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Navios Portugueses

dos Séculos XV e XVI


Francisco Contente Domingues

C A D E R N O S D O M U S E U D E V I L A D O C O N D E
título
Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI

produção e edição
Câmara Municipal de Vila do Conde
Museu de Vila do Conde

copyright
Câmara Municipal de Vila do Conde

autor
Francisco Contente Domingues

coordenação editorial
António Ponte
Ilídio Silva

tiragem
500 exemplares

isbn
978-972-9453-81-6

depósito legal
248399/06

design
Marta Braz

impressão
Minerva, artes gráficas

2
Para os meus filhos Rita e Francisco

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Um Mundo por Descobrir
As navegações portuguesas nos séculos XV e XVI
foram levadas a cabo com embarcações de diversos tipos,
que resultaram quer da adaptação dos recursos disponíveis
aos problemas levantados pelas viagens que se dirigiam a
mares desconhecidos, quer da procura de novas soluções
que permitissem optimizar as suas características. Como em
tudo o que diz respeito aos aspectos técnicos da navega-
ção, não faltou a capacidade de inovar quando o que se
conhecia não se mostrava adequado para os fins pretendi-
dos. Como sempre acontece na História das Técnicas, não
são os inventos mecânicos que criam as condições para a
novidade, mas são eles que permitem saltos qualitativos que
de outro modo não se poderiam verificar quando o Homem
procura fazer mais rápido ou ir mais longe.
Os portugueses não criaram de novo, no sentido em
que não surgiram embarcações que representassem uma
novidade radical em relação ao que era conhecido antes;
e resta saber, aliás, se alguma vez isso aconteceu no domí-
nio da História das Navegações, uma vez que qualquer tipo
de navio aparece sempre como uma forma de evolução de
algo que já era conhecido, ou talvez seja mais correcto dizer
como uma adaptação para responder a novos problemas,
sejam eles carregar mais carga com menor custo, fazê-lo
mais depressa, ou explorar mares ignorados. O que aconte-
ceu com as navegações portuguesas foi o resultado de uma
constatação simples: quando se tratou de singrar por mares
que não se conheciam, indo mais longe do que se fora até
então, foi preciso partir das técnicas de navegação conheci-
das, usá-las na medida do possível e criar soluções novas.
Se, antes dos navegadores portugueses, outros andaram por
paragens para as quais aqueles agora se dirigiam, pouco in-
teressava. Das memórias difusas de navegações antigas, de
que se encontra eco por exemplo no cronista que relatou as

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viagens levadas a cabo sob a responsabilidade do Infante
D. Henrique, Gomes Eanes de Zurara, nada tinha ficado do
que era importante para os navegadores do século XV: saber
como navegar nessas águas. E se alguma coisa distinguiu
as viagens portuguesas daquelas que teriam sido feitas an-
tes do século XV, como os périplos do continente africano
da Antiguidade ou as explorações marítimas medievais, foi
precisamente o seu carácter repetitivo: onde os portugueses
foram e quiseram voltar, voltaram; e depois deles navegado-
res de outras nacionalidades ajudaram a estabelecer uma
teia de rotas marítimas que com o tempo levou os navios eu-
ropeus a percorrer todos os mares e oceanos. Dito de outra
forma, muito mais importante do que ir uma vez foi a capaci-
dade de saber voltar. Também por isso as navegações dos
séculos XV e XVI representaram uma novidade radical em
relação ao que tinha sido feito até então; e ainda porque,
ao contrário do que sucedera anteriormente, os marinheiros
desta época deixaram memória e testemunho do que viram
e observaram. Além dos textos escritos, da mais diversa ín-
dole, como os relatos de viagens ou os diários de bordo, a
cartografia espelhou-o perfeitamente: as cartas que serviam
para os pilotos se orientarem mostravam os novos mundos
que iam sendo descobertos, não no sentido em que eram
vistos pela primeira vez, mas no de passarem a integrar uma
nova percepção da realidade geográfica, uma realidade que
não existia apenas na expressão gráfica dos mapas mas era
visitada continuadamente pelos navegadores, passando as-
sim a integrar o património colectivo do conhecimento geo-
gráfico europeu.
A principal contribuição portuguesa para a navegação
europeia foi a criação da náutica astronómica, ou seja, a ca-
pacidade de as tripulações dos navios se poderem orientar
no mar alto pela observação dos astros, permitindo-lhes

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1 “Tavoa da Aguada do Xeque”: nas ilustrações preparadas para acompanhar
dois dos roteiros de D. João de Castro, datáveis do segundo quartel do sécu-
lo XVI, avulta este desenho aguarelado que é talvez a melhor representação co-
nhecida de navios portugueses da época, nele figurando as principais embarca-
ções em que se baseou o poder naval português no Índico - a nau, o galeão, a ca-
ravela redonda, a galé e os bergantins e fustas (Tábuas dos Roteiros da Índia de
D. João de Castro).

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assim ultrapassar as limitações daqueles que precisavam de
seguir junto à costa por não terem meios para singrar em
mar aberto por longos períodos. Mas navegar mais longe e
por mais tempo também só foi possível porque se passou
a dispor de navios capazes para o efeito. Tal como aconte-
cia com a arte de navegar anterior às grandes viagens de
descobrimento marítimo, foi igualmente necessário adaptar
os navios que existiam às novas condições de navegação.
A par da arte de navegar, os navios dos séculos XV e XVI
tornaram-se no meio de conhecimento e de contacto com os
novos mundos: surgiram então embarcações mais eficazes
e com melhores condições para a navegação de longo cur-
so, fosse de guerra ou comércio. Também neste aspecto a
contribuição portuguesa foi decisiva, e é precisamente disso
que trata este livro.
O especialista de arqueologia naval, como se designa
– aliás não com muita felicidade – a disciplina que estuda as
características dos navios sob as mais diversas vertentes,
não precisa certamente de o ler, e também não é para ele
que este livro se dirige, mas antes para quantos alguma vez
se perguntaram: “como eram os navios dos descobrimen-
tos?”. Ao contrário do que possa parecer, a resposta não é
fácil, por uma razão simples: são muitas e diversas as opi-
niões emitidas pelos estudiosos a propósito de quase tudo,
mas o leitor terá de percorrer a bibliografia especializada
para as encontrar, deparando com facilidade em minudên-
cias que podem não lhe interessar, e perdendo seguramente
uma visão geral de síntese que identifique temas e proble-
mas, que é o que procura quem se pretende informar sobre
um qualquer assunto. Neste caso há uma dificuldade par-
ticular: há muito poucas obras que permitam adquirir essa
visão geral, e as que há ou estão desactualizadas ou não
se encontram disponíveis no mercado livreiro. Pretende-se

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que este volume supra tal carência, sem o fazer também re-
correndo à publicação de aparato: as imagens pretendem
apenas documentar e conferir maior legibilidade ao texto,
ilustrando explicações ou ideias cuja compreensão seria
mais difícil de entender sem este suporte.
Quer-se portanto que este seja um livro de síntese, fei-
to a partir do que é conhecido sobre os navios portugueses
dos séculos XV e XVI, cuja leitura seja mais agradável que
académica, e por isso o texto não tem notas justificativas
das afirmações nele exaradas, excepto quando se trata de
citações directas de outros autores; mas inclui no fim um
conjunto de sugestões de leitura que podem auxiliar quem
quiser saber mais sobre os navios dos descobrimentos por-
tugueses.

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Barcas e Barinéis
O termo barca aparece com muita frequência até ao sé-
culo XV, em que se iniciaram os descobrimentos, designando
pequenas embarcações utilizadas na pesca, na navegação
fluvial e de cabotagem; e continua a surgir nos documentos
até ao século XIX, com o mesmo sentido, chegando à topo-
nímia de uma forma que evidencia a sua inserção no quoti-
diano das populações que delas se serviam para múltiplas
finalidades: um local conhecido como porto das barcas na
margem de um curso de água mostra que ali acostavam as
que serviam para o transporte entre as margens do rio; ponte
da barca quer seguramente dizer que no local foi construída
uma ponte sobre barcas encostadas umas às outras (solução
que a engenharia militar usou até tarde, na falta de melhor
alternativa); e outros exemplos poderiam ser dados.
A diversidade de situações em que encontramos referi-
das as barcas, o longo espaço temporal em que o termo apa-
rece, enfim as denominações que lhe são associadas, mos-
tram que não estamos face a um tipo de navio específico, mas
antes perante um termo genérico que aparece com um senti-
do relativamente preciso: barca é uma embarcação pequena,
com muitas funcionalidades, assim como navio é a designa-
ção geral das embarcações de maior porte. Nos documentos
medievais percebe-se que a barca se caracteriza pela função
que lhe é dada, mais do que por características próprias e dis-
tintivas: assim, dá-se conta da existência de barcas de carga,
de carreto, do condado, de congregar, de mercadorias, de
mercee, de passagem, de pesca, de sardinha, de sal, e apa-
rece até uma enigmática barca seeira, de significado algo obs-
curo, entre outras designações. Esta relação continuada entre
a designação e a funcionalidade não termina aqui; voltaremos
a ela mais à frente, a propósito de um caso similar.
As dimensões das barcas referidas nos documentos do
século XV são bastante variáveis, embora as de maior porte

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não devessem ultrapassar os 30 tonéis. Provavel-mente te-
riam apenas tilhas (coberturas) à popa e proa, para protecção
de tripulantes e bens diversos, sem os pavimentos corridos
de popa à proa que aparecem nos navios de maior porte e a
que se dá o nome de cobertas.

