Você está na página 1de 81

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

HILDEBERTO DA SILVA REIS JUNIOR

PRIVATE ROMEO: AMOR, HOMOEROTISMO E SEXUALIDADE


NUMA TRADUÇÃO DE ROMEU E JULIETA

Salvador
2017
HILDEBERTO DA SILVA REIS JUNIOR

PRIVATE ROMEO: AMOR, HOMOEROTISMO E SEXUALIDADE


NUMA TRADUÇÃO DE ROMEU E JULIETA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras, do Programa


de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, da Universidade Federal da
Bahia – UFBA. Como requisito para a obtenção do grau de Mestre em
Literatura e Cultura.

Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Ramos

Salvador
2017
AGRADECIMENTOS

O período e o percurso, num primeiro momento, apresentaram-se como uma promessa


de melhora e alívio. No entanto, o caminho é mais surpreendente, assustador, sufocante e
redentor... muito mais do que imaginei. O resultado final desta trajetória é fruto disso tudo, que
inclui o trabalho que fiz e as diversas situações de apoio que tive, às quais sou profundamente
grato.
À minha família; meus pais, Ivonete e Hildeberto; minhas irmãs, Mírian Sumica e Lílian
Suelen; meus sobrinhos, Antônio Francisco, João Pedro e Frederico Augusto; e minha sobrinha,
Maria Elis, agradeço pelo apoio de amor, respeito e compreensão;
A minha orientadora, professora Elizabeth Ramos, agradeço pela paciência, confiança
e sensibilidade;
Aos meus amigos de pesquisa, Diandra, Denilo, Manoela, André, Cháron, Larissa e
Adalton, agradeço pelo tempo e pelos abraços;
Aos meus amigos de Rio Vermelho (em ordem alfabética, pois todos são bastante
ciumentos), Ayala, Felipe, Maurício, Michele e Rodrigo, agradeço pela amizade e também pelo
drama. No shade;
Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da UFBA pelo espaço
de aprendizagem;
E à CAPES, pelo financiamento durante o período do mestrado.
E, para sempre, ela dançará. É verão.

(In the Heart of Juliet – Liv Kristine)


RESUMO

A trajetória temática de representação homossexual no cinema produz uma força de presença,


que aos poucos desfaz a condição de simulacro há muito atribuída ao sujeito não-heterossexual.
O filme Private Romeo (2011), dirigido por Alan Brown, é exemplo de um produto midiático,
cuja proposta só é possível em face do rastro de produções que o antecedem. Trata-se de uma
tradução intersemiótica da peça Romeu e Julieta, escrita por William Shakespeare, no século
XVI. A releitura do diretor Brown apresenta dois jovens soldados de um colégio militar
estadunidense – um ambiente cuja atmosfera de opressão valoriza determinados valores ligados
à moralidade social em detrimento da expressão do individual – no instante de descoberta do
desejo sexual mútuo. Tal proposta fílmica funciona como crítica ao contexto heteronormativo
dentro do sistema militar norte americano, rígido e moralista, no qual, durante muitos anos,
existiu uma política institucionalizada e constitucionalizada de discriminação, proibindo
militares homossexuais de assumirem sua identidade sexual. A adaptação fílmica Private
Romeo traduz o texto dramático Romeu e Julieta, com uma proposta de desconstrução de
paradigmas sobre homoafetividade, identidade sexual e papeis de gênero, saindo de um modelo
de discurso heteronormativo, no qual o texto dramático shakespeariano está inserido, já como
uma repetição em diferença do tema ocidental do amor proibido, e propõe novas expressões
sobre moral, corpo e linguagem. Esta dissertação sugere uma análise da narrativa do filme em
questão a partir, principalmente, da leitura das discussões introduzidas por Judith Butler (2016)
e Eve Kosofsky Sedgwick (1990), sobre a discussão em torno das identidades sexuais e papéis
de gêneros regulamentados por e no mundo ocidental; Michael Foucault (1999), sobre a
sexualidade; Jacques Derrida (1995), com a discussão sobre rastro, escritura e diferença na
tessitura dos textos; Gilles Deleuze (2000), com a proposta de reversão da hierarquização
platônica modelo-cópia-simulacro. A construção do casal protagonista dentro dos aspectos e da
concepção do filme de 2011 é o recorte tomado para a análise, tendo em vista o perigo da
universalização, normatização e higienização da história de sujeitos não-heterossexuais, que,
no filme, é contada através das vozes canônicas das personagens criadas por William
Shakespeare. Nesse sentido, Private Romeo, como produto da leitura crítica da anterioridade, é
objeto capaz de propor análise e discussão sobre a potência positiva de um grupo social cuja
identidade sexual é rotulada como um tipo de simulacro platônico. Em outras palavras, discute-
se o caráter de desvio atribuído e regulado pelos aparatos sociais para os sujeitos e as relações
não-heterossexuais e suas identidades sexuais.

Palavras-chave: Tradução. Cinema. Identidade. Sexualidade. Amor e Erotismo.


ABSTRACT

The thematic trajectory of homosexual representation in cinema produces a force of presence,


which gradually undoes the condition of simulacrum long attributed to the non-heterosexual
individual. The film Private Romeo (2011), directed by Alan Brown, is an example of a media
product whose proposal is only possible because of the trail of productions that precedes it. It
is an intersemiotic translation of the play Romeo and Juliet, by William Shakespeare in the
sixteenth century. Director Brown's retelling features two young soldiers from an American
Military school – a space whose atmosphere of oppression values certain ideas linked to social
morality rather than the expression of an individual’s identity – at the instant of discovery of
their sexual desire. Such a film proposal serves as a critique of the heteronormative context
within the rigid and moralistic American military system in which, for many years, there was
an institutionalized and constitutionalized policy of discrimination, which prohibited
homosexual militaries from assuming their sexual identity. The film adaptation Private Romeo
translates the dramatic text Romeo and Juliet to propose the deconstruction of paradigms about
homoeroticism, sexual identity and gender roles, leaving a heteronormative discourse model in
which the Shakespearean dramatic text is already inserted as a repetition in difference of the
Western theme of forbidden love, and proposes new expressions on morality, body and
language. This dissertation suggests an analysis of the narrative proposal of the film in question,
mainly from the reading of the discussions introduced by Judith Butler (2016) and Eve
Kosofsky Sedgwick (1990), on the discussion about the sexual identities and roles of genres
Regulated by and in the Western world; Michael Foucault (1999), on sexuality; Jacques Derrida
(1995), with the discussion about trace, writing and difference in the texture of texts; Gilles
Deleuze (2000), with the proposal of reversion of the platonic hierarchy model-copy-
simulacrum. The construction of the protagonist couple within the aspects and the conception
of the 2011 film adaptation is the cut taken for the analysis, considering the danger of the
universalization, normalization and hygiene of the history of non-heterosexual subjects, which,
in the film, is told through of the canonical voices of the characters created by William
Shakespeare. In this sense, Private Romeo, as a product of the critical reading of anteriority, is,
therefore, an object capable of proposing analysis and discussion about the positive power of a
social group whose sexual identity is labeled as a kind of platonic simulacrum. In other words,
the character of deviation attributed and regulated by social apparatuses for subjects and non-
heterosexual relations and their sexual identities is discussed.

Keywords: Translation. Cinema. Identity. Sexuality. Love and Eroticism.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Fotograma do filme Private Romeo. A quadra de esportes vazia. 20


Figura 2 Leitura da peça Romeu e Julieta. 20
Figura 3 Os cadetes, em forma. 24
Figura 4 Autoridade e ordem. 24
Figura 5 Singleton/Romeu, Sanchez/Benvólio 25
Figura 6 Mercúcio, Benvólio e Romeu descem as escadas. 28
Figura 7 Mercúcio sobre Mab [1]. 28
Figura 8 Mercúcio sobre Mab [2]. 29
Figura 9 Teobaldo avista Romeu. 31
Figura 10 Teobaldo avista Romeu e Julieta. 31
Figura 11 Romeu e Julieta à sós [1]. 32
Figura 12 Romeu e Julieta à sós [2]. 32
Figura 13 Romeu e Teobaldo lutam. 33
Figura 14 Julieta é silenciada. 34
Figura 15 O beijo [1]. 35
Figura 16 O beijo [2]. 35
Figura 17 O beijo [3]. 35
Figura 18 Epílogo [1]. 37
Figura 19 Epílogo [2]. 37
Figura 20 Romeu e Julieta se encontram [1]. 50
Figura 21 Romeu e Julieta se encontram [2]. 51
Figura 22 Romeu e Julieta se encontram [3]. 51
Figura 23 Romeu e Julieta se encontram [4]. 51
Figura 24 Teobaldo. 53
Figura 25 Romeu e Julieta – Nudez [1]. 54
Figura 26 Romeu e Julieta – Nudez [2]. 55
Figura 27 Romeu e Julieta – Nudez [3]. 55
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9
1 O QUE HÁ NO TEXTO: UMA PROPOSTA DE LEITURA A PARTIR DAS 18
LINGUAGENS DO FILME
2 MESCLAGEM ESTILÍSTICA: AMOR, SEXO, EROTISMO E 38
HOMOSSOCIABILIDADE
3 INTERSECÇÕES DE IDENTIDADES SEXUAIS EM PRIVATE ROMEO 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS 74
REFERÊNCIAS 79
INTRODUÇÃO

 Considera então o seguinte: relativamente a cada


objeto, com que fim faz a pintura? Com o de imitar a
realidade, como ela realmente é, ou a aparência, como
ela aparece? É imitação da aparência ou da realidade?
 Da aparência.
 Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade, e
se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir
apenas uma pequena porção de cada coisa, que não
passa de uma aparição.
Platão. A República

Em 1964, quando John Catford publicou A Linguistic Theory of Translation (Teoria


Linguística da Tradução), o campo de Estudos da Tradução começava a ganhar forma. A
Tradução atrelava-se, inteiramente, aos estudos linguísticos, o que contribuiu para a
perpetuação de um pensamento essencialista e protecionista em relação à tarefa do tradutor e
ao que o produto desse processo deveria conter “em si”. A premissa era de que a Tradução
constitui uma atividade meramente linguística, desvinculada de aspectos externos ao texto, em
que a língua era vista como um sistema fechado e ordenado, no qual um significante está ligado
a um significado, havendo assim uma correspondência imediata entre os dois. Ou seja, uma
palavra encerraria nela própria um significado único e estável, refletido como num espelho,
quando lemos um texto.

Esse primeiro momento teórico na história da Tradução serviu para consolidar e


perpetuar um tipo de preconceito e hierarquização em relação ao texto traduzido e ao texto tido
como original. O tradutor seria um simples transportador de cargas significativas, de quem se
esperava invisibilidade e fidelidade – não sendo a tarefa da interpretação uma demanda
(ARROJO, 2007). Esse posicionamento revela a crença na existência de uma “essência”, um
sentido único e inerente ao texto, e a possibilidade de equivalência da transferência de
significados de uma língua para a outra, de um texto para outro, mantendo seu sentido
inalterável e proporcionando ao público de chegada o mesmo efeito e o mesmo conhecimento
de mundo daquele do texto de partida.
A ideia de tradução como atividade secundária e inferior intensifica-se também com a
crença de que o texto de partida é um original puro, detentor de uma verdade que seria
fatalmente traída e deturpada no processo tradutório. Dada a sua incapacidade de reproduzir um
sentido completo, de representar da mesma forma aquilo que o original representa, a tradução
seria, nesse sentido, uma espécie de simulacro platônico, porque o leitor, ao se deparar com um
texto traduzido, não seria capaz de atingir a essência, ideia primeira que só estaria presente no
original. Se pensarmos a literatura como mímesis, como representação da realidade, a tradução,
como resultado de uma imitação da obra literária, seria um completo desvio do caminho que
supostamente leva o leitor ao verdadeiro conhecimento. A crítica tradicional está embasada na
metafísica platônica que, por sua vez, faz distinção entre mundo inteligível e mundo físico e
entre cópias e simulacros. Enquanto as cópias, marcadas pela semelhança, estariam mais
próximas da Verdade, os simulacros seriam marcados pela dissimilitude, deslocados a uma
posição de subalternidade. Para a tradição, invisibilidade do tradutor e equivalência são
condições ideais, no sentido platônico. No entanto, Stanley Fish, com o conceito de comunidade
interpretativa, e Jacques Derrida, com a lógica desconstrutivista, introduzem a possibilidade de
se pensar a problemática da significação de um texto para além do universalismo e do
essencialismo, a partir de interpretações, transformações e recriações.

A partir do final da década de 1960, o pós-estruturalismo vem rasurar os conceitos


estruturalistas também de língua e leitura, postulando que a significação não está totalmente
presente no significante, não havendo uma relação imediata entre eles. Ao contrário, um
significado é construído a partir de múltiplas relações entre significantes e principalmente entre
esses significantes e o contexto em que sua leitura acontece. A significação deixa de ser vista
como algo concreto, encerrado na palavra, passando a ser algo que se materializa durante a
interpretação e a leitura, que deve ser encarada como uma forma de acontecimento que exige
“intervenção e integração do leitor com a língua” (OTTONI, p.35). Tradução e leitura tornam-
se, então, práticas que demandam construção e transformação de sentido.

Tradução é também arte. No jogo de conexões e associações entre significantes e


significados, ela é o resultado de interpretação, uma promessa matrimonial de conciliação entre
os dois polos do signo. Assim, Derrida compreende a tarefa do tradutor e aponta, entre outros
aspectos, para o exercício da semelhança na diferença, a relação no mínimo bilateral entre os
textos de partida e chegada – um elo duplo (double bind), no qual o original deve à tradução a
sua sobrevivência no tempo. No campo dos Estudos da Tradução, na pós-modernidade, o
pensamento tradicional de originalidade e fidelidade se afasta, para dar lugar aos conceitos de
apropriação, reescritura, releitura e ressignificação da anterioridade. A noção de Tradução como
simulacro é, então, confrontada, dando espaço para a ascensão da Tradução como leitura e
disseminação de significações, que acontecem e são postos em movimento no instante da
interpretação.

Um projeto de hierarquização similar existe também nos modos de formação e relação


entre indivíduo e sociedade, no âmbito da experiência sexual como item de ratificação social.
Em 1869, os termos ‘homossexual’ e ‘heterossexual’ foram cunhados pelo jornalista húngaro
Karl-Maria Benckert, em relação de oposição, em que o primeiro se referia ao tratamento de
sodomia e pederastia dado pelo governo alemão da época para a identidade de indivíduos não-
heterossexuais. O século XIX foi o período de “descoberta” da homossexualidade, um primeiro
momento de interesse antropológico e social sobre as relações afetivas e sexuais entre
indivíduos do mesmo sexo. A própria definição do que é ser homossexual foi um mecanismo
de definição e consolidação do heterossexual, a fim de estabelecê-lo como modelo social de
relações entre indivíduos. No rastro do ideal platônico, a heteronormatividade “especifica a
tendência, no sistema ocidental contemporâneo referente a sexo-gênero, de considerar as
relações heterossexuais como norma, e todas as outras formas de conduta social como desvios
dessa norma” (SPARGO, 2004, p. 86). Tais desvios são, portanto, simulacros platônicos do
protótipo heterossexual de relacionamento. E por ser simulacro, a homossexualidade é também
recalcada. A divisão/hierarquização binária hétero-homo constrói também papeis de gênero,
especificamente associados ao modelo heteronormativo que precisam ser performatizados
dentro dos espaços sociais. As relações entre pessoas do mesmo sexo são rechaçadas por não
corresponderem a determinados padrões estéticos e culturais.

O século XX viu crescer a força normativa do ideal heterossexual. Os novos meios de


comunicação de massa, originários deste período, se mostraram não apenas como ferramentas
eficazes para a representação, mas também para a marginalização e padronização de sujeitos
não-heterossexuais. As revoltas de Stonewall, em 1969, expandiram a presença desses sujeitos
em diferentes espaços; mas a cultura e o “armário” gays não deixaram de ser objetos de
curiosidade para o olhar público. As produções midiáticas, nesse sentido, serviram para reforçar
ou criar um estereótipo no que diz respeito ao sujeito não-heterossexual, sintoma de um
pensamento do senso comum, que definia – e ainda define – o possível e o impossível dentro
de uma comunidade cultural (ALONGE, 2007). Para esse senso comum, o sujeito não-
heterossexual e sua trajetória se tornam aceitáveis através do risível, do lúdico, ou no extremo
oposto, através de uma desmedida tragicidade, ou ainda, através de uma complexa estratégia de
prolixidade, análise e silenciamento da sua diferença.

Esses modos de representação do sujeito não-heterossexual, principalmente no cinema 1,


estão proporcionalmente ligados ao contexto social de relação entre a comunidade LGBTQ 2 e
o centro hegemônico – a liberação/revolução sexual ainda forte nos anos 1970, representada na
comédia dramática Os rapazes da banda (1970), dirigida por William Friedkin; ou a crise de
AIDS nos Estados Unidos nos anos 1980, representada no drama Meu querido companheiro
(1989), dirigido por Norman René. Os anos 1990, com o crescimento da cultura clubber
estadunidense no mundo e o início da popularização das performances de Drag Queens, foi
cenário de filmes como Priscilla, rainha do deserto (1994), dirigido por Stephan Elliott; e Para
Wong Foo, obrigado por tudo! Julie Newmar (1995) dirigido por Beeban Kidron, ambos sob a
perspectiva do cômico.

A reverberação dessas e de outras produções cinematográficas na consolidação da


cultura e da identidade de indivíduos LGBTQ é historicamente visível. Porém, a representação
desses indivíduos está sujeita à avaliação de um modelo hegemônico, que tem o poder de contar
as histórias. O termo “representação”, nesse contexto, está intrinsecamente relacionado à noção
de construção de imagem/identidade através da constante contação de histórias, algo que a
escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama atenção ao afirmar que “a única história
cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles
sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história3”. Adichie não aborda
diretamente os problemas da comunidade LGBTQ, mas seu discurso sobre os danos causados
pela insistência em um único ponto de vista sobre determinado povo, determinada cultura,
revela-se também na interação entre centro e margem e, portanto, estimula o pensamento sobre
os mecanismos de invenção de uma imagem de sujeitos não-heterossexuais.

Já no século XXI as reivindicações do grupo LGBTQ assumem novas formas e a


legalidade civil do relacionamento entre pessoas do mesmo sexo passa a ser pauta, ao lado de

1
Os exemplos aqui citados são apenas recortes. A produção cinematográfica sobre tal tema é vasta. A lista
completa de exemplos está disponível em: < http://acapa.virgula.uol.com.br/cultura/70-anos-de-cinema-gay-
confira-os-filmes-de-tematica-lgbt-que-marcaram-as-ultimas-7-decadas/3/9/16057>. Acesso em: 08 ago. 2016
2
Sigla para Lesbians, Gays, Bissexuals, Transgender and Queers. A escolha do uso de tal sigla para o trabalho se
propõe a seguir o pensamento teórico da filósofa Judith Butler.
3
Trata-se de um trecho da palestre The Danger of a Single Story. Transcrição integral da palestra disponível em:
<https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=en#t-
756000>. Acesso em: 11 fev. 2016.
movimentos e discussões mais fortes em torno da violência contra o sujeito não-heterossexual
(algo representado timidamente na trajetória do cinema). Judith Butler relaciona a discussão em
torno da legitimação do casamento entre indivíduos homossexuais com a ideia de parentesco
socialmente associada à heterossexualidade. Butler aponta para a existência de uma proposta
contemporânea “na qual se lança mão do Estado para conferir o reconhecimento que ele pode
outorgar ao casal do mesmo sexo e para se opor ao controle regulador sobre o parentesco
normativo que o Estado continua a exercer” (BUTLER, 2003). No entanto, tal proposta, de
sancionar ou legitimar a sexualidade de um indivíduo não-heterossexual através do casamento,
pode significar a preservação de um pensamento conservador, que vai ratificar a secundarização
desse sujeito. Esses temas estão representados no filme De repente, Califórnia (2007) dirigido
por Jonah Markowitz, cujo enredo apresenta um protagonista gay dentro de um contexto de
homofobia familiar, numa trajetória que termina de modo similar ao enredo de um drama
cômico: o final feliz. O oposto de tal enredo, no entanto, é muito mais comum. Como exemplo,
em O segredo de Brokeback Mountain (2001), dirigido por Ang Lee, não há espaço para que a
narrativa de amor dos dois protagonistas termine em harmonização e celebração.

