entre dois personagens. A montagem, aqui, introduz um recurso
tradutório importante para a construção da narrativa fílmica. O inglês renascentista do texto da
peça é novamente utilizado, porém, não como uma leitura dramática. Em forma metonímica 11,
o texto dramático shakespeariano é encenado como vida, na realidade daquele espaço ficcional.
Um dos alunos, cadete Singleton, entra em cena na pele de um Romeu entristecido por não ter
seu amor correspondido. What sadness lenghtens Romeo’s hours? (E o que alonga as horas de
Romeu?), Sanches, também cadete e aluno, pergunta. In sadness, Benvolio, I do love a woman
11
“A palavra metonímia vem do grego e significa ‘além do nome, ou mudança de nome’. Portanto, a metonímia
consiste na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão; em termos práticos, o emprego de
um termo em lugar do cristalizado pelo dicionário; havendo entre ambos uma relação objetiva entre a significação
própria e a figurada, mantendo a contiguidade de sentido. Contiguidade significa proximidade, vizinhança”.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/226198>. Acesso em: 18 jun. 2017.
(na tristeza, Benvólio, eu amo uma mulher). Essa última fala, a resposta do Singleton/Romeu
para o que lhe foi perguntado, constitui uma inserção inédita, proposta pelo roteiro, na voz do
personagem do cânone. Irônica, já que, de fato, esse outro Romeu está apaixonado por um
homem. Assim, texto dramático e fílmico se entrelaçam na contemporaneidade.
Contemporâneo é aquele que mantem o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é justamente aquele que sabe ver essa
obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. [...] o
contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne
e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e
singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de
trevas que provém do seu tempo. (AGAMBEM, 2009, p. 62-64)
A tradução/imagem, produto de seu tempo, ao voltar o olhar para o tempo ou a situação
passada, revela em seu espaço contemporâneo um laço cujo ponto de partida está fixado na
anterioridade. Esse elo duplo (OTTONI, 2005) é responsável pelo transbordamento de um texto
em outro e evidencia também a proximidade situacional de dois textos de momentos temporais
distintos. Se o contemporâneo é aquele capaz de enxergar as impurezas de seu tempo, a
tradução/imagem é a ferramenta da contemporaneidade que as expõe em seu próprio corpo.
Precisamente, o tema do amor proibido, em Private Romeo e em Romeu e Julieta, se revela
contemporâneo através da escritura em différance (DERRIDA, 1995), no jogo entre semelhança
e diferença, cujo caráter de suplementaridade está diretamente associado ao efeito de
pluralidade da linguagem, isto é, às inúmeras possibilidades de atualização e interpretação
textual em diferentes linguagens.
Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o
centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se,
vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma coisa,
o que faz com que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir,
suprir uma falta do lado do significado (DERRIDA, 1995, p.245).
É através de uma escritura em palimpsesto que a peça Romeu e Julieta e o filme Private
Romeo dialogam. Há marcas na imagem em movimento que evidenciam, através de citações –
visuais ou não – o rastro, a presença do texto dramático shakespeariano, perceptível por causa
da proposta de interpretação em linguagem cinematográfica.
A presença de um elemento é sempre uma referência significante e substitutiva inscrita
num sistema de diferenças e o movimento de uma cadeia. O jogo é sempre o jogo de
ausência e de presença, mas se o quisermos pensar radicalmente, é preciso pensa-lo
antes da alternativa da presença e da ausência; é preciso pensar o ser como presença ou
ausência a partir da possibilidade do jogo e não inversamente (DERRIDA, 1995, p. 248)
Essa impressão de uma atmosfera emocional com certos efeitos dramáticos pode ser
observada na cena em que três rapazes descem as escadas do que parece ser o pavilhão onde
ficam os dormitórios da academia militar. Já é noite e não há iluminação forte. Um deles leva
uma lanterna. O terceiro para no topo do lance de escadas e hesita. A expressão em seu rosto e
em sua fala traduz seu sentimento, it is no wit to go (é loucura continuar). Deprimido, não
enxerga o porquê de estarem ali, ou finge não saber o motivo de sua hesitação. Os três são os
cadetes Neff, Sanchez e Singleton – respectivamente, Mercúcio, Benvólio e Romeu.
12
A discussão sobre sexualidade será retomada no capítulo 3 desta dissertação.
[...] a ideologia dominante sustenta os interesses sociopolíticos da classe dominante a
qual se circunscreve na ordem do patriarcado. Por essa ordem se compreende o domínio
dos homens em relação às mulheres para que fosse garantida a herança da propriedade
privada. Nessa lógica, a ideologia dominante, burguesa, passa a valorizar e instituir a
heterossexualidade como norma da vida social e privada. Nessa perspectiva, podemos
dizer que a ideologia dominante, que se reproduz por meio do Estado, passa a funcionar
mediante a heterossexualidade como norma (LEITE, SANTANNA NETO, 2013, p.
456).
13
Termo cunhado pelo psicólogo George Weinberg, em 1972.
Figura 11: Romeu e Julieta a sós [1].
[...] a violação de certas proibições tabus constitui um perigo social que deve ser punido
ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos. Se
substituirmos os desejos inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo
é real. Reside no risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade.
Se a violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de desejar
agir da mesma maneira que o transgressor. (FREUD, 1996, p. 29)
A veemência com a qual a proibição é sancionada precisa ser posta em evidência para
que a leitura proposta pelo filme possa ser evidenciada. O objeto reprimido é precisamente o
desejo sexual que aparece cercado pela série de normas daquela instituição reguladora, na
performance de Singleton/Romeu. O tabu da homossexualidade interdita dentro do espaço
militar traz bastante significado para a própria constituição do impedimento naquela instituição,
no sentido de que “a proibição reflete o desejo e, portanto, ao tentar interditar o desejo – que é
de natureza inconsciente – tem-se, cada vez mais, a aproximação com ele” (PRESA, 2012, p.4).