A tonelagem dos navios é a melhor medida de comparação entre


as suas dimensões relativas. Cumpre porém dizer que na época em que
nos situamos a medição da capacidade era um problema real, por não
haver processo rigoroso de o fazer. Nem isso era particularmente premen-
te em relação a estas pequenas embarcações e ao tipo de navegação
que praticavam, pelo menos na maioria dos casos. Mas situações como
o cálculo dos montantes a reembolsar pelos armadores subvencionados
pelo poder régio, como sucedeu pontualmente quando os monarcas que-
riam incentivar a construção naval, ou a definição do valor da construção
de um navio, fixado contratualmente em função do número de tonéis, foi
obrigando à experimentação de fórmulas e processos de cálculo cuja
eficácia não foi porém assegurada senão muito mais tarde. Seja como
for, tudo se resumia de uma forma simples: a tonelagem dos navios era
calculada em função do número de tonéis que podia transportar. Tomava-
-se como medida o tonel, que servia para armazenagem e transporte de
mercadorias sólidas e líquidas, tendo a medida padrão de 1,5 metros de
altura por 1 metro de largura máxima (valores naturalmente aproximados
numa época em que não era possível obtê-los com grande precisão).

O aparelho destas embarcações tem sido objecto de


controvérsia. Afirmou-se desde sempre que armavam pano
redondo, num único mastro, mas é bem possível que pelo me-
nos em algumas delas fosse latino, pelas evidentes facilidades
que poderia oferecer nas viagens de exploração empreendi-
das na costa ocidental africana. A utilização da vela latina não
constituiria qualquer espécie de novidade, pois era conhecida
no Mediterrâneo havia muito; na verdade, julgamos que se afir-
mou o contrário apenas acentuar o que alguns pretenderam
ser o carácter radicalmente inovador da caravela latina.

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Designa-se por aparelho o conjunto das velas (velame), dos ca-
bos (massame) e das peças (poleame) por onde passam os cabos. Nos
textos de arqueologia naval aparelho é por vezes usado como sinónimo
de velame, embora isso não seja correcto, em rigor.

As viagens a mandado de D. Henrique em demanda


do Bojador tiveram o seu início pelos começos dos anos vin-
te do século XV. Pelo testemunho da Crónica da Guiné de
Gomes Eanes de Zurara percebe-se que a partir de 1421 as
viagens organizadas pelo Infante passaram a ter o objectivo
de ultrapassar o cabo Bojador, tido até essa altura como li-
mite do mar navegável:

E, finalmente, depois de doze anos, fez o In-


fante armar uma barca, da qual deu capitania a um
Gil Eanes, seu escudeiro (que ao depois fez cava-
leiro e agasalhou muito bem), o qual, seguindo a
viagem dos outros, tocado de aquele mesmo temor
não chegou mais que às ilhas de Canária, donde
trouxe certos cativos com que se tornou para o
Reino. E foi isto no ano de Jesus Cristo de 1433.1

Os navios do Infante não andavam pelo mar apenas


desde 1421. Disso é prova bastante o facto de poucos anos
antes ter ocorrido o descobrimento acidental das ilhas de
Porto Santo e Madeira. As ilhas já eram conhecidas e es-
tavam cartografadas desde os meados do século XIV, mas
pode falar-se com propriedade de um “descobrimento henri-
quino”, no sentido em que, a partir de então, passaram a ser
povoadas e a tornar-se um destino comum de navegação.
Tal como acontecia já antes com as Canárias, aquelas ilhas
foram seguramente alcançadas por navios do Infante que se

1 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos da Guiné (ou Crónica da Guiné),
cap. IX.

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2 Representação da barca de Gil Eanes, de João Brás de Oliveira. Não existem
informações seguras sobre qualquer das características deste navio, pelo que o desenho
é meramente hipotético.

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dedicavam ao comércio e ao corso na costa africana próxi-
ma, como era usual na época: “filhar” (como se dizia então)
gentes e bens não constituía uma actividade propriamente
ilícita, pelo menos nos termos em que passou a ser entendi-
da depois.
A barca era portanto uma embarcação que tinha de
aliar qualidades marinheiras a alguma capacidade de carga,
mas sem perder o carácter de pequeno navio ligeiro. Ideal,
pois, para se servirem dela os que tentaram progredir para
Sul por ordem do Infante, em mares e condições físicas de
navegação que não podiam ser bem conhecidas; por isso,
embora nada o prove – o que se deve acrescentar em boa
verdade –, não deve ser posta de lado a hipótese referida, a
de algumas armarem já pano latino.
Foi numa barca que Gil Eanes dobrou o cabo Bojador,
em 1434, mas logo de seguida ela cedeu o passo a navios
de maior porte.
Aparece nos documentos desta época o termo barcha.
As opiniões dividem-se entre os que consideram que a de-
signação diz respeito a um tipo distinto da barca, sendo de
origem nórdica, ou os que pensaram tratar-se simplesmente
de grafias diferentes para a mesma embarcação. A primeira
destas hipóteses carece sem dúvida de melhor e mais funda-
da informação concreta para poder ser realmente levada em
linha de conta: é preciso ter presente que não há uniformida-
de na grafia das palavras, no século XV (nem nos seguintes),
e este tipo de situação é usual, ou seja, a mesma palavra
aparece com frequência escrita de formas diversas, sem que
isso queira dizer que significam coisas diferentes.
De concreto, pois, sabemos muito pouco sobre a bar-
ca com que se iniciaram as viagens de exploração e desco-
brimento. E nem valerá a pena enfatizar o carácter hipotéti-
co, quando não cede completamente o passo à liberdade de

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expressão artística, da iconografia antiga e moderna que a
reproduz.
Por seu turno, o barinel, segundo João de Barros (o
autor das Décadas da Ásia e um dos grandes cronistas do
Renascimento português) era o maior dos navios até então
empregues nas viagens de descobrimento, surgindo a partir
do momento em que se verificou serem infundados os receios
de que os baixios que se supunha existirem a sul do Bojador
impedissem a navegação de embarcações com maior porte
que a pequena barca de Gil Eanes. Diz então Barros:

O ano seguinte de trinta e quatro, como o Infante


estava informado por Gil Eanes da maneira da ter-
ra, e da navegação ser menos perigosa do que se
dizia, mandou armar um barinel, que foi o maior na-
vio, que até então tinha enviado, por já estar fora
de suspeita, que se tinha dos baixios, e parcel, que
diziam haver além do Cabo. A capitania do qual deu
a Afonso Gonçalves Baldaia seu copeiro, e em sua
companhia foi Gil Eanes em sua barca, os quais
com bom tempo, além do Cabo já descoberto, cor-
reram obra de trinta léguas. 2

Tal como a barca, e em comum com os navios de pe-


queno porte, o barinel podia mover-se a remos em ocasiões
de recurso. Arvorava dois mastros, provavelmente com pano
latino, mas dele não se conhece muito mais: são escassas
as referências documentais de que dispomos relativas a ba-
rinéis navegados por portugueses nas viagens de explora-
ção e reconhecimento e dizem apenas respeito ao século
XV. Esta carência de informações deve-se porventura ao fac-
to de ter quase de imediato cedido o lugar à caravela latina.

2 João de Barros, Ásia, Década I, Livro I, cap. V.

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Caravelas Latinas e Redondas
A palavra caravela encontra-se de 1255 a 1766 em
documentos portugueses, e mais não seria preciso para se
subentender a grande variedade de tipos arquitectónicos e
funcionais agrupados sob este termo genérico. De facto, a
caravela pescareza do século XIII nada tem a ver com a ca-
ravela redonda ou de armada, do século XVI, e isto apenas
para citar dois casos em que a própria designação deixa à
partida clara a distinção entre os tipos.
A caravela latina de um mastro era um tipo de navio
comum (dizem-lhe seguramente respeito as primeiras re-
ferências documentais), mormente na navegação fluvial e
costeira, mas houve que a aperfeiçoar e habilitar a cumprir
os requisitos exigidos pela extensão e obstáculos inerentes
à progressiva extensão da viagem. É assim que surge a ca-
ravela latina de dois mastros, a caravela dos descobrimen-
tos ou caravela de descobrir, como é por vezes conhecida
e citada nas fontes.
A ideia de que este navio foi especialmente prepara-
do para o fim em vista – ou até inventado de raíz, como já se
afirmou –, tem levado a exageros que amiúde passam por
cima do suporte documental de que dispomos. Em função
da situação particular da arquitectura naval portuguesa,
que integrou experiências diversas (a costa portuguesa foi
ponto de passagem e paragem obrigatório no tráfego ma-
rítimo que a partir do século XIII ligou o Sul ao Norte da Eu-
ropa, o que deu azo à absorção de técnicas diferenciadas
provenientes de duas tradições distintas de arquitectura
naval), ter-se-á de reconhecer que o êxito da caravela latina
de dois mastros radicou por igual na optimização de solu-
ções técnicas que lhe são anteriores. O problema é apurar
a justa medida da incorporação da novidade.
E isto porque novos circunstancialismos, como os então
presentes, resultam com frequência em modificações mais ou

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3 Caravela latina de dois mastros, pintada c. 1520, é provavelmente a melhor reprodução
de um navio deste tipo que chegou até nós (Retábulo de Santa Auta, Museu Nacional
de Arte Antiga).