A trajetória temática de representação não-heterossexual no cinema produz também


uma força de presença que, aos poucos, propõe desfazer a condição de simulacro há muito
atribuída ao sujeito não-heterossexual. O filme Private Romeo (2011), dirigido por Alan Brown,
é exemplo de um produto midiático cuja proposta só é possível em face do rastro de produções
que o antecedem. Trata-se de uma tradução intersemiótica da peça Romeu e Julieta – peça
escrita por William Shakespeare no século XVI. O projeto de releitura do texto shakespeariano,
apresentado pelo diretor Brown, apresenta dois jovens soldados, estudantes de um colégio
militar estadunidense – um ambiente cuja atmosfera de opressão valoriza determinados ideais
ligados a moralidade social em detrimento da expressão do individual – funcionando como uma
crítica ao contexto heteronormativo dentro do sistema militar norte americano, rígido e
moralista, em que, durante muitos anos, existiu uma política institucionalizada e
constitucionalizada de discriminação, que proibia militares homossexuais de assumirem sua
identidade sexual. A premissa da política, conhecida como “don’t ask, don’t tell”, consistia na
ideia de que
a presença de pessoas que demonstram predisposição a atos homossexuais nas forças
armadas pode gerar um risco inadmissível aos altos padrões de moral, ordem, disciplina
e entrosamento profissional que são a essência do serviço militar. Membros em serviço
estão proibidos de serem questionados, ou de discutir abertamente suas orientações
sexuais. (FERDER, 2013, p. 2)4

Produzir textos é um exercício criativo que toma forma e se constrói a partir de uma
série de ferramentas de apropriação e retomada de histórias. O texto é adaptação desde a
primeira palavra escolhida pelo escritor, que se imprime (e se adapta) em seu trabalho. Traduzir
e adaptar são, pois, sinônimos desse processo criativo envolvendo sujeito, cultura e texto, num
movimento propulsionado pela demanda de se contar e reinventar histórias. Isso enfatiza o
caráter interpretativo das traduções fílmicas 5, por exemplo, que, através de um recorte do texto
anterior, transformam e ressignificam esse texto, de modo a tensionar e problematizar
semelhanças e diferenças.

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com a
fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre
seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se
processa o movimento de transformação de estrutura e eventos. (PLAZA, 2007, p. 1)

A tradução intersemiótica propõe atualização e transformação; uma reinterpretação


crítica e estética do seu texto anterior, do seu passado. É independente em seu próprio momento
presente, ao mesmo tempo em que é também elemento responsável pela eterna
duração/renovação do texto que lhe serviu de ponto de partida – aquele passado literário que,
sem a tradução, permaneceria intocável em seu tempo-espaço obsoletos. Portanto, quando o
processo tradutório propõe tal atualização, “o passado [já] não é apenas lembrança, mas
sobrevivência como realidade inscrita no presente”. (PLAZA, 2007, p.2)

Texto e contexto não podem ser lidos separadamente, do mesmo modo que não pode
ser ignorado o fato de que o leitor (re)contextualiza aquilo que lê. Jacques Derrida apresenta o

4
Minha tradução de: “the presence in the armed forces of persons who demonstrate a propensity or intent to engage
in homosexual acts would create an unacceptable risk to the high standards of morale, good order and discipline,
and unit cohesion which are the essence of military capability.” Service members are not to be asked about, nor
allowed to discuss, their sexual orientation.”
5
Os termos “tradução” e “adaptação” serão usados neste trabalho como sinônimos, referindo-se à tradução
intersemiótica. Tal posicionamento está fundamentado nas discussões sobre Tradução Intersemiótica propostas
por Julio Plaza (2007) e adaptação, por Linda Hutcheon (2013).
conceito de rastro como “unidade de um duplo movimento de protensão e retenção em que um
elemento sempre se relaciona com outro, guardando em si a marca do elemento passado e
deixando-se já moldar pela marca de sua relação com o elemento futuro” (DERRIDA, 1972
apud RODRIGUES 1999, p.199). Além disso, “ser segundo não significa ser secundário ou
inferior; da mesma forma, ser o primeiro não quer dizer ser originário ou autorizado”
(HUTCHEON, 2013, p.13).

Talvez não existam contos mais antigos do que os que falam de amor proibido. Os
amantes desafortunados, que, por motivos diversos, são impedidos de viver o seu romance –
este é um enredo conhecido e perpetuado através de cantos populares, reescrituras e, porque
não dizer, diferentes adaptações midiáticas. O que torna a história do romance proibido tão
popular é o seu caráter arquetípico. A diferença está no modo como ela é contada e recontada.
Porém, através das semelhanças é que se pode reconhecer o arquétipo. A magia que permeia os
primeiros atos em direção à paixão em Tristão e Isolda, presente tanto na poção mágica do
amor quanto na imagem dos cabelos loiros da heroína, também está no canto do rouxinol que
desperta os enamorados Julieta e Romeu, e em tantos outros detalhes mágicos dessas e de outras
histórias.

William Shakespeare reescreveu o arquétipo em texto dramático. A Excelente e


Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta foi escrita, acredita-se, entre 1591 e 1595. O título
dado por Shakespeare para a peça faz referência direta ao poema The tragicall history of
Romeus and Juliet, escrito por Arthur Brooke, que o dramaturgo utilizou como texto de partida
para escrever a sua própria versão. Recontar uma história que já existia, naquele período, não
era um artifício criativo usado apenas por Shakespeare. Apropriar-se de tramas anteriores era
uma prática comum entre os dramaturgos da Inglaterra Elisabetana do século XVI, assim como
a apresentação de duas ou mais versões sobre a mesma história em produções quase
simultâneas, e, no caso de Shakespeare, suas versões possuíam novas passagens e personagens
que as tornavam populares entre o público da época. Em Romeu e Julieta, os aspectos que
transitavam entre momentos de comédia e tragédia num mesmo plano mostram as estratégias
de escrita do autor, por exemplo.

Assim como Shakespeare se apropriou de um texto anterior ao seu, outros autores


fizeram uso da mesma técnica de escrita e contribuíram para a renovação do texto que, na
contemporaneidade, está inserido no cânone ocidental. O romance arquetípico e a tragédia dos
jovens amantes de Verona se entrelaçam, e o público ainda é fator importante na efetivação de
qualquer produção artística.
Private Romeo segue os rastros de produções cinematográficas cuja temática propõe a
desconstrução de padrões heteronormativos associados ao amor, ao relacionamento e à
sexualidade. Sendo produto do meio em que está inserido, formado pelas questões de sua
contemporaneidade, o diretor Alan Brown comenta sua construção do seguinte modo:

Embora Romeu e Julieta seja geralmente interpretada como um conto romântico sobre
o jovem amor, frustrado por uma briga entre famílias, releituras recentes me
convenceram de que a peça é, de fato, bem mais moderna e uma narrativa importante
sobre identidade e desejo sexuais confrontando a sociedade e suas instituições; sobre a
liberdade e os direitos individuais contra a autoridade [...]6.

A tradução fílmica de Alan Brown ressignifica e se apropria do texto dramático


shakespeariano, propondo uma série de atualizações temáticas e estéticas. O primeiro capítulo
desta dissertação abordará a construção da tessitura imagética do filme em torno da mesclagem
das linguagens cinematográfica e teatral, que age diretamente no desenvolvimento da narrativa
proposta. Os diferentes usos de linguagens, aliás, são alicerces narratológicos e exercem
interferência no enredo, cenário e personagens, através das marcações de cena, do uso
metonímico do inglês renascentista e dos nomes das personagens da peça.

O segundo capítulo discute o amor (ou os tipos de amor), a partir do conceito de


mesclagem dos estilos “alto” e “baixo” (sublime e vulgar, tragédia e comédia). Nessa
perspectiva, o filme propõe um novo olhar sobre o erotismo e o jogo amoroso, através das
relações de homossociabilidade entre os personagens. Por fim, o terceiro capítulo introduz a
atualização dos personagens protagonistas na construção de um casal homossexual, no intuito
de incitar a reflexão sobre as possibilidades das relações para além do cenário social
heterossexista, discutindo sexualidade, gênero e a experiência do desejo homossexual.

Private Romeo, como produto da leitura crítica da anterioridade é, portanto, objeto


capaz de propor análise e discutir a potência positiva dos simulacros, especificamente, o caráter
de desvio atribuído tanto para a tradução quanto para os sujeitos e as relações não-
heterossexuais. Dessa forma, a disparidade sobre a qual o simulacro se constrói passa a ser vista
como potência e não mais como deficiência. A concepção platônica é, portanto, revertida,

6
Minha tradução de: Though Romeo and Juliet is usually interpreted as a romantic tale of young love thwarted by
a family feud, recent re-readings convinced me that it is actually a much more modern, and relevant story about
sexual identity and desire pitted against society and its institutions; about personal freedom and rights versus
authority […]. Disponível em: http://www.privateromeothemovie.com/about/. Acesso em: 09 ago. 2016.
desestabilizando a ideia de originalidade e pureza do “modelo ideal”, bem como os preceitos
hierárquicos que o separavam dos simulacros. Propõe-se, então, com a análise do filme em
questão, a reflexão de que esses simulacros se constroem a partir da diferença – uma espécie de
devir subversivo que não carrega em seu corpo o desejo de se tornar o mesmo, o ideal. Ao
contrário, quando exposto, o próprio corpo provoca (e mostra em si) rasuras na superfície, na
“superioridade” do modelo.
1 O QUE HÁ NO TEXTO: UMA PROPOSTA DE LEITURA A PARTIR DAS
LINGUAGENS DO FILME

O filme Private Romeo começa de silêncio em silêncio, enquanto a câmera passeia pelos
espaços vazios: uma quadra de esportes, o lado de fora do prédio, uma academia de ginástica.
That marry is the very theme I came to talk of (Pois casamento é justamente o tema dessa
conversa.7) é a frase que emerge de dentro de uma sala, quebrando o silêncio, sem perturbar a
quietude dos espaços. Há, agora em cena, oito rapazes com uniformes de instituições militares.
A câmera apresenta então a quem pertence aquela voz. Tell me, daughter Juliet, how stands
your disposition to be married? (Diga-me aqui, Julieta, como se sente quanto ao casamento?).
Na sala de aula, os oito rapazes fazem uma leitura da peça Romeu e Julieta. No centro da
imagem, de pé, um jovem rapaz segura um livro, lendo as falas da Sra. Capuleto. Outros dois
também estão de pé e participam da leitura naquele instante – um deles, pouco mais alto e
magro, faz a leitura das falas de Julieta; o outro, o menor dos três, de cabelos louros, o corpo
um pouco mais musculoso, lê as falas da Ama, fazendo graça, com uma voz aguda e “feminina”,
numa espécie de caricatura da personagem que interpreta.

O que acabara de ser lido não é a única referência ao texto dramático shakespeariano
naquele momento. Logo em seguida, a câmera percorre os detalhes daquele único ambiente
ocupado e oferece contexto. O sinal para o fim da aula toca, a câmera captura a imagem da
mesa de um dos alunos, para mostrar a capa de uma edição da peça. A leitura continua, porém,
numa nova voz, na posição de tutor. O nome da peça aparece escrito no quadro, junto com as
informações 3 themes, 1000 words; 1 character, 500 words (3 temas, 1000 palavras; 1
personagem; 500 palavras).

7
Todas as traduções das falas retiradas do filme são retiradas da peça, e aqui são inseridas através da tradução de
Barbara Heliodora. Referência da edição: SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução: Barbara
Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
Figura 1: Fotograma do filme Private Romeo. A quadra de esportes vazia.

Figura 2: Leitura da peça Romeu e Julieta.

Walter Benjamin, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1994),


trabalha com o conceito de aura para nomear esse tecido que cerca, por exemplo, as obras
canônicas. Segundo o autor, “a obra de arte sempre foi reproduzível” (BENJAMIN, 1994,
p.166) e “pode, principalmente, aproximar o indivíduo à obra” (Idem, p.168).

A reprodução da obra de arte, referida por Benjamin, é sinônimo de tradução e também


está ligada ao movimento de apropriação e adaptação de modelos arquetípicos para as histórias
míticas reinterpretadas em diferentes épocas, transformadas em textos literários, e mais uma
vez ressignificadas em traduções fílmicas. “Em todas as situações, ela [a reprodução] atualiza
o objeto reproduzido” (Idem, p.168-169).

O cinema, de acordo com Benjamin, possui papel fundamental nesse continum da


reprodução.
Mesmo considerado sob sua forma mais positiva, e precisamente sob essa forma, não
podemos apreender a significação social do cinema caso negligenciemos seu aspecto
destrutivo, seu aspecto catártico: a liquidação do elemento tradicional na herança
cultura. Este fenômeno é particularmente sensível nos grandes filmes históricos; quando
Abel Gance, em 1927, gritava com entusiasmo: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven
farão cinema [...] Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os
fundadores de religiões e as próprias religiões... esperam sua ressurreição luminosa, e
os heróis batem em nossas portas pedindo para entrar” [...] (BENJAMIN, 2005, p.226).

A introdução de uma cena na linguagem cinematográfica, para além de apresentar pela


imagem o objeto ou a situação encenada, é principalmente um modo de representação visual, a
construção de um enunciado, parte constituinte da narrativa. Portanto,

[...] o fato de representar, de mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um
ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a propósito desse objeto. Assim, a
imagem de um revólver não é apenas o equivalente do termo “revólver”, mas veicula
implicitamente um enunciado do tipo “eis um revólver” ou “isto é um revólver”, que
deixa transparecer a ostentação e a vontade de fazer com que o objeto significa algo
além de sua simples representação” (AUMONT, 2012, p. 3)

As imagens apresentadas durante os primeiros instantes do filme Private Romeo8 gritam


“eis Romeu e Julieta”. A primeira cena, nesse sentido, atualiza a proposta de introdução do
enredo exercida pelo Prólogo, em forma de soneto, no texto dramático, antes do primeiro ato,
quando narra toda a sequência de acontecimentos, informando, principalmente, contexto,
conflito, desenvolvimento e desfecho.

Duas casas, iguais em seu valor,


Em Verona, que nossa cena ostenta,
Brigam de novo, com velho rancor,
Pondo guerra civil em mão sangrenta.

Dos fatais ventres desses inimigos


Nasce, com má estrela, um par de amantes,

8
Private Romeo, Alan Brown, 2011.
Cuja derrota, em trágicos perigos,
Com sua morte enterra a luta de antes.

A triste história desse amor marcado,


E de seus pais o ódio permanente,
Só com morte dos filhos terminado,

Duas horas em cena está presente.


Se tiverem paciência para ouvir-nos,
Havemos de lutar para corrigir-nos. (Prólogo)9

Ao iniciar deste modo, o filme indica uma opção de fazer intertextual que tem sido
discutida nas pesquisas sobre adaptação. A construção da imagem no processo de tradução
intersemiótica torna-se um ato de criação a partir de uma rede de associações simbólicas com
o texto de partida, ao mesmo tempo em que é responsável pela própria modelagem, pelo seu
nascimento como texto de chegada (a tradução como resultado, produto de um processo de
interpretação e ressignificação do texto anterior) dentro do novo contexto, uma realidade com
traços e relações próprias. A imagem cinematográfica produz e contempla referências, material
visual importante para possíveis elaborações interpretativas futuras. Como declara o autor
Lauro Maia Amorin (2005), não se trata de reconhecer a imagem como fonte da realidade, como
aquilo que torna possível a existência de uma realidade. Tampouco se trata de reduzi-la a uma
cópia daquilo que se propõe a representar, do mesmo modo que a tradução não é simplesmente
falsificação, simulacro, que rasura e desafia a suposta autoridade do texto original.

Uma imagem somente significa na medida em que é constituída no processo de


significação da linguagem – marcada, por sua vez, por sua inscrição na história. Dito de
outra forma, a linguagem – como aquilo que possibilita a formação de imagens e que
estabelece relações de sentido entre homens, mulheres e eventos – não é transparente:
não é um “meio” de comunicação que deixa inalterada a percepção da realidade
(AMORIN, 2005, p.24).

9
Tradução de: Two housholds both alike in dignitie, (In faire Verona where we lay our Scene) From auncient
grudge, breake to new mutinie, Where ciuill bloud makes ciuill hands vncleane: From forth the fatall loynes of
these two foes, A paire of starre-crost louers, take their life: 0.10Whose misaduentur'd pittious ouerthrowes, Doth
with their death burie their Parents strife. The fearfull passage of their death-markt loue, And the continuance of
their Parents rage: Which but their childrens end nought could remoue: Is now the two houres trafficque of our
Stage. The which if you with patient eares attend, What heare shall misse, our toyle shall striue to mend.
O que caracteriza a relação imagem-realidade (passado-presente, ou ainda, original-
tradução) é o uso da linguagem com o objetivo de propor um exercício de interpretação daquilo
por ela descrito, apresentado, narrado. A tradução/imagem, ao propor atualização, atua sobre a
anterioridade com um olhar crítico, estabelecendo seu próprio diálogo com o
original/passado/realidade. É o exercício da tradução como poética sincrônica (PLAZA, 2007,
p.5), que evidencia o movimento do olhar do artista-tradutor em direção ao passado; a
apropriação e recuperação da história e sua acomodação à historicidade do presente.

A cena-prólogo do filme faz o movimento de apropriação e acomodação do passado no


presente, ao sugerir, através da imagem, o nome e os temas estabelecidos pelas várias leituras
do texto dramático que traduz (há, de fato, uma leitura em cena). Um dos temas em Romeu e
Julieta é sem dúvida o amor, ou os modos de representação do amor. Há também o tema da
descoberta da sexualidade dos dois jovens protagonistas 10. As consequências de se tentar
escapar de papeis sociais, pré-estabelecidos e intrinsecamente atrelados a conceitos normativos
de moral e ética, também pode ser interpretado como o terceiro tema, que gira em torno da
relação individuo-sociedade. Nas palavras de Northrop Frey, “Romeu e Julieta é uma versão
em miniatura do que acontece quando nobres hostis escapam ao controle” (FREY, 1999, p.29).
Private Romeo apresenta um cenário em que o grupo de personagens é formado por jovens
rapazes, estudantes de um colégio militar estadunidense. Tal imagem, portanto, se circunscreve
à proposta narrativa do filme como atualização do seguinte tema: a descoberta do amor e da
sexualidade entre dois rapazes inseridos em um contexto heteronormativo, que é o sistema
militar norte-americano.

O processo de construção de um novo enredo é evidenciado no momento em que o


espectador é apresentado à figura que vem a ser responsável pela organização social daquele
grande espaço. Do lado de fora, em formação, os alunos ouvem atentamente as instruções dessa
figura. Na peça, o príncipe Éscalo estabelece a lei de “boa convivência”, com o objetivo de
conter a atmosfera de tensão, durante a briga entre os criados das casas Montéquio e Capuleto
que, por sua vez, perpetuam sentimentos mútuos de ódio e inimizade. No filme, os alunos fazem
parte de um pequeno grupo não selecionado para o treinamento de campo da Academia Militar
McKingley que, como ouvimos na fala do Cadete/Príncipe, exige “altos padrões de asseio,
pontualidade, ordem e conduta militar” (PRIVATE ROMEO, 2011). Ali ficarão durante quatro
dias, em total isolamento.

10
Amor e sexualidade serão tratados nos capítulos seguintes desta dissertação.
Figura 3: os cadetes, em forma.

Figura 4: autoridade e ordem.