Nesse sentido, a possibilidade de uma relação entre os dois rapazes é motivo de alerta naquele
contexto, porque a identidade homossexual, banida dentro das paredes da instituição militar, é
fundamentalmente a possibilidade de transgressão.
Sempre procurei abordar a história dos cadetes a partir de suas motivações e atitudes,
para que, desse modo, as ações e as falas pudessem fazer sentido no contexto
contemporâneo da história. Quando Josh [cadete Neff/Sr. Capuleto], com a ajuda de
Gus [cadete Sanches/Sra. Capuleto], tenta forçar Glenn [cadete Mangan] a se casar com
Páris, não é simplesmente o Sr. e a Sra. Capuleto conversando com Julieta. De fato, é o
próprio Josh ameaçando Glenn. Josh e Gus estão tentando, desesperadamente, preservar
o mundo do modo como eles o conhecem, tentando “consertar” Glenn e trazer Sam
[cadete Singleton/Romeu] de volta para o grupo14.
No entanto, a morte, que talvez seja o aspecto de tragicidade mais forte na peça
shakespeariana, e que, no filme, é representada na possibilidade de apagamento desse casal, é
14
Minha tradução de: I always approached the story from the cadets’ characters’ motivations and actions. So that
what they do and say makes sense in the context of the contemporary story. When Josh, with Gus’ reluctant help,
tries to force Glenn to marry Paris, that’s not Capulet and Lady Capulet speaking to Juliet. It’s really Josh
threatening Glenn. It’s Josh and Gus trying desperately to preserve their world as they know it, to “straighten out”
Glenn, and bring Sam back into the fold. Disponível em: < http://filmint.nu/?p=4653>. Acesso em: 31 jan 2017.
refutada de modo simbólico. A última sequência do filme é construída como uma cena no palco
de um teatro. Há, portanto, algo de extrema relevância a ser encenado ali. Quando Julieta toma
conhecimento da punição de Romeu, tranca-se no auditório da escola e se droga. Romeu chega
ao seu encontro e os dois se posicionam sobre uma mesa, razoavelmente grande, no centro do
“palco”.
A morte física do casal é, no filme, substituída por um beijo, que só acontece quando
entram em cena os demais personagens. Num ato de transgressão, Mangan/Julieta percebe a
presença dos pares, quando o facho de luz de suas lanternas busca flagrar o “inadmissível”. O
beijo se transforma em uma declaração de resistência diante da ideologia institucionalizada.
PRÍNCIPE
Uma paz triste esta manhã traz consigo;
O sol, de luto, nem quer levantar.
Alguns terão perdão, outros, castigo;
De tudo isso há muito o que falar.
Mais triste história nunca aconteceu
Que esta, de Julieta e seu Romeu. (ATO 5, CENA 3)15
15
Tradução de: A glooming peace this morning with it brings, The Sun for sorrow will not shew his head: Go
hence to haue more talke of these sad things, Some shall be pardoned, and some punished. For neuer was a Storie
of more wo, 3185Then this of Iuliet and her Romeo.
A câmera mais uma vez apresenta os espaços vazios. No entanto, os tons e os sons do
amanhecer modificam a atmosfera, que até então sufocara a narrativa fílmica. Tristeza e luto
dão espaço para a representação de um tipo de amor que é sublime ao mesmo tempo em que
também é terreno.
O que o espectador do filme vê, portanto, difere daquilo que o espectador da peça (tanto
na contemporaneidade quanto na época de Shakespeare) vê. A tradução intersemiótica é
resultado de um entrelace de narrativas e linguagens, cuja projeção sinaliza para um futuro que,
para o seu público, pode significar um posicionamento político que, por sua vez, se distancia
do encerramento moral da peça shakespeariana.
O filme termina com uma imagem que sugere amanhecer. O silêncio é novamente
interrompido. Num corte rápido, a câmera apresenta a sala de aula, mais uma vez. No centro da
imagem, Mangan/Julieta canta. You made me love you16. O tema do amor é, portanto, um forte
elo de conexão entre a peça e esta proposta de tradução cinematográfica. Em Romeu e Julieta,
Shakespeare introduz tal tema sob diferentes perspectivas em que o erótico, o sublime e o carnal
se entrelaçam. Essa mistura de estilos que há na peça (e que caracteriza o período da produção
dramática elisabetana) servirá como pano de fundo para a discussão das relações (homo)eróticas
e amorosas da narrativa fílmica, no capítulo seguinte.
16
You made me love you é o título de uma canção escrita por James V. Monaco e Joseph McCarthy, lançada em
1913.
2 MESCLAGEM ESTILÍSTICA: AMOR, SEXO, EROTISMO E
HOMOSSOCIABILIDADE
ROMEU
Coragem, homem; o corte é pequeno.
MERCÚCIO
Não, não é tão profundo quanto um poço nem tão largo quanto uma porta de
igreja, mas é o bastante; é o bastante. Procurem-me amanhã e me verão sério
como um túmulo. Estou liquidado, eu garanto, para este mundo. Malditas as
suas casas. [...] um fanfarrão, um safado, um vilão, que luta por regras
aritméticas – por que raios veio meter-se entre nós? Fui ferido por baixo do seu
braço.
ROMEU
Pensei fazer pelo melhor.
MERCÚCIO
Levem-me pr’alguma casa, Benvólio,
Ou desmaio. Danem-se as suas cassas,
Que fizeram de mim ração de verme.
Eu acabei de vez. As suas casas! (SHAKESPEARE, Ato III, Cena, I).17
Em Shakespeare: The Invention of the Human (1998), Harold Bloom aponta para o fato
de que Shakespeare, quando insere a personagem Mercúcio na peça Romeu e Julieta, vê-se
também obrigado a matá-lo a partir do momento em que nota sua força performática, capaz de
interferir no desenrolar da história dos amantes desafortunados, capaz de matar o próprio autor,
“e daí, a própria peça” (1998, p. 93). Mercúcio aceita o duelo contra Teobaldo porque Romeu
17
Tradução de: Ro. Courage man, the hurt cannot be much.