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menos profundas que podem inclusivé dar origem a altera-
ções importantes no traçado do navio e, decorrentemente,
nas suas características e aptidões; a experiência adquiri-
da pelos mareantes portugueses, com a verificação local
dos condicionalismos da navegação, foi sem dúvida um
factor de peso que não deve ser subestimado. Veremos
adiante que foi sensivelmente idêntica a situação que, entre
outras, levou ao intervalo de tempo que medeia entre a
chegada a Lisboa de Bartolomeu Dias (1488) e a saída de
Vasco da Gama (1497).
Muito controversa é porém a determinação da influ-
ência dessa prática adquirida no processo que teria levado
a um novo traçado da caravela latina, e penso não haver
fundamento para crer que no século XV a construção na-
val portuguesa obedecesse estritamente aos ditames de
qualquer organização que nela superintendesse, como
um grupo de peritos ou entidade coordenadora encarre-
gue de compilar e planear os conhecimentos técnicos da
época, e bem assim a sua execução, como houve já quem
pretendesse que tivesse acontecido. Há referência a uma
Junta Técnica no século XVII – no período filipino e no qua-
dro de uma regulamentação dos organismos de marinha
ligados ao aparelho de Estado que não tem paralelo na
realidade portuguesa antes de 1580, o que é bom frisar –,
e a ideia de que pudesse ter-se mantido secretamente em
funcionamento desde um período muito anterior sem que
chegasse até nós o mínimo indício da sua existência, afi-
gura-se-me francamente improvável. Esta ideia foi avan-
çada por João da Gama Pimentel Barata, como parte de
uma concepção global da empresa dos descobrimentos
em que esta aparece como produto de uma direcção ante-
cipadamente planeada, cientificamente planeada, mesmo,
e de uma execução abrangida pelo mais rigoroso segredo

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de Estado, o que por sua vez radica na tese do sigilo de
Jaime Cortesão.
A formulação da política de sigilo, tal qual ela apa-
rece na obra de Cortesão, não é hoje em dia aceitável:
questionada por Duarte Leite (apesar dos reparos que a
sua crítica merece), veio depois Damião Peres a terreiro
esclarecer definitivamente a questão. E não se me afigura
igualmente verosímil a ideia do planeamento técnico rigo-
roso do traçado dos navios portugueses desde o tempo do
Infante D. Henrique. Nada ficou escrito, que nos tenha che-
gado, quanto ao traçado da caravela latina quatrocentista.
Ao invés de tomarmos o facto como consequência do sigilo,
notemos antes o que se passou na náutica ou na cartografia:
as medidas de sigilo que, aí sim, podem ser documentadas
(mas apenas pontualmente), de maneira nenhuma impedi-
ram a circulação do saber português pela Europa: os técni-
cos viajavam e trabalhavam ao serviço de outros países; os
estrangeiros nunca se viram coibidos de obter em Portugal
as informações que buscavam; e se não o faziam às claras
encontravam meios subreptícios de chegar onde queriam. A
compra do planisfério anónimo português de 1502, por um
espião italiano ao serviço do duque de Ferrara (por isso tam-
bém conhecido por planisfério de Cantino, segundo o nome
do agente italiano, Alberto Cantino), é disso mesmo um bom
exemplo: mesmo uma carta geográfica cuja existência es-
tava rodeada do maior secretismo acabou por ser copiada e
enviada para o estrangeiro.
Há argumentos de peso contrários à pretensão de um
sigilo da caravela portuguesa:
a) não se conhece o traçado da caravela latina quatro-
centista, logo, não há por onde afirmar que tenha sido alte-
rado e muito menos por quem;
b) nos tratados de arquitectura naval, que já são bem

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mais tardios, abundam as remissões para que vários deta-
lhes da construção - mormente no caso do remate das su-
perestruturas - sejam deixados ao critério casuístico dos
mestres;
c) e, finalmente, pode-se compreender – e está docu-
mentado – que se alimente o sigilo em relação a uma carta
geográfica ou a um regimento náutico; mas como fazê-lo em
relação a uma embarcação, cuja existência se torna patente
a todos a partir do momento em que é lançada à água?
Pretender manter secreta uma carta geográfica era
possível, o que que não dizer que tivesse sido empresa
sempre bem sucedida. Pretender que um navio que anda
no mar, que pode ser apresado, dar à costa ou sofrer qual-
quer acidente que o deixe à mercê de outrém, que é no
mínimo visto por marinheiros experientes de outras nacio-
nalidades, torna-se uma verdadeira impossibilidade.
Os documentos comprovam o que a evidência con-
testa: sabemos hoje que carpinteiros navais portugueses
estiveram na Flandres a construir caravelas – oficialmente –,
ainda no decorrer da primeira metade do século XV.

Foi o Cardeal Saraiva (Francisco Justiniano Saraiva, 1766-1845)


o primeiro a aventar a hipótese de ter havido algum encobrimento nas
navegações portuguesas, ao detectar uma visível diferença entre o
número de documentos que deveriam ter sido produzidos no tempo
dos descobrimentos, e aqueles que eram efectivamente conhecidos
no seu tempo, atribuindo o facto ao “prudente e cauteloso segredo, em
que os nossos Principes, ao principio, reservavam aquelas memórias
e relações”3.
Alguns historiadores aventaram depois a hipótese de ter havido um
segredo de Estado (ou uma política de sigilo) que sistematicamente ocul-
tou os resultados das navegações portuguesas: cônscios da superiorida-
de dos meios técnicos que tinham ao seu dispor, os monarcas tê-los-iam

3 Cardeal Saraiva, Obras Completas, tomo V, Lisboa, 1875, p. 48.

27
4 Caravela latina portuguesa do século XV, segundo desenho do cartógrafo e marinheiro
espanhol Juan de la Cosa, c. 1500: é considerada uma das representações mais
fidedignas deste tipo de embarcação.

28
resguardado dos concorrentes estrangeiros para salvaguardar a priori-
dade das navegações portuguesas.
É indubitável que em alguns momentos se fez reserva de
informação importante, como é aliás normal em todas as circuns-
tâncias. Mas creio que não há razão que possa sustentar que logo
desde o tempo do Infante D. Henrique se tivesse assim procedido por
sistema. A falta de informação deve-se por vezes ao facto de ela não
ter simplesmente sido produzida, ao seu desaparecimento por causas
naturais – por exemplo, os registos oficiais da navegação para a Índia
perderam-se com o terramoto que em 1755 destruíu a baixa de Lisboa,
mas, desde que o Cardeal Saraiva escreveu e até aos nossos dias, a
pesquisa nos arquivos tem permitido revelar muitos documentos que
se julgavam perdidos, inclusivamente em consequência desta suposta
política de sigilo. O caso que se citou acima é exemplar: depois de du-
rante muito tempo vários autores terem afirmado que a caravela era um
navio secreto – insisto: e como podia ser secreto um navio que navegava
à vista de todos? –, descobriu-se há pouco que carpinteiros portugueses
construíram caravelas na Flandres, ainda antes destas embarcações te-
rem surgido nas explorações marítimas promovidas pelo Infante.

Quer isto dizer que a caravela que nos documentos


aparece como caravela de descobrir era um tipo de navio
comum? Não necessariamente. É sabido que as embarca-
ções eram especialmente preparadas para a dureza das via-
gens a efectuar em mares que não se conheciam, mas julgo
que, a partir das escassas referências documentais conheci-
das que dão algumas pistas nesse sentido, essa preparação
residiria sobretudo no reforço do equipamento sobresselente
e das estruturas do casco. E assim, caravela de descobrir
pode significar exactamente o quê? É frequente que a deno-
minação das embarcações identifique a sua funcionalidade,
como se viu atrás a propósito da barca. Penso que a ex-
pressão em causa, e outras similares, se reporta a caravelas
empregues nas viagens de descobrimento, e tão só isso, re-
metendo para algumas especificidades particulares mas não

29
para um tipo de navio estruturalmente diferente de todos os
outros.
Nada sabendo de concreto, portanto, quanto ao tra-
çado da caravela latina do século XV, só numa miscelânea
documental compilada pós 1630 encontramos o regimento
para uma caravela de 25 tonéis de arqueação. Esta situa-
ção deixa-nos uma larga margem de imprecisão na tentativa
de determinar rigorosamente as suas características princi-
pais, como acontece em relação a todos os navios nestas
condições: é que decorre cerca de um século e meio entre
1421, a data em que se viu terem início as expedições en-
viadas pelo Infante na tentativa de dobrar o cabo Bojador,
e 1570, altura por volta da qual o padre Fernando Oliveira
escreveu em latim um tratado sobre arte de navegar que
continha uma parte sobre a construção dos navios. Ou, dito
de outra forma, os navios portugueses foram do Bojador até
ao Japão antes de ter sido escrito fosse o que fosse sobre
as suas características por oficiais do ofício ou outros sa-
bedores da arte: restam pinturas, desenhos, observações
escritas de vária ordem, mas não documentos técnicos. O
facto prejudica naturalmente a nossa capacidade de termos
hoje uma visão muito rigorosa sobre o que seriam os navios
da época.
Tanto quanto podemos saber através das fontes de in-
formação disponíveis, a caravela latina de dois mastros era
um navio robusto, bom veleiro, podia ser movida a remos se
necessário, e tinha um calado relativamente pequeno em
função do seu porte, permitindo-lhe vantagens evidentes na
navegação de alto mar, costeira ou fluvial, em relação às
embarcações suas precedentes nas viagens portuguesas
de longo curso.
Como características morfológicas principais po-
demos apontar a existência de uma coberta – pavimento

30
5 Modelo de uma caravela latina de três mastros, embarcação que deverá ter surgido
pelos finais do século XVI (Alfândega Régia – Museu da Construção Naval em Madeira
– Vila do Conde).

31
6 Caravelas redondas ou de armada do terceiro quartel do século XVI (Livro de Lisuarte
de Abreu).

