Você está na página 1de 43

1

FMU – FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS


FIAM-FAAM – FACULDADES INTEGRADAS ALCÂNTARA
MACHADO-FACULDADE DE ARTES ALCÂNTARA MACHADO

EMILLY MACEDO DE OLIVEIRA


HENRIQUE AKKAOUI MUNHOZ
LEONARDO DE OLIVEIRA GALVÃO DIAS
NAYARA CRISTINA DE SOUSA
RICARDO GONÇALVES HERMANO
SÉRGIO RICARDO NUNES

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO


(PRÉVIA)

SÃO PAULO
2022
2
3

emilly macedo de oliveira


HENRIQUE AKKAOUI MUNHOZ
LEONARDO DE OLIVEIRA GALVÃO DIAS
NAYARA CRISTINA DE SOUSA
RICARDO GONÇALVES HERMANO
SÉRGIO RICARDO NUNES

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO


(PRÉVIA)

Trabalho apresentado como exigência parcial para a


conclusão do curso de Rádio, TV e Internet do FIAM-
FAAM Centro Universitário, sob a orientação do
professor Bruno Casalotti.

SÃO PAULO
2022
4

RESUMO
A personagem homossexual é mostrada nas telas de cinema e de televisão há décadas
como alguém caricato, extravagante e não digno de felicidade, sempre orbitando os
personagens principais e heteronormativos. Por isso, tendo em vista o momento atual de
movimentação intensa no cenário cinematográfico do New Queer Cinema, este trabalho em
formato audiovisual, sendo um curta-metragem ficcional, busca explorar e questionar a
jornada e a construção de um personagem queer na narrativa cinematográfica brasileira,
dando um novo desfecho para estes papéis através da protagonista, tendo também como base
a política queer, que defende evidenciar papéis e personagens cada vez mais representativos,
com construções mais ricas e aspectos mais fiéis à realidade.

Palavras-chave: personagem; queer; narrativa.


5

ABSTRACT
The homosexual character has been shown on film and television screens for decades
as someone caricatured, extravagant and not worthy of happiness, always orbiting the main
and heteronormative characters. Therefore, in view of the current moment of intense
movement in the New Queer Cinema cinematographic scenario, this work in audiovisual
format, being a fictional short film, seeks to explore and question the journey and construction
of a queer character in Brazilian cinematographic narrative, giving a new ending to these roles
through the protagonist, also based on queer politics, which advocates highlighting
increasingly representative roles and characters, with richer constructions and aspects more
faithful to reality.
Keywords: character; queer; narrative.
6

SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO...............................................................................................6

2. OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS.............................................................8

2.1 Objetivos Gerais................................................................................................8

2.2 Objetivos Específicos........................................................................................8

3. JUSTIFICATIVA...............................................................................................10

4. REFERÊNCIAS DE CONTEÚDO....................................................................19

4.1 Referências Temáticas e Estéticas...................................................................19

4.2 Referências Temáticas e Linguísticas.............................................................20

4.3 Referências Estéticas e Linguísticas...............................................................22

4.4 Referência Linguística.....................................................................................23

4.5 Referência Temática, Estética e Linguística...................................................24

5. REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS................................................................27

6. REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS....................................................................28

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................29

8. PROPOSTA DE ROTEIRO...............................................................................30

8.1 Story Line........................................................................................................31

8.2 Sinopse............................................................................................................31
7

1. APRESENTAÇÃO
Visto que o cinema e diversas outras plataformas audiovisuais possuem um poder
referencial do público ao ver, em tela, a idealização de personagens que atravessam o
universo diegético e caminham lado a lado em nosso real cotidiano, com o cinema queer em
ascensão, visando ressignificar tais narrativas depreciativas para a comunidade afora, o
trabalho busca maneiras de caminhar além do conceito, que possui o poder de alinhar papéis
com a propriedade de quem o representa, mas também busca ir além do binômio
heterossexual-homossexual que quebra a costumeira representação familiar destes
personagens no cinema em geral.
No entanto, temos como vitrine principal para a discussão que cerca o projeto, um
curta-metragem ficcional que apresenta novas perspectivas para a ótica da articulação de
personagens queers, saindo do eixo característico que apresentamos como problemática,
integrando-se assim, como parte do movimento New Queer Cinema, que será apresentado
mais adiante. A obra, com elementos de horror psicológico, discorre sobre a narrativa de um
diretor de teatro que não sabe que fim dar a sua história, entrando em conflito consigo e com a
atriz principal da peça, uma pessoa queer que não gosta do papel oprimido de sua personagem
(que é também queer) e decide mudar o seu rumo.
Desta forma, adotamos como principal referência teórica o escritor Antônio Moreno,
que em sua obra “A personagem homossexual no cinema brasileiro”, de 2001, buscou
levantar debates sobre a forma como a identidade coletiva evidencia na maneira como grupos
minoritários são afetados por imagens projetadas nos meios de comunicação, em geral, no
audiovisual brasileiro como um todo. Buscamos também, referenciais videográficos destes
personagens em obras controversas para trabalhar a análise de tais papéis, como A Rainha
Diaba (1974), e A Lira do Delírio (1978), que performam e articulam estes que marcam o
imaginário coletivo como identidade da comunidade como um todo para a sociedade.
É a partir desta premissa que temos observado em nosso cotidiano a grande influência
que estes personagens, comumente retratados de maneira alegórica e marginalizada em obras
audiovisuais, podem ser reativos aos olhos dos espectadores tradicionais que não
compartilham da vivência com estes corpos (ou projetam ideais representativos dos mesmos
em um único indivíduo de seu âmbito social). Desta forma, analisamos em obras audiovisuais,
em termos de narrativa e construção de personagem, que a figura do homossexual em tela
possui como principal função trabalhar o alívio cômico, exercendo, de maneira jocosa,
8

gestualidades extravagantes, vezes fadada ao fracasso quase como forma punitiva que se dá
por consequência de sua condição sexual.
Atualmente, esses corpos vêm tendo diferentes óticas (e, consequentemente, destinos)
ao serem escritos, construídos e representados por eles mesmos, expandindo o universo do
Cinema Queer com a diversidade de suas narrativas que vão ressignificando seus desfechos e
exprimindo suas vulnerabilidades, mas percebemos, em contraponto, que as obras não
costumam atravessar a comunidade queer, tendo em vista que os filmes passam a ser criados e
consumidos por eles, limitando a circulação muitas vezes pela falta de interesse do público
geral, que opta por obras tradicionais, escritas, muitas vezes, por homens brancos
heterossexuais que não os representam, em que retrata-se o personagem homossexual (em
segundo plano) estigmatizado. Em um levantamento de 2016, intitulado “Diversidade de
gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016”, feito pela Agência Nacional do Cinema
(ANCINE), apresenta o seguinte cenário:

[...] tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente


em salas de exibição no ano de 2016 mostra que são dos homens brancos a direção
de 75,4% dos longas. As mulheres brancas assinam a direção de 19,7% dos filmes,
enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme em 2016
foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. (paginação)

Talvez isto justifique as recorrentes narrativas que vemos, por serem projetadas por
um mesmo grupo de indivíduos. É através desta referência de dado que podemos concluir que
há a suma importância em abranger, de maneira geral, a diversificação e a inclusão de
diferentes grupos étnico raciais, geracionais, geográficos e de gênero em funções e cargos que
abordam a si mesmos.
Com isso, o grupo propõe analisar, em certas perspectivas, o impacto que estes
personagens possuem na comunidade LGBTQIA+ em vanguarda de um público que os
detém, em sua totalidade, para a confortável assimilação de um padrão imagético; a relação
interpessoal entre personagem versus indivíduo e os conflitos que estes objetos possuem
refletidos na sociedade. Como objetos específicos, utilizamos a obra de Antônio Moreno
(2001) para analisar as três fases que a personagem homossexual possuiu no cinema
brasileiro; explicar as raízes destes personagens e averiguar como tais caricaturas construídas
neste meio de comunicação podem trabalhar o imaginário sobre uma comunidade sob a
perspectiva do público-espectador.
9