Mer. No tis not so deepe as a well, nor so wide as a Church doore, but tis inough, twill serue: aske for me toorrow,
and you shall finde me a graue man. I am peppered I warrant, for this world, a plague a both your houses, sounds
a dog, a rat, a mouse, a cat, to scratch a man to death: a braggart, a rogue, a villaine, that fights by the booke of
arithmatick, why the deule came you betweene vs? I was hurt vnder your arme.
Ro. I thought all for the best.
Mer. Helpe me into some house Benuolio, or I shall faint, a plague a both your houses. They haue made wormes
meate of me, I haue it, and soundly, to your houses.
casara-se com Julieta e, naquele instante, sentia-se parte dos Capuleto, tanto quanto Teobaldo.
A luta em questão é sintomática de uma tensão social, mas também, de uma atração pela
destruição, do sentimento latente de melancolia que há na fala e na figura de Mercúcio desde
seu primeiro momento em cena. Sua morte é também sacrifício, como a das personagens
principais, porque é resultado trágico do cenário de ódio entre Capuletos e Montéquios.
MERCÚCIO
Nada disso, Romeu; tem de dançar.
ROMEU
Creia-me, eu não. Mas você tem sapatos
De alma leve, mas a minha alma é de chumbo (Ato I, Cena IV).18
Romeu é o próprio ator da tradição referida por Frye e Rougemont. E ao vê-lo sentir-se
escravo de Cupido, Mercúcio reage e em sua fala o repúdio ao sentimento de Romeu aparece
também como um modo de zombar dessa tradição. Há uma ironia lançada ao amor-religioso
(da tradição cortês) que, mais adiante, irá empalidecer e sucumbir ao sentimento (carnal)
despertado por Julieta.
MERCÚCIO
Mas amante pede asas a Cupido
Pra voar muito acima disso tudo.
ROMEU
A sua flecha foi tão fundo em mim
Que não dá pr’eu voar com suas penas.
Não alcança mais alto que um suspiro,
‘Stou me afogando ao peso desse amor.
18
Tradução de: Rom. Giue me a torch, I am not for this ambling, Being but heauie I will beare the light.
Mercu. Nay gētle Romeo,we must haue you dance.
Ro. Not I beleeue me, you haue dancing shooes With nimble soles, I haue a soule of Leade So stakes me to the
ground I cannot moue.
MERCÚCIO
Quando vai fundo, o amor é sempre um peso –
E sempre oprime algo de delicado.
ROMEU
O amor é delicado? É antes bruto,
Rude demais, e espeta como um espinho.
MERCÚCIO
Se é rude com você, faça-lhe o mesmo;
Se o furou, fure alguém que ele se aquieta [...] (Ato I, Cena IV). 19
Bloom (1998) define Mercúcio como uma promessa de comédia que definitivamente
não se cumpre, na medida em que a fala da personagem e todo seu discurso dentro da peça ali
está numa forma de contestação do amor sublime através de uma visão vulgar e cínica do amor.
Além disso, sua rápida evolução trágica dentro da peça revela um conflito interno da
personagem, que não apenas refuta um ideal de amor, no qual obviamente não acredita.
Mercúcio não crê na promessa de final feliz. O monólogo sobre a Rainha Mab, no Ato I, Cena,
IV, afasta-se do tom do restante da peça e apresenta-se como um momento de transgressão da
personagem no enredo, com a solene apresentação da soberana das fadas, que “chega em
tamanho não maior que a pedra de ágata [...], a passear pelos narizes dos homens enquanto
dormem” e provoca nestes homens sonhos eróticos. Mas ele também nos prepara para a Mab
que “trança a crina dos cavalos de noite [...], a bruxa que, quando as donzelas dormem de costas,
as oprime e lhes ensina a aguentar pela primeira vez o peso masculino”. A presença de
Mercúcio, nesse sentido, é a antecipação de uma má notícia. Sua trajetória e performance
servem de exemplo para o que Erich Auerbach, em Mímesis (2004), apresenta como a
mesclagem de estilos alto e baixo, trágico e cômico, no teatro renascentista, a partir do drama
shakespeariano.
19
Tradução de: Mer. You are a Louer, borrow Cupids wings, And soare with them aboue a common bound.
Rom. I am too sore enpearced with his shaft, To soare with his light feathers, and to bound: I cannot bound a pitch
aboue dull woe, Vnder loues heauy burthen doe I sinke. Is loue a tender thing? it is too rough, Too rude, too
boysterous, and it pricks like thorne.
Mer. If loue be rough with you, be rough with loue, Pricke loue for pricking, and you beat loue downe.
As nomenclaturas “alto” e baixo” para definir as categorias dramáticas de trágico e
cômico refletem um tipo de pensamento tradicional sobre a função do gênero dramático.
Tragédia e Comédia são, a partir do pensamento aristotélico, modos de representação mimética
do homem nobre e do homem humilde, respectivamente. Tais separações estavam ligadas, por
exemplo, no caso da tragédia, a sua função catártica. Os sentimentos de terror e piedade somente
seriam possíveis se a ação representada fosse aquela em que um indivíduo nobre cometesse
uma falha. No entanto, esse projeto de separação de estilos foi perdendo sua força. Durante o
renascimento, com o movimento de retorno aos valores do classicismo, esse modo de fazer
dramático da antiguidade possui um novo formato.
O diálogo entre Adão e Eva, este primeiro diálogo histórico-universal entre homem e
mulher, converte-se num acontecimento da realidade mais simples e [cotidiana];
converte-se, por mais sublime que seja, num acontecimento de estilo simples e baixo
(AUERBACH, 2004, p. 132).
Com o movimento rumo à secularização, surgiu a necessidade de temas que não fossem
de cunho estritamente religioso, consequência direta de uma característica mais próxima ao
introspectivo das Peças de Moralidade. Não somente as peças com tons mais herméticos eram
populares, como também os Interlúdios, produções cômicas que surgiram na alvorada do
Renascentismo, responsáveis pelo desaparecimento do anonimato dos autores, prática comum
da tradição medieval. Tais alterações firmam o processo de secularização do teatro, que passo
a passo possibilitou que os dramas encenados nos pátios das igrejas, ao longo do Medievo, se
deslocassem para as praças das cidades, propiciando a popularização do drama, sobretudo na
Inglaterra durante o século XVI.