32
corrido da proa à popa –, e um pequeno castelo de popa,
com um pavimento. Regra geral, a arqueação devia andar
pelos 40 a 60 tonéis. Graças ao seu velame navegava à
bolina com facilidade (comparando-a uma vez mais com
as embarcações que a precederam), o que tudo junto a
tornava uma embarcação ideal para singrar em mares
com regimes de ventos e correntes desconhecidos. Era
artilhada com bocas de fogo de pequeno calibre, falcões
e berços. Uma particularidade notável consistiria no facto
da superfície vélica andar pelo dobro do que era então
usual nos navios similares do Mediterrâneo, e, provavel-
mente, era isto o que mais distinguia a caravela portugue-
sa. O reconhecimento deste conjunto de qualidades e os
resultados efectivos da sua utilização na exploração do
Atlântico Sul não torna pois surpreendente a abundância
de representações iconográficas que nos chegaram, em-
bora, como já ficou dito, deva estar presente a ideia de que
em geral não são muito fiáveis para a análise destas ou de
outras particularidades técnicas.

Por vezes era impossível ao piloto conduzir o navio direitamen-


te de um ponto para outro, sobretudo se o vento não era favorável à
progressão desejada. Praticava-se então a “navegação à bolina”: o
navio fazia ziguezagues sucessivos do ponto de partida até ao pon-
to de chegada, permitindo-lhe contornar a impossibilidade de fazer
a rota pretendida, mas esta era uma manobra de recurso que exigia
esforço e tempo que idealmente se deveriam poupar. Todavia era a
solução possível quando os marinheiros se internavam em mares nos
quais desconheciam os ventos dominantes. Bartolomeu Dias utilizou
frequentemente a navegação à bolina para progredir ao longo da costa
africana antes de atingir o cabo da Boa Esperança, porquanto tinha
ventos contrários ao sentido em que pretendia prosseguir. Já Vasco
da Gama fez depois uma volta pelo largo, percorrendo uma distância
maior mas com mais facilidade por ter ventos favoráveis. Daí a impor-
tância da caravela latina nas viagens de descobrimento.

33
Sem apresentar grandes diferenças, surge mais tarde
uma caravela latina de três mastros, desta feita com um por-
te de cerca de 60 a 80 tonéis. Data-se aproximadamente do
último quartel de Quatrocentos.
Por seu turno, a caravela redonda ou de armada arvo-
rava quatro mastros com pano redondo no traquete (o mais
chegado à proa), e latino nos restantes; insere-se numa ou-
tra tipologia, iniciada em finais do século XV ou inícios do
XVI. Os tratados dão-nos dela uma noção mais precisa, e no
Livro de Traças de Carpintaria de Manuel Fernandes (1616)
deparamos com os primeiros desenhos técnicos conhecidos
da caravela – da caravela de armada, a qual nada tem a ver
com a caravela latina dita dos descobrimentos. Tinha onze
ou doze rumos de quilha, segundo os regimentos do Livro
Náutico (uma miscelânea de documentos do final do século
XVI, que inclui alguns textos técnicos) e do Livro de Manuel
Fernandes, cerca de 150 a 180 tonéis, e artilhava-se com
cerca de duas dezenas de peças de artilharia, predominan-
do falcões e berços.
A palavra rumo usava-se em duas acepções: o rumo
que o navio segue, e a medida linear usada na construção
naval, equivalente a c. de 1,5m. A quilha dos navios maiores
(naus e galeões) media-se em rumos, mas também se usava
dizer navio de 18 rumos da mesma forma que se dizia navio
de 500 tonéis. A caravela redonda tinha portanto um máxi-
mo de 18m de quilha.
Aplica-se-lhe a designação de caravela de armada
porque era geralmente incorporada nas frotas como navio
de apoio. Nos elencos das armadas que foram enviadas
para a Índia a partir do século XVI há muitas referências a
caravelas, mas, dada a insuficiência da caravela latina para
uma viagem tão longa (o que não quer dizer que espora-
dicamente não a pudesse fazer), a regularidade com que

34
aparecem estas menções só pode significar que se tratavam
de caravelas redondas.
É este facto que nos sugere que estamos perante um
navio de guerra.
Se compararmos a caravela redonda com os grandes
navios que faziam regularmente a Rota do Cabo, constata-
mos uma diferença fundamental: a capacidade de carga.
Estes últimos tinham normalmente 500 ou 600 tonéis, e por
vezes mais, no século XVI, enquanto a caravela redonda ti-
nha um quarto desta arqueação, como vimos. Pelo facto de
ser um navio deste tipo as suas linhas eram mais afiladas,
e as superestruturas, os castelos de popa e proa, que se
erguiam acima do convés, eram evidentemente mais baixos
que os dos grande navios. Requeria uma tripulação mais re-
duzida, como é óbvio, mas no cômputo geral o resultado é
indesmentível: melhores qualidades para navegar mas mui-
to menos espaço disponível para transportar carga. Dito de
outra forma, cada quilo de especiaria que viesse do Oriente
numa caravela redonda seria mais caro que o que viesse
numa nau ou galeão, devido ao custo de transporte. Não
obstante vêm-se caravelas redondas nas armadas do Orien-
te; e, por vezes, são enviadas esquadras compostas exclu-
sivamente por navios deste tipo. A conclusão que se impõe
é uma apenas: sendo contraproducente empregá-las para
o comércio, por um lado, e tendo em vistas as suas quali-
dades como veleiro (navio rápido e de manobra fácil, em
termos comparativos), torna-se evidente que estas carave-
las redondas eram enviadas para cumprir missões militares,
começando pela protecção dos navios de grande porte que
voltavam ajoujados de mercadorias.
Quando o corso começou a ameaçar os grandes na-
vios de carga que vinham do Oriente, procurou atacá-los
junto às ilhas dos Açores, onde faziam a última paragem an-

35
tes de rumarem a Lisboa, ou no trajecto entre o arquipélago
e o continente. Fragilizados por uma viagem longa, estavam
mais expostos numa rota que também era mais acessível
para os corsários europeus, que assim evitavam internarem-
se no mar alto. Tornou-se portanto necessário organizar es-
quadras que esperavam os navios nos Açores para depois
os acompanhar até à costa portuguesa. E essas esquadras
eram compostas maioritariamente por caravelas redondas,
mais rápidas e militarmente mais capazes que os grandes
navios, podendo assim enfrentar os adversários melhor que
estes.
Na verdade a caravela redonda, também dita de ar-
mada, é o primeiro navio de vela preparado para a guerra no
alto mar por qualquer nação europeia.

36
Naus e Naus da Índia
Dobrado o cabo da Boa Esperança e cumprido o re-
conhecimento do Atlântico no que interessava para a na-
vegação em direcção ao Oriente, impôs-se a utilização de
navios capazes de suportar a dureza de uma viagem longa
de meses, entre Lisboa e o Oriente. Os mareantes tiveram
desde logo consciência disso mesmo, conforme nos mostra
Gaspar Correia, nas Lendas da Índia: a armada de Bartolo-
meu Dias era composta por caravelas latinas (além de uma
embarcação auxiliar), mas iam naus na de Vasco da Gama,
quase dez anos mais tarde.
O trecho do cronista é longo mas vale a pena segui-lo,
porquanto evidencia muito bem o que foram as dificuldades
sentidas e como de imediato se entendeu ser necessário
empregar um outro tipo de navio, que não a pequena cara-
vela latina, para fazer a Carreira da Índia, como se designou
depois a viagem que se fazia anualmente. Note-se porém
que o nome de Bartolomeu Dias não ocorre, surgindo João
Infante, que capitaneava a segunda caravela da pequena
frota que dobrou o cabo depois chamado da Boa Esperan-
ça, como interlocutor de D. João II:

El Rei Dom João, com seu grande desejo,


falou com um João Infante homem estrangeiro tra-
tante, que muitas vezes vinha a Lisboa, que muito
sabia de arte de navegar, e fez com ele concerto
que lhe daria navios e gente, e todo o necessario
sem ele gastar mais que o trabalho, e que lhe fosse
correr a costa de Benim, e corresse por ella quanto
mais podesse (...). E de todo bem concertado se
partiu (...); e tanto andou até que a costa foi vol-
tando pera o mar, achando os ventos contrarios, e
porfiando em voltas, ora para terra, ora para o mar,
com grandes temporais, e tão grandes mares
que lhe comiam os nauios; e quando viu que os

39
7 Modelo de nau dos inícios do século XVI (Alfândega Régia – Museu da Construção
Naval em Madeira – Vila do Conde)

40
ventos eram geraes, sem nunca fazerem mudan-
ça, havendo quatro meses que ali andavam voltan-
do ao mar, e a terra, e que indo pera o mar achava
os mares tão grandes que os não podia nauegar
com as carauelas, (...) arribou, e se tornou a El Rei,
e lhe deu conta da sua viagem e dizendo que se
levara navios altos com que fora mais ao mar, que
fora muito avante, porque quando tornava a ver a
terra achava terras que não tinha visto; mas que
com navios grandes que sofressem o mar, que as-
sim em voltas corresse a costa, até lhe descobrir o
cabo, sem dúvida tinha certa esperança, que além
dele, acharia grandes terra. (...) Pelo que logo El
Rei mandou cortar madeira em charnecas e matos,
que os carpinteiros e mestres mandavam cortar,
que se trouxe a Lisboa, onde logo se começaram
tres navios pequenos, da grandura que João Infan-
te mandou...” 4

Este lapso de tempo entre 1488 e 1497 tem sido mo-


tivo de longa discórdia entre os autores que se debruçaram
sobre a questão, e suscitou a atenção particular dos defen-
sores da política de sigilo: segundo estes, nada justificaria
uma paragem tão longa nos preparativos e na execução da
viagem que havia de ligar pela primeira vez Lisboa à Índia,
se não se considerar que o tempo foi aproveitado para com-
plementar a recolha de informações através do recurso a via-
gens secretas posteriores à de 1487-8. Armando Cortesão,
que defendeu denodamente esta tese, chegou a dedicar-lhe
um livro a que apôs o sugestivo título de O Mistério de Vasco
da Gama 5.