Porém, na montagem do filme, a cena que apresenta o tema do amor aparece antes da
sequência do príncipe Éscalo. O cenário é o banheiro/vestiário dos dormitórios do colégio onde
se centraliza o diálogo entre dois personagens. A montagem, aqui, introduz um recurso
tradutório importante para a construção da narrativa fílmica. O inglês renascentista do texto da
peça é novamente utilizado, porém, não como uma leitura dramática. Em forma metonímica 11,
o texto dramático shakespeariano é encenado como vida, na realidade daquele espaço ficcional.
Um dos alunos, cadete Singleton, entra em cena na pele de um Romeu entristecido por não ter
seu amor correspondido. What sadness lenghtens Romeo’s hours? (E o que alonga as horas de
Romeu?), Sanches, também cadete e aluno, pergunta. In sadness, Benvolio, I do love a woman

11
“A palavra metonímia vem do grego e significa ‘além do nome, ou mudança de nome’. Portanto, a metonímia
consiste na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão; em termos práticos, o emprego de
um termo em lugar do cristalizado pelo dicionário; havendo entre ambos uma relação objetiva entre a significação
própria e a figurada, mantendo a contiguidade de sentido. Contiguidade significa proximidade, vizinhança”.
Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/226198>. Acesso em: 18 jun. 2017.
(na tristeza, Benvólio, eu amo uma mulher). Essa última fala, a resposta do Singleton/Romeu
para o que lhe foi perguntado, constitui uma inserção inédita, proposta pelo roteiro, na voz do
personagem do cânone. Irônica, já que, de fato, esse outro Romeu está apaixonado por um
homem. Assim, texto dramático e fílmico se entrelaçam na contemporaneidade.

Figura 5: Singleton/Romeu, Sanchez/Benvólio.

No olhar da narrativa fílmica em relação à dramática, para além da proposta de


interpretação e suplementação de um passado literário, a metonímia torna-se mecanismo
tradutório de um projeto que incita o espectador a manter uma relação de aproximação e
afastamento com a situação narrada em seu instante-tempo presente, convidando-o a manter
seu olhar fixo sobre todo o movimento anacrônico de resgate de uma situação do passado que
lhe é, ao mesmo tempo, contemporânea. Precisamente, o que esse forte recurso metonímico
narrativo propõe é o afastamento de uma situação contemporânea (o risco de apagamento de
dois sujeitos não-heterossexuais) para que, através do olhar sobre o passado (a atualização do
tema do amor proibido através da peça shakespeariana), o espectador possa construir sua leitura
crítica sobre a situação presente.

Contemporâneo é aquele que mantem o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é justamente aquele que sabe ver essa
obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. [...] o
contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne
e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e
singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de
trevas que provém do seu tempo. (AGAMBEM, 2009, p. 62-64)
A tradução/imagem, produto de seu tempo, ao voltar o olhar para o tempo ou a situação
passada, revela em seu espaço contemporâneo um laço cujo ponto de partida está fixado na
anterioridade. Esse elo duplo (OTTONI, 2005) é responsável pelo transbordamento de um texto
em outro e evidencia também a proximidade situacional de dois textos de momentos temporais
distintos. Se o contemporâneo é aquele capaz de enxergar as impurezas de seu tempo, a
tradução/imagem é a ferramenta da contemporaneidade que as expõe em seu próprio corpo.
Precisamente, o tema do amor proibido, em Private Romeo e em Romeu e Julieta, se revela
contemporâneo através da escritura em différance (DERRIDA, 1995), no jogo entre semelhança
e diferença, cujo caráter de suplementaridade está diretamente associado ao efeito de
pluralidade da linguagem, isto é, às inúmeras possibilidades de atualização e interpretação
textual em diferentes linguagens.

Isso se opõe à totalização de significados há muito discutida pelo pensamento


tradicionalista acerca da linguagem – a possibilidade do signo encerrado em si próprio, em sua
própria significação que, por sua vez, prevê as infinitas possibilidades de significado em sua
totalidade. Para Derrida, a natureza do campo da linguagem exclui a totalização e põe em
evidência o jogo da interpretação, “isto é, de substituições infinitas no fechamento de um
conjunto finito” (1995, p.244). Há um exercício, portanto, de repetição em diferença que
descreve o movimento da suplementaridade. Repetição, pois, no jogo de interpretação, o objeto
final da arte – da linguagem – acontece sobre rastros de uma anterioridade, um objeto anterior
e finito, porém, que permite, ou melhor, que necessita de suplemento. Contudo, não se trata de
um reflexo ou espelhamento. Suplementar quer dizer acrescentar à tessitura do texto novas
marcas sobre outras marcas, transformando-o numa espécie de palimpsesto.

Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o
centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se,
vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma coisa,
o que faz com que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir,
suprir uma falta do lado do significado (DERRIDA, 1995, p.245).

É através de uma escritura em palimpsesto que a peça Romeu e Julieta e o filme Private
Romeo dialogam. Há marcas na imagem em movimento que evidenciam, através de citações –
visuais ou não – o rastro, a presença do texto dramático shakespeariano, perceptível por causa
da proposta de interpretação em linguagem cinematográfica.
A presença de um elemento é sempre uma referência significante e substitutiva inscrita
num sistema de diferenças e o movimento de uma cadeia. O jogo é sempre o jogo de
ausência e de presença, mas se o quisermos pensar radicalmente, é preciso pensa-lo
antes da alternativa da presença e da ausência; é preciso pensar o ser como presença ou
ausência a partir da possibilidade do jogo e não inversamente (DERRIDA, 1995, p. 248)

A iluminação no filme funciona como indicador de citações, evidencia o rastro, a marca


desse entrelace. É fator “decisivo para a criação da expressividade da imagem. Mas contribui
sobretudo para criar a ‘atmosfera” de uma narrativa cinematográfica (MARTIN, 2007, p.56).
Em Private Romeo, a realidade é marcada, principalmente, nas cenas em que se recorre
abundantemente à luz natural do dia, pela tonalidade opaca, enquanto nas cenas em que a
metonímia se faz presente na narrativa (geralmente em sequências filmadas durante a noite ou
em locais fechados), a imagem adquire brilho e cores saturadas.

É na iluminação de cenas de interiores que o operador dispõe de maior liberdade de


criação. Não sendo esse tipo de iluminação comandado por leis naturais (quero dizer:
submetidas ao determinismo da natureza), praticamente nenhum limite de
verossimilhança se opõe à imaginação do criador. “A iluminação”, escreve Ernest
Lindgren, “serve para definir e modelar os contornos e planos dos objetos, para criar a
impressão de profundidade espacial, para produzir uma atmosfera emocional e mesmo
certos efeitos dramáticos (MARTIN, 2007, p.57).

Essa impressão de uma atmosfera emocional com certos efeitos dramáticos pode ser
observada na cena em que três rapazes descem as escadas do que parece ser o pavilhão onde
ficam os dormitórios da academia militar. Já é noite e não há iluminação forte. Um deles leva
uma lanterna. O terceiro para no topo do lance de escadas e hesita. A expressão em seu rosto e
em sua fala traduz seu sentimento, it is no wit to go (é loucura continuar). Deprimido, não
enxerga o porquê de estarem ali, ou finge não saber o motivo de sua hesitação. Os três são os
cadetes Neff, Sanchez e Singleton – respectivamente, Mercúcio, Benvólio e Romeu.

Como proposta narrativa, o filme apresenta uma espécie de encenação metonímica da


peça. Existe uma história contada pelo filme através da história contada pela atuação do texto
dramático. Por esse motivo, cada sujeito, cada ator, representa um personagem do enredo sobre
os alunos da escola militar (que aqui chamarei de “realidade”), e um ou mais personagens da
peça (“encenação”). Ex.: Cadete Singleton (“realidade”) é também Romeu (“encenação”);
cadete Neff (“realidade) é também Mercúcio (“encenação”) e Sr. Capuleto (“encenação”).
Eles seguem para uma festa em “território inimigo”, embora o espaço em que se
encontram suscite no cadete Singleton/Romeu forte tensão e medo, reações derivadas de uma
constante sensação de perigo iminente. Neff/Mércucio, então, fala sobre a Rainha das Fadas,
discurso suplementado pelo facho de luz da lanterna. O silêncio, mais uma vez, é pano de fundo
para a cena que tem a função de alertar, tanto o espectador quanto o Romeu, sobre os embargos
da trajetória prestes a ter início. A Rainha Mab aparece para os apaixonados, sublime, nos
sonhos, “chega em tamanho não maior que a pedra de ágata [...], a passear pelos narizes dos
homens enquanto dormem”. A descrição da Mab, nesse momento, pode indicar também a
descrição do desejo (recalcado) de Romeu.

Há um momento de transição, do espaço fechado e pouco iluminado, para o espaço


aberto. Aqui, a fala do Neff/Mercúcio se torna ofegante, irregular; seu rosto expressa pavor
enquanto fala sobre a outra face da Rainha das Fadas, que, “se passa no pescoço de um soldado,
seu sonho é com a degola do inimigo, ou com assaltos, aço e emboscadas”. É noite. O desejo,
ao ar livre, fica exposto, e por esse motivo há mais tensão em cena.

Figura 6: Mercúcio, Benvólio e Romeu descem as escadas.

Figura 7: Mercúcio sobre Mab [1].


Figura 8: Mercúcio sobre Mab [2].

Estamos diante de uma espécie de previsão de um conflito. Mab de fato visitara os


sonhos de um soldado, fazendo-o sonhar com outro rapaz, e a previsão começa a se concretizar,
quando, em seguida, na cena da festa na casa dos Capuleto, aqui, um jogo de pôquer, a
performance de Teobaldo representa um embrião do sentimento de ódio e da descoberta do
amor pelos dois protagonistas. O que fica evidenciado, portanto, é um tipo de discurso que
exerce peso forte sobre o pensamento midiático e do senso comum, e que, em especial, ratifica
um histórico de opressão da identidade sexual12 de sujeitos homossexuais em diversas
instâncias sociais, aqui, especificamente, dentro da instituição militar.

A sociedade funciona por meio da ação em conjunto de diferentes instituições


tradicionais. Althusser (1980) identifica os Aparelhos Ideológicos de Estado como responsáveis
por assegurar “a ideologia dominante, a da classe dominante” (p.55), e atuam, simultaneamente,
em conjunto com os Aparelhos Repressivos de Estado (o exército, por exemplo). Neste caso, a
projeção de relações sexuais para fins de reprodução, fortemente disseminada desde o século
XVII, principalmente, pelas instituições religiosa e familiar, faz parte de um discurso da classe
dominante. O sexo, como apetrecho de imposição de poder, “se torna um objeto de discursos
legais e reguladores” (BUTLER, 2008, p.96), o que, dentro do corpo militar, significa a
preservação de um padrão de normalidade, de heteronormatividade.

12
A discussão sobre sexualidade será retomada no capítulo 3 desta dissertação.
[...] a ideologia dominante sustenta os interesses sociopolíticos da classe dominante a
qual se circunscreve na ordem do patriarcado. Por essa ordem se compreende o domínio
dos homens em relação às mulheres para que fosse garantida a herança da propriedade
privada. Nessa lógica, a ideologia dominante, burguesa, passa a valorizar e instituir a
heterossexualidade como norma da vida social e privada. Nessa perspectiva, podemos
dizer que a ideologia dominante, que se reproduz por meio do Estado, passa a funcionar
mediante a heterossexualidade como norma (LEITE, SANTANNA NETO, 2013, p.
456).

A heterossexualidade como padrão de conduta é, portanto, instituída no militarismo,


aparelho repressivo de Estado, reprimindo, de modo violento, qualquer outra forma de
identificação sexual que se apresente como “desvio” desse padrão.

[...] o papel do Aparelho repressivo de Estado consiste essencialmente, enquanto


aparelho repressivo, em assegurar pela força (física ou não) as condições políticas da
reprodução das relações de produção que são em última análise relações de exploração.
Não só o aparelho de Estado contribui largamente para se reproduzir a ele próprio
(existem no Estado capitalista dinastias de homens políticos, dinastias de militares, etc.),
mas também e sobretudo, o aparelho de Estado assegura pela repressão (da mais brutal
força física às simples ordens e interditos administrativos, à censura aberta ou tácita,
etc.), as condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos de Estado
(ALTHUSSER, 1980, p. 55-56).

A performance do cadete Moreno com a voz de Teobaldo, na cena da festa/jogo de


pôquer, no filme, é exemplo desse discurso usado para a repressão. I’ll not endure him (não o
aturo) – frase proferida com expressão de fúria e desprezo em seu rosto, enquanto o cadete Neff,
agora encenando Sr. Capuleto, tenta acalmá-lo, ou pelo menos manter a situação sob controle.
Teobaldo toma um gole de sua cerveja, como se fosse preciso tirar algo que lhe engasgava, ou
talvez como se a cerveja (ou a possível embriaguez) fosse a única forma de continuar ali naquele
espaço sem se sentir agredido por aquilo que, para ele, é uma ferida na imagem da instituição
e, consequentemente, de si próprio. A expressão em seu rosto permanece, ‘tis a shame (é uma
vergonha).
Figura 9: Teobaldo avista Romeu.

Figura 10: Teobaldo avista Romeu e Julieta.

A homofobia13 transcende o sentimento de ódio expresso na fala e no olhar de Teobaldo


e impregna toda a atmosfera da imagem. Circunscreve-se no próprio cenário, no jogo de luz e
sombra que envolve os personagens e, principalmente, na sensação de claustrofobia causada
pelo escuro e pelas paredes fechadas e cinzentas do espaço onde os amantes se encontram,
sozinhos, pela primeira vez. O amor sublime de Romeu e Julieta, neste momento, velado pelas
paredes cinzas, adquire um caráter específico de sentimento proibido muito especifico, dotado
de algo de transgressor. A luz, do lado de fora da sala em que os amantes estão, incide sobre
eles, enquanto a câmera os acompanha, reagindo ao movimento um do outro e enquanto a cena
se desenrola. Tudo isso preenche aquele espaço escuro e vazio. É como se a cena mostrasse um
flagrante, não dos dois corpos, com o intuito de delatar a suposta transgressão. Um flagrante da
inevitabilidade da descoberta sexual a despeito da interdição daquele lugar e da sua força de
repressão sobre o corpo dos sujeitos.

13
Termo cunhado pelo psicólogo George Weinberg, em 1972.
Figura 11: Romeu e Julieta a sós [1].

Figura 12: Romeu e Julieta a sós [2].

[...] a violação de certas proibições tabus constitui um perigo social que deve ser punido
ou expiado por todos os membros da comunidade se é que não desejam sofrer danos. Se
substituirmos os desejos inconscientes por impulsos conscientes, veremos que o perigo
é real. Reside no risco da imitação, que rapidamente levaria à dissolução da comunidade.
Se a violação não fosse vingada pelos outros membros, eles se dariam conta de desejar
agir da mesma maneira que o transgressor. (FREUD, 1996, p. 29)

A veemência com a qual a proibição é sancionada precisa ser posta em evidência para
que a leitura proposta pelo filme possa ser evidenciada. O objeto reprimido é precisamente o
desejo sexual que aparece cercado pela série de normas daquela instituição reguladora, na
performance de Singleton/Romeu. O tabu da homossexualidade interdita dentro do espaço
militar traz bastante significado para a própria constituição do impedimento naquela instituição,
no sentido de que “a proibição reflete o desejo e, portanto, ao tentar interditar o desejo – que é
de natureza inconsciente – tem-se, cada vez mais, a aproximação com ele” (PRESA, 2012, p.4).
Nesse sentido, a possibilidade de uma relação entre os dois rapazes é motivo de alerta naquele
contexto, porque a identidade homossexual, banida dentro das paredes da instituição militar, é
fundamentalmente a possibilidade de transgressão.

No filme, os personagens principais tomam consciência dos efeitos da descoberta dessa


possibilidade. O ódio de Teobaldo cresce e se transforma em agressão. Mercúcio, que fora
agredido, se torna um sujeito sério, grave, “procurem-me amanhã e me verão sério como um
túmulo” (Ato III, cena I). O pavor sentido por Singleton/Romeu, que, num primeiro momento,
não parecia palpável, sem nome, sugerido na tradução/imagem através da atmosfera da cena,
cenário e situação inicial, agora é de uma presença forte e iminente. Trata-se do “temor de que
a violação de um tabu seja seguida de uma punição” (FREUD, 1996, p.56), que, com a reação
tempestuosa de Teobaldo, ameaça cair sobre os jovens amantes. Nesse caso, a punição pela
homossexualidade acontece no instante em que Romeu fere Teobaldo e, por isso, é condenado
ao exílio.

Figura 13: Romeu e Teobaldo lutam.

Nesse momento, a performance das personagens Mercúcio e Benvôlio dá espaço para


que os mesmos atores passem a encenar Sr. e Sra. Capuleto, pais de Julieta, no texto
shakespeariano. Essa transição sugere que, naquele cenário, existem amarras e papeis de
comportamento a serem cumpridos e que, eventualmente, cada personagem será atingido. Um
papel específico, representado na imagem do militar heterossexual. Páris, personagem que, na
peça, aparece como o pretendente escolhido pelo Sr. Capuleto para sua filha, no filme, assume
caráter de ideia, funciona como metáfora para a heterossexualidade imposta. Portanto, quando
os pais de Julieta a obrigam a aceitar o casamento com o jovem Páris, na imagem em
movimento, isso se torna uma encenação, uma demonstração da força que aquela instituição
possui sobre o sujeito – a ordem da heteronormatividade incide hierarquicamente, mas também
se aproxima através dos pares. A punição para o cadete Mangan/Julieta é o seu silenciamento.
Com o dedo indicador, Neff/Capuleto faz o sinal de silêncio sobre os lábios da filha. A
tradução/imagem grita “eis a força da norma”. Sobre a cena, o diretor Alan Brown comenta,

Sempre procurei abordar a história dos cadetes a partir de suas motivações e atitudes,
para que, desse modo, as ações e as falas pudessem fazer sentido no contexto
contemporâneo da história. Quando Josh [cadete Neff/Sr. Capuleto], com a ajuda de
Gus [cadete Sanches/Sra. Capuleto], tenta forçar Glenn [cadete Mangan] a se casar com
Páris, não é simplesmente o Sr. e a Sra. Capuleto conversando com Julieta. De fato, é o
próprio Josh ameaçando Glenn. Josh e Gus estão tentando, desesperadamente, preservar
o mundo do modo como eles o conhecem, tentando “consertar” Glenn e trazer Sam
[cadete Singleton/Romeu] de volta para o grupo14.

Figura 14: Julieta é silenciada.

A declaração do diretor reforça a possibilidade de interlocução com o que Derrida


apresenta como o “mesmo em outro”, em palimpsesto. O jogo da différance, aqui, é constituído
pela cadeia de rastros revelados a partir do tema, da imagem em cena e do diálogo apresentado
pela sequência. A punição diante da transgressão, que, na peça, é a narração do tema do amor
proibido já na perspectiva de Julieta – proibida de lamentar o exílio de Romeu, forçada a casar-
se com Páris – transforma-se em um “mesmo” rasurado. No filme, o que se vê em cena é a
performance do texto dramático ressignificado, a encenação de um tipo de força opressora
exercida, naquela imagem-instante, do cadete Mangan metafórica e literalmente emudecido.

No entanto, a morte, que talvez seja o aspecto de tragicidade mais forte na peça
shakespeariana, e que, no filme, é representada na possibilidade de apagamento desse casal, é

14
Minha tradução de: I always approached the story from the cadets’ characters’ motivations and actions. So that
what they do and say makes sense in the context of the contemporary story. When Josh, with Gus’ reluctant help,
tries to force Glenn to marry Paris, that’s not Capulet and Lady Capulet speaking to Juliet. It’s really Josh
threatening Glenn. It’s Josh and Gus trying desperately to preserve their world as they know it, to “straighten out”
Glenn, and bring Sam back into the fold. Disponível em: < http://filmint.nu/?p=4653>. Acesso em: 31 jan 2017.
refutada de modo simbólico. A última sequência do filme é construída como uma cena no palco
de um teatro. Há, portanto, algo de extrema relevância a ser encenado ali. Quando Julieta toma
conhecimento da punição de Romeu, tranca-se no auditório da escola e se droga. Romeu chega
ao seu encontro e os dois se posicionam sobre uma mesa, razoavelmente grande, no centro do
“palco”.