A Poética aristoletiana também indica o tema da força do destino que rege a vida terrena
e que é fatal. O drama trágico é o drama do desfazer, do despedaçamento da personagem trágica
diante de seu destino inevitável. Nesse sentido, a comédia é o oposto da tragédia, é a
representação do cotidiano do homem comum, de personagens inferiores em relação à
personagem trágica. O enredo cômico segue em direção à harmonização e à ordenação.
Auerbach afirma, no capítulo O príncipe cansado (2004), que dentro da produção teatral
shakespeariana a mistura dos gêneros trágico e cômico se faz presente pelo menos na maioria
de suas tragédias.
20
Minha tradução de: It is easier to see the vividness of Mercutio and the Nurse than it is to absorb and sustain the
erotic greatness of Juliet and the heroic effort of Romeo to approximate her sublime state of being in love.
Shakespeare […] knows that he must lead his audience beyond Mercutio’s obscene ironies if they are to be worthy
of apprehending Juliet, for her sublimity is the play and guarantees the tragedy of this tragedy. Mercutio, the scene
stealer of the play, had to be killed off if it was to remain Juliet’s and Romeo’s play; keep Mercutio in Acts IV and
V, and the contention of love and death would have to cease. We overinvest in Mercutio because he insures us
against our own erotic eagerness for doom; he is in the play to some considerable purpose. So, in an even darker
way, is the Nurse, who helps guarantee the final disaster.
Sexo e amor parecem estar intrinsecamente conectados na linguagem do drama
shakespeariano. Wells (2010) propõe uma leitura da peça a partir da análise da presença de
conotações sexuais na construção do texto dramático, pensando também nas consequências
para a encenação desse texto, tendo em vista suas possibilidades interpretativas.
Shakespeare lança suas observações preliminares sobre a forma de soneto, uma forma
poética cujas convenções permeiam a peça. Seu prólogo é inteiramente decoroso, mas
é interessante notar que ele fala da disputa que separa as casas Montéquio e Capuleto
pela imagem do ato sexual que concebe os amantes. “From forth the fatal loins of these
two foes | a pair of star-crossed lovers take their life” (dos fatais ventres desses dois
inimigos | nasce, com má estrela, um par de amantes). Desde o início os amantes estão
ligados ao ato sexual21 (WELLS, 2010, p.150, [grifos do autor]).
Desde o início, a peça “começa pelo sexo sem amor, e tem continuidade no amor sem o
sexo” (p.151). Este talvez seja o aspecto que mais distancia a o texto de Shakespeare do poema
de Arthur Brooke que lhe serviu de base. A linguagem do poema é extremamente pura e casta;
a motivação dos amantes é propulsionada exclusivamente pelo amor. As inserções sobre um
tipo de amor que diverge do amor cortês e todo o discurso erótico e obsceno que aparece através
das vozes de Mercúcio e da Ama revelam uma proposta artística por parte do dramaturgo que
vem a ser fundamental para o jogo amoroso entre o casal protagonista. Northrop Frye (1999)
afirma que a convenção do amor, na época de Shakespeare, adquirira um caráter mais popular,
ligado ao casamento, porém com aspectos de cunho erótico e sexual trabalhados mais
extensivamente nas artes. Sobre Romeu e Julieta, o autor comenta:
21
Minha tradução de: Shakespeare casts his prefatory remarks in the form of a sonnet, a poetic form whose
conventions pervade the play. His prologue is entirely decorous, but it is interesting that he speaks of the feud that
divides the houses Montague and Capulet in terms of the lovers’ sexual engendering: ‘from forth the fatal loins of
these two foes | a pair of star-crossed lovers take their life’. From the start the lovers are associated with the sexual
act.
Em Private Romeo, através da imagem, existe uma construção erótica que transborda o
texto da fala. O tema se transforma em homoerótico com a performance do casal protagonista
traduzida no casal homossexual e do despertar de seu desejo sexual. Sobre homoerotismo, José
Carlos Barcellos afirma:
[Wolfgang] Popp parte de estudos anteriores ao seu e faz uma rápida análise de como
procuraram circunscrever os tópoi “amizade masculina”, “eros entre homens” ou
“sexualidade entre homens”. Das obras que resenha, têm particular interesse as de Hans
Dietrich Hellbach e Volker Ott, pela maneira como buscam delimitar o homoerotismo
como tema. Hellbach distingue “amizade masculina”, “amor de amigos” e
“homossexualidade”. O “amor de amigos”, em que o desejo é sublimado
espiritualmente, seria uma configuração intermediária entre a “mera” amizade e a
homossexualidade propriamente dita e constitui o objeto sobre o qual se centra o estudo
de Hellbach, publicado em 1931. Volker Ott, por sua vez, propõe o conceito de
“homotropia” para descrever a atração entre parceiros do mesmo sexo, seja ela de
natureza sexual (homossexualidade), erótica (homoerotismo) ou pessoal (homofilia)
(BARCELLOS, 2006, p.18).
22
Minha tradução de: Much of the most useful recent writing about patriarchal structures suggest that “obligatory
heterosexuality” is built into male-dominated kinship systems, or that homophobia is a necessary consequence of
such patriarchal institutions as heterosexual marriage. […] from the vantage point of view of our society, at any
rate, it has apparently been impossible to imagine a form of patriarchy that was not homophobic.
Figura 21: Romeu e Julieta se encontram [02]
A interação das mãos nesse momento serve como uma introdução ao tema do diálogo
em soneto entre os dois. Casualmente, o movimento das mãos, junto com a fala, se desenvolve
proporcionalmente à aproximação dos corpos e os lábios se tornam evidentes, tanto na imagem,
quanto na fala.