4 Gaspar Correia, Lendas da Índia, cap. II.

5 Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1973.

41
Armando Cortesão, e muitos outros autores que fo-
ram na sua esteira, partiram de um raciocíno simples: não é
possível aceitar que para comandar uma viagem de tal im-
portância tivesse sido escolhido um homem sem qualquer
preparação náutica. Mas se não há qualquer suporte docu-
mental que prove a suficiência de Vasco da Gama nestes
domínios, então ela só pode ter sido adquirida em viagens
secretas, as viagens que teriam sido organizadas durante
este lapso de tempo para preparar a expedição de 1497-
1499.

Este raciocínio envolve um mundo de questões, mas é impor-


tante deixar claro que parte de uma premissa errada: os capitães dos
navios que iam para a Índia não sabiam de navegação, a começar por
Vasco da Gama (há naturalmente excepções, mas são raríssimas). O
capitão era um representante do armador, normalmente o rei, um ho-
mem de confiança para chefiar uma determinada missão. A condução
do navio pertencia ao piloto, um profissional experiente no ofício, a
quem competia a parte náutica propriamente dita. O caso da armada
de Vasco da Gama ilustra bem esta distinção: o comandante foi no-
meado pelas suas características pessoas e capacidades de chefia
para uma missão com cariz comercial, político, diplomático e militar; os
pilotos dos navios da armada foram cuidadosamente escolhidos entre
os mais competentes de que o reino dispunha na altura.

Efectivamente, se se viu confirmada a suspeita (ou re-


confirmada a certeza) de que havia ligação marítima entre
os oceanos Atlântico e Índico; se, decorrentemente, se pôde
acreditar que a rota mais curta para ligar Lisboa ao Orien-
te era a seguida até então pelos navegadores portugueses;
porquê esperar desde 1488, data do regresso de Bartolomeu
Dias, até 1497, ano que em partiu a armada capitaneada por
Vasco da Gama? Porque não se enviou desde logo a arma-
da que, como diríamos hoje, havia de descobrir o caminho
marítimo para a Índia, quando o essencial já estava feito?

42
O problema é intrincado e há muito a dizer sobre ele,
mas não é este o local adequado para o fazer sob pena de
nos desviarmos dos nossos objectivos. Digamos apenas
que comprovar a exequibilidade de uma rota não bastava;
era necessário assegurar simultaneamente um conjunto de
factores que na altura não estavam garantidos. Acrescente-
se ainda que o espantoso seria ter visto partir de imediato a
armada de Gama; não há de facto necessidade de construir
hipóteses mais ou menos fantasiosas para justificar o que se
explica por razões e circunstâncias normais.
De facto não existe tal mistério, até porque o hiato em
apreço é só entre Dezembro de 1488 (data que se presume
ser a do retorno de Dias) e Março de 1493, com a arribada a
Lisboa de Cristóvão Colombo, que veio baralhar totalmente
os dados do problema. Por outro lado sabemos que o cui-
dado de D. João II não se limitara a enviar Bartolomeu Dias
à exploração marítima, pois ao mesmo tempo fizera seguir
por terra dois emissários a saber informações do Oriente (ir
por mar onde e a quê, seriam as perguntas a responder).
Um deles, Pêro da Covilhã, que viajou extensamente pelas
margens do Oceano Índico, sobreviveu à missão; e se algu-
ma vez os resultados do seu longo peregrinar chegaram ao
conhecimento do monarca português, isso não aconteceu
antes dos finais de 1492 ou inícios de 1493; por isso, a des-
coberta do caminho marítimo para o Oriente, efectivada por
Bartolomeu Dias, estava longe de se ter concluído com ele.
No meio tempo outros problemas colheram a atenção
do Príncipe Perfeito. Um deles, que não era de somenos im-
portância, teve precisamente a ver com a inadequação dos
navios usados até esse momento para a viagem que se di-
visava.
As caravelas de Diogo Cão e Bartolomeu Dias tinham-se
revelado navios apropriados para as explorações oceânicas,

43
8 Corte longitudinal em modelo de caravela de três mastros (Alfândega Régia – Museu
da Construção Naval em Madeira – Vila do Conde)

44
mas deixaram claro, ao mesmo tempo, as suas limitações:
falta de porte para viagens muito longas, falta de capaci-
dade de carga para assegurar o embarque dos provisiona-
mentos indispensáveis para tripulações que permaneciam
longos meses a bordo, fazendo-as debaterem-se com a ne-
cessidade de reabastecimentos frequentes (sobretudo por
causa da água potável, que não podia ser embarcada em
quantidade). É significativo que qualquer daqueles dois na-
vegadores tenha tido problemas de abastecimento, como
reporta João de Barros quando descreve os navios que saí-
ram para o Atlântico sob o comando de Dias:

dois navios de até cinquenta tonéis cada um, e


uma naveta para levar mantimentos sobresselen-
tes por causa de muitas vezes desfalecerem aos
navios deste descobrimento, com que se tornavam
pera o Reino.6

O testemunho é claro: os mantimentos faltavam nas via-


gens de descobrimento, e por isso os navios tinham de voltar
ao reino. Jorge Semedo de Matos encontrou aqui uma expli-
cação verosímil – a meu ver a mais provável – para justificar o
termo das expedições de Diogo Cão na costa ocidental afri-
cana7: face a uma costa que parecia inóspita por não oferecer
grandes oportunidades de reabastecimento, o navegador op-
tou prudentemente por voltar para trás, deixando claro, com
esta atitude, o quão limitadas eram as capacidades de arma-
zenamento de víveres das caravelas para as necessidades
dos exploradores quatrocentistas. A solução foi a encontrada
para a viagem de Bartolomeu Dias: um navio de apoio para

6 João de Barros, Ásia, Década I, Livro III, cap. IV.

7 Jorge Semedo de Matos, “A Marinha Joanina (9) A passagem do Cabo da Boa


Esperança”, Revista da Armada, nº 322, 1999, p. 16.

45
transportar mantimentos extra, o qual foi depois desmantela-
do. Mas esta era, obviamente, uma solução de recurso.
Urgia resolver o problema que, como vimos, foi per-
feitamente identificado por Gaspar Correia.

O trecho que citámos acima das Lendas da Índia co-


loca uma série de questões: quer porque Gaspar Correia
não cita Bartolomeu Dias, como se disse, quer porque a
sua visão dos acontecimentos quanto aos preparativos da
armada de Vasco da Gama não é concorde com outros
testemunhos. Duarte Pacheco Pereira, um dos grandes
navegadores do seu tempo que serviu como perito na
delegação portuguesa que preparou o Tratado de Torde-
silhas, muito provavelmente acompanhou os preparativos,
e afirmou que foi D. Manuel a organizar a armada de Vas-
co da Gama: quatro navios pequenos, com não mais de
cem tonéis porque não se requeria que fossem maiores,
havendo particular cuidado em levar material de sobra
para as contingências - “três esquipações de velas cada
nau, e assi amarras e outros aparelhos, e cordoalha três e
quatro vezes dobrada além do que costumam trazer”; e a
“louça dos tonéis (...) toda foi arqueada com muitos arcos
de ferro, que cada peça levava por segurar o que dentro
tinha”8.
Quer dizer: independentemente de tudo o resto,
tornou-se patente que as caravelas não serviam já para
enfrentar com sucesso a dureza da viagem; que ela impu-
nha cuidados especiais quanto aos abastecimentos; e foi
necessário preparar uma armada com navios de caracte-
rísticas diferentes e maior robustez. Não se pode pensar
que tudo se faria de um instante para o outro. O compasso

8 Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis, livro IV, cap. II.

46
9 Representações de naus do terceiro quartel do século XVI: note-se a grande superfície
vélica destas embarcações, um dos traços distintivos dos navios portugueses (Livro de
Lisuarte de Abreu).

47
de espera que se seguiu deu origem à entrada em cena,
nas navegações portuguesas, dos navios oceânicos de alto
bordo.
A rota seguida por Vasco da Gama torna claro que
tinham já sido reconhecidos os regimes de ventos e corren-
tes no Atlântico Sul: ao invés de procurar o cabo da Boa
Esperança descendo penosamente junto à costa ocidental
africana, a armada, como fariam depois as da Carreira da Ín-
dia, seguiu até Cabo Verde na rota usual da Carreira da Mina
– integrava-a uma embarcação que para lá se dirigia – e
depois do reabastecimento efectuado em Santiago navegou
pelo largo a partir do momento em que atingiu a latitude da
Serra Leoa, descrevendo então um largo arco que a aproxi-
mou da costa do Brasil para contornar os ventos gerais do-
minantes (alíseos do sueste) e as correntes que dificultavam
a progressão costeira.
Nestas condições era possível empreender a viagem
com navios de pano redondo, assim chamado por causa do
efeito visual provocado nas velas pelo vento, que se chega-
vam menos que as caravelas à linha do vento. Por outras pa-
lavras, dadas as dificuldades que tinham em navegar “contra
o vento”, como é usual – mas errado – dizer-se, tornavam-se
navios eficazes a partir do momento em que o conhecimento
prévio dos condicionalismos físicos a que estavam sujeitos
lhes permitia navegar com vento pela popa, ou tanto quan-
to possível próximo disso. Tanto a nau como o galeão vão
obedecer a estes ditames, juntando-lhes outras vantagens:
tinham maior porte que a caravela, maior resistência à dure-
za das viagens de longo curso, maior capacidade de carga,
fundamental para a actividade comercial e para o carrego
das vitualhas da tripulação, e também guerreira – eram sus-
ceptíveis de ser artilhadas com peças de grosso calibre, e
sofriam menos as injúrias do fogo inimigo.