Figura 15: o beijo [1]

Figura 16: o beijo [2]

Figura 17: o beijo [3]


Toda essa preparação de cena está ali para nos propor algo: o que pode nascer do amor
entre duas pessoas do mesmo sexo? Quais são as possibilidades? Esses sujeitos estão mesmo
destinados à repetição de um padrão e ao apagamento de sua diferença?

A morte física do casal é, no filme, substituída por um beijo, que só acontece quando
entram em cena os demais personagens. Num ato de transgressão, Mangan/Julieta percebe a
presença dos pares, quando o facho de luz de suas lanternas busca flagrar o “inadmissível”. O
beijo se transforma em uma declaração de resistência diante da ideologia institucionalizada.

Tal suplementação sugere a abdicação de uma característica intrínseca da tragédia


shakespeariana: a morte como punição para a desobediência, especificamente em Romeu e
Julieta. No filme, o que se vê em performance é o uso irônico da mais aparente característica
da comédia: o final feliz, celebrado na união dos amantes. Tal aspecto, no entanto, possui
significado que ultrapassa o escopo de uma celebração ao amor. Na peça, também revestida de
ironia, a morte dos amantes traz como consequência a reestruturação da ordem social que, no
contexto em que foi encenada, representava a falência do feudalismo – na performance das
famílias rivais – e a introdução do absolutismo como nova ordem política. A ironia está presente
no fato de que a tragicidade da morte desvela um aspecto importante para o desfecho
tradicionalmente cômico, o movimento de um tipo de sociedade para outro (FREY, 2013,
p.299).

Em Private Romeo, a plateia testemunha um diálogo com o reconhecimento cômico da


restauração da ordem sugerida na tradução/imagem através de referências visuais. A cena
seguinte ao beijo funciona como uma espécie de epílogo que traduz em imagem a fala do
príncipe Éscalo na peça.

PRÍNCIPE
Uma paz triste esta manhã traz consigo;
O sol, de luto, nem quer levantar.
Alguns terão perdão, outros, castigo;
De tudo isso há muito o que falar.
Mais triste história nunca aconteceu
Que esta, de Julieta e seu Romeu. (ATO 5, CENA 3)15

15
Tradução de: A glooming peace this morning with it brings, The Sun for sorrow will not shew his head: Go
hence to haue more talke of these sad things, Some shall be pardoned, and some punished. For neuer was a Storie
of more wo, 3185Then this of Iuliet and her Romeo.
A câmera mais uma vez apresenta os espaços vazios. No entanto, os tons e os sons do
amanhecer modificam a atmosfera, que até então sufocara a narrativa fílmica. Tristeza e luto
dão espaço para a representação de um tipo de amor que é sublime ao mesmo tempo em que
também é terreno.

Figura 18: epílogo [1]

Figura 19: epílogo [2]

De modo mais abrangente, abre-se um espaço para pensar sobre as diversas


possibilidades de rasura durante o processo de reescritura de linguagens. O epílogo no filme
propõe, efetivamente, o não encerramento de/em si. Expressa, através da imagem em
movimento, nas marcas e rasuras de sua matéria, o resgate de um passado e a projeção de um
futuro, simultaneamente no instante de seu acontecimento. O “puro devir” (DELEUZE, 1994),
cujo paradoxo é constituído pela sua “identidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo,
do futuro e do passado, da véspera e do amanhã [...]” (p.2) – emana da proposta da
tradução/imagem, costurando a linguagem do texto dramático na linguagem cinematográfica,
para compor sua narrativa.

O que o espectador do filme vê, portanto, difere daquilo que o espectador da peça (tanto
na contemporaneidade quanto na época de Shakespeare) vê. A tradução intersemiótica é
resultado de um entrelace de narrativas e linguagens, cuja projeção sinaliza para um futuro que,
para o seu público, pode significar um posicionamento político que, por sua vez, se distancia
do encerramento moral da peça shakespeariana.

O filme termina com uma imagem que sugere amanhecer. O silêncio é novamente
interrompido. Num corte rápido, a câmera apresenta a sala de aula, mais uma vez. No centro da
imagem, Mangan/Julieta canta. You made me love you16. O tema do amor é, portanto, um forte
elo de conexão entre a peça e esta proposta de tradução cinematográfica. Em Romeu e Julieta,
Shakespeare introduz tal tema sob diferentes perspectivas em que o erótico, o sublime e o carnal
se entrelaçam. Essa mistura de estilos que há na peça (e que caracteriza o período da produção
dramática elisabetana) servirá como pano de fundo para a discussão das relações (homo)eróticas
e amorosas da narrativa fílmica, no capítulo seguinte.

16
You made me love you é o título de uma canção escrita por James V. Monaco e Joseph McCarthy, lançada em
1913.
2 MESCLAGEM ESTILÍSTICA: AMOR, SEXO, EROTISMO E
HOMOSSOCIABILIDADE

ROMEU
Coragem, homem; o corte é pequeno.

MERCÚCIO
Não, não é tão profundo quanto um poço nem tão largo quanto uma porta de
igreja, mas é o bastante; é o bastante. Procurem-me amanhã e me verão sério
como um túmulo. Estou liquidado, eu garanto, para este mundo. Malditas as
suas casas. [...] um fanfarrão, um safado, um vilão, que luta por regras
aritméticas – por que raios veio meter-se entre nós? Fui ferido por baixo do seu
braço.

ROMEU
Pensei fazer pelo melhor.

MERCÚCIO
Levem-me pr’alguma casa, Benvólio,
Ou desmaio. Danem-se as suas cassas,
Que fizeram de mim ração de verme.
Eu acabei de vez. As suas casas! (SHAKESPEARE, Ato III, Cena, I).17

Em Shakespeare: The Invention of the Human (1998), Harold Bloom aponta para o fato
de que Shakespeare, quando insere a personagem Mercúcio na peça Romeu e Julieta, vê-se
também obrigado a matá-lo a partir do momento em que nota sua força performática, capaz de
interferir no desenrolar da história dos amantes desafortunados, capaz de matar o próprio autor,
“e daí, a própria peça” (1998, p. 93). Mercúcio aceita o duelo contra Teobaldo porque Romeu

17
Tradução de: Ro. Courage man, the hurt cannot be much.
Mer. No tis not so deepe as a well, nor so wide as a Church doore, but tis inough, twill serue: aske for me toorrow,
and you shall finde me a graue man. I am peppered I warrant, for this world, a plague a both your houses, sounds
a dog, a rat, a mouse, a cat, to scratch a man to death: a braggart, a rogue, a villaine, that fights by the booke of
arithmatick, why the deule came you betweene vs? I was hurt vnder your arme.
Ro. I thought all for the best.
Mer. Helpe me into some house Benuolio, or I shall faint, a plague a both your houses. They haue made wormes
meate of me, I haue it, and soundly, to your houses.
casara-se com Julieta e, naquele instante, sentia-se parte dos Capuleto, tanto quanto Teobaldo.
A luta em questão é sintomática de uma tensão social, mas também, de uma atração pela
destruição, do sentimento latente de melancolia que há na fala e na figura de Mercúcio desde
seu primeiro momento em cena. Sua morte é também sacrifício, como a das personagens
principais, porque é resultado trágico do cenário de ódio entre Capuletos e Montéquios.

Para além disso, a tradição da amizade masculina do renascimento apresenta um tipo de


interação entre os pares que possibilita, na contemporaneidade, a leitura de uma relação
homoerótica nas performances de Mercúcio e Romeu. Há, de acordo com Stanley Wells (2010),
uma certa confusão em torno da sexualidade de Mercúcio e de seu sentimento em relação a
Romeu, em grande parte por conta de seu cinismo em relação ao amor e de suas falas obscenas
em referência ao sexo de Romeu, abrindo espaço para diferentes interpretações da personagem.
Na cena da morte de Mercúcio, a amizade que é por definição superior ao amor e “assexuada”
se vê rasurada pelo sentimento de Romeu por Julieta; Mercúcio é atingido fatalmente por esse
sentimento e antes de morrer prefere a companhia de Benvólio à de Romeu.

O tema de Romeu e Julieta e em Private Romeo – em diferentes escalas – é, sem dúvida,


o amor, de um tipo que Mercúcio parece tripudiar e negar. Na peça, Shakespeare introduz a
personagem através do deboche a um tipo de encarnação do amor, no ato I, cena IV, ao lado de
Benvólio, na tentativa de alegrar um Romeu já apaixonado, mas não ainda por Julieta. O
Sentimento de Romeu é uma espécie de encenação do amor cortês, como explica Northrop Frye
em Sobre Shakespeare (1999), que se origina na Idade Média e que se assemelha, de forma
paródica, à experiência da religião. Frye afirma que, na tradição, “a senhora era a ‘santa, o
‘deus’ invocado com tantas preces e lágrimas era Eros ou Cupido, o Deus do Amor [...]” (1999,
p. 36). Sobre esse mesmo tema, Denis de Rougemont, em O Amor e o Ocidente (1988), entende
a cortesia, ou o amor infeliz, como (o único) tema da poesia dos trovadores do século XI e XII.
Trata-se de uma experiência de um ritual de vassalagem amorosa, em que o poeta canta a sua
devoção para a senhora que, mesmo o rejeitando, alimenta uma relação de cortesia entre os
dois. Diferente do amor carnal, o Amor neste contexto, “o Eros supremo, é a projeção da alma
para a união luminosa, para além de todo amor possível nesta vida” (1988, p. 63). Na tradição
do amor cortês, o apaixonado, por não ter seu amor correspondido pela sua senhora, se entrega
à poesia, cujo tema será sua frustração.
ROMEU
Eu não quero brincar; deem-me uma tocha;
Por estar tão sombrio, eu levo a luz.

MERCÚCIO
Nada disso, Romeu; tem de dançar.

ROMEU
Creia-me, eu não. Mas você tem sapatos
De alma leve, mas a minha alma é de chumbo (Ato I, Cena IV).18

Romeu é o próprio ator da tradição referida por Frye e Rougemont. E ao vê-lo sentir-se
escravo de Cupido, Mercúcio reage e em sua fala o repúdio ao sentimento de Romeu aparece
também como um modo de zombar dessa tradição. Há uma ironia lançada ao amor-religioso
(da tradição cortês) que, mais adiante, irá empalidecer e sucumbir ao sentimento (carnal)
despertado por Julieta.

MERCÚCIO
Mas amante pede asas a Cupido
Pra voar muito acima disso tudo.

ROMEU
A sua flecha foi tão fundo em mim
Que não dá pr’eu voar com suas penas.
Não alcança mais alto que um suspiro,
‘Stou me afogando ao peso desse amor.

18
Tradução de: Rom. Giue me a torch, I am not for this ambling, Being but heauie I will beare the light.
Mercu. Nay gētle Romeo,we must haue you dance.
Ro. Not I beleeue me, you haue dancing shooes With nimble soles, I haue a soule of Leade So stakes me to the
ground I cannot moue.
MERCÚCIO
Quando vai fundo, o amor é sempre um peso –
E sempre oprime algo de delicado.

ROMEU
O amor é delicado? É antes bruto,
Rude demais, e espeta como um espinho.

MERCÚCIO
Se é rude com você, faça-lhe o mesmo;
Se o furou, fure alguém que ele se aquieta [...] (Ato I, Cena IV). 19

Bloom (1998) define Mercúcio como uma promessa de comédia que definitivamente
não se cumpre, na medida em que a fala da personagem e todo seu discurso dentro da peça ali
está numa forma de contestação do amor sublime através de uma visão vulgar e cínica do amor.
Além disso, sua rápida evolução trágica dentro da peça revela um conflito interno da
personagem, que não apenas refuta um ideal de amor, no qual obviamente não acredita.
Mercúcio não crê na promessa de final feliz. O monólogo sobre a Rainha Mab, no Ato I, Cena,
IV, afasta-se do tom do restante da peça e apresenta-se como um momento de transgressão da
personagem no enredo, com a solene apresentação da soberana das fadas, que “chega em
tamanho não maior que a pedra de ágata [...], a passear pelos narizes dos homens enquanto
dormem” e provoca nestes homens sonhos eróticos. Mas ele também nos prepara para a Mab
que “trança a crina dos cavalos de noite [...], a bruxa que, quando as donzelas dormem de costas,
as oprime e lhes ensina a aguentar pela primeira vez o peso masculino”. A presença de
Mercúcio, nesse sentido, é a antecipação de uma má notícia. Sua trajetória e performance
servem de exemplo para o que Erich Auerbach, em Mímesis (2004), apresenta como a
mesclagem de estilos alto e baixo, trágico e cômico, no teatro renascentista, a partir do drama
shakespeariano.

19
Tradução de: Mer. You are a Louer, borrow Cupids wings, And soare with them aboue a common bound.
Rom. I am too sore enpearced with his shaft, To soare with his light feathers, and to bound: I cannot bound a pitch
aboue dull woe, Vnder loues heauy burthen doe I sinke. Is loue a tender thing? it is too rough, Too rude, too
boysterous, and it pricks like thorne.
Mer. If loue be rough with you, be rough with loue, Pricke loue for pricking, and you beat loue downe.
As nomenclaturas “alto” e baixo” para definir as categorias dramáticas de trágico e
cômico refletem um tipo de pensamento tradicional sobre a função do gênero dramático.
Tragédia e Comédia são, a partir do pensamento aristotélico, modos de representação mimética
do homem nobre e do homem humilde, respectivamente. Tais separações estavam ligadas, por
exemplo, no caso da tragédia, a sua função catártica. Os sentimentos de terror e piedade somente
seriam possíveis se a ação representada fosse aquela em que um indivíduo nobre cometesse
uma falha. No entanto, esse projeto de separação de estilos foi perdendo sua força. Durante o
renascimento, com o movimento de retorno aos valores do classicismo, esse modo de fazer
dramático da antiguidade possui um novo formato.

As várias nuances de mesclagem nos textos de Shakespeare, de acordo com Auerbach,


são condicionadas “pelas possibilidades de uma mistura estilística criadas pela Idade Média
cristã” (2004, p. 249). Durante esse período, o drama da salvação mostra a junção dos estilos
sublime (sublimis) e humilde (humilis), e tal entrelace acontece devido a um contexto no qual
produções teatrais desse período eram representações e pretendiam representar. No capítulo
Adão e Eva (2004), Auerbach destaca que no drama cristão da salvação é necessário trazer o
tema sublime para a linguagem humilde cotidiana, para que se chegasse a um objetivo: a
revelação de uma verdade divina e única. O trecho destacado na introdução do capítulo, o
diálogo entre Eva e Adão – um acontecimento “da mais elevada importância e da maior
sublimidade” (2004, p. 132) – possui o objetivo de fazer parte do presente e, portanto, do
popular, para que tenha impacto sobre a vida do cristão humilde.

O diálogo entre Adão e Eva, este primeiro diálogo histórico-universal entre homem e
mulher, converte-se num acontecimento da realidade mais simples e [cotidiana];
converte-se, por mais sublime que seja, num acontecimento de estilo simples e baixo
(AUERBACH, 2004, p. 132).

Preocupada com a propagação da fé cristã, a produção teatral da Idade Média instituiu


as peças de Milagres, que encenavam um conjunto de quadros recortados de fatos bíblicos,
como por exemplo, a vida e os milagres dos santos. Para Auerbach, no entanto, o conjunto das
peças de Mistérios é que contribui efetivamente para o exercício da mistura de estilos nos
dramas da era Elisabetana, a partir da representação de um ciclo, da contação da História
Universal trazida para o cotidiano do homem comum: a Paixão de Cristo, um ciclo que deve
ser reconhecido e interpretado, “cujo ponto culminante é a Encarnação e a Paixão, e cujo final,
ainda futuro e esperado, é o retorno de Cristo e o Juízo Final” (2004, p. 137). Barbara Heliodora,
em Caminhos do teatro ocidental (2013), afirma que, com o surgimento das Peças de
Moralidade, as produções dramáticas, principalmente na Inglaterra, dão indícios de uma
transformação que viria a atender o gosto popular para o teatro.

O desenvolvimento dramático das moralidades é importante porque não há história a


dramatizar, é preciso inventar enredos para ilustrar o conflito em pauta, que tem por
objetivo a salvação da alma do espectador. O universo do palco, portanto, não fica
isolado: ele tem consciência da presença do público e por vezes se dirige a ele, já que a
moralidade é feita para educá-lo (HELIODORA, 2013, p. 126).

Com o movimento rumo à secularização, surgiu a necessidade de temas que não fossem
de cunho estritamente religioso, consequência direta de uma característica mais próxima ao
introspectivo das Peças de Moralidade. Não somente as peças com tons mais herméticos eram
populares, como também os Interlúdios, produções cômicas que surgiram na alvorada do
Renascentismo, responsáveis pelo desaparecimento do anonimato dos autores, prática comum
da tradição medieval. Tais alterações firmam o processo de secularização do teatro, que passo
a passo possibilitou que os dramas encenados nos pátios das igrejas, ao longo do Medievo, se
deslocassem para as praças das cidades, propiciando a popularização do drama, sobretudo na
Inglaterra durante o século XVI.

Bill Bryson, em Shakespeare – o mundo é um palco: uma biografia (2008), traz a


seguinte informação sobre a produção dramática da Inglaterra Elisabetana:

Na dramaturgia clássica, as peças eram estritamente comédias ou tragédias. Os


dramaturgos elisabetanos recusaram as limitações dessa rigidez e introduziram cenas
cômicas nas mais sombrias tragédias – o porteiro atendendo uma batida na porta tarde
da noite em Macbeth, por exemplo. Ao fazê-lo, eles inventaram o alívio cômico
(BRYSON, 2008, p. 102-103).

De acordo com Bryson, a inserção de pequenos momentos cômicos em tramas


majoritariamente trágicas, portanto, é resultado da necessidade de atender ao gosto do
espectador elisabetano. Esse aspecto cômico na tragédia Romeu e Julieta em muito se parece
com os Inamorati, protagonistas da Commedia dell’Arte italiana, modelo de teatro de
improviso, cujo enredo principal trata sobre namorados cujas famílias se opõem ao seu amor.
A esse enredo, nota-se a inserção de um elemento tradicionalmente trágico, a intervenção da
morte, personagem recorrente das tragédias, clássicas e shakespearianas.

Também tradicionalmente, não só a morte é elemento-chave do drama trágico. Na


Poética de Aristóteles, as bases da tragédia clássica estão fundamentadas nos princípios de
tempo, espaço e ação, estabelecendo que o enredo deve acontecer no mesmo lugar (espaço), no
período equivalente à transição do dia (tempo) e com a ação conduzindo a trama ao final trágico,
sem intervenções que possam alterar o conteúdo do enredo. A tragédia deve ainda representar
personagens de elevado nível social, e entre eles, a figura central é o herói, cuja jornada é
definida pelo movimento de sua sorte, e cuja queda deve despertar no espectador um crescendo
de sentimentos em direção ao momento de catarse.

Os princípios básicos de tempo, espaço e ação, de acordo com Bryson, aparentemente


não são seguidos pelos dramaturgos elisabetanos. “Shakespeare se contentava em observá-los
quando lhe convinha (como em A comédia dos erros), mas nunca poderia ter escrito Hamlet ou
Macbeth, nem nenhuma das suas outras obras maiores, se se sentisse estritamente limitado por
isso” (BRYSON, 2008, p.103). Em Hamlet, toda a história acontece num período de
aproximadamente doze anos. Já em Otelo, há um salto temporal de pelo menos alguns meses,
referentes à viagem de navio, entre a primeira parte da peça, que está situada em Veneza, para
a segunda parte, que tem como cenário a ilha de Chipre. Em ambos os casos, os protagonistas,
os heróis trágicos, são membros de destaque na sociedade: Hamlet, príncipe da Dinamarca;
Otelo, general do exército veneziano. Suas ações e escolhas pessoais são responsáveis por seus
destinos trágicos; ambos passam do estado de cegueira metafórica em relação aos atos de
vilania, para o de descoberta, no primeiro caso, da traição entre irmãos, e no segundo, a intriga
de Iago e a calúnia que vitima a esposa.