ROMEU
Se a minha mão profana esse sacrário,
Pagarei docemente o meu pecado:
Meu lábio, peregrino temerário,
O expiará com um beijo delicado.
JULIETA
Bom peregrino, a mão que acusas tanto
Revela-me um respeito delicado;
Juntas, a mão do fiel e a mão do santo
Palma com palma se terão beijado.
ROMEU
Os santos não têm lábios, mãos, sentidos.
JULIETA
Ai, têm lábios apenas para a reza.
ROMEU
Fiquem os lábios, como as mãos, unidos;
Rezem também, que a fé não os despreza.
JULIETA
Imóveis, eles ouvem os que choram.
ROMEU
Santa, que eu colha o que os meus ais imploram. (SHAKESPEARE, Ato I, cena
V)23
23
Tradução de: Rom. If I prophane with my vnworthiest hand, This holy shrine, the gentle sin is this, My lips to
blushing Pilgrims did ready stand, To smooth that rough touch, with a tender kisse.
Iul. Good Pilgrime, You do wrong your hand too much. Which mannerly deuotion shewes in this, For Saints haue
hands, that Pilgrims hands do tuch, And palme to palme, is holy Palmers kisse.
Rom. Haue not Saints lips, and holy Palmers too?
Como exemplo daquilo que Sedgwick apresenta como pânico homossexual, a
performance de Teobaldo, nesse momento da narrativa fílmica, sugere que a cena de descoberta
e exploração do desejo protagonizada por Romeu e Julieta representa algo de ameaçador e
desperta em Teobaldo motivações homofóbicas de defesa e preservação da sua
heterossexualidade construída.
Romeu e Julieta inicia-se com o prólogo proferido por um coro trágico, anunciando a
trama. O prólogo, que na peça de Shakespeare aparece em dois momentos, antes do primeiro e
do segundo atos, é componente obrigatório na estrutura da tragédia clássica, como entendida
por Aristóteles. É o momento em que o coro apresenta informações sobre o que irá acontecer
dali em diante, a fim de garantir a temporalidade estrutural do drama trágico, concentrado em
um dia. No texto em exame, o primeiro prólogo, curiosamente, apresenta as informações
referentes aos princípios de espaço e ação, juntamente com o cenário de ódio em que se
encontram as duas famílias. Montéquios e Capuletos são iguais em dignidade, e tal informação,
acompanhada do silêncio em relação ao motivo inicial da inimizade entre eles, não permite que
o espectador desenvolva qualquer juízo de valor sobre a culpabilidade das duas casas, ou que o
julgamento pese mais para uma do que sobre a outra. É o tom grave desse prólogo que nos
informa de que a história de Julieta e Romeu é trágica, e que, portanto, não haverá final feliz
no molde dos desfechos cômicos. Ao contrário de ordenação, haverá esfacelamento.
A cena se torna farsesca quando o velho Montéquio e o velho Capuleto correm para
suas espadas e saem apressadamente pela rua para provar a si mesmo que são tão bons
como sempre foram, enquanto suas mulheres, percebendo tudo, seguram-nos tentando
mantê-los longe do problema. (FRYE, 1999, p.30)
A peça muda de tom após a morte de Mercúcio. Portanto, a Morte aparece como
elemento trágico da trama que, até então, seguia o curso de uma comédia shakespeariana,
porque, no momento em que morre, Mercúcio ratifica através da sua fala o destino, o infortúnio:
“que a praga caia sobre vossas casas” (Ato III, cena I). Destino inevitável, que opera sobre os
amantes desde que nasceram, com a “má estrela”, como nos é informado no prólogo – as
peripécias dos amantes no intuito de manter viver o sentimento (o casamento às escondidas, por
exemplo) podem ser interpretadas como tentativas de fuga do infortúnio, do mesmo modo que
o cumprimento do destino de Hamlet acontece, apesar de sua capacidade de questionar os fatos
e a si mesmo. No instante em que Mercúcio é atingido, os pensamentos de Romeu afastam-se
da jovem Capuleto e se revestem do desejo de vingança. Instala-se aqui também a desmedida
trágica: os protagonistas, que aparentemente triunfariam sobre o ódio, perdem aqui um de seus
enamorados, pois Romeu, no instante em que tira a vida de Teobaldo, torna-se efetivamente um
herói trágico condenado à morte, simbólica e física.
Ao final da peça, o evento responsável pela reviravolta da trama – a carta que não chega
a tempo – que, numa comédia de erros, seria motivo de mais situações cômicas, resulta no
suicídio dos jovens namorados. Porém, é possível notar, além deste traço trágico, um outro
aspecto que Northrop Frye apresenta, em Anatomia da Crítica (2013), como o resultado das
ações da comédia. Segundo o autor, há durante o desenvolvimento do enredo cômico a mudança
do tipo de sociedade.
CAPULETO
Irmão Montéquio, dai-me a vossa mão
É este o dote que traz minha filha;
Nada mais posso dar.
MONTÉQUIO
Pois eu posso.
Farei por ela estátua de ouro puro.
Enquanto esta cidade for Verona
Não haverá imagem com o valor
Da de Julieta, tão fiel no amor.
CAPULETO
Romeu, em ouro, estará a seu lado,
Que nosso ódio também sacrificou.
PRÍNCIPE
Uma paz triste esta manhã traz consigo;
O sol, de luto, nem quer levantar.
Alguns terão perdão, outros castigos;
De tudo isso há muito o que falar.
Mais trise história nunca aconteceu
Que esta, de Julieta, e seu Romeu (Ato V, cena III) 24
24
Cap. O Brother Mountague, giue me thy hand, This is my Daughters ioynture, for no more Can I demand.
Moun. But I can giue thee more: For I will raise her Statue in pure Gold,That whiles Verona by that name is
knowne, There shall no figure at that Rate be set, As that of True and Faithfull Iuliet.
Cap. As rich shall Romeo by his Lady ly, Poore sacrifices of our enmity.