48
10 Nau portuguesa do primeiro quartel do século XVI, representando provavelmente a
“Santa Catarina do Monte Sinai”: o exagerado gigantismo dos castelos de popa e proa
é característico da época, que tendeu a ser corrigido posteriormente. Note-se também
a grande área de velame, que se observa na iconografia dos navios portugueses e era
muito provavelmente distintiva em relação aos outros países (Museu da Marinha, cópia
do quadro original).

49
As naus de Quinhentos típicas tinham três ou quatro
cobertas, castelos de popa e proa cuja arquitectura estava
perfeitamente integrada na estrutura do casco, e três mas-
tros com pano redondo nos de vante (traquete e grande), e
latino no de ré (mezena). Os construtores navais ainda no
século XVII disputavam sobre a vantagem das naus de três
cobertas sobre as de quatro, e vice-versa, o que entre outros
factores tinha a ver com a tonelagem. Como disse atrás, a
arqueação do navio calculava-se pelo número de tonéis que
o navio podia transportar nas cobertas inferiores em con-
dições normais, sem considerar o convés e os pavimentos
dos castelos de popa e proa.

Para efeitos fiscais contava apenas a carga transportada abaixo


do convés, o último pavimento a contar de baixo que corria o navio de
popa à proa. Isto quer dizer que tudo o que vinha no próprio convés
ou nos pavimentos dos castelos de popa e proa estava isento de pa-
gamento. Em consequência a distribuição da carga a bordo não seria
sempre a mais conveniente para assegurar as melhores condições de
navegação, nomeadamente aquando da aproximação aos portos de
destino, e é de crer que o exagerado gigantismo das superestruturas
dos navios que se verifica na iconografia dos princípios do século XVI
fosse resultado do desejo de transportar mercadorias isentas de taxa.
Com o correr do tempo este tipo de opção foi abandonado, dado o
prejuízo que causava às boas condições de navegação.

No tempo de Vasco da Gama as naus não teriam mais


que 120 tonéis de porte, para atingirem os 400 no decurso
do reinado de D. Manuel, em valores médios, e depois os
800 ou mais. O seu exagerado gigantismo levou D. Sebas-
tião a determinar que as naus da Índia não ultrapassassem
os 450 tonéis, porquanto a tonelagem média das restantes
embarcações era francamente inferior, não chegando se-
quer perto daqueles números, como se pode verificar pelos
registos existentes.

50
Os armadores e técnicos de construção naval encon-
traram forma de contornar a disposição régia dentro da mais
estrita legalidade: bastou-lhes elevar as estruturas de popa
e proa, ganhando espaço para a acomodação de mercado-
rias sem que isso fosse contabilizado na medida de capa-
cidade do navio. O aumento das perdas de naus na Carrei-
ra tem directamente a ver, também, com estas crescentes
dimensões: pesadas, ronceiras, construídas cada vez mais
apressadamente e com materiais deficientes para respon-
der às exigências do tráfego, iam vendo diminuir as suas
capacidades náuticas e militares, para o que contribuía por
igual a rapidez desusada e negligente com que se faziam
as reparações no termo de cada viagem, ou nas escalas
intermédias. Os autores portugueses, sobretudo a partir da
segunda metade do século XVI, queixam-se amargamente
de toda a sorte de problemas que iam tirando longevidade
e segurança aos navios: construção, reparações, utilização
de madeiras inapropriadas (ou verdes, com progressiva re-
ferência), o excessivo carrego que dificultava a manobra e o
disparo da artilharia, e a impossibilidade de os carpinteiros
chegarem a certos pontos do navio quando se tratava de
proceder a alguma reparação durante a viagem. Por estes
motivos se perdeu um número significativo de navios, como
sabemos de fonte segura a despeito de ser praticamente
impossível inventariar com exactidão as causas das perdas,
que muitas vezes se deveram mais à confluência de facto-
res adversos que apenas a um motivo específico. É todavia
certo que foram razões intrínsecas à navegação e constru-
ção dos navios as que determinaram quase sempre o seu
destino, como o fogo a bordo – um dos piores temores dos
homens do mar –, as intempéries ou os erros de pilotagem.
Naus da Índia, expressão que se encontra com fre-
quência, era a que se aplicava às que faziam a Carreira.

51
Não corresponde a qualquer tipo distintivo; as naus da Ín-
dia não tinham arquitectonicamente diferenças significativas
das restantes, excepto na tonelagem e dimensão. Tal como
sucedia com a barca pescareza ou a caravela de armada, é
a funcionalidade que justifica a designação costumeira.
As naus portuguesas forma resistindo com dificuldade
crescente aos concorrentes ingleses e holandeses, que iro-
nicamente louvavam as suas qualidades. Quando tomaram
a “S. Valentim”, em 1602, os ingleses atribuíram-lhe um porte
de 1600 tonéis – embora exagerando, como frequentemente
sucedeu com testemunhos desejosos de valorizar feitos ou
explicar desaires sofridos.
O século XVII seria paulatinamente dominado pelos
galeões ingleses e pelas fluyt holandesas. A sua ligeireza,
o custo do transporte ou o rácio tripulação-mercadorias são
argumentos normalmente empregues nestas circunstâncias
para justificar as vantagens adquiridas. Abstraindo de ou-
tros motivos tão ou mais importantes – cite-se como exemplo
o problema do financiamento das armadas –, verifica-se que
o sucesso do esforço tecnológico de resolução dos proble-
mas levantados pelas exigências específicas da navegação
oceânica em larga escala não corresponde, a partir daquela
altura, às crescentes solicitações qualitativas e quantitativas
das diversas carreiras atlânticas e do Oriente. Ao percurso
solitário da Rota do Cabo sucedeu a concorrência sempre
em crescendo a partir de 1595; ao monopólio sucedeu a dis-
puta de posições. Não há que escamotear o declínio naval
português do século XVII – real, embora indubitavelmente
menos evidente, dramático e rápido do que por vezes se
afirma – mas o padrão de referência, o domínio exclusivo da
maior rota transoceânica da era de Quinhentos, era dema-
siado elevado para que pudesse ser mantido, fossem quais
fossem as circunstâncias ou os recursos existentes.

52
O Galeão Português
Se a nau aparece essencialmente vocacionada para o
trânsito comercial, o galeão apresenta características mor-
fológicas mais apropriadas para um vaso de guerra. Com
quatro mastros, por via de regra, armando pano latino nos
de mezena e contra-mezena (os dois da ré), o galeão era
mais baixo e longilíneo que uma nau de idêntico porte. Me-
lhor veleiro, com manobra mais fácil e pior alvo para a arti-
lharia inimiga, surge durante o primeiro quartel do século XVI
especialmente vocacionado para a guerra no mar, como é
usual dizer-se; e distinto dos galeões espanhóis, ingleses ou
italianos, apesar da familiariedade terminológica.
A diferenciação morfológica resulta do estudo com-
parativo da documentação técnica, restando saber até que
ponto a especificidade das circunstâncias e das tarefas co-
metidas à marinha portuguesa de alto mar suportaria a radi-
cal distinção funcional entre navios de comércio e de guerra.
Mesmo na altura a distinção não era clara, a ponto de nos
documentos o mesmo navio ser frequentemente citado como
galeão ou nau. Nos finais do século XVI – quando começa-
mos a dispor de elementos mais seguros – não há também
diferenças apreciáveis a outros níveis: nos orçamentos para
a construção de navios que conhecemos verifica-se que os
encargos com a artilharia são semelhantes entre naus e ga-
leões (c. de 25% dos custos totais, compreendendo nestes
a construção do casco), e as peças a embarcar eram em
tudo idênticas, cerca de 40 bocas de fogo por navio, meta-
de de médio e grosso calibre, metade de pequeno calibre.
Ressalve-se todavia que não há um paralelismo estrito, pois
a regra é que os valores se apliquem a galeões de tonela-
gem ligeiramente inferior à das naus – 500 e 600 tonéis de
arqueação, respectivamente.
Mas olhemos para as três fontes iconográficas mais
importantes sobre as embarcações do século XVI.

55
11 Nesta excelente gravura aguarelada do segundo quartel do século XVI, nota-se
melhor do que em qualquer outra imagem conhecida da época a diferença entre a nau
e o galeão português, e bem assim as características fundamentais deste - mais longo
e afilado que a nau, com quatro mastros, dois dos quais com pano latino (Tábuas dos
Roteiros da Índia de D. João de Castro).