No teatro clássico, a tragédia é a representação do nobre, do sublime, e a comédia é o


seu oposto direto. Mas essa delimitação não é seguida por Shakespeare, que, como vimos,
costumava entrelaçar o cômico e o trágico. Sob uma perspectiva mais tradicional, a comédia é
a forma dramática do popular. Ao tratar dos principais aspectos relacionados à comédia,
Northrop Frye, em Anatomia da Crítica (2013) discute primeiramente a estrutura da intriga que
serviu de base para grande parte das peças desse gênero. “O que normalmente ocorre é que um
jovem deseja uma moça, seu desejo não se concretiza por alguma oposição, geralmente paterna,
e que, próximo ao final da peça, alguma reviravolta na intriga permite que o herói obtenha o
que deseja” (FRYE, 2013, p.299).
Dessa forma, a criação dramática da Renascença inglesa se distancia daquela da
Antiguidade Clássica, que entendia a representação do drama a partir da rígida separação entre
a tragédia e a comédia. Na Poética de Aristóteles, a tragédia nos é apresentada como a
representação de assunto e personagens superiores, sendo “imitação de uma ação elevada e
completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma
de suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,
procura purificação de tais paixões” (1992, p. 48).

Nietzsche, em O nascimento da Tragédia, introduz o pensamento de que as produções


artísticas da antiguidade grega são produzidas a partir de impulsos da natureza que estão
relacionados às imagens dos deuses Apolo e Dionísio. Nesse sentido, a arte apolínea representa
a imagem do belo e do harmonioso, características fundamentadas naquele que o deus Apolo
significa dentro da mitologia grega. Por outro lado, há a produção dionisíaca, a partir
representação do deus Dionísio, associado a embriaguez, ao desejo do novo e do carnal. Esses
dois modos de representação, no drama grego, estão relacionados do modo antagônico as ações
do indivíduo.

A Poética aristoletiana também indica o tema da força do destino que rege a vida terrena
e que é fatal. O drama trágico é o drama do desfazer, do despedaçamento da personagem trágica
diante de seu destino inevitável. Nesse sentido, a comédia é o oposto da tragédia, é a
representação do cotidiano do homem comum, de personagens inferiores em relação à
personagem trágica. O enredo cômico segue em direção à harmonização e à ordenação.
Auerbach afirma, no capítulo O príncipe cansado (2004), que dentro da produção teatral
shakespeariana a mistura dos gêneros trágico e cômico se faz presente pelo menos na maioria
de suas tragédias.

O trágico e o cômico, o sublime e o baixo estão entrelaçados estreitamente na maioria


das peças [...] trágicas [...]. Enredos trágicos, nos quais ocorrem ações capitais ou
públicas ou outros acontecimentos trágicos, alternam com cenas cômicas populares ou
gaiatas que estão ligadas ao enredo principal, por vezes estreitamente, por vezes um
pouco mais frouxamente; ou, nas próprias cenas trágicas aparecem, ao lado dos heróis,
bufões ou outros tipos cômicos, que acompanham, interrompem e comentam à sua
maneira as ações, os sofrimentos e as falas das personagens principais; ou, finalmente,
muitas personagens trágicas tem em si próprias a tendência para a quebra de estilo
cômico [...] (AUERBACH, p. 280-281).
Romeu e Julieta é uma de tragédia carregada de características cômicas. Como exemplo,
o modo como o amor é apresentado na peça é, para Auerbach, de caráter muito próximo do
cômico. As personagens se desenvolvem dentro do enredo “do infantil para o trágico” (2004,
p. 281), e, para Northrop Frye (1999) o amor aparece “[na] perspectiva cínica e vulgar que
obtemos nos comentários de Mercúcio, e talvez nos da Ama também” (1999, p.35). Frye
entende a peça como um tipo de comédia pervertida, às avessas, com um tema tipicamente
cômico, no qual “um garoto conhece uma garota, o pai dele acha que ela não é boa o bastante,
o pai dela prefere alguém que tenha mais dinheiro, seguem-se várias complicações, e finalmente
o garoto fica com a garota” (1999, p.49). Embora, no centro dessa estrutura cômica de
disposição de personagens, estejam dois heróis trágicos, acompanhados duas figuras de fala
cômica: a Ama e Mercúcio. Como efeito, tem-se a representação do amor sublime sempre ao
lado da visão vulgar desse mesmo amor.

É mais fácil notar a vivacidade de Mercúcio e da Ama do que absorver e sustentar a


grandeza erótica de Julieta e o esforço erótico de Romeu de aproximar-se dela e de seu
sublime estado de estar apaixonada. Shakespeare [...] sabe que deve levar o público para
além das ironias obscenas de Mercúcio para que eles compreendam Julieta, pois sua
sublimidade é a peça e garante a tragédia desta tragédia. Mercúcio, o ladrão de cena da
peça, teve de ser morto para que a peça continuasse a ser de Julieta e Romeu; pois deixa-
lo seguir para os atos IV e V acabaria com o embate entre o amor e a morte. Nós
investimos tanto em Mercúcio porque ele nos protege de nosso próprio desejo erótico
para a perdição; ele está na peça com um propósito relevante. E também, de um modo
ainda mais obscuro, está a Ama, que ajuda a garantir o desastre final. 20 (BLOOM, 1998,
p.89)

Private Romeo, como um tipo de montagem cênica do texto dramático shakespeariano,


traduz o aspecto erótico da peça através da repetição do tema da descoberta sexual e o tema do
amor, enfatizando na imagem a linguagem corporal e o tom em que as cenas estão circunscritas.
Através da mesclagem estilística, o erotismo faz parte da linguagem e do tema tanto da peça
shakespeariana quanto do filme.

20
Minha tradução de: It is easier to see the vividness of Mercutio and the Nurse than it is to absorb and sustain the
erotic greatness of Juliet and the heroic effort of Romeo to approximate her sublime state of being in love.
Shakespeare […] knows that he must lead his audience beyond Mercutio’s obscene ironies if they are to be worthy
of apprehending Juliet, for her sublimity is the play and guarantees the tragedy of this tragedy. Mercutio, the scene
stealer of the play, had to be killed off if it was to remain Juliet’s and Romeo’s play; keep Mercutio in Acts IV and
V, and the contention of love and death would have to cease. We overinvest in Mercutio because he insures us
against our own erotic eagerness for doom; he is in the play to some considerable purpose. So, in an even darker
way, is the Nurse, who helps guarantee the final disaster.
Sexo e amor parecem estar intrinsecamente conectados na linguagem do drama
shakespeariano. Wells (2010) propõe uma leitura da peça a partir da análise da presença de
conotações sexuais na construção do texto dramático, pensando também nas consequências
para a encenação desse texto, tendo em vista suas possibilidades interpretativas.

Shakespeare lança suas observações preliminares sobre a forma de soneto, uma forma
poética cujas convenções permeiam a peça. Seu prólogo é inteiramente decoroso, mas
é interessante notar que ele fala da disputa que separa as casas Montéquio e Capuleto
pela imagem do ato sexual que concebe os amantes. “From forth the fatal loins of these
two foes | a pair of star-crossed lovers take their life” (dos fatais ventres desses dois
inimigos | nasce, com má estrela, um par de amantes). Desde o início os amantes estão
ligados ao ato sexual21 (WELLS, 2010, p.150, [grifos do autor]).

Desde o início, a peça “começa pelo sexo sem amor, e tem continuidade no amor sem o
sexo” (p.151). Este talvez seja o aspecto que mais distancia a o texto de Shakespeare do poema
de Arthur Brooke que lhe serviu de base. A linguagem do poema é extremamente pura e casta;
a motivação dos amantes é propulsionada exclusivamente pelo amor. As inserções sobre um
tipo de amor que diverge do amor cortês e todo o discurso erótico e obsceno que aparece através
das vozes de Mercúcio e da Ama revelam uma proposta artística por parte do dramaturgo que
vem a ser fundamental para o jogo amoroso entre o casal protagonista. Northrop Frye (1999)
afirma que a convenção do amor, na época de Shakespeare, adquirira um caráter mais popular,
ligado ao casamento, porém com aspectos de cunho erótico e sexual trabalhados mais
extensivamente nas artes. Sobre Romeu e Julieta, o autor comenta:

[O amor] abrange três formas diferentes da mesma convenção. Primeiro, a convenção


petrarquiana ortodoxa no amor confesso de Romeu por Rosalina, no início da peça.
Segundo, o amor menos sublimado para o qual a única solução digna seria o casamento,
representado pelo principal tema da peça. Terceiro, a perspectiva mais cínica e vulgar
que obtemos nos comentários de Mercúcio, e talvez nos da Ama também (FRYE, 1999,
p. 35).

21
Minha tradução de: Shakespeare casts his prefatory remarks in the form of a sonnet, a poetic form whose
conventions pervade the play. His prologue is entirely decorous, but it is interesting that he speaks of the feud that
divides the houses Montague and Capulet in terms of the lovers’ sexual engendering: ‘from forth the fatal loins of
these two foes | a pair of star-crossed lovers take their life’. From the start the lovers are associated with the sexual
act.
Em Private Romeo, através da imagem, existe uma construção erótica que transborda o
texto da fala. O tema se transforma em homoerótico com a performance do casal protagonista
traduzida no casal homossexual e do despertar de seu desejo sexual. Sobre homoerotismo, José
Carlos Barcellos afirma:

[Wolfgang] Popp parte de estudos anteriores ao seu e faz uma rápida análise de como
procuraram circunscrever os tópoi “amizade masculina”, “eros entre homens” ou
“sexualidade entre homens”. Das obras que resenha, têm particular interesse as de Hans
Dietrich Hellbach e Volker Ott, pela maneira como buscam delimitar o homoerotismo
como tema. Hellbach distingue “amizade masculina”, “amor de amigos” e
“homossexualidade”. O “amor de amigos”, em que o desejo é sublimado
espiritualmente, seria uma configuração intermediária entre a “mera” amizade e a
homossexualidade propriamente dita e constitui o objeto sobre o qual se centra o estudo
de Hellbach, publicado em 1931. Volker Ott, por sua vez, propõe o conceito de
“homotropia” para descrever a atração entre parceiros do mesmo sexo, seja ela de
natureza sexual (homossexualidade), erótica (homoerotismo) ou pessoal (homofilia)
(BARCELLOS, 2006, p.18).

O conceito de homoerotismo utilizado pelo autor discute de forma ampla as diversas


relações eróticas entre pessoas do mesmo sexo, independente de elementos afetivos, identitários
e corporais. Por não propor uma definição ou uma imagem hermética, uma análise estética com
base em um pensamento homoerótico não está simetricamente ligada à definição de
homossexualidade. Eve Sedgwick (1985) apresenta uma discussão em torno da
homossociabilidade a fim de identificar um apanhado de práticas sociais que regem as relações
entre os indivíduos que partilham da mesma identidade de gênero. A ideia de desejo
homossocial masculino indica uma análise sobre a estrutura patriarcal em que homens,
heterossexuais ou não, constroem laços. O alicerce de tais relações é um construto que nasce a
partir de interações de admiração e cumplicidade entre homens dentro de um contexto em que
heterossexualidade construída é também definida a partir de seu ímpeto de autodefesa em
relação à experiência homossexual, refletido na ideia de pânico homossexual. Dentro dessa
linha de pensamento, o tempo “desejo” substitui o termo “amor”, no intuito de enfatizar a
potência erótica que existe na estrutura do elo contínuo (e inquebrável) entre
homossociabilidade e homossexualidade – este elo funciona como sustentáculo do sistema
patriarcal.
[...] a maioria dos estudos sobre estruturas do patriarcado sugerem que uma
“heterossexualidade obrigatória” está atrelada à sistemas de afinidade entre homens, ou
que a homofobia é uma consequência necessária de instituições patriarcais, como o
casamento heterossexual. [...] do ponto de vista privilegiado de nossa sociedade, em
qualquer instância, é aparentemente impossível imaginar uma forma de patriarcado que
não seja homofóbica22. (SEDGWICK, 1985, p.698)

Uma ideia de homossociabilidade está presente desde os primeiros minutos do filme,


desde o primeiro voiceover da leitura da peça Romeu e Julieta na sala de aula, até a imagem
que apresenta os cadetes. Nesses primeiros instantes, a imagem em movimento cria uma
repetição temática com a sobreposição da peça shakespeariana no cenário e nas relações
homossociais masculinas que ele implica. Nesse sentido, o que é apresentado pela ambientação
revela que o confinamento e as relações sociais impostas pelo espaço, eventualmente,
despertarão naquele grupo de alunos um desejo que será traduzido através da potência erótica
das interações dentro daquele espaço.

A relação íntima das personagens no filme, naquele contexto de confinamento, é


flagrada pela câmera e o jogo erótico entre os corpos é exposto – a narrativa se preocupa em
apresentar a rotina dos alunos no vestiário, nos dormitórios, suas atividades físicas, etc. Há dois
momentos no filme em que essa relação e ênfase nos corpos é reveladora. O primeiro deles é o
momento em que os amantes se encontram. Antes da repetição do soneto na fala, Romeu
aproxima-se de Julieta. Suas mãos, tímidas, tocam umas às outras; a interação dos corpos denota
um instante de exploração e descoberta do objeto desejado que, na imagem, se traduz na
casualidade de uma conversa entre dois colegas de classe.

Figura 20: Romeu e Julieta se encontram [01]

22
Minha tradução de: Much of the most useful recent writing about patriarchal structures suggest that “obligatory
heterosexuality” is built into male-dominated kinship systems, or that homophobia is a necessary consequence of
such patriarchal institutions as heterosexual marriage. […] from the vantage point of view of our society, at any
rate, it has apparently been impossible to imagine a form of patriarchy that was not homophobic.
Figura 21: Romeu e Julieta se encontram [02]

Figura 22: Romeu e Julieta se encontram [03]

Figura 23: Romeu e Julieta se encontram [04]

A interação das mãos nesse momento serve como uma introdução ao tema do diálogo
em soneto entre os dois. Casualmente, o movimento das mãos, junto com a fala, se desenvolve
proporcionalmente à aproximação dos corpos e os lábios se tornam evidentes, tanto na imagem,
quanto na fala.
ROMEU
Se a minha mão profana esse sacrário,
Pagarei docemente o meu pecado:
Meu lábio, peregrino temerário,
O expiará com um beijo delicado.

JULIETA
Bom peregrino, a mão que acusas tanto
Revela-me um respeito delicado;
Juntas, a mão do fiel e a mão do santo
Palma com palma se terão beijado.

ROMEU
Os santos não têm lábios, mãos, sentidos.

JULIETA
Ai, têm lábios apenas para a reza.

ROMEU
Fiquem os lábios, como as mãos, unidos;
Rezem também, que a fé não os despreza.

JULIETA
Imóveis, eles ouvem os que choram.

ROMEU
Santa, que eu colha o que os meus ais imploram. (SHAKESPEARE, Ato I, cena
V)23

23
Tradução de: Rom. If I prophane with my vnworthiest hand, This holy shrine, the gentle sin is this, My lips to
blushing Pilgrims did ready stand, To smooth that rough touch, with a tender kisse.
Iul. Good Pilgrime, You do wrong your hand too much. Which mannerly deuotion shewes in this, For Saints haue
hands, that Pilgrims hands do tuch, And palme to palme, is holy Palmers kisse.
Rom. Haue not Saints lips, and holy Palmers too?
Como exemplo daquilo que Sedgwick apresenta como pânico homossexual, a
performance de Teobaldo, nesse momento da narrativa fílmica, sugere que a cena de descoberta
e exploração do desejo protagonizada por Romeu e Julieta representa algo de ameaçador e
desperta em Teobaldo motivações homofóbicas de defesa e preservação da sua
heterossexualidade construída.

Figura 24: Teobaldo

Já o movimento dos corpos atraídos e repelidos descreve uma definição de erotismo


discutida por George Bateille (1987). Para o autor, para que seja possível compreender o jogo
erótico nas relações humanas, as definições de continuidade e descontinuidade do ser são
imperativas. O desejo e a experiência interior é revelado através da identificação de um ponto
externo, um objeto de desejo de uma descontinuidade humana, que anseia por completude.
“Esse objeto tem os mais variados aspectos, mas, desses aspectos, só penetramos o sentido se
percebemos sua coesão profunda” (BATEILLE, p. 31), revelada na busca pelo fim da
descontinuidade que, de acordo com o autor, só é possível através da experiência da morte. A
nudez, dentro desse pensamento, é ação decisiva que se opõe ao estado fechado de uma
existência descontínua.

Iul. I Pilgrim, lips that they must vse in prayer.


Rom. O then deare Saint, let lips do what hands do, They pray (grant thou) least faith turne to dispaire.
Iul. Saints do not moue, Though grant for prayers sake.
Rom. Then moue not while my prayers effect I take: Thus from my lips, by thine my sin is purg'd.
[A nudez] é um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível
do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade
através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade
significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conformes à posse
de si, à posse da individualidade durável e afirmada. Há, ao contrário, desapossamento
no jogo dos órgãos que se derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das
ondas que se penetram e se perdem uma na outra. Esse desapossamento é tão completo
que no estado de nudez, que o anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres
humanos se esconde, mais ainda se a ação erótica, que acaba de desapossá-los,
acompanha a nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido
pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da
imolação (BATEILLE, 1987, p.14).

Portanto, a cena em que os amantes se encontram no quarto de julieta exibe e


exemplifica o contato dos corpos no clímax da busca pela continuidade nos termos do erotismo.
A pulsão de morte – que muito se traduz na performance maneirista da personagem Mercúcio
– aqui, através do ato do sexo, significa ao mesmo tempo desligamento e desencadeamento da
sexualidade dos amantes, na medida em que o gozo, em termos freudianos, é qualificado com
a pequena morte. O termo pulsão significa uma força vital/sexual, que descreve um movimento,
uma trajetória cujo objetivo da experiência da vida culminará na morte como resultado
(ROSOLATO, 1999). A cena, portanto, traduz uma certa pulsão de morta dentro do jogo erótico
e da nudez dos corpos.

Figura 25: Romeu e Julieta - Nudez [01].


Figura 26: Romeu e Julieta - Nudez [02].

Figura 27: Romeu e Julieta - Nudez [03].

Morte, dentro do pensamento crítico sobre o gênero dramático, é um aspecto de tragédia.


A linguagem erótica, para o filme e principalmente para a peça shakespeariana, marca o
exercício da mesclagem estilística como ruptura de um modelo de produção dramática
defendido pela crítica aristotélica.

Romeu e Julieta inicia-se com o prólogo proferido por um coro trágico, anunciando a
trama. O prólogo, que na peça de Shakespeare aparece em dois momentos, antes do primeiro e
do segundo atos, é componente obrigatório na estrutura da tragédia clássica, como entendida
por Aristóteles. É o momento em que o coro apresenta informações sobre o que irá acontecer
dali em diante, a fim de garantir a temporalidade estrutural do drama trágico, concentrado em
um dia. No texto em exame, o primeiro prólogo, curiosamente, apresenta as informações
referentes aos princípios de espaço e ação, juntamente com o cenário de ódio em que se
encontram as duas famílias. Montéquios e Capuletos são iguais em dignidade, e tal informação,
acompanhada do silêncio em relação ao motivo inicial da inimizade entre eles, não permite que
o espectador desenvolva qualquer juízo de valor sobre a culpabilidade das duas casas, ou que o
julgamento pese mais para uma do que sobre a outra. É o tom grave desse prólogo que nos
informa de que a história de Julieta e Romeu é trágica, e que, portanto, não haverá final feliz
no molde dos desfechos cômicos. Ao contrário de ordenação, haverá esfacelamento.