2. OBJETIVOS GERAIS E ESPECÍFICOS


2.1 OBJETIVOS GERAIS
O objetivo principal deste projeto é realizar um curta-metragem ficcional de tragédia
que explora e questiona a jornada e a construção do personagem homossexual na narrativa
cinematográfica brasileira, buscando um novo desfecho para estes papéis. O principal cenário
para abordar a história é um teatro, que colabora, de maneira objetiva e literal, em seu
contexto diegético, para a discussão dos personagens sobre seus papéis, identidades e funções.
Ao pensarmos na ótica de um debate que integre a pauta proposta em nosso projeto, temos em
mente um palco de teatro e a devida função dos mesmos por acreditarmos que tal ambiente
oferece, em sua mais pura síntese e concretude, uma narrativa que possibilite associar a
discussão do cinema e de seus personagens com o cenário em questão. A história possui
insights de cenas do roteiro da peça executado em seu próprio universo diegético, onde a atriz
em questão performa sua personagem para o espectador de nossa obra e, logo após, tal
barreira é quebrada, por contrapor-se ao verdadeiro universo em questão: os bastidores de seu
ensaio.
A produção de baixo orçamento será filmada no segundo semestre de 2022, em São
Paulo. Oferecemos o seguinte questionamento: como um membro da comunidade gay e
queer, vendo sua personagem, identidade, sexualidade e as questões que a moldam, serem
construídas por roteiristas e diretores que sequer estão nestes corpos, responderia à produção
destas obras caso tivesse a oportunidade de escrever-se? Este que se vê em tela sendo sub-
representado, se vê em si mesmo e em sua comunidade? Que perspectivas os membros da
comunidade podem sugerir para que possam se ver sendo escritos através da ótica de outros
roteiristas e diretores sem que os façam influenciar negativamente diante do imaginário
coletivo de seu país? Além de questionar qual o destino de seu papel em um bna obra.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS


 Explorar os gêneros e subgêneros do cinema LGBTQIA+ e do novo cinema
queer, além de outras categorias da homocultura;
 Atender a etapas dos processos de pré-produção (escrita de roteiro, pesquisa,
aluguel de equipamentos, cast e locações), produção (elaboração de objetos de
cena, materiais e gravação) e pós-produção (montagem e edição) com base no
cronograma;
10

 Aprofundar no projeto os principais conceitos introduzidos na disciplina TCC I


sobre a problemática da construção de personagens queers no cinema
brasileiro, o New Queer Cinema e incorporar estes na linguagem da obra;
 Apresentar novas perspectivas narrativas com resoluções que se recusam a
permanecer no típico cenário de personagens queers fadados ao fracasso para
se pensar a função e o destino destes papéis no audiovisual brasileiro;
 Utilizar o cenário (teatro) da obra como palco principal para discutir questões
de gênero através das discussões sugeridas no roteiro da peça em questão e da
narrativa estruturada;
 Explorar elementos característicos do gênero horror no projeto de curta-
metragem através de novas linguagens com pautas socioculturais, políticas e de
gênero e sexualidade, discutindo estes temas para integrá-lo em discussões da
realidade;
 Abordar e ressignificar o destino de personagens já apresentados anteriormente
no cinema LGBTQIA+ como referencial através da direção de arte e da
linguagem da obra, utilizando por exemplo, ícones adotados pela homocultura
explícitos e implícitos;
 Articular estratégias de marketing para a divulgação do projeto através das
redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram e TikTok) com o objetivo de
atingir o público jovem (16 a 30 anos) que se insere ou se interessa pela
comunidade LGBTQIA+, além de integrar o público interessado em roteiro e
cinema de gênero, utilizando fotografias da obra que evidenciem sua estética
que referencia grandes elementos que englobam o universo LGBTQIA+ para
que se interessem e busquem maneiras de consumi-la (mostras, festivais, etc.);
 Trabalhar a divulgação e o reconhecimento da obra através da exibição em
festivais nacionais de cinema, como o Festival Mix Brasil.
11

3. JUSTIFICATIVA
O New Queer Cinema (ou cinema LGBTQIA+), está em um momento de
movimentação intenso para o cenário audiovisual em termos narrativos (REVISTA
CONTINENTE), posto que vem surgindo, nos últimos anos, produções que transportam tais
enredos de forma plural, exemplos disso se dão desde o documentário Paris is burning (1991)
sobre a cultura dos bailes vogue, perpassando os personagens, apresentando um a um e
colocando em evidência seus sonhos e anseios enquanto pessoas LGBTQIA+ vivendo nos
anos 80, até a crescente atual, visto de um contexto do cinema brasileiro, no longa-metragem
de Pernambuco, Tatuagem (2013), que trata o cotidiano em um grupo de teatro e subtramas
que passam por relações homoafetivas, repressão e liberdade.
É de suma importância a busca por ressignificar os papéis designados durante a
construção destes até mesmo antes do tal termo sequer existir. Isto se dá porque os membros
da comunidade não se identificam objetivamente com os papéis que vinham (e ainda vêm)
sendo representados na tela. Os personagens, construídos através de estereótipos alegóricos,
caricatos e afeminados somente com o propósito de fazer o público rir. O projeto, através do
subgênero, tem como principal iniciativa explorar e questionar a jornada e a construção do
personagem homossexual na narrativa cinematográfica, buscando um novo desfecho para
estes papéis que, durante um longo tempo, foram construídos sob a ideia de uma imagem
social voltada para os olhos destes que não estão inseridos na própria comunidade
LGBTQIA+, sob uma ótica heterossexual fixada no imaginário coletivo que marginaliza,
sexualiza e contrapõe, em sua ideia de conceito moral, tais papéis.
Da análise de 127 produções audiovisuais brasileiras entre 1926 e1967, Moreno
(2001) conclui que a tendência majoritária é a de que os homossexuais sejam apresentados
como indivíduos doentes e patogênicos em cujas biografias se encontram associações com o
crime, a prostituição e o vício. Paralelamente, eles são, de forma jocosa, apresentados como
indivíduos portadores de uma gestualidade excessiva e adeptos do uso de vestuários
extravagantes, assim ratificando a sua condição de palhaço e objeto de chacota. Um outro
exemplo sobre a marginalização de personagens homossexuais apontado por Moreno em sua
tese é com o filme O Menino e o Vento (1967), no qual não há presença de estereótipos
afeminados, mas sim um relacionamento baseado em metáforas, não explicitando ao público
o tipo de ligação vivido por seus personagens. Outrossim, o tipo ideal do homossexual
apresentado – com grande frequência uma travesti – possui baixo nível de escolaridade, mora
em habitações degradadas e é subempregado. Do ponto de vista emocional os homossexuais
12

são apresentados como traiçoeiros, falsos, vingativos e violentos. Não é surpreendente, assim,
que o fim deles nos filmes analisados seja predominantemente marcado por tragédia, mortes
violentas, depressão, suicídio e miséria (GÓIS, 2002).

[...] em A lira do delírio, Otoniel termina no hospital após ser incendiado; a Marlene
[um travesti] de Amor bandido se joga no pátio interno do edifício malfalado, se
suicidando; a Geni [uma travesti] de Ópera do malandro é assassinada friamente, e
com asco, por Tigrão; ou ainda são torturadas, apanham ou morrem das mais
diversas formas, como em O anjo nasceu, Navalha na carne, O casamento, A casa
assassinada ou em O beijo da mulher aranha, e não se realizam como pessoa
(MORENO, 2001, p. 283).