56
O Livro de Lisuarte de Abreu9 é pródigo em porme-
nores notáveis: armadas com grande número de caravelas
redondas, acções contra posições em terra, ilustração do
poder ofensivo das naus; só que, de acordo com a defi-
nição geralmente aceite para o aparelho do galeão, vista
acima, nem um dos navios aí desenhados corresponde a
essa classificação. E outro tanto se pode dizer das ilus-
trações do chamado Livro das Armadas10. Mas em ambos
os casos, convém dizê-lo, os ilustradores representaram os
navios de acordo com aquilo que conheciam na época em
que fizeram os desenhos: eles correspondem às embarca-
ções do terceiro quartel do século XVI, sem haver registo
da diferença – que a houve, e bem visível – entre as pri-
meiras naus que rumaram o Oriente, nos inícios do século,
e aquelas que fizeram a mesma rota 60 ou 70 anos mais
tarde.
Não é pois sem surpresa que folheamos as Tábuas
dos Roteiros da Índia de D. João de Castro11: na “Tábua da
Aguada do Xeque” figura em primeiro plano um navio de
casco longilíneo, por oposição ao que é indubitavelmente
uma nau de traçado desenho redondo, com a estrutura da
proa levantada, ao passo que a do primeiro se prolonga
para a frente (sugerindo um esporão, que não o é de fac-
to); a nau tem três mastros, o outro navio quatro, com pano
latino na mezena e contra-mezena e redondo no grande e
traquete. Um galeão, sem dúvida alguma.

9 Edição facsímile: Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco-


brimentos Portugueses, 1992. Trata-se de um manuscrito que contém várias partes
distintas, compilado no terceiro quartel do século XVI, e entre elas desenhos das
armadas enviadas anualmente para o Oriente até essa altura.

10 Edição facsímile: Memórias das Armadas, Macau, Instituto Cultural de Macau,


1995. É uma outra compilação ilustrada das armadas, coligida pela mesma altura.

11 Tábuas dos Roteiros da Índia de D. João Castro, Lisboa, Edições Inapa, 1988.

57
A iconografia do “S. João”, ou “Botafogo”, um dos
maiores navios do seu tempo, que foi objecto de um pedido
do Imperador Carlos V a D. João III para que capitaneasse
a armada que atacou Tunes em 1535, ou a comparação
dos regimentos de construção naval, entre outros factores,
levam-nos a concluir que em algum momento do século
XVI se tentou fazer em Portugal um navio de alto bordo dis-
tinto dos de carga, mais vocacionado para a guerra naval.
Que essa distinção nunca foi marcante, funcional e mor-
fologicamente, parece também claro; porque é que essa
especialização não foi totalmente efectiva, é questão em
aberto.
Em resumo, as capacidades de carga do galeão
português, independentemente de possuir maior vocação
militar naval que a nau, fizeram dele um navio bifuncional:
servia para a guerra sem nunca ter deixado de ser também
plenamente empregue no transporte de mercadorias. Mas
na realidade não era preciso que esta embarcação se es-
pecializasse como vaso de guerra: essa função já estava
cometida à caravela redonda.

58
Navios de Remo
e Embarcações Auxiliares
As navegações portuguesas dos séculos XV e XVI
não se esgotaram nas viagens de descobrimento no Atlân-
tico, ou nas carreiras comerciais estabelecidas para o
Oriente. Antes pelo contrário: a diversidade de situações
foi suficiente para que tivessem que ter sido usados di-
versos tipos de embarcações, consoante as necessidades
específicas de cada momento e espaço.
Todas elas, porém, podem ser divididas em duas
grandes categorias, em função do meio principal de pro-
pulsão: navios de vela e de remo. Veremos sucintamente
as principais características de cada um destes tipos, e
ainda a utilidade de pequenas embarcações auxiliares,
que não sendo propriamente vasos de guerra ou meios de
comércio, tiveram um papel determinante em várias oca-
siões.
Os navios que referimos até agora, barcas e bari-
néis, caravelas, naus e galeões, são todos eles navios de
vela, por ser este o seu meio de propulsão principal, muito
embora os mais pequenos, como a barca ou a caravela
latina, pudessem usar remos em circunstâncias especiais:
na entrada na foz de um rio, na aproximação à costa ou
em circunstâncias similares fazia-se uso dos remos como
solução de recurso. Já as naus e galeões eram demasia-
damente grandes para que tal pudesse acontecer. Se uma
caravela ficava imobilizada por absoluta falta de vento po-
dia recorrer a esse meio de propulsão auxiliar; mas um
padre jesuíta que viajava numa nau da Carreira da Índia
nos meados do século XVI testemunhou que o navio ficou
“ao pairo” durante 48 dias, isto é, completamente imobili-
zado sem que soprasse a mais pequena aragem, debaixo
de um calor tórrido, e aos navios de maior porte que se
encontraram nestas circunstâncias não restava senão es-
perar que o vento lhes permitisse enfim seguir viagem.

61
Estes navios de vela designavam-se também pelo
tipo de velame predominante: se, como as naus e galeões,
usavam essencialmente pano redondo (com uma vela latina
no mastro da ré, como no caso da nau), então aplicava-se
a designação de navio redondo, simplificando a expressão
navio de pano redondo. Se, como a caravela, tinham só ou
predominantemente velas latinas, então chamavam-se-lhes
navios latinos: daí que se use também caravela latina. Já
quanto à caravela redonda o caso é ligeiramente diferente:
o facto de ter um mastro com pano redondo, à vante, levou
a uma designação que a individualizava em relação às ca-
ravelas latinas de um, dois ou três mastros, sempre só com
velas latinas.
Navios de alto bordo é um outra designação comum.
As embarcações do tipo da nau e do galeão são notoria-
mente bojudas e altas em relação à linha de água. Con-
forme os tratados explicam, são navios em que a relação
entre o comprimento e a boca (a largura máxima) é de 3
para 1: ou seja, a largura é um terço do comprimento. Como
se compreende facilmente, este tipo de desenho favorece
a navegação em mar alto e a capacidade de carga, afinal
aquilo de que os portugueses careciam para a empresa da
navegação de longo curso onde se transportavam merca-
dorias preciosas, mas sobretudo muito volumosas, como as
especiarias. Cada navio para sua funcionalidade: as peque-
nas caravelas latinas eram desadequadas para a Rota do
Cabo, mas continuaram a ser empregues no Atlântico quer
por causa da sua rapidez, quer porque serviam perfeitamen-
te quando se tratava do transporte de mercadorias de alto
valor com pequeno volume. Eram as caravelas que iam a S.
Jorge de Mina, no Golfo da Guiné, para o comércio do ouro:
e foi por causa da sua rapidez que foram usadas no comér-
cio do Brasil no século XVII, por vezes com meia carga para

62
12 Galé portuguesa do segundo quartel do século XVI (segundo os Roteiros de D. João
de Castro)

63
13 Desenho técnico de um navio de remos no Livro de Traças de Carpintaria de Manuel
Fernandes (1616). A quantidade de desenhos de navios de remo neste manuscrito
sugere que o seu autor era provavelmente especialista na sua construção.

64
melhorar as suas qualidades marinheiras e assim escapar
aos navios de corso que cruzavam o Oceano.
Navegar no mar alto e transportar grandes quantida-
des de homens e mercadorias eram então as vantagens
dos navios de alto bordo. A principal desvantagem residia
no facto de o navio à vela ir para onde o vento o levava, e
não sempre para onde se queria. Quando D. João I reuniu
mais de 200 embarcações para atacar a praça de Ceuta em
1415, a frota era composta por navios de remo e de vela. Os
de remo foram direitos da costa portuguesa a Ceuta; os de
vela foram parar à costa espanhola, quase comprometendo
o efeito de surpresa que se pretendia com aquele ataque.
Quando os navios têm nos remos o principal meio de
locomoção, apresentam a vantagem de poderem ser dirigi-
dos para onde se pretende (em condições normais de na-
vegação), além de terem uma manobrabilidade muito supe-
rior. Nesta característica reside a razão pela qual as galés
tinham sido os navios de guerra emblemáticos do Mediter-
râneo, continuando a sê-lo ainda até ao século XVIII. A galé,
armada de esporão para investir os navios contrários (e a
partir do século XVI de peças de artilharia montadas à proa),
foi uma arma de guerra por excelência. Sem prejuízo de ter
havido adaptações que melhoraram a sua adequação às
exigências do comércio marítimo, nunca deixaram de apre-
sentar os óbices devidos a esta tipologia: tinham um grande
número de remadores, e os mantimentos que era necessário
transportar para a sua subsistência deixavam pouco espaço
para a carga. Ainda assim não podiam permanecer sem re-
abastecimento muito tempo: a galé navegava mais próximo
da costa e necessitava de paragens frequentes, apresentan-
do uma autonomia reduzida – tudo isto, evidentemente, em
comparação com os navios de vela. O próprio desenho do
casco era uma consequência da sua principal finalidade e

65
das exigências do tipo de locomoção, apresentando uma
relação entre o comprimento e a largura que chegava a 9:1.
Estes são os valores extremos: a caravela redonda
podia ter uma relação de 4:1, e havia galés com 6:1. Ainda
sim definem muito adequadamente dois tipos de navios: os
de alto bordo, para o transporte de grandes quantidades de
carga na navegação oceânica, e os de baixo bordo, mais
manobráveis e próprios para a guerra em mares não alte-
rosos.
Os portugueses usaram os navios de remo para fins
diversos: na navegação de vigilância das costas, no corso,
em acções militares navais no Mediterrâneo na costa mar-
roquina, e, logo desde os inícios do século XVI, no Oriente.
No Índico os grandes navios de vela asseguravam o contro-
le da navegação e das rotas, mas eram inadequados para
muitas outras funções: combates navais e aproximação à
costa, ligações rápidas entre diversos pontos eram algumas
delas. As armadas, se bem que baseadas em naus e gale-
ões, eram secundadas por pequenas embarcações como
as fustas e os bergantins, navios do tipo da galé mas de me-
nor dimensão (geralmente com um remador por remo, quan-
do as galés chegavam a ter quatro remadores por remo).
Designava-se por fustalha o conjunto de pequenos navios
deste tipo, como se vê com frequência nas crónicas que
relatam as campanhas no Norte de África.
A chegada ao Oriente exigiu que os meios navais se
adequassem ao tipo de missões que era preciso assegurar:
sem meios de os construir desde logo nos estaleiros navais,
como vieram a fazer pouco mais tarde, as primeiras embar-
cações a remo que foram empregues no Oriente chegaram
lá desmanteladas, transportadas no bojo dos navios de vela
para poderem ser montadas no local. Infelizmente a do-
cumentação conhecida não nos elucida quanto à forma