No entanto, a cena de abertura da peça não se inicia, como tradicionalmente se espera


de uma tragédia, com personagens oriundos da nobreza (não somente as clássicas, mas também,
como lembramos acima, as grandes tragédias shakespearianas também tratam de fatos da vida
de nobres e aristocratas da sociedade). Há uma situação cômica no início da primeira cena que
traz bastante informação sobre o clima social tenso daquele momento. Os criados da casa dos
Capuleto saem para as ruas armados e enaltecendo seus feitos e o seu senhor; fazem piadas e
brincadeiras viris que, para Frye (1999), servem de metáfora para o tema de amor ligado à morte
e a violência.

A cena se torna farsesca quando o velho Montéquio e o velho Capuleto correm para
suas espadas e saem apressadamente pela rua para provar a si mesmo que são tão bons
como sempre foram, enquanto suas mulheres, percebendo tudo, seguram-nos tentando
mantê-los longe do problema. (FRYE, 1999, p.30)

A peça muda de tom após a morte de Mercúcio. Portanto, a Morte aparece como
elemento trágico da trama que, até então, seguia o curso de uma comédia shakespeariana,
porque, no momento em que morre, Mercúcio ratifica através da sua fala o destino, o infortúnio:
“que a praga caia sobre vossas casas” (Ato III, cena I). Destino inevitável, que opera sobre os
amantes desde que nasceram, com a “má estrela”, como nos é informado no prólogo – as
peripécias dos amantes no intuito de manter viver o sentimento (o casamento às escondidas, por
exemplo) podem ser interpretadas como tentativas de fuga do infortúnio, do mesmo modo que
o cumprimento do destino de Hamlet acontece, apesar de sua capacidade de questionar os fatos
e a si mesmo. No instante em que Mercúcio é atingido, os pensamentos de Romeu afastam-se
da jovem Capuleto e se revestem do desejo de vingança. Instala-se aqui também a desmedida
trágica: os protagonistas, que aparentemente triunfariam sobre o ódio, perdem aqui um de seus
enamorados, pois Romeu, no instante em que tira a vida de Teobaldo, torna-se efetivamente um
herói trágico condenado à morte, simbólica e física.

Ao final da peça, o evento responsável pela reviravolta da trama – a carta que não chega
a tempo – que, numa comédia de erros, seria motivo de mais situações cômicas, resulta no
suicídio dos jovens namorados. Porém, é possível notar, além deste traço trágico, um outro
aspecto que Northrop Frye apresenta, em Anatomia da Crítica (2013), como o resultado das
ações da comédia. Segundo o autor, há durante o desenvolvimento do enredo cômico a mudança
do tipo de sociedade.

[...] o movimento da comédia é geralmente de um tipo de sociedade para outro. No


início da peça, as personagens obstrutoras[a]s estão no comando da sociedade da peça
[...]. No final da peça, o artifício na intriga que une o herói à heroína faz que uma nova
sociedade se cristalize em volta do herói, e o momento em que essa cristalização ocorre
é o ponto de resolução na ação, o reconhecimento cômico [...]. (FRYE, 2013, p. 299)

O movimento desvelado pelo final trágico de Romeu e Julieta é sinônimo também de


um projeto social que apontava para o fim do feudalismo, representado pelas famílias, e a
consolidação do Absolutismo, encenado na performance do Príncipe. Para além disso, a citação
de Frye nos conduz a uma das respostas à pergunta da Ama, no Ato III, Cena II: “Então, a morte
é o fim de tudo?”, pergunta ela a Romeu. A morte não é o fim de tudo. É o artifício que une
novamente os protagonistas – o amor não vive no plano terreno, mas na vida após a morte –
que desfaz a sociedade dividida entre os Montéquio e os Capuleto, e que a transforma em uma
nova forma de relacionamento social, em que a paz é estabelecida à custa do sacrifício e da
tragédia dos amantes desafortunados.

CAPULETO
Irmão Montéquio, dai-me a vossa mão
É este o dote que traz minha filha;
Nada mais posso dar.

MONTÉQUIO
Pois eu posso.
Farei por ela estátua de ouro puro.
Enquanto esta cidade for Verona
Não haverá imagem com o valor
Da de Julieta, tão fiel no amor.
CAPULETO
Romeu, em ouro, estará a seu lado,
Que nosso ódio também sacrificou.

PRÍNCIPE
Uma paz triste esta manhã traz consigo;
O sol, de luto, nem quer levantar.
Alguns terão perdão, outros castigos;
De tudo isso há muito o que falar.
Mais trise história nunca aconteceu
Que esta, de Julieta, e seu Romeu (Ato V, cena III) 24

A mesclagem estilística como aspecto do texto dramático shakespeariano, quando


traduzido na performance fílmica, transborda o entrelace amor-erotismo-desejo, revelando uma
nova possibilidade discursiva em sua linguagem. Como releitura homoerótica da peça Romeu
e Julieta, Private Romeo une o enredo do cânone a questões que permeiam os discursos sobre
identidades sexuais e sexualidades. De que modo as relações do desejo homossocial masculino
é ferramenta capaz de contribuir para um entendimento do filme como objeto desafiador da
chamada heterossexualidade obrigatória? A partir de um recorte sobre alguns discursos acerca
da sexualidade e do gênero, o próximo capítulo propõe uma leitura da construção da narrativa
fílmica, enxergando-o como produto midiático que, apesar de suprir uma necessidade de
discussão sobre tais temas, precisa ser analisada como suplemento, como um recorte que
necessariamente está sujeito a limitações culturais, políticas e sociais.

24
Cap. O Brother Mountague, giue me thy hand, This is my Daughters ioynture, for no more Can I demand.
Moun. But I can giue thee more: For I will raise her Statue in pure Gold,That whiles Verona by that name is
knowne, There shall no figure at that Rate be set, As that of True and Faithfull Iuliet.
Cap. As rich shall Romeo by his Lady ly, Poore sacrifices of our enmity.
Prin. A glooming peace this morning with it brings, The Sunne for sorrow will not shew his head; Go hence, to
haue more talke of these sad things, Some shall be pardon'd, and some punished. For neuer was a Storie of more
Wo, Then this of Iuliet, and her Romeo.
3 INTERSECÇÕES DE IDENTIDADES SEXUAIS EM PRIVATE ROMEO

“Se o mundo todo é um palco, identidade não é nada mais do que uma fantasia”.

(Sense8, episódio 10)

Joshua Gamson inicia o seu ensaio Sweating in the Spotlight com a afirmativa de que o
século XXI traz consigo um grande número de produções midiáticas, principalmente na cultura
popular norte-americana, em que personagens homossexuais estão presentes, em grande parte,
fora de representações pejorativas. Neste século, há um movimento de popularização de
narrativas sobre gays e lésbicas que, de certa forma, provoca uma mudança na opinião pública
sobre esses sujeitos.

O estudo da relação entre lésbicas e gays com a cultura popular e os meios de


comunicação segue os rastros e responde a esse movimento dramático em direção ao
holofote cultural, um conjunto de ações que não somente tem sido pleiteado pelos seus
respectivos movimentos sociais, mas que também tem ultrapassado barreiras há muito
estabelecidas entre eles. Estudos de mídia e cultura lésbica e gay, assim como os estudos
de gênero de modo geral, são parcialmente moldados por sua relação próxima com os
movimentos sociais, e, portanto, têm reproduzido tensões importantes para o
movimento25 (GAMSON, 2002, p. 340)

As tensões mencionadas pelo autor fazem referência direta ao modo como


homossexuais, durante os anos 1970, eram representados pela mídia, principalmente em
Hollywood. Dentre as preocupações dos estudiosos dessa época, há os perigos da invisibilidade,
da estereotipização e da estigmatização, modos de representação de indivíduos homossexuais
relacionados com o seu longo processo de conceptualização, de sua categorização e articulação
indentitária dentro de um espaço de “inexistência”.

Durante os anos 1980 e 1990, houve um processo de fragmentação dos modelos de


estudos das minorias lésbica e gay. Nesse período, a parcela de sujeitos inseridos nesses grupos

25
Minha tradução de: The study of the relationship of lesbians and gay men to popular culture and media roughly
tracks and responds to this dramatic move into cultural spotlight, a move that has not only been actively pursued
by lesbian and gay social movements but has also exacerbated long-standing divisions within them. Lesbian and
gay media and culture studies, like lesbian and gays studies in general, are partially shaped by their close
relationship to lesbian and gay movement, and they have thus reproduced key, interesting tensions in the
movement.
minoritários que não se sentiam contemplados ou pertencentes a uma “unidade gay”, por conta
de questões vinculadas a recortes políticos, étnicos e de classe, cresce acentuadamente. As
reivindicações dessa parcela baseavam-se na insistente exclusão de experiências, valores e
interesses particulares que destoavam do modelo que veio a ser adotado na representação de
toda a comunidade. Por exemplo, homens e mulheres gays seguiram o seu próprio caminho na
construção de uma identidade própria e, como consequência, passaram a sofrer com a
representação distorcida de sua identidade tanto pela cultura do gay branco mainstream quanto
pela cultura heterossexual afro-americana. De fato, desde os anos 1980 até as primeiras décadas
do século XXI, a busca de grupos não-heterossexuais por uma construção/representação
indentitária tem sido cada vez mais dividida. Esse talvez seja um dos reflexos mais atenuantes
das questões da ordem dos movimentos sociais em pauta que ainda gera pontos de
problematização dos produtos midiáticos sobre esses grupos.

A grande mídia age por vias duplas. Por um lado, ela serve tanto como um meio de
comunicação capaz de representar as diversas identidades sociais (e sexuais); por outro,
funciona também como aparelho de construção de tais identidades. Tanto a capacidade de
representação e construção estão sob as vestimentas da perpetuação de estereótipos quanto da
desconstrução de imagens tradicionais sobre o corpo e o sexo dos indivíduos.

Como parte dessa produção midiática do século XXI, o filme Private Romeo também
traz, na proposta da sua história, essa relação imbricada entre as reivindicações, a popularidade
e os perigos de mimetização, num recorte muito particular de representação do gay branco. A
narrativa fílmica trabalha com o tema da descoberta sexual na encenação de uma história em
que a identidade e o desejo sexual das personagens referenciam aspectos do contexto sócio-
político em que a produção nasce.

No primeiro volume de História da sexualidade (1999), Michael Foucault faz um


levantamento da história dos diversos discursos sobre sexualidade e o desejo sexual. No curso
da história, o sexo é tratado como tema capaz de proporcionar o desenvolvimento estrutural da
sociedade ocidental a partir de um exercício que viria a conceptualizar, caracterizar e definir
nomenclaturas para uma pluralidade de corpos, sexos, gêneros e experiências sexuais. O
processo de silenciamento se dá através de uma proposta de controle das experiências.
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira,
nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao
silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-
ão desaparecer – sejam atos ou palavras. [...] se for mesmo preciso dar lugar às
sexualidades ilegítimas, que vão incomodar noutro lugar: que incomodem lá onde
possam ser reinscritas, senão nos circuitos da produção, pelo menos nos do lucro.
(FOUCAULT, Michel, 1999, p. 10)

Há, através do forte silêncio – presente como opção de som, enquanto a câmera
apresenta o cenário – nos primeiros minutos em Private Romeo, uma construção que faz
referência à discussão em torno daquilo que é permitido como exercício da sexualidade
individual. Há também, com a mesma intensidade, a proposta de apresentar e discutir a
descoberta do desejo sexual na tradução de uma narrativa heterossexual hegemônica em uma
nova, não-heterossexual. Como escolha que resgata um aspecto do teatro renascentista, as
personagens femininas são encenadas por atores homens. O recorte do filme – o contexto
contemporâneo e as reverberações da história narrada (os dois soldados que se apaixonam) – se
expande no momento em que, para o espectador, cenário e personagens significam não somente
Julieta, Romeu e Verona. Dessa forma, o problema da sexualidade que não se conforma diante
das normas reguladoras heterossexistas do mundo ocidental é logo posto em evidência.

A definição de uma sexualidade transgressora coincide historicamente com o momento


na cultura ocidental em que tem início um processo de associação imbricada entre
“conhecimento” e “sexo”, afirma Foucault (1999). Para tal discussão, a imagem da árvore do
conhecimento e do fruto proibido é exemplar na formulação do pensamento de que a
sexualidade é o próprio fruto. O conhecimento é o sexual (SEDGWICK, 2007, p.29). O
pensador francês identifica a definição da homossexualidade como um mecanismo de
enquadramento e proibição de um desejo sexual, que consequentemente viria a acentuar a
oposição entre a norma heterossexual e o desvio da norma. O silêncio funciona como
ferramenta capaz de impor e perpetuar sobre o corpo do sujeito homossexual os ideais de
conduta e higienização construídos pela sociedade ocidental, durante o século XIX (a exemplo
da burguesia da Inglaterra vitoriana). Tal imposição, porém, não acontece sob o manto da
proibição, simplesmente. Foucault afirma que o interesse em relação à regulação do sexo está
muito mais associado aos discursos sobre sexo. O século XVIII viu surgir um interesse político
e econômico sobre o sexo a fim de manter um controle através de movimentos de análise e
classificação da sexualidade.
Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou
tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer
funcionar sobre um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-
se ao poder público; exige procedimentos de gestão, deve ser assumido por discursos
analíticos. No século XVIII o sexo se torna questão de “polícia” (FOUCAULT, 1999,
p.26-27).

O século XVIII, continua o filósofo, foi o período em que o interesse sobre o sexo das
crianças e dos adolescentes nasceu e cresceu, mais precisamente, em relação ao controle da
sexualidade destes dois grupos a partir de estratégias discursivas em diferentes instâncias
sociais. O que se desenvolve nesse período é um modo de falar sobre o sexo na comunicação
entre os indivíduos que estava intrinsecamente entrecruzado com o jogo de relações de poder.
A partir desse período, os discursos sobre o sexo entram em atividade conjunta com outras
instâncias sociais, como a justiça penal, a medicina e a psiquiatria – esta com a linha de estudo
voltada à busca das origens das patologias mentais – sendo atravessado pelo discurso da
perversão sexual.

A multiplicidade de discursos sobre o sexo iniciado no século XVIII, de acordo com


Foucault, provocou “uma espécie de erotismo discursivo generalizado” (p.34), que se fortaleceu
durante o século XIX. Impor ao sujeito que ele fale de sua sexualidade foi um exercício de
prolixidade que tinha como objetivo observar, interrogar, classificar e regular as expressões
pessoais sobre o sexo. Prolixidade que não significou acréscimo ou legitimação de diferentes
experiências sexuais. A regulação desses discursos aconteceu tendo como principal critério uma
economia da reprodução, banindo práticas sexuais cujo fim seria exclusivamente o prazer,
afastado da necessidade de procriação e da aliança heterossexual no matrimônio. Neste grupo
estão o estupro, o incesto, o adultério e a homossexualidade.

Leis naturais da matrimonialidade e regras imanentes da sexualidade – não sem


lentidões e equívocos – começam a se inscrever em dois registros distintos. Afigura-se
um mundo da perversão, secante em relação ao da infração legal ou moral, não sendo,
entretanto, simplesmente uma variedade sua. Surge toda uma gentalha diferente, apesar
de alguns parentescos com os antigos libertinos. Do final do século XVIII até o nosso,
eles correm através dos interstícios da sociedade perseguidos pelas leis, mas nem
sempre, encerrados freqüentemente nas prisões, talvez doentes, mas vítimas
escandalosas e perigosas presas de um estranho mal que traz também o nome de "vício"
e, às vezes de "delito" (FOUCAULT, 1999, p.40-41).
A homossexualidade, nesse sentido, desacoplada da prática da sodomia, recebe um novo
olhar na condição de objeto de análise independente; transforma-se em comportamento
desviante, uma espécie abnorme, heresia incorporada ao sujeito. A abertura do espaço para os
discursos sobre a chamada “espécie homossexual” (p.96) garantiu a prática de controles sociais
sobre o corpo desses indivíduos, marcado pelo sinal da perversão. No entanto, permitiu também
o surgimento de uma expressão de reação em que “a homossexualidade pôs-se a falar por si
mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua ‘naturalidade’ e muitas vezes dentro do
vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico” (p.96).

A presença da voz das instituições normalizadoras e reguladoras voltadas para a


sexualidade dos corpos mostra uma força capaz de naturalizar suas conclusões e definições
sobre a homossexualidade a partir de ferramentas de análise e categorização das diferentes
práticas sexuais. De acordo com Eni Orlandi (2007), a dimensão política do silêncio transpassa
a barreira hierárquica do silenciamento. Seu alcance como ferramenta retórica tanto de um
projeto de opressão como de seu uso pelo oprimido, se articula dentro do seu espaço silenciado
como modo de resistência. Trata-se de um modo de relação apresentado na dinâmica entre o
centro de poder que propõe a discussão sobre sexualidade, a fim de classifica-la e marginaliza-
la, e o indivíduo marginalizado, ao usar desse mesmo mecanismo de prolixidade para se
defender. A força discursiva do silêncio, nesse sentido, nasce da ideia de que “o ato de falar é
o de separar, distinguir e, paradoxalmente, vislumbrar o silêncio e evitá-lo. Esse gesto disciplina
o significar, pois já é um projeto de sedentarização do sentido” (p.28). Como resultado, o
silenciamento do sujeito homossexual é resultado do incessante falatório sobre esse sujeito e o
silêncio ao seu redor é constantemente interpelado por discursos a serviço de uma
caricaturização, estereotipização de seu corpo. Nesse espaço, o sujeito não-heterossexual é
mimetizado como tipo social; seu corpo é inventado numa escala de preconceito e definição
que determina o que é o homem “afeminado”, ou a mulher “masculina”, por um discurso
regulador que impõe a sexualidade selecionada como representante de uma hegemonia social.

A estratégia de falar “prolixamente de seu próprio silêncio” (p.14) significa que a


sexualidade – neste caso, especificamente a homossexualidade – antes de proibida, é produzida
discursivamente. Portanto, o silêncio que inicia a narrativa de Private Romeo é sintomático e
traduz na imagem o funcionamento de tal estratégia.
Ao expor e analisar a invenção do homossexual, [Foucault] mostrou que identidades
sociais são efeitos da forma como o conhecimento é organizado e que tal produção
social de identidades é “naturalizada” nos saberes dominantes. A sexualidade tornou-se
objeto de sexólogos, psiquiatras, psicanalistas, educadores, de forma a ser descrita e, ao
mesmo tempo, regulada, saneada, normalizada por meio da delimitação de suas formas
em aceitáveis e perversas. Daí a importância daquelas invenções do século XIX, a
homossexualidade e o sujeito homossexual, para os processos sociais de regulação e
normalização. (MISKOLCI, 2009, p. 153)

Também como resultado desse processo de prolixidade e regulamentação, nasce a ideia


de heteronormatividade, que se torna objeto de obsessão da sociedade moderna ocidental. A
força do discurso da heteronormatividade, ali, é extrema, traduzida na imagem do militar
(homem) branco heterossexual. Este sujeito é construído a partir de um cruzamento de diversas
definições de virilidade, de bricolagens de diferentes figurações históricas do homem viril.

A tradição da virilidade demarca a valorização do masculino perfeito através de aspectos


específicos vinculados, em determinados instantes da história, à bravura, à violência, e em
outros, à sagacidade e à astúcia atreladas ao corpo perfeito que não existe, necessariamente,
para o exercício da guerra. Georges Vigarello, em A História da Virilidade¸ introduz o
pensamento sobre a virilidade construída no modelo ideal de masculino.

[...] não mais o homem, por exemplo, mas aquele que “vale” mais, não mais aquele que
representa o sexo varonil, mas aquele que representa da melhor forma possível, ou
maximamente, o masculino. O tema grego é igualmente uma matriz, um cruzamento de
polos tornados outros tantos polos fundadores: a força unida à coragem, a afirmação
pessoal unida ao domínio sexual, um modelo de reconhecimento, enfim, unido a um
modo de formação. O que permite ainda hierarquizar: estigmatizar os “covardes”, por
exemplo, os indecisos, os “medrosos”, insistir sempre na necessidade de fortificar e
educar” (VIGARELLO, 2013, p.11).