Anteriormente, o termo americano queer que pode ser traduzido para a língua
portuguesa como estranho, esquisito ou bizarro, era originalmente utilizado nos Estados
Unidos para ofender homossexuais e, principalmente, pessoas que não se sentiam confortáveis
dentro dos papéis de gênero determinados entre a dualidade homem-mulher (SOUZA, 2015).
O termo pejorativo, em 1980, ganhou forças entre a comunidade LGBTQIA+ em terras
estadunidenses para que fosse ressignificado pelos próprios membros. André Fischer, diretor
do Festival Mix Brasil, explica que, no Brasil, a palavra é comumente utilizada por homens
ou por pessoas não-binárias: “São aqueles que não se identificam com o G de gay, por
entenderem que ser gay traz agora uma série de significâncias diferentes. Algumas pessoas
associam a um padrão de gay, homem branco, cisgênero, classe média. E querem se distanciar
desse estereótipo” (UOL).
Visto que tais identidades não se viam representadas em tela, não possuindo para si
um público voltado à comunidade, os grupos, ainda considerados minorias, sentiram a
necessidade de produzir suas próprias obras para saírem da escala da heteronormatividade
tanto pautada pelos filmes da época. Estas tentativas de identidades sendo pertencentes ao
cotidiano da sociedade foram se tornando ainda recorrentes como sinônimo de luta, sendo
representado no cinema de diversas maneiras e ganhando espaço com o movimento
homônimo denominado Cinema Queer, voltado para estes personagens que foram
representados em tela, inicialmente, em grande escala, em produções europeias
independentes.
Na década de 1970 surgiram artistas que caminhavam na margem dos discursos
dominante. Filmes como The Rocky Horror Picture Show, de Jim Sharman, ou os filmes do
diretor John Waters e sua personagem Divine. Títulos que fizeram sucesso, principalmente,
nas chamadas sessões de meia-noite, e que demonstravam o interesse de um público por
temáticas que subvertiam as narrativas normativas predominantes na Hollywood da época. O
13

caminho percorrido pelo documentário tem relação direta com as questões discutidas pelos
movimentos de gays e lésbicas, assim como o crescimento e ampliação dessas mesmas
discussões (DE ARAUJO, 2013).
Durante a mesma época, no Brasil, o Cinema Queer era ainda algo novo, embora
personagens fossem representados em obras anteriormente como protagonistas em O Menino
e o Vento (1967), considerado o primeiro filme LGBT lançado em plena ditadura militar, e A
Rainha Diaba (1974), protagonizado por Milton Gonçalves, o movimento suspirava para
surgir antes mesmo da palavra se dar por conhecida. As obras de Hector Babenco, como
Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981) e O Beijo da Mulher Aranha (1985), também
encontravam um lugar para estes personagens, que abordados de uma maneira curiosamente
sentimental e humanizada. Embora algumas exceções, o movimento não se consolidava em
seu grupo como um epicentro e não era representado pelos próprios membros da comunidade
queer, tornando-se uma problemática para o grupo que, quando representado, era comumente
elaborado para um público heterossexual. Um filme feito pelas mãos de determinado grupo,
que aborda outro determinado grupo com uma propriedade que não se é pensada, visto que
sua principal função é ter um apoio dos mesmos (que não para os mesmos), pode não ser do
agrado destes.
Antônio Moreno (2001) pontuava que tal projeção destes personagens homossexuais
no cinema nacional se davam sob uma mesma cartilha, em que eram referenciados de
maneira terceirizada nas narrativas como personagens esdrúxulos, cuja única função era
extrair risos sobre sua própria condição de vida, ou personagens estavam destinados ao limbo
como forma punitiva pela sua sexualidade, infiltrando suas mensagens no imaginário coletivo
de seus espectadores e consolidando o pensamento pejorativo sobre os mesmos.

A perspectiva branca, Ocidental, classe média e heterossexual não compreendia os


múltiplos sujeitos, e suas diferentes vivências de seus corpos, sexualidades e
relacionamentos. Para Miskolci (2012), os movimentos homossexuais dos anos
60/70 queriam incorporação da sociedade vigente, aceitando os valores dominantes,
já o queer desafiava e pedia por mudanças dessa sociedade, criticando os valores
hegemônicos que a regia. Por mais que queer tenha sido uma palavra usada
pejorativamente para falar sobre homossexuais, e depois incorporada pela própria
comunidade, a ideia da teoria não refere-se a um sinônimo de homossexualidade, ela
abrange outras questões, e vai além da vivência da sexualidade (DE ARAUJO,
2013).

Através de um curta-metragem ficcional, utilizamos como principal cenário de nossa


diegese, o teatro, que colabora habilmente para contextualizar discussões sobre papéis e
personagens de maneira concreta, visto que ensaios de obras audiovisuais também se
14

assemelham a ensaios da arte vizinha, em que ambos evidenciam questionamentos, discursos


e comportamentos que são debatidos entre os integrantes do projeto teatral, que retrata uma
relação homoafetiva conturbada, que reproduz o estereótipo do personagem homossexual
submisso ao padrão de uma relação heteroafetiva, apresentando, assim, questões de identidade
de gênero dentro de uma diegese que não se aloca, beirando assim a decadência de tal
relacionamento. A ficção é inserida no projeto como um dos principais fatores, visto que a
problemática aqui proposta está dentro do próprio gênero e da intenção em criar novas
resoluções para estes personagens.
Tendo como personagens principais uma atriz jovem, intelectual, negra e queer e um
diretor aclamado, raiz de uma realidade de elite que tenta concluir sua peça autoral ainda
durante os preparos desta, podemos visualizar os conflitos entre estes dois polos, onde a atriz
busca se enquadrar neste papel na medida em que sente que está reforçando personagens
alegóricos e estereotipados, além de ter que atender a um ideal de beleza iconograficamente
europeu. O diretor, por outro lado, convencido de que sua obra será fruto de grandes
resultados, busca defender o papel para a atriz, justificando o sucesso da narrativa e de sua
carreira.
Desde seu surgimento, no início nos anos 80 até os dias atuais, a política queer
defende evidenciar papéis e personagens reais muito mais do que preservar ou não tais
comportamentos (DO NASCIMENTO, 2020), visto que tais realidades são intrinsicamente
existentes, a obra ignora narrativas com ideais de antagonismo e exercita a construção de
diversos personagens com imoralidades, complexidades e questões a serem solucionadas em
seu interior durante sua jornada. É importante firmar a ideia de que, apesar da liberdade
criativa em nossas narrativas e personagens existir (e é importante que ela exista), há uma
delimitação dentro da psicologia humana, da política e da sociedade, tríade essa que pontua a
civilização e a forma como ela pode responder ao paradoxo de nossas subjetividades.

Sua importância foi a de buscar imagens plurais que representa uma democracia real
de sujeitos e corpos diversos. Criar polêmica e levar assuntos desconfortáveis ou que
se consideram já passados com a militância tradicional para o centro do combate.
Por que os viados, bichas, sapatões, queer e outros termos considerados pejorativos
devem ser lidos assim? Através do cinema, tentou se mostrar, na realidade, um
orgulho de suas próprias imagens desviantes de uma norma majoritária e justamente
por isso, particular, original e bela. (LOPES e NAGIME, 2015, p. 14).