Prin. A glooming peace this morning with it brings, The Sunne for sorrow will not shew his head; Go hence, to
haue more talke of these sad things, Some shall be pardon'd, and some punished. For neuer was a Storie of more
Wo, Then this of Iuliet, and her Romeo.
3 INTERSECÇÕES DE IDENTIDADES SEXUAIS EM PRIVATE ROMEO
“Se o mundo todo é um palco, identidade não é nada mais do que uma fantasia”.
Joshua Gamson inicia o seu ensaio Sweating in the Spotlight com a afirmativa de que o
século XXI traz consigo um grande número de produções midiáticas, principalmente na cultura
popular norte-americana, em que personagens homossexuais estão presentes, em grande parte,
fora de representações pejorativas. Neste século, há um movimento de popularização de
narrativas sobre gays e lésbicas que, de certa forma, provoca uma mudança na opinião pública
sobre esses sujeitos.
25
Minha tradução de: The study of the relationship of lesbians and gay men to popular culture and media roughly
tracks and responds to this dramatic move into cultural spotlight, a move that has not only been actively pursued
by lesbian and gay social movements but has also exacerbated long-standing divisions within them. Lesbian and
gay media and culture studies, like lesbian and gays studies in general, are partially shaped by their close
relationship to lesbian and gay movement, and they have thus reproduced key, interesting tensions in the
movement.
minoritários que não se sentiam contemplados ou pertencentes a uma “unidade gay”, por conta
de questões vinculadas a recortes políticos, étnicos e de classe, cresce acentuadamente. As
reivindicações dessa parcela baseavam-se na insistente exclusão de experiências, valores e
interesses particulares que destoavam do modelo que veio a ser adotado na representação de
toda a comunidade. Por exemplo, homens e mulheres gays seguiram o seu próprio caminho na
construção de uma identidade própria e, como consequência, passaram a sofrer com a
representação distorcida de sua identidade tanto pela cultura do gay branco mainstream quanto
pela cultura heterossexual afro-americana. De fato, desde os anos 1980 até as primeiras décadas
do século XXI, a busca de grupos não-heterossexuais por uma construção/representação
indentitária tem sido cada vez mais dividida. Esse talvez seja um dos reflexos mais atenuantes
das questões da ordem dos movimentos sociais em pauta que ainda gera pontos de
problematização dos produtos midiáticos sobre esses grupos.
A grande mídia age por vias duplas. Por um lado, ela serve tanto como um meio de
comunicação capaz de representar as diversas identidades sociais (e sexuais); por outro,
funciona também como aparelho de construção de tais identidades. Tanto a capacidade de
representação e construção estão sob as vestimentas da perpetuação de estereótipos quanto da
desconstrução de imagens tradicionais sobre o corpo e o sexo dos indivíduos.
Como parte dessa produção midiática do século XXI, o filme Private Romeo também
traz, na proposta da sua história, essa relação imbricada entre as reivindicações, a popularidade
e os perigos de mimetização, num recorte muito particular de representação do gay branco. A
narrativa fílmica trabalha com o tema da descoberta sexual na encenação de uma história em
que a identidade e o desejo sexual das personagens referenciam aspectos do contexto sócio-
político em que a produção nasce.
Há, através do forte silêncio – presente como opção de som, enquanto a câmera
apresenta o cenário – nos primeiros minutos em Private Romeo, uma construção que faz
referência à discussão em torno daquilo que é permitido como exercício da sexualidade
individual. Há também, com a mesma intensidade, a proposta de apresentar e discutir a
descoberta do desejo sexual na tradução de uma narrativa heterossexual hegemônica em uma
nova, não-heterossexual. Como escolha que resgata um aspecto do teatro renascentista, as
personagens femininas são encenadas por atores homens. O recorte do filme – o contexto
contemporâneo e as reverberações da história narrada (os dois soldados que se apaixonam) – se
expande no momento em que, para o espectador, cenário e personagens significam não somente
Julieta, Romeu e Verona. Dessa forma, o problema da sexualidade que não se conforma diante
das normas reguladoras heterossexistas do mundo ocidental é logo posto em evidência.
O século XVIII, continua o filósofo, foi o período em que o interesse sobre o sexo das
crianças e dos adolescentes nasceu e cresceu, mais precisamente, em relação ao controle da
sexualidade destes dois grupos a partir de estratégias discursivas em diferentes instâncias
sociais. O que se desenvolve nesse período é um modo de falar sobre o sexo na comunicação
entre os indivíduos que estava intrinsecamente entrecruzado com o jogo de relações de poder.
A partir desse período, os discursos sobre o sexo entram em atividade conjunta com outras
instâncias sociais, como a justiça penal, a medicina e a psiquiatria – esta com a linha de estudo
voltada à busca das origens das patologias mentais – sendo atravessado pelo discurso da
perversão sexual.
[...] não mais o homem, por exemplo, mas aquele que “vale” mais, não mais aquele que
representa o sexo varonil, mas aquele que representa da melhor forma possível, ou
maximamente, o masculino. O tema grego é igualmente uma matriz, um cruzamento de
polos tornados outros tantos polos fundadores: a força unida à coragem, a afirmação
pessoal unida ao domínio sexual, um modelo de reconhecimento, enfim, unido a um
modo de formação. O que permite ainda hierarquizar: estigmatizar os “covardes”, por
exemplo, os indecisos, os “medrosos”, insistir sempre na necessidade de fortificar e
educar” (VIGARELLO, 2013, p.11).
O modelo em questão muda para se adaptar às necessidades de cada tempo. Era parte
do ideal de virilidade do soldado grego lutar em defesa de sua cidade e também, com a mesma
bravura, de um ponto de vista heroico, lutar em defesa de seu amante. A iniciação sexual, nesse
período, constituía um tipo de relação de conhecimento exclusivamente entre homens. O
cristianismo, no entanto, na Idade Média, “condena a homossexualidade e valoriza a castidade”
(VIGARELLO, p.13). A complexidade social advinda da modernidade introduz novas
instâncias de virilidade interpeladas tanto por valores de exemplaridade cristã quanto por
técnicas de exercício militar, mais afastadas daquelas da antiguidade. Os diferentes tipos de
virilidade e seus processos de autorratificação na história se estabelecem de modo simétrico
àquele de seleção da heteronormatividade. O ideal de “macho viril” reivindica para si
determinadas características, construindo um tipo de masculinidade, ao mesmo tempo em que
cria em oposição, e sem diálogo, modelos de feminilidade, que o mundo ocidental aprendeu a
associar ao homem homossexual, destituído de virilidade.