O modelo em questão muda para se adaptar às necessidades de cada tempo. Era parte
do ideal de virilidade do soldado grego lutar em defesa de sua cidade e também, com a mesma
bravura, de um ponto de vista heroico, lutar em defesa de seu amante. A iniciação sexual, nesse
período, constituía um tipo de relação de conhecimento exclusivamente entre homens. O
cristianismo, no entanto, na Idade Média, “condena a homossexualidade e valoriza a castidade”
(VIGARELLO, p.13). A complexidade social advinda da modernidade introduz novas
instâncias de virilidade interpeladas tanto por valores de exemplaridade cristã quanto por
técnicas de exercício militar, mais afastadas daquelas da antiguidade. Os diferentes tipos de
virilidade e seus processos de autorratificação na história se estabelecem de modo simétrico
àquele de seleção da heteronormatividade. O ideal de “macho viril” reivindica para si
determinadas características, construindo um tipo de masculinidade, ao mesmo tempo em que
cria em oposição, e sem diálogo, modelos de feminilidade, que o mundo ocidental aprendeu a
associar ao homem homossexual, destituído de virilidade.

O espaço militar em Private Romeo é o cenário que serve de exemplo de uma sociedade
em que “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e
perigos” (FOUCAULT, p.9). A ideia de controle permeia tanto a força do nome da instituição
quanto os limites físicos daquele espaço. As personagens estão sob constante vigilância
panóptica, numa atmosfera construída para gerar a impressão de vigilância.

[...] quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista
das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do
estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse fosse o objetivo, exigiria
que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo.
Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver
razão para acreditar nisso e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que
está nessa condição. (BETHAM, Jeremy, 2008, p. 20)

A câmera encarrega-se de produzir um efeito de observação nos instantes em que a


presença da figura inspetora não está em cena, contribuindo para uma ambientação cujo efeito
encerra um ciclo, num movimento de vigilância, ora pelo olhar do espectador, ora pelo olhar da
instituição representada em cena. Métodos de controle como a ideia de quarentena sobre os
soldados que permanecem no espaço, a ordem de proibição e de conduta na fala da figura
responsável, a sensação de vigília sobre os corpos dos dois rapazes protagonistas, flagrados por
feixes de luz, os olhos da instituição representados na luz e na câmera, no modo como o
espectador é apresentado à narrativa, nesse sentido, existem com o intuito de garantir o
exercício da heteronormatividade através de uma heterossexualização do desejo, que também
se conecta a imagens de masculinidade e feminilidade.

Judith Butler (2016), ao fazer uma leitura de Foucault, aponta para o problema da
construção de um sujeito feminino regulamentado como consequência do processo de
normatização do masculino/da heterossexualidade: uma imagem de feminilidade que
aparentemente universaliza o sujeito dentro de uma concepção de “gênero” que não se propõe
a observá-lo em suas especificidades sociais, políticas e culturais. Uma definição una de sujeito
é contestada no instante em que se abre espaço para a problematização de gênero como um
modelo de interpretação do sexo fortemente influenciado por uma proposta de representação
hegemônica.

A discussão sobre modelos de masculinidade e feminilidade se desenvolve no espaço


da definição entre o sexo supostamente biológico e o gênero construído. A autora aponta para
a naturalidade das características físicas historicamente atribuídas ao sexo de um corpo a partir
de discursos a serviço de interesses políticos e sociais. A distinção entre sexo e gênero serviu
para contestar a ideia de que, biologicamente, o corpo está fadado ao seu sexo intrínseco, com
o pensamento de que o gênero é uma nomenclatura que nasce da necessidade cultural de
encerrar o papel do corpo no sexo, determinando padrões supostamente simétricos entre as duas
categorias. Butler afirma que, se levado ao extremo lógico, tal pensamento “sugere uma
descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos” (p.26). Em
outras palavras, quando o gênero é teorizado como algo construído e independente do sexo
atribuído pelo discurso biológico, perde-se a relação mimética entre os binômios homem-
masculino, mulher-feminino.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado
num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o
aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.
Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também
é meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é
produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura. [...] colocar a dualidade do sexo num
domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a
estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. (BUTLER, 2016, p. 27-28)

Entre a discussão do gênero construído e o sexo biológico, está a dúvida sobre a


identidade sexual como algo construído ou não, suscitando o questionamento da sexualidade
como algo hermético, inerente ao sujeito, parte de uma visão essencialista da identidade sexual.
Nesse debate, sexualidade tem sido evidenciada como fator que ratifica o desenvolvimento
natural entre sexo e gênero adequados a uma heterossexualidade compulsória.

Entre as reverberações de sua proposta narrativa, há, em Private Romeo, um projeto de


universalização do romance, da descoberta sexual e dos relacionamentos e jogos amorosos que
acaba por servir de ferramenta para higienização e normatização do relacionamento entre
pessoas do mesmo sexo. Nesse sentido, para que uma narrativa não-heterossexual seja aceita
como história válida de ser contada é necessário que se torne, através dos mecanismos da
construção midiática, bela e sublime – características intrinsecamente associadas ao ideal
heterossexual regulamentado que, por sua vez, encontra reforço na imagem repetida em
simulacro do mito do amor proibido.

A montagem de Romeu e Julieta na roupagem de um casal homossexual, aqui, abre mão


de certos recortes econômicos, políticos e sociais. Com isso, o risco de apagamento cresce
proporcional ao projeto (inconsciente ou não) de uma possível aceitação, uma possível inserção
no centro hegemônico de narrativas sobre o amor. A falha está na ideia de que todo indivíduo
não-heterossexual experiencia do mesmo modo as opressões, o sentimento e as consequências
de possuir e viver uma identidade sexual que diverge daquela que é regulamentada (ou
regulada) pela sociedade em que vive. Tal estrutura acaba por revelar tanto o problema da
heterossexualidade de ordem compulsória quanto o caráter de construção das categorias de
papeis de gênero.

A heterossexualidade compulsória, para Butler, revela-se no processo representacional


das categorias de homem e mulher em modelos enfaticamente assimétricos. O desejo
heterossexualizado significa um efeito da performatização flutuante de gênero em consonância
com ideais de sexo e também de prática sexual, a partir de uma prática reguladora que nomeia
as expressivas diferenças entre os corpos.

A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições entre


“feminino” e “masculino”, em que estes são compreendidos como atributos expressivos
de “macho” e “fêmea”. A matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se
torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam existir – isto é,
aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo
não “decorrem” nem do sexo nem do “gênero”. Nesse contexto, “decorrer” seria uma
relação política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e regulam a
forma e o significado da sexualidade. Ora, do ponto de vista desse campo, certos tipos
de “identidade de gênero” parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou
impossibilidades lógicas, precisamente por não se conformarem às normas da
inteligibilidade cultural. (BUTLER, Judith, 2016, p. 44)

Em Private Romeo, a imagem de corpos normativamente masculinos em performances


de personagens femininas é indicativo da ação do espectro de uma heterossexualidade
compulsória, ou uma representação do efeito da heterossexualização do desejo gay. Se por um
lado a escolha de apresentar Julieta em um corpo masculino exemplifica a ideia de assimetria
entre sexo e gênero, por outro, há um processo, ainda que involuntário, de tentar adequar a
figura do casal homossexual ao olhar regulador do centro hegemônico. Nesse sentido, o
questionamento não problematizado pelo filme se esconde no risco de também ratificar um
suposto modelo universal de feminilidade e masculinidade.

Há, até certo ponto, uma reprodução das imagens binárias do masculino e do feminino
na construção do casal protagonista, processo que envolve principalmente a performance dos
corpos dos atores na encenação de seus personagens, desde as primeiras cenas do filme que se
dedicam a apresentar um embrião de dinâmica entre o casal. As imagens de Julieta apresentam
a personagem através de um jogo intertextual com a peça. Sobre a reminiscência da fala de
Romeu – ali é o leste e julieta é o sol – e na construção estética da solene simpatia fryeiana – a
natureza em harmonia com o sentimento e o estado psicológico da personagem – a cena mostra
Julieta como o centro de uma pintura sublime. Na tessitura da imagem estão presentes rastros
de uma tradição que Harold Bloom e Northrop Frye identificam como a religião do amor –
Julieta, na peça e no filme, revela em si um traço, uma linha que a conecta com a figura da dama
cuja função na tradição do amor cortês é ser enaltecida, idolatrada, inatingível, pois é parte de
suas características ser pura; aquele que a deseja em sua lamentação ser correspondido e
atingido por aquilo que emana de sua amada.

O desenvolvimento psicológico de Julieta no filme tem início somente após a corte de


Romeu, especificamente, na cena do primeiro encontro, e, em seguida, na tradução da cena da
varanda. Aqui, a fala da personagem, que na peça indica seu conflito interno semeado pela
atmosfera de inimizade entre as famílias Montéquio e Capuleto – o que há em um nome: o
nome traz consigo uma carga semântica pejorativa, que é sintomático também de uma
mensagem sobre as consequências da guerra civil para a ordem social – assume outro
significado. O conflito da personagem fílmica gira em torno da questão de um desejo sexual e
é indicativo da discussão em torno do caráter flutuante performativo das nomenclaturas de
gênero e sexo. Abre-se um espaço na narrativa do filme para que seja possível discutir que as
diferenças entre os sexos são sobretudo culturais e fabricadas através do discurso – do nome.
Julieta é a personagem que introduz a inquietude do corpo inconformada com o tipo de
materialização regulatória imposta pelo espaço normativo que está inserida. Trata-se de uma
abordagem através da fala de um questionamento proposto por Butler: “existe uma forma de
conectar a problemática da materialidade do corpo à ideia de performatividade do gênero? E de
que modo a categoria do “sexo” é apresentada dentro dessa relação?26” (BUTLER, 2011, p.12).
Existe, portanto, algo intrínseco ao corpo que interfere diretamente nos modos e nas
manifestações do desejo? O que há no nome do sexo?

Assim, o "sexo" é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta


materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente
reguladas. Em outras palavras, o "sexo" é um constructo ideal que é forçosamente
materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um
corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o "sexo" e
produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O fato
de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca
totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às
normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as
possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio
no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar
rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei
regulatória. (BUTLER, 2000, p. 111)

Algo similar é introduzido através do conflito da performance de Romeu. A


característica psicológica da personagem de desacordo interno possui alguns significados: ao
confessar para Benvólio seu amor por uma mulher, a personagem abre espaço para todo o
esquema de prolixidade sobre o amor que não pode ali ser nomeado. O espectador conhece
Romeu desse ponto de partida. As cenas seguintes mostram uma compilação de sua rotina
militar que é também um exercício de exibição de seu corpo masculino e de performance de
masculinidade já regulamentada pela instituição. Na pele de homem e de sua suposta
heterossexualidade – não questionada até esse momento da narrativa – Romeu possui voz e é
dele o ponto de vista a partir do qual a narrativa tem início.

No entanto, a performance de Romeu também serve como abertura de uma possibilidade


interpretativa sobre as raízes e as reverberações de seu conflito para o desenrolar do filme. Sua
sexualidade vem a ser questionada após a cena em que os amantes se encontram pela primeira
vez durante o encontro dos estudantes, porém, não a partir de um representante
hierarquicamente superior da instituição. Se num primeiro momento o desconforto interno de
Romeu gira em torno, entre outros fatores, de manter uma aparência heteronormativa que o
permita continuar como membro de um grupo social, a partir da cena da festa é revelada a
impossibilidade de abertura ou fechamento completo do indivíduo não-heterossexual cuja

26
Minha tradução de: Is there a way to link the question of the materiality of the body to the performativity of
gender? And how does the category of “sex” figure within such a relationship?
identidade é oprimida a partir de um sistema de restrições contraditórias. Em outras palavras, o
que está em cena são a forma e as instâncias em que Romeu pode decidir “sair do armário” e
as consequências da decisão.

Eve Sedgwick (1990) discute a estrutura de um armário social, presente na vida de


indivíduos não-heterossexuais, numa relação de elo-duplo entre a possibilidade de punição por
uma suposta desonestidade em relação à sua identidade sexual, e a punição pelo motivo oposto,
por um discurso franco sobre si e suas relações pessoais.

[...] boa parte da energia e da atenção dispendidas em assuntos relacionados com a


homossexualidade, desde finais do século dezenove, tanto na Europa quanto nos
Estados Unidos, foi sustentada pela relação claramente indiciadora entre a
homossexualidade e estruturas mais vastas de ocultação e de revelação, do que é público
e do que é privado; estas estruturas foram, e são ainda, muito problemáticas
relativamente ao gênero, ao sexo e à economia da cultura heterossexual envolvente. São
estruturas dotadas de uma incoerência assaz criativa, embora perigosa, que se vêm,
entretanto, condensando de forma contínua e opressiva em certas figurações da
homossexualidade. “O armário” e a “saída do armário”, expressões que preenchem toda
a sorte de enunciados relativos aos avanços ou recuos no interior do atual labirinto
político-representativo, tem estado entre as mais ‘sérias e sedutoras destas figurações’.
(SEDGWICK, 1990, p. 11)

A metáfora do armário – estar dentro ou sair dele – é utilizada como símbolo de opressão
velada sobre o pretexto de uma suposta preservação de privacidade. Estamos diante de um
mecanismo de higienização extremamente enraizado nos modos de regulamentação do sexo em
funcionamento desde o final do século XIX. Ao tornar sua identidade sexual pública, o suposto
atentado cometido pelo sujeito não-heterossexual contra a sociedade significa a abertura de um
espaço, um precedente para a visibilidade de uma sexualidade há muito discutida, analisada e,
aos poucos, cristalizada como marginal. Sobre o manto da discrição, o armário funciona como
mais uma ferramenta para silenciar um grupo. O discurso da privacidade do armário apresenta-
se como uma possível rota de fuga “pacífica”, sem o incômodo da rasura nos valores e
privilégios heterossexuais. De modo que uma pressuposição dos termos homossexual e
heterossexual, para a autora, se torna uma questão a serviço de discursos homofóbicos que
contribuem efetivamente para a categorização do homossexual como antônimo de discrição.
Embora pareça paradoxal, foi seguramente por causa da insistência paranoica dos não-
homossexuais do século vinte, especialmente dos homens, em levantar obstáculos à
diferenciação entre “homossexual” (minoria) e “heterossexual” (maioria), que a
confiança do homossexual enquanto um grupo de pessoas discreto e não-problemático
tem sido minada. Até a sabedoria popular e homofóbica dos anos cinquenta [...] deu
conta que o homem mais emprenhado no reforço de tais obstáculos não deixou de ser
inconstante nos seus propósitos. (SEDGWICK, 1990, p.27)

Na mesma época, a situação de “invenção do homossexual” possibilitou o mapeamento


do desejo sexual, angariando credibilidade e textura psicológica. Objetivamente, o pensamento
sistemático freudiano, de que a pulsão sexual de todo ser-humano está atrelada à sua
bissexualidade latente, provoca rasuras na tessitura do projeto de seleção simétrica e natural de
complementaridade dos sexos cobertos pelo manto da heterossexualidade e incita o pensamento
paranoico e homofóbico. Como resultado, “o novo senso comum entende que o homofóbico
mais insolente é um homem “inseguro quanto à sua masculinidade” (p.28).

A história do militar homossexual apresentada pela tradução intersemiótica Private


Romeo é exemplo da estrutura do armário como ferramenta de opressão social e institucional.
O filme faz alusão à norma coloquialmente conhecida do don’t ask, don’t tell (não pergunte,
não diga) – uma espécie de ratificação de uma política já existente dentro da instituição militar
estadunidense, para lidar com a presença de oficiais gays no corpo das Forças Armadas. A lei,
sancionada pelo presidente Bill Clinton, em 1993, e revogada somente em setembro de 2011,
garantiu que “qualquer membro das Forças Armadas pode ser expulso, caso (1) haja
envolvimento, intenção ou tentativa de envolvimento em atos homossexuais; (2) caso o/a oficial
declare publicamente ser homossexual ou bissexual; (3) em casos de casamento ou intenção de
casar-se com pessoas do mesmo sexo” (FERDER, 2013, p.4)27. É importante notar que: dentro
das especificações da lei em questão, o texto não menciona se é ou não permitido indagar ao
oficial, no momento de admissão, sobre sua orientação sexual. O próprio termo “orientação
sexual” não é mencionado. Sob o olhar da constituição, a homossexualidade é tratada como
prática sexual. Esses detalhes revelam restos de um pensamento tradicional responsável pelos
alicerces ocidentais heterossexistas.

27
Minha tradução de: a member of the Armed Forces could be discharged from the military if (1) the member
engaged in, attempted to engage in, or solicited another to engage in a homosexual act or acts; (2) the member
stated that he or she was a “homosexual or bisexual”; or (3) the member married or attempted to marry someone
of the same sex.
O espectro do armário gay, representado no cenário do filme, se expande, nascendo a
partir da trajetória de desenvolvimento psicológico de Romeu e transbordando nos instantes de
tensão, como na cena do duelo entre Teobaldo e Mercúcio. Retorna também na trajetória da
personagem Julieta, quando, no filme, o Sr. Capuleto sobrepõe sua força e voz sobre a filha,
forçando-a a se casar com o conde Páris. Tal imposição, no contexto do filme, traduz a
reverberação da vigilância hierárquica sobre o indivíduo homossexual na voz de seus pares. A
experiência aberta da identidade sexual perturba a ordem heteronormativa daquele espaço e
suas concepções e idealizações de masculinidade.

É de interesse do centro hegemônico heterossexista que a discussão em torno da


sexualidade permaneça no âmbito do privado e que o discurso sobre a experiência ou a vivência
sexual do indivíduo seja permitida fora do espaço de silêncio somente se este discurso preencher
os pré-requisitos exigidos por este centro regulador. O principal aparente motivo para tal
determinação é o obstáculo que se materializa diante do possível questionamento sobre as
implicações políticas e sociais associadas à ideia de que identidade sexual não diz respeito a
um aspecto natural de homens e mulher, mas a uma construção, um processo de aprendizagem
socialmente modelado. Desse modo, o projeto universalista de que todos os corpos vivem sua
sexualidade da mesma maneira tende a prevalecer. Como afirma a autora Guacira Lopes Louro,
as diversas possibilidades sexuais envolvem “rituais, linguagens, fantasias, representações,
símbolos, convenções... Processos profundamente culturais e plurais” (Louro, 2000, p.6).

O pensamento foucaultiano de uma construção do sexo, ou da sexualidade, no âmbito


da cultura e da história implica refletir sobre as múltiplas possibilidades de construção
indentitária do sujeito. A autora afirma que, ao estabelecer para si uma identidade, o indivíduo
está atendendo a uma necessidade de ordem do coletivo de estar inserido num determinado
grupo que lhes cobra determinadas posturas e comportamentos. Nesse sentido, o pensamento
epistemológico da existência de um armário gay indica também a possibilidade de que o sujeito
não-heterossexual, ao assumir publicamente sua identidade, seja reconhecido como uma
espécie de má-influência, um exemplo de equívoco e auto enganação fadado ao fracasso social.
Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo
ou se dissolvendo, seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas
necessidades e desejos corporais. [...] O corpo é visto como a corte de julgamento final
sobre o que somos ou o que podemos nos tornar. Por que outra razão estamos tão
preocupados em saber se os desejos sexuais, sejam hétero ou homossexuais, são inatos
ou adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se o
comportamento generificado corresponde aos atributos físicos? Apenas porque tudo o
mais é tão incerto que precisamos do julgamento que, aparentemente, nossos corpos
pronunciam. (LOURO, 2000 p. 8)

Os corpos que existem na narrativa de Private Romeo experimentam a força


normatizadora do modelo heterossexista permitido. Inseridos nesse espaço do discurso do
silêncio, escrevem e inscrevem suas identidades. Butler aponta para o uso da linguagem na
produção e manutenção de corpos. Nessa perspectiva, afirmar que o discurso é ferramenta capaz
de produzir percepções sobre o corpo significa também questionar até que ponto ou de que
maneiras pode esse discurso afetar, através de nomenclaturas e definições, esses corpos. Se por
um lado, desenhar uma linha de separação entre os sexos, em algum momento, significa
também que a estabilidade dessa diferença existe e depende dessa linha, por outro, para que
possamos estabelecer essa divisão é necessário, antes de mais nada, que sejamos capazes de
notar as diferenças (BUTLER, 1997, p.3). Num movimento extremo de desconstrução, ao
retirar as vestimentas que compõem a pluralidade das identidades sexuais, o que resta é o corpo.
De fato, “não há escrita sem a presença do corpo, mas corpo algum aparece completamente no
decorrer do processo de escrita que ele mesmo produz”28. (BUTLER, 1997, p. 12)

Qual seria, portanto, a relação entre sexo e corpo? Uma ideia de materialidade do corpo
é discutida a partir do momento em que se abre espaço para também questionar a simetria corpo-
sexo. Como afirma Butler, sexo não é simplesmente uma característica imutável do corpo; é
uma categoria regulatória em funcionamento que possui força de ação capaz de controlar
corpos. Entre essa relação há ainda a problemática em torno da performatividade do gênero.
Uma definição de sexo e gênero com base numa ideia de construtivismo não coloca o sexo
como um atributo visível e definido no espaço pré-discursivo; ao contrário, ratifica uma
assimetria entre ambos. Tal encadeamento responde à uma premissa de construção de
identidade por meios do discurso de si e suas reverberações nos espaços sociais.