A escolha pela abordagem de tal tema, tal história, justifica-se também por sua própria
escassez. Ao buscarmos por referências de conteúdo, refletimos, também, sobre a recorrente
condição destes personagens LGBTQIA+ na cinematografia ao notarmos que sua principal
15

função nas tramas passa a ser evidenciar sua sexualidade posta por um estereótipo
majoritariamente performático, “sua entrada em cena já denota todas as suas implicações e o
público já sabe como vai-se comportar e agir” (MORENO, 2001, p. 285).
É importante que a diversidade destes personagens seja destacada e que suas
subculturas sejam apresentadas para além do universo do outro, mas também há uma
necessidade de inserir estes indivíduos em papéis que pensam em normalizar o comum
cotidiano dos mesmos, de oferecer a consciência da realidade mundana que estes também
possuem, colaborando para vermos em tela vivências que também atravessam nichos, grupos,
subculturas. Talvez, a preocupação também exista por conta do mundo visto através da
perspectiva heterossexual, onde estes acabam se vendo como uma figura central da
epistemologia humana, categorizando todos em grupos e subgrupos, sem se dar conta de que
eles também fazem parte de um determinado. Dito isso, buscamos trabalhar um personagem
homossexual que não possui questionamentos sobre sua própria sexualidade, que não está em
situação de vulnerabilidade e que não está submisso às condições que não o agradam. Há um
certo tipo de manifesto representado através do personagem, que brada para não se curvar em
situações de desrespeito e que espera pela revolta dos seus e de outros. Raymond Williams
nos lembra da principal função dos meios de comunicação, sendo esta, a tarefa ininterrupta de
alterar a realidade e cultura de toda uma sociedade:

A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e


seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão
da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra. A
sociedade em desenvolvimento é um dado, e, no entanto, ela se constrói e reconstrói
em cada modo de pensar individual. A formação desse modo individual é, a
princípio, o lento aprendizado das formas, dos propósitos e significados, de modo a
possibilitar o trabalho, a observação e a comunicação. Em segundo lugar, mas de
igual importância, está a comprovação destes na experiência, a construção de novas
observações, de comparações e de novos significados. Uma cultura tem dois
aspectos: os significados e direções conhecidos, em que seus membros são
treinados; e as novas observações e os novos significados, que são apresentados e
testados. Estes são os processos ordinários das sociedades humanas e das mentes
humanas, e observamos por meio deles a natureza de uma cultura: que é sempre
tanto tradicional quanto criativa; que é tanto os mais ordinários significados comuns
quanto os mais refinados significados individuais. Usamos a palavra cultura nesses
dois sentidos: para designar todo um modo de vida — os significados comuns; e
para designar as artes e o aprendizado — os processos especiais de descoberta e
esforço criativo (WILLIAMS apud CEVASCO, 2001, p. 52-53).

No caso de determinados grupos, a alteração da realidade não foi feita por eles,
fazendo com que busquemos novamente por tal alteração, através da propriedade destes que
vos tentam falar. Outra questão de inovação presente no projeto é deixar, de maneira explícita,
a brincadeira ousada sobre roteiros, papéis e suas inversões, questionando-nos da realidade da
16

obra sem fazer com que a história se apoie nisso, mas que também atravesse uma narrativa
que busca gerar sensações surpreendentes dentro dos próprios personagens. O curta-metragem
questiona o roteiro da peça em questão, enquanto não pede licença para que seus personagens
se percam dentro de seus próprios papéis, que julgavam ser determinantes. Há uma
movimentação intensa no cinema nacional da atualidade, que se cansa da era da passividade
vulnerável em suas obras, que exercitam críticas antagônicas através de uma narrativa clássica
onde não há uma política reativa em seus projetos e passa a contrariar tais características, se
rebelando de maneira ativa, presente e agitada que agora, se recusa a esperar por ações
conscientes de um lado antagônico e que passa a agir por domínio próprio.
Nos interessa oferecer ao debate científico um pensamento sobre a identidade coletiva
sendo veiculada através de grandes meios de comunicação e como elas podem ser
determinantes para a construção de alguns grupos em nossa sociedade através do imaginário
coletivo. Existe a necessidade de indagar sobre nossa tendência em ter grandes dificuldades
para lidar com a diversidade até mesmo dentro de determinados grupos, fazendo com que a
representatividade acabe se delimitando dentro de si mesma, transformando-a em um único
espiral de mesmo destino. Antônio Moreno (2001) aponta que é através da dificuldade de
lidar com tal diversidade da homossexualidade que se encontram pontos psicossociais
enfatizados pelos mesmos personagens representados em tela, muitas vezes influenciando o
público a procurar pelo papel alegórico que estão acostumados a ver, fazendo com que
criadores tenham um confronto cultural com suas criações em conflito com os espectadores,
visto que não buscam uma diversidade de gênero, racial, cultural, etc., fazendo com que
personagens travestis, negros e indígenas sejam completamente exilados de tela. Moreno
também aponta que este ciclo colabora para uma preparação do público para personagens já
conhecidos, cujas falas e ações já são esperadas antes mesmo de seus atos.
Segundo Antônio Moreno, em seu livro “A personagem homossexual no cinema
brasileiro” (2001):
(...) uma couraça de invisibilidade que mascara, esconde e não ‘descobre a
personagem’. Ela, e todo o discurso que a envolve, param no tempo e no espaço.
Como uma personagem, sua entrada em cena já denota todas as suas implicações e o
público já sabe como vai se comportar e agir.

É também curioso pensarmos em como os personagens de obras audiovisuais são


majoritariamente heterossexuais. Coercitivamente, sua sexualidade é explorada de maneira
costumeira e sua grande preocupação (principalmente no personagem heterossexual
masculino e branco), como protagonista da trama, é ter sua grande ambição conquistada. Sua
17

mulher amada é terceirizada, tendo como única função rodear a realidade do personagem viril
e viver em prol de suas conquistas, onde suas falas, ações e comportamentos são sempre
voltados a ele. Judith Butler chama o ato da presença constante destes indivíduos de
heterossexualidade compulsória. Tal fenômeno comumente posto em tela, está atrelado. De
acordo com Oliveira (1983, p. 13):
(...) nos estereótipos sobre os sexos, que servem como padrões de desempenhos de
papéis sexuais e que resumem as características culturalmente aprovadas para
indivíduos do sexo masculino e para os do sexo feminino, [...] os homens são mais
independentes e agressivos, e as mulheres mais dependentes e amáveis.

Nos interessa pensar que tal tipo de comportamento não está calcado ao pensamento
da “performance de gênero”, pois esta ideia está sempre atrelada somente ao homossexual,
reforçando, a ideia da heterossexualidade compulsória de Butler e ratificando a reflexão da
perspectiva epistemológica do olhar heterossexual como centro do universo.

A cada um de nós é atribuído um gênero no nascimento, o que significa que somos


nomeados por nossos pais ou pelas instituições sociais de certas maneiras. Às vezes,
com a atribuição do gênero, um conjunto de expectativas é transmitido: esta é uma
menina, então ela vai, quando crescer, assumir o papel tradicional da mulher na
família e no trabalho; este é um menino, então ele assumirá uma posição previsível
na sociedade como homem. No entanto, muitas pessoas sofrem dificuldades com sua
atribuição — são pessoas que não querem atender aquelas expectativas, e a
percepção que têm de si próprias difere da atribuição social que lhes foi dada. A
dúvida que surge com essa situação é a seguinte: em que medida jovens e adultos
são livres para construir o significado de sua atribuição de gênero? (BUTLER,
2017). (paginação)

Para Butler (2017), as pessoas que não se veem dentro de algum gênero, feminino ou
masculino, se tornam atores sociais que têm que se adaptar às normas sociais e performar o
que é esperado pela sociedade de acordo com o gênero que lhes foi posto desde seu
nascimento. Ao mesmo tempo que suas existências se tornam aceitáveis perante o padrão
imposto pela sociedade, elas são impedidas de se descobrirem. Dessa forma, também se
explica a ideia da heterossexualidade compulsória, quando uma menina cresce já escutando
brincadeiras sobre namorados desde muito nova e comentários ruins sobre outras mulheres
que não seguiram esse padrão e que, por isso, para a sociedade, ela é uma pessoa incompleta,
infeliz, enquanto o menino cresce cercado das mesmas brincadeiras, mas de uma forma mais
violenta, escutando tanto sobre a sexualidade como algo ruim que isso vira uma ofensa, uma
desonra.
18

O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas


significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade e feminilidade
verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que
oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de
proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da
dominação masculina e da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2010, p.
201).