O espaço militar em Private Romeo é o cenário que serve de exemplo de uma sociedade
em que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e
perigos” (FOUCAULT, p.9). A ideia de controle permeia tanto a força do nome da instituição
quanto os limites físicos daquele espaço. As personagens estão sob constante vigilância
panóptica, numa atmosfera construída para gerar a impressão de vigilância.
[...] quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista
das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do
estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria
que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo.
Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver
razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que
está nessa condição. (BETHAM, Jeremy, 2008, p. 20)
Judith Butler (2016), ao fazer uma leitura de Foucault, aponta para o problema da
construção de um sujeito feminino regulamentado como consequência do processo de
normatização do masculino/da heterossexualidade: uma imagem de feminilidade que
aparentemente universaliza o sujeito dentro de uma concepção de “gênero” que não se propõe
a observá-lo em suas especificidades sociais, políticas e culturais. Uma definição una de sujeito
é contestada no instante em que se abre espaço para a problematização de gênero como um
modelo de interpretação do sexo fortemente influenciado por uma proposta de representação
hegemônica.
O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado
num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.
Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também
é meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é
produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura. [...] colocar a dualidade do sexo num
domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a
estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. (BUTLER, 2016, p. 27-28)
Há, até certo ponto, uma reprodução das imagens binárias do masculino e do feminino
na construção do casal protagonista, processo que envolve principalmente a performance dos
corpos dos atores na encenação de seus personagens, desde as primeiras cenas do filme que se
dedicam a apresentar um embrião de dinâmica entre o casal. As imagens de Julieta apresentam
a personagem através de um jogo intertextual com a peça. Sobre a reminiscência da fala de
Romeu – ali é o leste e julieta é o sol – e na construção estética da solene simpatia fryeiana – a
natureza em harmonia com o sentimento e o estado psicológico da personagem – a cena mostra
Julieta como o centro de uma pintura sublime. Na tessitura da imagem estão presentes rastros
de uma tradição que Harold Bloom e Northrop Frye identificam como a religião do amor –
Julieta, na peça e no filme, revela em si um traço, uma linha que a conecta com a figura da dama
cuja função na tradição do amor cortês é ser enaltecida, idolatrada, inatingível, pois é parte de
suas características ser pura; aquele que a deseja em sua lamentação ser correspondido e
atingido por aquilo que emana de sua amada.
26
Minha tradução de: Is there a way to link the question of the materiality of the body to the performativity of
gender? And how does the category of “sex” figure within such a relationship?
identidade é oprimida a partir de um sistema de restrições contraditórias. Em outras palavras, o
que está em cena são a forma e as instâncias em que Romeu pode decidir “sair do armário” e
as consequências da decisão.
A metáfora do armário – estar dentro ou sair dele – é utilizada como símbolo de opressão
velada sobre o pretexto de uma suposta preservação de privacidade. Estamos diante de um
mecanismo de higienização extremamente enraizado nos modos de regulamentação do sexo em
funcionamento desde o final do século XIX. Ao tornar sua identidade sexual pública, o suposto
atentado cometido pelo sujeito não-heterossexual contra a sociedade significa a abertura de um
espaço, um precedente para a visibilidade de uma sexualidade há muito discutida, analisada e,
aos poucos, cristalizada como marginal. Sobre o manto da discrição, o armário funciona como
mais uma ferramenta para silenciar um grupo. O discurso da privacidade do armário apresenta-
se como uma possível rota de fuga “pacífica”, sem o incômodo da rasura nos valores e
privilégios heterossexuais. De modo que uma pressuposição dos termos homossexual e
heterossexual, para a autora, se torna uma questão a serviço de discursos homofóbicos que
contribuem efetivamente para a categorização do homossexual como antônimo de discrição.
Embora pareça paradoxal, foi seguramente por causa da insistência paranoica dos não-
homossexuais do século vinte, especialmente dos homens, em levantar obstáculos à
diferenciação entre “homossexual” (minoria) e “heterossexual” (maioria), que a
confiança do homossexual enquanto um grupo de pessoas discreto e não-problemático
tem sido minada. Até a sabedoria popular e homofóbica dos anos cinquenta [...] deu
conta que o homem mais emprenhado no reforço de tais obstáculos não deixou de ser
inconstante nos seus propósitos. (SEDGWICK, 1990, p.27)
27
Minha tradução de: a member of the Armed Forces could be discharged from the military if (1) the member
engaged in, attempted to engage in, or solicited another to engage in a homosexual act or acts; (2) the member
stated that he or she was a “homosexual or bisexual”; or (3) the member married or attempted to marry someone
of the same sex.
O espectro do armário gay, representado no cenário do filme, se expande, nascendo a
partir da trajetória de desenvolvimento psicológico de Romeu e transbordando nos instantes de
tensão, como na cena do duelo entre Teobaldo e Mercúcio. Retorna também na trajetória da
personagem Julieta, quando, no filme, o Sr. Capuleto sobrepõe sua força e voz sobre a filha,
forçando-a a se casar com o conde Páris. Tal imposição, no contexto do filme, traduz a
reverberação da vigilância hierárquica sobre o indivíduo homossexual na voz de seus pares. A
experiência aberta da identidade sexual perturba a ordem heteronormativa daquele espaço e
suas concepções e idealizações de masculinidade.
Qual seria, portanto, a relação entre sexo e corpo? Uma ideia de materialidade do corpo
é discutida a partir do momento em que se abre espaço para também questionar a simetria corpo-
sexo. Como afirma Butler, sexo não é simplesmente uma característica imutável do corpo; é
uma categoria regulatória em funcionamento que possui força de ação capaz de controlar
corpos. Entre essa relação há ainda a problemática em torno da performatividade do gênero.