28
Minha tradução de: there is no writing without the body, but no body fully appears along with the writing that
it produces.
Em Private Romeo há o projeto de discussão em torno dos corpos, de um processo de
construção identitária, através do recorte de um grupo específico de indivíduos não-
heterossexuais. Esta é uma leitura possível, ainda que a mecanismo midiático escolhido para a
apresentação da narrativa do casal protagonista possibilite espaço para se pensar em uma
possível universalização da experiência homossexual. A construção de um casal homossexual
perpassa tanto por um desencadeamento de auto-definição quanto pelo jogo de regulação e
modelagem, que na imagem em movimento, é representado pelo espaço militar. É possível
notar que há uma preocupação, um ponto de convergência entre o que representa o recorte, de
um lado, e, do outro, o que representa o grande grupo que, em alguma instância, diverge da
norma. A narrativa fílmica encena as ações de regulamentação e classificação de identidades
sexuais a partir da instituição militar, que configura exemplo de uma entidade detentora de tal
discurso regulador dos corpos.

O filme apresenta a possibilidade de se pensar a identidade sexual como um construto


discursivo de extrema importância para o reconhecimento do sujeito não-heterossexual e seu
desenvolvimento social dentro de diferentes instancias. Ao lidar com o tema da descoberta do
desejo sexual, aquela que foge à força da norma, a narrativa fílmica funciona como um tipo de
posicionamento político diante de um cenário de apagamento, higienização e intolerância –
sintomas de um projeto de formação de uma sociedade a partir de categorizações
hierarquizantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estrutura desta dissertação foi pensada como um modo de apresentar diferentes


leituras do recorte escolhido, com grande ênfase nas possibilidades interpretativas do filme
Private Romeo, tradução intersemiótica da peça shakespeariana Romeu e Julieta. A linguagem
cinematográfica e o texto dramático, na tessitura do filme, preconizam um enunciado que
atualiza os temas da peça num formato cuja estética, atrelada às circunstâncias da narrativa, se
destaca por ser também repleta de princípios. Uma nova linguagem, em oposição ao cinema-
indústria, em que o autor cinematográfico “é o seu próprio produtor [...], pensa o próprio
projeto, procura os meios de realiza-lo, filma e acompanha a obra em todas as etapas. [...] sua
obra corresponde a uma vontade de expressão ou de comunicação” (BERNARDET, 2000,
p.104). E é nesse sentido que o cinema se torna sinônimo de um espaço em que uma diversidade
de temas encontra possibilidades e formas (políticas, éticas, estéticas...), também diversas.

Como produto de um fazer cinematográfico autoral, Private Romeo apresenta em sua


composição determinadas marcas de escrita. A narrativa fílmica se propõe a traduzir e atualizar
um texto do século XVI, a partir do texto de partida que se desdobra metonimicamente sobre a
narrativa contemporânea dos alunos-cadetes de uma escola militar estadunidense. A peça
Romeu e Julieta, desde os primeiros instantes no filme, possui força de presença vigorosa. Sua
história está costurada na história do filme e esse entrelace é revelado no jogo de luz e cores
das cenas, nos diálogos, ora em inglês renascentista, ora em inglês contemporâneo, na
ressignificação do travestimento, característica importante do teatro elisabetano.

Há, nessa composição autoral, características de uma mistura de traços e estilos, notável
no corpo do texto dramático e que também se atualiza no corpo do filme. O tema do amor, na
peça, é trabalhado sobre as perspectivas do amor cortês e do amor carnal, representados em
momentos diferentes nas performances de Romeu, Rosalinda, Ama, Mercúcio e Julieta.
Erotismo e jogo amoroso estão também misturados, um mecanismo sintomático do momento
das produções dramáticas elisabetanas. A peça, aos poucos, se distancia de um certo tipo de
reprodução ritualística do amor cortês e segue em direção à existência carnal do amor,
demonstrada na dinâmica erótica dos corpos dos amantes. Uma performance que, para a
narrativa fílmica, é consequência de uma atmosfera e de uma convenção alicerçadas na
dinâmica de homossociabilidade. No filme, a interação dos corpos está conectada com a
potência do desejo homossocial masculino, flagrado pela imagem em movimento como parte
da escritura do contexto contemporâneo. Esse desejo homossocial é sintoma de uma tradição
heterossexista que permeia a narrativa fílmica e está fortemente traduzida naquele espaço
ficcional.

Dentro dessa mesma linha de pensamento é que a proposta de leitura a partir de uma
análise estética da linguagem cinematográfica se transforma em leitura de problematização
ética em torno das reverberações da sexualidade e identidades sexuais representadas pelo filme.
A sexualidade como construto sócio-político-cultural é evidenciada, principalmente, na
performance do casal protagonista. Trata-se de uma proposta narrativa com o objetivo de
denunciar um modelo estrangulador de expressões identitárias divergentes, apresenta-lo como
o resultado de um longo período dedicado à sua formação como referente hegemônico. Ao
mesmo tempo, denunciar o modelo heteronormativo é também questionar discursos tradicionais
sobre sexo, gênero e identidades sexuais dos corpos em suas idiossincrasias.

Embora a escolha de usar uma narrativa canônica, como Romeu e Julieta, – e canônica,
nesse contexto, significa também o topo da hierarquia branca, ocidental, heterossexual e cristã
– denote perigo de higienização das diferenças entre a heterossexualidade e as diversas formas
de não-heterossexualidade, é preciso que uma leitura de Private Romeo como texto político
esteja atenta ao recorte que, por definição, não representa o todo. Este construto midiático existe
através de uma série de conexões tanto com o passado quanto com o presente histórico, isto é,
apesar de tradução, existe como produto do contexto em que acontece.

A pesquisa, portanto, partiu do interesse em refletir sobre o modo como o movimento


espiral de semelhança em retorno na diferença é capaz de produzir unicidade através de uma
escritura de intertextualidade palimpsestuosa. O prefácio de Linda Hutcheon para o seu livro
Uma teoria da adaptação (2013) traz a seguinte informação:

Os vitorianos tinham o hábito de adaptar quase tudo – e para quase todas as direções
possíveis; as histórias de poemas, romances, peças de teatro, óperas, quadros, músicas,
danças e tableaux vivants eram constantemente adaptadas de uma mídia para outra,
depois readaptadas novamente. Nós, pós-modernos, claramente herdamos esse mesmo
hábito, mas temos ainda outros novos materiais à nossa disposição – não apenas o
cinema, a televisão, o rádio e as várias mídias eletrônicas, é claro, mas também os
parques temátios, as representações históricas e os experimentos de realidade virtual.
(HUTCHEON, 2013, p.11).
Quando um tipo específico de adaptação de história, como no caso das traduções
intersemióticas, se apresenta abertamente como releitura de apropriação da anterioridade, o que
se obtém como resposta a esse comportamento de honestidade criativa possui uma carga
negativa, que segue em direção oposta à prática herdada de adaptar. Seguindo tal linha de
pensamento, um filme como Private Romeo, produto extremamente autoral, dirigido, produzido
e roteirizado por Alan Brown, será sempre visto como inferior à peça Romeu e Julieta de
William Shakespeare. Permitir que esse tipo de discurso se consolide, significa abrir mão de
idiossincrasias que tornam tais produções (tanto filme quanto peça, sem intenção
hierarquizante) singulares. A proposta de leitura construída por Alan Brown para o seu filme-
tradução diz bastante sobre o direcionamento crítico do seu olhar em direção ao passado, neste
caso, à peça de Shakespeare. Ao mesmo tempo, há a crítica ao presente de sua própria obra, na
medida em que ele inscreve a si mesmo e o seu texto em uma realidade, em um determinado
momento histórico, sugerindo uma análise crítica daquilo que percebe em seu contexto. Esse é
o mecanismo do processo de criação da tradução intersemiótica, que “ao mesmo tempo que
monardicamente presentifica o passado, pode inscrever em si mesma seu próprio tempo
histórico, a sua historicidade”. (PLAZA, 2003, p.9)

As diversas possibilidades de adaptação enriquecem a vitrine das traduções


intersemióticas – construtos que se apresentam abertamente como recortes, releituras do
passado, atualizações da anterioridade. Nesse sentido, traduzir constitui fazer uma leitura crítica
e contextualizadora. E, a partir dessa ideia, este trabalho buscou pensar algumas das relações
entre tradução e texto de partida para além dos supostos débitos, das supostas mutilações e da
suposta fidelidade. O filme e a peça em questão servem como objetos de análise dos
mecanismos da tradução intersemiótica, através de seus contextos, dos rastros em que se
constroem e alguns dos elos entre si.

A tradução, nesse sentido, funciona como atividade também de reciclagem cultural, já


que a apropriação de um texto anterior é um passo dentro do processo de transformação dessa
anterioridade, adequando-o, através de um recorte sincrônico, às exigências éticas e estéticas
de um local/cultura alvo. Os termos reciclagem, ressignificação e transformação podem ser
entendidos como sinônimos dentro desse raciocínio, enfatizando a ideia de que esse novo texto
é construído sobre rastros do passado, porém, sem construir uma mera repetição.
Essas formas anteriores não ressurgem jamais tais quais, elas não fogem ao
destino da extrema modernidade. Sua ressurreição é hiperreal. Os valores
ressuscitados são fluidos, instáveis, submissos às mesmas flutuações da moda
ou do capital nas bolsas. Desse modo a reabilitação das antigas fronteiras, das
antigas estruturas, das antigas elites, não terá jamais o mesmo sentido. Se a
aristocracia ou a realeza encontrarem um dia um estatuto, elas serão, apesar de
tudo, “pós-modernas”. Todos os cenários retrô que são preparados não têm
significação histórica, eles acontecem inteiramente na superfície de nosso
tempo, como uma superposição de todas as imagens, mas não mudarão nada no
desenrolar do filme (MOSER, 1996).

Com as reflexões pós-estruturalistas e os constantes questionamentos acerca da


assumida pureza do original, a discrepância em que o simulacro se constrói passa a ser vista
como potência e não mais como deficiência. Diferente da impressão de verticalidade proposta
pelo projeto hierarquizante de Platão, o simulacro, quando interpretado com carga positiva, traz
a impressão da horizontalidade, a percepção de que esse simulacro se constrói através da
diferença. “Não basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste à
vertigem do simulacro” (DELEUZE, 1994, p. 10). A partir da tradução, portanto, o texto
anterior se torna democraticamente acessível a qualquer público. O processo de adaptação para
uma nova mídia leva em consideração também a recepção de seu produto em relação a um
público-alvo específico. A construção intertextual que acontece no movimento de atualização
entre textos se propõe a desconstruir a aura canônica, no entanto, como efeito inconsciente e
secundário, cria novas camadas auráticas, que tanto podem ser removidas temporariamente,
quando o público consegue seguir as pistas intertextuais deixadas durante o processo, como
podem continuar, dessa vez, em torno do texto de partida e de sua tradução.

O uso da linguagem do texto de Shakespeare em Private Romeo, sem atualização (muito


embora todos os outros elementos – enredo, personagens, cenário e desfecho – sejam
atualizados) configura um exemplo de como essa camada aurática funciona, além de funcionar
como elementos metonímicos para a narrativa do filme, que, de certo modo, sempre retorna ao
ponto de partida, a peça shakespeariana. Há o silêncio da linguagem contemporânea na voz dos
jovens cadetes no filme, ao mesmo tempo em que tais personagens fazem uso da voz de Julieta,
Romeu, Mercúcio, Ama, e outros personagens, através da leitura da peça de Shakespeare. A
presença do inglês pré-moderno, neste sentido, é metonímica e sugere a apropriação de vozes
como veículo de reação e enfrentamento do discurso de homofobia que os cerca. O caráter
afirmativo e ideológico, que a linguagem shakespeariana assume, aproxima o texto fílmico de
um determinado público que reconhece o texto dramático e que se reconhece dentro da trama.
Por outro lado, esse recurso pode dificultar a experiência do expectador, transformando-se em
uma camada aurática, distanciando o espectador da proposta do texto cinematográfico, agindo
como agente inibidor do possível contato entre leitor e peça.

É com a desestabilização da hierarquia entre originais e simulacros, e com valor positivo


da diferença entre eles, que o presente trabalho propôs um paralelo entre o status da tradução e
de sujeitos não-heterossexuais, a fim de compreendê-los positivamente, numa espécie de crítica
à um “exagero metafísico” (FOUCAULT, 2002) que contribui para a consolidação de um
discurso claustrofóbico sobre os simulacros e sua diferença. Na trajetória babélica das
traduções, Private Romeo é uma expressão da multiplicidade das linguagens, e o que ela “vai
limitar não é apenas uma [possibilidade de] tradução ‘verdadeira’, uma entr’expressão
transparente e adequada, mas também uma ordem estrutural, uma coerência interna do
constructum” (DERRIDA, 2002, p. 12). Um constructum que, no contexto desta dissertação,
existe na expressão de um esquema de hierarquização platônica, que determina a posição no
plano metafísico do cânone (especificamente, o texto dramático shakespeariano), que seleciona
modelos ideais, e que outorga tanto à tradução quanto a sujeitos não-heterossexuais, em face da
marca de divergência em ambos, o status de simulacro platônico.
REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The Danger of a Single Story. Disponível em:


<https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?la
nguage=en#t-756000>. Acesso em: 11 fev. 2016.
AGAMBEN, Giorgio. O contemporâneo. In: O que é o contemporâneo? E outros ensaios.
Tradução: Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 55-78.
ALONGE Wagner. Cultura Gay e Mídia: Auto-afirmação identitária nos espaços da
homocultura midiática. In: CARDOSO, Clodoaldo M. (Org.). Diversidade e igualdade na
comunicação - coletânea de textos do Fórum da Diversidade e Igualdade: cultura, educação e
mídia. Bauru: FAAC/Unesp, SESC, SMC, 2007.
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Tradução: Joaquim José
de Moura Ramos. Lisboa: Presença, 1980.
AMORIN, Lauro Maia. Tradução e adaptação: reescrevendo os limites da transgressão. In:
Tradução e adaptação: encruzilhadas da textualidade em Alice no País das Maravilhas, de
Lewis Carrol e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 23-51.
ARISTÓTELES. Arte Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira. A poética clássica.
Tradução: Jaime Bruna. 5.ed. São Paulo: Cultrix, 1992.
ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 2007.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5.ed. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
AUMONT, Jacques et el. Cinema e narração. In: ______. A estética do filme. Tradução:
Marina Appenzeller. 9. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012.
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Homoerotismo em questão. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2006.
BATAILLE, George. O Erotismo. Tradução: Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
1987.
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Tradução: Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz
Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
BERNARDET, Jean-claude. O que é cinema. São Paulo: brasiliense, 2000.
BLOOM, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: Riverhead Books,
1998.
BRYSON, Bill. Shakespeare: o mundo é um palco: uma biografia. Tradução: José Rubens
Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BUTLER, Judith. Bodies that Matter. New York: Routledge, 2011.
BUTLER, Judith. How can I deny these hands and this body are mine? University of
Nebraska, 1997. Available in: <http://www.jstor.org/stable/20686081>
BUTLER, Judith. Inversões sexuais. In: PASSOS, Izabel C. Friche Passos (org.). Poder,
normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual? Tradução: Valter Arcanjo
da Ponte. Campinas: Cadernos Pagu, 2003.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução:
Renato Aguiar. 14 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1994.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução: Maria Beatriz Marques Nizza da
Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo,
1972.
FERDER, Jody – “Don't ask, don't tell”: A legal Analysis. Congressional Research Service,
2013.
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução: Maria
Thereza da Costa Albuquerque, J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. 13. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1999.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p.3-26.
FREUD, S. Totem & Tabu (1913). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREY, Northrop. Romeu e Julieta. In: SANDLER, Robert (org.). Sobre Shakespeare.
Tradução: Simone Lopes de Mello. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica: quatro ensaios. Tradução: Marcus de Martini. São
Paulo: É Realizações, 2013.
GAMSON, Joshua. Sweting in the Spotlight: lesbian, gay and queer encounters with media
and popular culture. In: RICHARDSON, Diane; SEIDMAN, Steven. Handbook of Lesbian
and Gay Studies. London, Thousand Oaks, New Dheli: SAGE publications, 2002.
HELIODORA, Barbara. Caminhos do teatro ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel. Florianópolis:
UFSC, 2013.
LEITE, Elso Soares; SANTANNA NETO, João Antônio de. O discurso da mídia sobre a
homossexualidade nas instituições militares. v. 13. n. 1. Londrina: Entretextos, 2013, p. 441-
463.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:
autêntica, 2000.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradução: Paulo Neves. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
MISKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização. Porto Alegre: Sociologias, 2009, p. 150-182.
MOSER, Walter. A Reciclagem Cultural. Universidade de Montreal, 1996.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 2007.
OTTONI, Paulo. Tradução Recíproca e Double Bind: Transbordamento e Multiplicidade de
Línguas. In: Tradução manifesta: double bind e acontecimento. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2005.
PLATÃO. A República. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006.
PLAZA, Julio. Introdução: A tradução com poética sincrônica. In: Tradução Intersemiótica.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2007, p. 1-14.
PRESA, Giovanna Amanda. Totem e Tabu. Disponível em:
<https://psicologado.com/abordagens/psicanalise/totem-e-tabu>. Acesso em: 31 Jan 2017.
PRIVATE Romeo. Direção: Alan Brown. Produção: Agathe David-Weill, Kevin Ginty e Alan
Brown. New York: Wolfe Video, 2011. (98 min), widescreen, color. Baseado na peça
“Romeu e Julieta”, de William Shakespeare.
RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença: uma proposta de desconstrução da
noção de equivalência em Catford, Nida, lefevere e Toury. Campinas: Unicamp, 1999)
ROSOLATO, Guy. A força do desejo: o âmago da psicanálise. Tradução: Procópio Abreu.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente. Tradução: Paulo Brandi e Ethel Brandi
Cachapuz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
SARA SALIH. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução: Guacira Lopes Louro. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Between Men: English Literature and Homosocial Desire. New
York: Columbia University, 1985.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do armário. Tradução: Ana R. Luís, Fernando
Matos Oliveira. Coimbra: Angelus Novus, 2003.
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2016.
SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. Disponível em:
http://internetshakespeare.uvic.ca/doc/Rom_F1/scene/1.1/. Acesso em: 25 jun 2017.
SPARGO, Tamsin. Foucault y la teoria queer. Barcelona: Gedisa, 2004.
VIGARELLO, Georges. A virilidade, da antiguidade à modernidade. In: (org.) VIGARELLO,
Georges. História da Virilidade. Petropolis: Vozes, 2013.
WELLS, Stanley. Shakespeare, sex, & love. New York: Oxford University, 2010.

Você também pode gostar