E uma das grandes motivações para tal tema, é a vivência pessoal de alguns
integrantes do grupo, que tiveram, em muitos momentos, suas realidades projetadas em obras
que se tornaram subsequentes, de maneira pejorativa, em algum momento de suas vidas. Há
personagens que vieram como um grande fardo para indivíduos que não se sentiam
representados por papéis de novelas ou filmes com a finalidade de viver sob a vida de outra
pessoa e fazê-las rirem de si mesmo. Existem papéis constantemente reproduzidos que
colaboram, em determinada esfera, para a personificação de grupos em sua totalidade, que
acabam transformando estes em algo menor. É de memória coletiva entre homossexuais a
lembrança de uma juventude em que a homofobia era reproduzida através de bordões de
personagens populares por espectadores tradicionais em grandes novelas, sendo importante
refletir sobre a importância da representatividade durante o horário nobre, mas com a
consciência dos impasses que podem causar quando estes são articulados, no século XXI, da
mesma maneira em que eram retratados no século XX. O projeto, desta forma, extrai a
intencionalidade do grupo em ressignificar estes através da plataforma que nos foi dada.

4. REFERÊNCIAS DE CONTEÚDO
4.1 REFERÊNCIAS TEMÁTICAS E ESTÉTICAS
Gotas d’água em pedras escaldantes (2000), de François Ozon. Um homem de
negócios de 50 anos seduz um jovem de 19 anos que passa a morar em sua casa. O casal
começa a ter desavenças ao terem discordâncias em sua relação, que passa a se modificar. A
obra, originalmente escrita por Rainer Werner Fassbinder para o teatro, aborda questões de
gênero em relacionamentos homoafetivos que são moldados através do ideal de uma relação
heterossexual. É usada no projeto como a introdução do ensaio da peça que está sendo
desenvolvido pelo diretor. O filme antagoniza as ideias de nosso projeto, tendo ele como
exemplo a se ressignificar. Neste corte, o curta-metragem irá utilizar um plano semelhante
que evidencie o contraponto das ações de ambos os personagens em um palco de teatro.
Na imagem, o jovem Malik, em seu avental, para de cozinhar para atender ao telefone
enquanto Bernard lê um artigo para seu trabalho.
19

Imagem 1 – Gotas d’água em pedras escaldantes (2000), de François Ozon

Fonte: Frame de Gotas d’água em pedras escaldantes (2000), de François Ozon

Em Birdman (2014), de Alejandro González. Um ator de meia-idade tenta recuperar


sua importância artística perdida nos últimos 20 anos ao se recusar a interpretar o personagem
de super-herói que marcou sua carreira, roteirizando e estrelando a adaptação de um texto
para o teatro. O filme consegue abordar as discussões de papéis, criação e ambição artística
dentro e fora do palco, explorando a vulnerabilidade dos atores e criadores da peça.
Na imagem, Leslie tem um esgotamento emocional ao ter um desentendimento com
Riggan, diretor da peça.
Imagem 2 – Birdman (2014), de Alejandro González
20

Fonte: Frame de Birdman (2014), de Alejandro González

4.2 REFERÊNCIAS TEMÁTICAS E LINGUÍSTICAS


Baixio das Bestas (2006), Cláudio Assis. O filme retrata uma adolescente sexualmente
explorada por seu avô, que a coloca em uma plateia nua para fazer um show para
caminhoneiros. Neste caso, o exemplo é inserido ao associarmos a exploração de seu avô a
sua neta, com a exploração do diretor com seu ator, também em um palco, que submete o
jovem a performar papéis que acabam conflitando com sua identidade. A alusão à tragédia do
filme também se dá pela semelhança ao projeto.
Na imagem, Auxiliadora performa em um palco enquanto é explorada por clientes.

Imagem 3 – Baixio das Bestas (2006), de Cláudio Assis

Fonte: Frame de Baixio das Bestas (2006), de Cláudio Assis


Em Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti. O filme trata de Gustav, um artista
que viaja para fugir de sua crise emocional e artística, mas que desenvolve uma atração pelo
21

jovem Tadzio, que também aproveita uma temporada de férias e não sabe das intenções do
homem. Em Veneza, as pessoas são ameaçadas uma epidemia de cólera durante o verão
comemorativo. O filme é referenciado pela abordagem como os personagens são
desenvolvidos através de seu silêncio e de seu contato indireto, além de contrapor os papéis
que se invertem na narrativa já discutida anteriormente, tendo o personagem efeminado em
um espaço de virtude, enquanto o artista mais velho, Gustav, é posto em um papel de
vulnerabilidade. A cena final do filme também é um referencial para a cena final de nosso
curta-metragem: o diretor luta contra seu próprio corpo ao tentar chegar ao palco do teatro
para poder entregar o roteiro enquanto a peça se desenrola em seu último ato, que foi escrito e
desenvolvido pelos próprios atores.
Na imagem, Gustav é atingido pela epidemia e encara sua morte em uma cadeira de
praia enquanto assiste Tadzio correndo para o mar.

Imagem 4 – Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti

Fonte: Frame de Morte em Veneza (1971), de Luchino Visconti

1.1 REFERÊNCIAS ESTÉTICAS E DE LINGUAGEM


Moonlight (2016), dirigido por Barry Jenkins. Black atravessa uma jornada de
autoconhecimento enquanto tenta enfrentar a realidade violenta em Miami. Na premissa
objetiva, o filme se apropria do caminho trilhado por seu personagem de maneira concisa,
ignorando a estilização exagerada da obra, Moonlight consegue dialogar habilmente com a
linguagem estilística com a premissa de seu personagem. O referencial é tido através desta
proposta. Os planos de enquadramento que evidenciam os sentimentos do personagem, as
22

luzes amareladas e mundanas da realidade de Black e o desenvolvimento dele são espelhos


para este projeto. Na imagem, Black enfrenta seu colega e amante, que é intimado a agredi-lo.

Imagem 5 – Moonlight (2016), de Barry Jenkins

Fonte: Frame de Moonlight (2016), de Barry Jenkins

Em Igor (2019), álbum de estúdio de Tyler, The Creator. No álbum, o rapper bissexual
cria um personagem denominado Igor, que interpreta em seus videoclipes da era. Com uma
peruca loira, ternos extravagantes e um óculos escuro, o cantor trabalha a persona de um
homem fora dos padrões estéticos que tenta se enquadrar para se envolver em um
relacionamento homoafetivo, buscando sua aceitação através da recusa por sua própria
identidade. O álbum linear conta a trajetória de Igor iniciando pela humilhação por seu amado
e terminando com a libertação do mesmo. No projeto, o personagem atravessa uma jornada de
desbravamento de sua própria identidade semelhante.

Imagem 6 – Earfquake (2019), de Tyler, The Creator


23

Fonte: Frame do videoclipe Earfquake (2019), de Tyler, The Creator

1.2 REFERÊNCIA DE LINGUAGEM


Midsommar (2019), dirigido por Ari Aster. O filme de suspense explora o subgênero
pós-horror, que retrata a jornada de Dani enfrentando tragédias pessoais ao lado do namorado
em um festival de verão com rituais. O exemplo é colocado como referencial para o gênero
explorado no projeto, que articula a tragédia e a vingança em sua linguagem. Tanto na
referência quanto no projeto, os personagens principais possuem em seu estado psicológico,
um conflito direto com a realidade que enfrentam, onde estão sempre prestes a enlouquecer,
porém nunca chegando em seu estágio final até, enfim, o último ato, satisfazendo seu objetivo
de vingar a si próprio. Na imagem, Dani, consagrada a rainha da primavera, assiste seu
namorado ser queimado durante o festival.
Imagem 7 – Midsommar (2019), de Ari Aster
24

Fonte: Frame final de Midsommar (2019), de Ari Aster

1.3 REFERÊNCIA TEMÁTICA, ESTÉTICA E DE LINGUAGEM


São Sebastião, Santo Sebastião de Narbona. Esta referência se dá por diferentes
aspectos e significados. O cristão se tornou soldado com o objetivo de se infiltrar para de
ajudar outros iguais que eram condenados pelo Império Romano, sendo descoberto e,
também, punido. Apesar das hagiologias, o santo se tornou uma representação simbólica para
os homossexuais, considerado, muitas vezes por eles, protetor dos gays, se tornando parte da
homocultura, tendo seu papel realocado através da iconoclastia artística.