Uma definição de sexo e gênero com base numa ideia de construtivismo não coloca o sexo
como um atributo visível e definido no espaço pré-discursivo; ao contrário, ratifica uma
assimetria entre ambos. Tal encadeamento responde à uma premissa de construção de
identidade por meios do discurso de si e suas reverberações nos espaços sociais.
28
Minha tradução de: there is no writing without the body, but no body fully appears along with the writing that
it produces.
Em Private Romeo há o projeto de discussão em torno dos corpos, de um processo de
construção identitária, através do recorte de um grupo específico de indivíduos não-
heterossexuais. Esta é uma leitura possível, ainda que a mecanismo midiático escolhido para a
apresentação da narrativa do casal protagonista possibilite espaço para se pensar em uma
possível universalização da experiência homossexual. A construção de um casal homossexual
perpassa tanto por um desencadeamento de auto-definição quanto pelo jogo de regulação e
modelagem, que na imagem em movimento, é representado pelo espaço militar. É possível
notar que há uma preocupação, um ponto de convergência entre o que representa o recorte, de
um lado, e, do outro, o que representa o grande grupo que, em alguma instância, diverge da
norma. A narrativa fílmica encena as ações de regulamentação e classificação de identidades
sexuais a partir da instituição militar, que configura exemplo de uma entidade detentora de tal
discurso regulador dos corpos.
Há, nessa composição autoral, características de uma mistura de traços e estilos, notável
no corpo do texto dramático e que também se atualiza no corpo do filme. O tema do amor, na
peça, é trabalhado sobre as perspectivas do amor cortês e do amor carnal, representados em
momentos diferentes nas performances de Romeu, Rosalinda, Ama, Mercúcio e Julieta.
Erotismo e jogo amoroso estão também misturados, um mecanismo sintomático do momento
das produções dramáticas elisabetanas. A peça, aos poucos, se distancia de um certo tipo de
reprodução ritualística do amor cortês e segue em direção à existência carnal do amor,
demonstrada na dinâmica erótica dos corpos dos amantes. Uma performance que, para a
narrativa fílmica, é consequência de uma atmosfera e de uma convenção alicerçadas na
dinâmica de homossociabilidade. No filme, a interação dos corpos está conectada com a
potência do desejo homossocial masculino, flagrado pela imagem em movimento como parte
da escritura do contexto contemporâneo. Esse desejo homossocial é sintoma de uma tradição
heterossexista que permeia a narrativa fílmica e está fortemente traduzida naquele espaço
ficcional.
Dentro dessa mesma linha de pensamento é que a proposta de leitura a partir de uma
análise estética da linguagem cinematográfica se transforma em leitura de problematização
ética em torno das reverberações da sexualidade e identidades sexuais representadas pelo filme.
A sexualidade como construto sócio-político-cultural é evidenciada, principalmente, na
performance do casal protagonista. Trata-se de uma proposta narrativa com o objetivo de
denunciar um modelo estrangulador de expressões identitárias divergentes, apresenta-lo como
o resultado de um longo período dedicado à sua formação como referente hegemônico. Ao
mesmo tempo, denunciar o modelo heteronormativo é também questionar discursos tradicionais
sobre sexo, gênero e identidades sexuais dos corpos em suas idiossincrasias.
Embora a escolha de usar uma narrativa canônica, como Romeu e Julieta, – e canônica,
nesse contexto, significa também o topo da hierarquia branca, ocidental, heterossexual e cristã
– denote perigo de higienização das diferenças entre a heterossexualidade e as diversas formas
de não-heterossexualidade, é preciso que uma leitura de Private Romeo como texto político
esteja atenta ao recorte que, por definição, não representa o todo. Este construto midiático existe
através de uma série de conexões tanto com o passado quanto com o presente histórico, isto é,
apesar de tradução, existe como produto do contexto em que acontece.
Os vitorianos tinham o hábito de adaptar quase tudo – e para quase todas as direções
possíveis; as histórias de poemas, romances, peças de teatro, óperas, quadros, músicas,
danças e tableaux vivants eram constantemente adaptadas de uma mídia para outra,
depois readaptadas novamente. Nós, pós-modernos, claramente herdamos esse mesmo
hábito, mas temos ainda outros novos materiais à nossa disposição – não apenas o
cinema, a televisão, o rádio e as várias mídias eletrônicas, é claro, mas também os
parques temátios, as representações históricas e os experimentos de realidade virtual.
(HUTCHEON, 2013, p.11).
Quando um tipo específico de adaptação de história, como no caso das traduções
intersemióticas, se apresenta abertamente como releitura de apropriação da anterioridade, o que
se obtém como resposta a esse comportamento de honestidade criativa possui uma carga
negativa, que segue em direção oposta à prática herdada de adaptar. Seguindo tal linha de
pensamento, um filme como Private Romeo, produto extremamente autoral, dirigido, produzido
e roteirizado por Alan Brown, será sempre visto como inferior à peça Romeu e Julieta de
William Shakespeare. Permitir que esse tipo de discurso se consolide, significa abrir mão de
idiossincrasias que tornam tais produções (tanto filme quanto peça, sem intenção
hierarquizante) singulares. A proposta de leitura construída por Alan Brown para o seu filme-
tradução diz bastante sobre o direcionamento crítico do seu olhar em direção ao passado, neste
caso, à peça de Shakespeare. Ao mesmo tempo, há a crítica ao presente de sua própria obra, na
medida em que ele inscreve a si mesmo e o seu texto em uma realidade, em um determinado
momento histórico, sugerindo uma análise crítica daquilo que percebe em seu contexto. Esse é
o mecanismo do processo de criação da tradução intersemiótica, que “ao mesmo tempo que
monardicamente presentifica o passado, pode inscrever em si mesma seu próprio tempo
histórico, a sua historicidade”. (PLAZA, 2003, p.9)