Talvez tenha sido a junção de tudo isso que fez com que a comunidade LGBT
acabasse o escolhendo como uma espécie de mártir gay. E uma analogia é possível:
se São Sebastião foi defensor dos que eram perseguidos, os cristãos perseguidos
daquele tempo, que eram torturados e mortos, ele também desponta na nossa
sociedade como um símbolo de luta por outra causa. (...) Sabemos que a
comunidade LGBT muitas vezes é perseguida. Ele surge como um símbolo de
defesa, de proteção (MAERKI, 2022). (paginação)

Ao ser condenado por militares, o martírio de São Sebastião foi a tortura, sendo
amarrado em uma árvore, levando diversas flechadas até sua morte. Se tornando uma imagem
popular retratada em diversas obras de arte, colaborando para um imaginário homoerótico
feito pela iconografia cristã.
Diferente do que as pinturas mostram, São Sebastião não foi morto por flechas. Ele
foi resgatado por Santa Irene e espancado até a morte a mando do imperador
Diocleciano, que jogou seu corpo ferido nos esgotos de Roma", enfatiza. "A imagem
de seu corpo seminu perfurado por flechas e aguardando o martírio foi estabelecida
pelos pintores do Renascimento. A propagação dessa imagem despertou a
imaginação de vários artistas, fazendo de São Sebastião o santo masculino mais
retratado na história da arte (MENGALI, 2022). (paginação)

Em nosso projeto, o Santo é usado em sua figura literal para o universo diegético da
própria peça em seu terceiro ato, em sua noite de estreia, tendo-o como uma alegoria de luta e
jornada narrativa, aqui, o destino deste que é representado pelo personagem homossexual não
é o de decadência, mas sim, de ascensão. Suas flechas são retiradas de seu corpo e sua
libertação é o fim.

Imagem 8 – São Sebastião (1525), Il Sodoma


25

Fonte: Imagem de domínio público. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-60048420>


26

2. REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS
A LIRA do Delírio. Direção: Walter Lima Jr. Produção: Elizabeth Fairbanks, Epitácio
Brunnet e José Carlos Escalero. Rio de Janeiro. Walter Lima Junior Produções
Cinematográficas Ltda., 1978. 105 minutos.
A RAINHA Diaba. Direção: Antônio Carlos Fontoura. Produção: Antonio Calmon e
Mauricio Nabuco. Rio de Janeiro. Produções Cinematográficas R. F. Farias; Lanterna Mágica
Produções Cinematográficas Ltda.; Ventania Produções Cinematográficas Ltda., 1974. 106
minutos.
BAIXIO das Bestas. Direção: Cláudio Assis. Produção: Dedete Parente Costa e João
Vieira Jr. Pernambuco. Parabólica Brasil; Belavista Cinema; Produção Ltda., 2006. 86
minutos.
BIRDMAN. Direção: Alejandro González. Produção: Alejandro González, Arnon
Milchan, James W. Skotchdopole e John Lesher. Nova Iorque. Regency Enterprises; New
Regency Productions; M Productions; Le Grisbi Productions; TSG Entertainment; Worldview
Entertainment, 2014. 119 minutos.
GOTAS d’água em Pedras Escaldantes. Direção: François Ozon. Produção: Alain
Sarde, Christine Gozlan, Kenzô Horikoshi, Marc Missonnier e Olivier Delbosc. [S.l.]. Euro
Space Inc.; Fidélité Productions; Les Films Alain Sarde; Studio Images 6, 2000. 90 minutos.
MIDSOMMAR. Direção: Ari Aster. Produção: Lars Knudsen e Patrik Andersson.
Budapeste. A24; Parts & Labor; B-Reel Films, 2019. 147 minutos.
MOONLIGHT. Direção: Barry Jenkins. Produção: Adele Romanski, Dede Gardner e
Jeremy Kleiner. Miami. A24; Plan B Entertainment; Pastel Productions, 2016. 111 minutos.
MORTE em Veneza. Direção: Luchino Visconti. Produção: Luchino Visconti. [S.l.].
Alfa Cinematográfica, 1971. 128 minutos.
O MENINO e o Vento. Direção: Carlos Hugo Christensen. Produção: Carlos Hugo
Christensen. Rio de Janeiro. Carlos Hugo Christensen Produções Cinematográficas, 1967. 104
minutos.
TYLER, the Creator. Earfquake. 2017. (4m26s). Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=HmAsUQEFYGI>. Acesso em 23 abril 2022.
27

3. REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS
ALEXANDRE Figuerôa na Revista Continente. In: CINEMA QUEER EM
PERNAMBUCO. CEPE. 2019. Disponível em
<https://revistacontinente.com.br/edicoes/218/cinema-queer-em-pernambuco>. Acesso em 31
maio 2022.
ANCINE. In: DIVERSIDADE DE GÊNERO E RAÇA NOS LANÇAMENTOS
BRASILEIROS DE 2016. Governo Federal. 2020. Disponível em
<https://www.gov.br/ancine/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/apresentacoes/
diversidade-de-genero-e-raca-nos-lancamentos-brasileiros-de-2016>. Acesso em 26 abril
2022.
EDISON Veiga em BBC News Brasil. In: A VIDA DE SÃO SEBASTIÃO,
PADROEIRO DO RIO, QUE VIROU PROTETOR DOS GAYS. BBC. 2022. Disponível em
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-60048420>. Acesso em 04 março 2022.
MARCELO Fiuza no Jornal O Tempo. In: CINEMA PERPETUA ESTERIÓTIPO DO
GAY. O Tempo. 2006. Disponível em <
https://www.otempo.com.br/diversao/magazine/cinema-perpetua-estereotipo-do-gay-
1.324527>. Acesso em 31 maio 2022.
NATHALIA Geraldo em Universa. In: QUEER ESTÁ NA SIGLA LGBTQIA+ O
QUE SIGNIFICA E QUEM USA. UOL. 2022. Disponível em
<https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/01/20/queer-esta-na-sigla-lgbtqia-o-
que-significa-e-quem-usa.htm>. Acesso em 23 maio 2022.
28

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido
no Brasil. Folha de São Paulo, v. 19, n. 11, 2017.
CUNHA, Raquel Cantarelli Vieira da. Os conceitos de cultura e comunicação em
Raymond Williams. 2010.
DE ARAUJO, Tatiana Brandão. Cinema Queer: O que é isso, companheir@ s?. 2013.
DE AZEVEDO, Fábio Palácio. O conceito de cultura em Raymond Williams. Revista
Interdisciplinar em Cultura e Sociedade, v. 3, n. especial, p. 205-224, 2017.
DO NASCIMENTO, Samuel Macêdo. O QUE É UM HOMEM? OUTRAS
MASCULINIDADES EM UM CINEMA DISTANTE. 2020.
FIGUEIREDO, Eurídice. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler.
Revista Criação & Crítica, n. 20, p. 40-55, 2018.
GÓIS, João Bôsco Hora. MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema
brasileiro. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 2, p. 515-515, 2002.
GOMES, Itania Maria Mota; ANTUNES, Elton. Repensar a comunicação com
Raymond Williams: estrutura de sentimento, tecnocultura e paisagens afetivas. Galáxia (São
Paulo), n. SPE1, p. 8-21, 2019.
MAGRANER, Sérgio. Desejo, prazer e perigo: uma análise de" Um estranho no lago"
como um reflexo cultural do universo gay na cinematografia queer contemporânea. 2020.
MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Fundação
Nacional de Arte (Funarte); EdUFF. Rio de Janeiro. 2001.
MORENO, Antônio. Homossexualidades projetadas. Estudos Feministas, v. 515, p. 2,
2001.
SOUZA, Eloisio Moulin de. A teoria queer e os estudos organizacionais: revisando
conceitos sobre identidade. Revista de Administração Contemporânea, v. 21, p. 308-326,
2017.
29

5. PROPOSTA DE ROTEIRO

CARNIS LEVALE
por
Ricardo Nunes
30

5.1 STORY LINE


Um diretor de teatro que não sabe que fim dar a sua história, entra em conflito consigo
e com a atriz principal da peça, que não gosta do papel oprimido de sua personagem e decide
mudar seu rumo.

5.2 SINOPSE
Tentando se adaptar ao novo público do mundo da arte e engatar um novo projeto
teatral em sua carreira, um diretor de teatro enferrujado busca desenvolver o final de sua peça
que já está em processo de ensaio. Entretanto, pelo bloqueio criativo, não sabe que fim dar à
história.
A atriz principal de seu trabalho passa a se incomodar com o papel submisso e vulnerável que
se coloca, atravessando o universo diegético de seu próprio personagem, revertendo as
posições e inserindo o diretor, em sua vida real, no papel do personagem que a atriz interpreta.
Uma história sobre revelação em situações de injustiça, uma carta de amor a todos os jovens
LGBTQIA+ e queers que já tiveram que se colocar em papéis que não são propriamente seus.
31

PERSONAGENS PRINCIPAIS

KYRA (ATRIZ) - Singela, tímida, introspectiva.


DIRETOR – Casmurro, autoritário, deprimido.

COADJUVANTES

ATOR 2
PRODUTORA
32

ATO 1
CENA - INTRO
RITO DE MOIRAS
As Moiras CLOTO, LÁQUESIS e ÁTROPOS se entreolham e analisam o
FIO DA VIDA que tecem entre si. Sobreposto na RODA DE FORTUNA,
nota-se um ROTEIRO.
ÁTROPOS inclina-se em poucos movimentos, pega ROTEIRO e o
analisa.
FAST FADE OUT – CORTE SECO

CENA 1
FADE IN
INT. TEATRO – DIA
No palco, ensaia-se uma cena da peça.
Vê-se dois atores: um sentado sobre a mesa, toma café e lê o
JORNAL que cobre o seu rosto para a plateia. A outra, nua,
coberta apenas por um avental, de costas para o palco, lava
uvas.

KYRA
As uvas mofaram, acho que já passou da validade.

Larga o escorredor. Caminha com o pote de uvas em direção ao


ATOR 1. Senta-se na cadeira ao lado dele. Coloca o pote sobre
a mesa.

Às vezes, eu me sinto só como uma reprodução pra você, Apolo.


Você me vê como indivíduo ou como uma representação de algo
que você fantasia?

Apoia a cabeça em seu ombro. Olha para o horizonte.


ATOR 1 permanece estático. Pega uva do pote e leva em direção
a boca, come-a.
FADE OUT
33

CENA 2
INT. TEATRO - DIA
Luzes do palco se acendem. DIRETOR quebra o universo teatral e
interrompe o ensaio dos atores.

DIRETOR
Ok, ok... Foi bom!

ATOR 1 abaixa o jornal, deixa seu rosto visível, e ouve as


orientações do diretor.

Eu acho que você só precisa de um pouco mais de entrega,


KYRA. Dá pra melhorar!

Permanece com o olhar no KYRA, como quem gentilmente aguarda


uma resposta.

KYRA
Ok.

Responde desapontada.

DIRETOR
Certo.

Sorri, desconfortável.
34

CENA 3
INT. CAMARIM/TEATRO - DIA
KYRA termina de se trocar, pronta para ir embora. Ao lado do
espelho, vê-se pendurado na parede um pôster de BJORN
ANDRÉSEN. KYRA encara a fotografia e tenta reproduzir a pose
enquanto se olha no espelho.
CENA 4
INT. TEATRO – DIA
KYRA atravessa a coxia a caminho da porta de saída do teatro.

DIRETOR
KYRA? Tudo bem?
Eu estava esperando você. Queria conversar.

KYRA
Sim?

DIRETOR e KYRA caminham para os primeiros dois assentos do


teatro e sentam-se.

DIRETOR
Eu tinha a sua idade mais ou menos quando
comecei a escrever, sabia?

Fala olhando para o horizonte, KYRA ouve silenciosa olhando


fixamente para ele.

No começo é tudo muito complicado. A gente espera


que alguém venha com uma fórmula pra que consiga
ser instruído, mas não percebe que precisa agir sozinho.
Eu digo isso por mim mesmo.

Pausa.
35

Ainda não consegui escrever o final da peça.

Olha preocupado para o horizonte, estático e reflexivo por um


certo tempo.
Descongela, olha para KYRA, coloca a mão em seu ombro e
aperta-o.

Você tá aqui porque quer ou porque precisa?

KYRA
Eu quero. O que te faz pensar que eu preciso?

Ri enquanto pergunta.
Em seguida, fica desconcertada.

DIRETOR
Expressa desconfiança, não acredita em sua verdade.
Breve pausa, silêncio.

Eu acho que você precisa incorporar mais


o seu personagem. Sentir um pouco mais dele.

KYRA
Acho que esse é o problema. Eu não me identifico.

DIRETOR
Aproxima o corpo, inclina-se para ouvir, direcionado para
KYRA, demonstra atenção. Coloca seus braços em seus próprios
joelhos.

Por quê?

KYRA
36

Eu não sei se tô feliz com o meu papel.


Parece que tô me traindo e colaborando pra... sei lá.

Breve pausa.

DIRETOR
Apoia seu corpo no assento, com as duas mãos nos respectivos
apoios. Olha para o horizonte.
KYRA abaixa a cabeça e permanece.

Você não pode se precipitar quando só tem


a primeira vista da história, KYRA.
Pode se surpreender. Se entrega!

Olha para KYRA, coloca a mão em seu ombro, o balança.

Tá me ouvindo?

Gentilmente.
KYRA consente com a cabeça. DIRETOR segue olhando para ela.

DIRETOR
Acelera seu ritmo.

Ótimo! Bem, eu trouxe algo que eu queria muito que


você usasse. Acho que pode ajudar você a fazer o que eu
estou querendo.

Pega sacola, tira dela uma PERUCA LOIRA, estilo tigela.


Estende sua mão para entregar para KYRA.
KYRA, surpresa e irônica, não responde. Olha para a PERUCA,
olha para DIRETOR.
FADE OUT
37

CENA 5 – INT. CARRO – DIA


SECO
DIRETOR
Dirige enquanto fala (alto) no celular, com pressa.
Impaciente.
Não, não.
Não tem como entregar agora.
O final não tá pronto. Sem final, não tem preparo,
não tem estreia, não tem nada!
Eu só não posso fazer um negócio de qualquer jeito
só pra terminar. Não adianta ter um projeto pronto
que não tem qualidade nenhuma, porra. Me dá um tempo!

Irônico, abaixa o som.

Eu estou me esforçando, sim. Só preciso de mais um tempo.

Desliga e segue dirigindo.

KYRA (V.O)
“O sonho que você tem dessa história, te tira da história em
si”.

ATO 2
CENA 6. INT. CASA – TARDE
Reproduzindo BACO de CARAVAGGIO, KYRA interpreta – TABLAUX
VIVANT
KYRA ensaia no palco com texto que escreveu para sua
personagem, alterando o ROTEIRO da peça sem com que o DIRETOR
esteja preparado.
DIRETOR está sentado no banco ao lado de PRODUTORA.

KYRA
38

“Talvez eu represente tudo o que você teve medo de ser quando


foi sua vez de triunfar, mas eu não posso ser responsável por
isso. Seu sonho de me afligir porque sempre quis ser afligido
é inconsciente. Você está sonhando com um ideal? Porque eu
estou com os pés no chão.

ZOOM IN – CLOSE
KYRA fala com cara de nojo.
Você quer que eu seja a sua vitrine.

Cospe no chão.

Ela tá suja. Reproduzida em mil manequins diferentes que você


fez serem iguais.

DIRETOR, sentado em uma das fileiras, nota que KYRA alterou o


monólogo do roteiro original.

Você pega as nossas lutas...

DIRETOR
Corta.

Calmo.
KYRA
...ambições...

DIRETOR
Grita.
CORTA!

KYRA
39

...transforma nesse imaginário coletivo que vocês


construíram pra gente e aí chama de nossa realidade?

Indignada, mas calma.

O que você sabe sobre mim pra escrever como eu me sinto?

DIRETOR se levanta e sobe até o palco para tirar KYRA de cena.


Quantas vezes vou ter que honrar meus sentimentos sem abrir
mão do que você quer exigir dos meus sem nem fazer parte
deles?”.

DIRETOR pega KYRA pelo braço e a leva para o canto do palco.

DIRETOR
Que merda que você tá fazendo?
Enquanto a leva.
KYRA
Eu achei que seria bom construir algo.
Tenta tirar seu braço da mão do DIRETOR.

DIRETOR
Ah, você achou?
Achei que você tinha que decorar as suas falas.
Eu só te pedi uma coisa, eu te pedi pra mergulhar no
personagem, buscar inspirações e você escreve essa merda que
ninguém pediu?

KYRA se mantém quieta olhando diretamente para o DIRETOR.

Eu tô passando MESES, 24 horas me dedicando pra escrever essa


peça, você vem e me coloca nessa situação na frente de todo
mundo? Escrevendo aspirações... que merda era aquela? A sua
personagem não é essa. Eu não te pedi pra fazer isso!
40

KYRA
Você só sabe falar sobre você enquanto quer escrever sobre mil
representações diferentes sem ouvir nada do que a gente tem a
dizer? Não tem nem o final pronto.

DIRETOR
GRITA assim que KYRA conclui seu questionamento.

O ROTEIRO É MEU!

Silêncio absoluto.
DIRETOR suspira enquanto está com uma mão na cabeça, pensativo
e ofegante.
PRODUTORA chega e para entre os dois, nervosa.
Silêncio.
KYRA segue olhando para DIRETOR com raiva.

KYRA
E você não fala nada?
Brava, esperando defesa.

DIRETOR
Interrompe.
Ela não tem fala!

CENA 7 – INT. TEATRO/CAMARIM - INT. TARDE


CORRE, ofegante, sem conseguir respirar, quase caindo em
direção ao CAMARIM. Se segura pelos corredores para não cair.
KYRA chega ao camarim, engasgada e com vontade de chorar.
Senta.
Se olha no espelho, arranca a peruca. Mantém fixa seu olhar no
espelho, ofegante.
41

Devagar, olha para seu antebraço, que possui um corte aberto


feito pelo DIRETOR ao apertá-la.
Abre a gaveta com o COLAR DE CORAÇÃO.

ATO 3
MOIRAS passam uma a uma o ROTEIRO que estava inicialmente na
mão de ÁTROPOS até chegar em CLOTO. Elas se entreolham e riem
até os ombros balançarem enquanto o pulmão de cada uma pulsa
visivelmente em suas costelas.
PARAM de rir, sérias. ÁTROPOS estende mais o fio que tece. Uma
a uma se olham individualmente, consentindo o que estão
prestes a fazer.
CLOTO ergue o fio que tece para cortá-lo e ÁTROPOS joga o
roteiro para fora do campo de visão.
FADE OUT.
CENA 8 – INT. CASA – NOITE
DIRETOR escreve em sua escrivaninha em um caderno. Rabisca
escrito. Volta a escrever. Fuma, nervoso e desgastado.
Olha devagar para a parede. Fixa.
TELEFONE toca.
DIRETOR
Alô?
Estreia?
Não, houve uma confusão, a data de estreia não é hoje. Eu
estava finalizando agora, inclusive.

Confortável e gentil, ergue o braço esquerdo até sua cabeça.


Sorrindo, reflete, altera sua feição para preocupado.
FADE OUT

CENA 8 – EXT P. INT. - RUA P. TEATRO/ESTREIA – NOITE


LER AO SOM DE STORM, VIVALDI
DIRETOR, com a folha de ROTEIRO em mãos, corre até o TEATRO,
desnorteado, desesperado, fraco, impotente.
42

Sai de seu CARRO na porta para o TEATRO, fecha a PORTA DO


CARRO com o ROTEIRO ainda em mãos. Prende parte da sua camisa
na PORTA DO CARRO e o abre para tirá-la de novo e sai em
direção a ENTRADA.
Abre a porta de entrada do TEATRO.
O teatro está cheio. O público está vibrando por KYRA, que
está no palco vestida como SÃO SEBASTIÃO: Duas flechas em sua
barriga. Mãos amarradas para cima de sua cabeça em um tronco
de madeira. O COLAR DE CORAÇÃO está no centro de seu peito.
Ela olha lenta, deslumbrante e irônica.
DIRETOR desce as escadas, tropeça. Empurra pessoa da plateia
para passar. Vai em direção a uma cadeira vazia. Senta, suado,
cansado e tremendamente bagunçado. Um desastre.
Assiste KYRA, hipnotizado e fraco. Não a ouve, só ouve sons de
VIOLINO e os gritos do público. O mundo parou ao seu redor e
sua maior concentração é em se manter vivo.
KYRA olha em direção a ele e SORRI.
DIRETOR esmaga seus dedos nos apoios de seu ASSENTO. Soa
muito. Engole sua saliva e se mantém enjoado, confuso.
Tenta sair da cadeira e cai no chão. Se arrasta DEVAGAR até o
palco.

PLONGÉE
KYRA desamarra o laço de suas mãos. DIRETOR, suspirando, chega
aos pés de KYRA e para, pois não consegue mais ter movimentos.
Em pé, KYRA arranca lentamente as flechas em sua barriga. Tira
o COLAR DE CORAÇÃO de seu pescoço, se abaixa e ergue o corpo
do homem que está jogado aos seus pés e o apoia, de frente
para a plateia, contra seu próprio corpo.
KYRA ergue o COLAR DE CORAÇÃO FLECHADO e o cerca no pescoço do
DIRETOR. Imediatamente, ao colocá-lo, DIRETOR dá um ENORME
suspiro desesperador que o faz arregalar os olhos.
KYRA segura a FLECHA encaixada no CORAÇÃO que agora está no
corpo do DIRETOR e o arranca, fazendo jorrar todo o SANGUE que
estava dentro do objeto.
DIRETOR se encontra apagado, caído, somente apoiado por KYRA.
KYRA olha POR CIMA da CÂMERA direcionada para seu rosto em um
grande CLOSE-UP. Suspirando, ofegante. Olha séria, cansada.
43

Ergue sua sobrancelha, agora confusa. SORRI, realizada por


contar sua história.
Entrelaça seus braços no corpo do DIRETOR (apagado), em um
abraço de conforto. Fechando os olhos e abaixando a cabeça.

FIM

Você também pode gostar