66
como isto era feito, mas o facto é suficiente para fazer prova
da notável habilidade dos construtores navais portugueses.
Usaram-se ainda outros tipos de embarcações, como
a barcaça, que era uma espécie de plataforma flutuante de
artilharia naval, pesadamente protegida. Cumpre porém
chamar a atenção para uma destas embarcações auxilares
em particular: o batel.
Os grandes navios de remo tinham uma embarcação
de apoio, a que se dava o nome de batel, cuja importância
não é geralmente ressalvada, quando é certo que desem-
penhou um papel fundamental nas navegações, permitindo
apoiar e a acção de naus e galeões.
Os batéis tinham normalmente um terço da quilha do
navio grande de comprimento. Quer dizer, uma nau de 18
rumos de quilha teria um batel de 6 rumos, ou seja 9 metros.
Ia armado com uma pequena peça de fogo à proa e arvorava
um mastro com pano latino. Nele podiam ir e combater até
20 homens.
Para que servia o batel? Na eminência de um
naufrágio servia como salva-vidas, para usar a expressão
que modernamente se emprega. Mas tinha outras
funcionalidades bem mais importantes, e que podemos
resumir assim: 1) sondagem das condições de abrigo para
as naus – verificação de profundidade da água e dos ventos;
2) desembarque de contingentes armados; 3) exploração
costeira e desembarque de reconhecimento; 4) aguada e
abastecimento – os batéis iam a terra para prover o navio
grande de água potável e caça, por exemplo; 5) acções
ofensivas - eram usados em combate com embarcações
mais pequenas, sobretudo quando o navio maior não
podia intervir; 6) auxílio aos navios maiores – como quando
estavam em perigo de encalhar; 7) transporte e elemento de
ligação.

67
14 Modelo de nau dos inícios do século XVI: note-se a localização do batel (Alfândega
Régia – Museu da Construção Naval em Madeira – Vila do Conde).

68
Aparecem outras designações de navios: patachos
e galizabras (vela), galeotas (remo), esquifes (equivalente ao
batel mas mais pequeno), entre tantas mais. Há designações
diferentes para a mesma embarcação, ou nomes iguais para
embarcações diferentes. No estado actual dos nossos co-
nhecimentos não nos é ainda possível, por falta de informa-
ções credíveis suficientemente detalhadas, destrinçar todas
as situações e caracterizar rigorosamente cada uma delas.
O problema não é de agora. Os documentos do sé-
culo XVI referem-se por vezes ao mesmo navio de forma di-
ferente: mesmo em documentos técnicos é frequente que
uma mesma embarcação seja designada por nau e por ga-
leão, garantindo-nos que a distinção não era completamente
clara para os homens do tempo.
O primeiro tratadista português de construção naval,
Fernando Oliveira, disse tudo numa simples frase:

Os nomes das espécies, ou maneiras dos navios


e barcos, assim de um género como do outro,
são quase incompreensíveis, assim por serem
muitos, como pela muita mudança que fazem
de tempo em tempo, e de terra em terra.12

12 Fernando Oliveira, Livro da Fábrica das Naus, manuscrito da Biblioteca Na-


cional de Portugal, p. 46.

69
Teoria da Arquitectura Naval
Não se poderia deixar de incluir neste livro uma men-
ção à literatura técnica portuguesa de arquitectura e cons-
trução naval, dada a sua relevância no contexto europeu. Na
impossibilidade de referir, ainda que brevemente, todos os
textos técnicos conhecidos até à primeira metade do século
XVII, para construir um quadro contextual perceptível e jus-
tificativo dessa mesma importância, limitar-nos-emos a uma
breve apresentação dos mais importantes de entre eles.
A teoria da arquitectura naval teve o seu início na Euro-
pa com os textos italianos escritos entre os meados dos sé-
culos XV e XVI, dizendo naturalmente respeito à construção
das tipologias de navios correntes no Mediterrâneo. E um
aspecto que convém realçar reside precisamente no facto
de os tratados que se lhes seguiram feitos em outros países
europeus já se reportarem ao tipo de embarcações de que
tratamos aqui: os navios para a navegação oceânica.
O primeiro texto europeu de arquitectura naval, de-
pois dos italianos, é a Ars Nautica do padre Fernando Oli-
veira, que terá sido escrita c. 1570, uma data aproximada
porquanto o manuscrito autógrafo tem várias partes distin-
tas, presumivelmente redigidas em momentos distintos. Na
realidade trata-se de uma enciclopédia de assuntos vários
relativos às actividades marítimas, onde a arte de navegar
ocupa a primeira e mais importantes das partes em que se
divide; é apenas na segunda parte que o autor versa a ma-
téria, com especial detalhe (em relação ao que seria de es-
perar, aparentemente) para questões filológicas ou relativas
a navios de remo, como outros humanistas fariam ou fizeram
de facto.
Estamos perante um tratado enciclopédico, pioneiro
na Europa dentro do seu género, mas essencialmente teó-
rico. É notória uma larga margem de afirmação do que são
as convicções pessoais do autor, no quadro da tentativa de

73
15 Desenho técnico da Ars nautica, primeiro texto técnico escrito por um autor português
sobre arquitectura naval.

74
normativização que o animou (e que refere constantemente),
em detrimento do que seria por vezes a prática usual. Não
há preocupação sistemática em reflectir esta última, e, por
isso, excepto as situações em que Fernando Oliveira afirma
explicitamente que se reporta à prática dos estaleiros (às
vezes contra o seu parecer), não é esta que se espelha na
sua obra.
Ao tratado escrito em latim segue-se c. 1580 o Livro
da Fábrica das Naus, que no fundo é uma reescrita aprofun-
dada e em português da segunda parte da Ars. Incompleto,
o manuscrito já denota uma maior atenção à vertente téc-
nica, em detrimento da perspectiva humanista, mas não é
esse o ponto mais marcante: o Livro é uma peça única nesta
série porque procura justificar as opções da arquitectura na-
val para lá dessa dimensão meramente técnica do proble-
ma. O que está em causa, aqui, é a própria fundamentação
do conhecimento – questão que emerge apenas e só neste
tratado.
Para Fernando Oliveira, a arte (leia-se, modernamente,
a ciência) deve imitar a Natureza, pois esta, criada por Deus,
não é senão a imagem da sua perfectibilidade. Ao Homem,
que é imperfeito por condição, está vedada a possibilidade
de alcançar essa dimensão; e para querer copiá-la deve-
rá buscar um modelo a seguir. Se Deus fez os peixes para
andarem na água, a morfologia das obras vivas do navio (a
parte submersa) terá portanto de se aproximar o mais pos-
sível desse modelo; e é a partir deste raciocínio que Oliveira
desenvolve uma reflexão marcante pela sua originalidade.
Não estava só nesta maneira de ver as coisas: pelos
anos de 1570 o inglês Mathew Baker, que era filho de James
Baker, mastershipwrighter de Henrique VIII (isto é, supervi-
sor da construção naval nos estaleiros por conta do rei) e
desempenhava funções semelhantes às do pai, iniciava

75
a compilação de um caderno onde registava apontamentos
úteis à sua actividade. O manuscrito, que é mais um caderno
de notas que um tratado de arquitectura naval, conhece-se
hoje pelo nome de Fragments of Ancient English Shiwrightry
e possui alguns desenhos notáveis: num deles, o casco de
um navio desenha-se sobre um peixe, aproximando-se da
sua forma, na perfeita ilustração do que Fernando Oliveira
escrevera ou havia ainda de escrever. Um mesmo horizonte
de conhecimento, ou a coincidência é fruto do ascenden-
te que Oliveira ganhou de alguma forma junto da corte de
Henrique VIII - onde muito provavelmente conheceu James
Baker -, depois de a galé francesa em que servia de piloto
ter sido apresada no Canal da Mancha por um navio inglês?
Não o sabemos ao certo neste caso particular, mas numa
outra situação é possível documentar a influência europeia
da obra de Fernando Oliveira. Trata-se do facto de os dese-
nhos técnicos da Ars Nautica terem sido copiados pelo ho-
landês Nicolaes Witsen no seu Aeloude en hedendaegsche
scheeps-bouw en bestier, publicado em 1671, isto é, um sé-
culo depois. Witsen pôde ter acesso à biblioteca do grande
humanista flamengo Isaac Vossius, que obteve o exemplar
autógrafo da Ars para a sua biblioteca particular por vias
que desconhecemos.
A obra de Fernando Oliveira teve maior projecção
europeia do que seria de supôr atendendo ao facto de ter
ficado manuscrita. Jogaram a favor da divulgação dois fac-
tores: o ter sido escrita na língua culta do tempo, o latim,
e a apetência conhecida e amplamente documentada que
na Europa se sentia por todo o género de informações que
dissessem respeito à vertente técnica das navegações por-
tuguesas. Em vários aspectos, o Livro da Fábrica das Naus
sobreleva o texto anterior: é mais extenso, mais pormenoriza-
do, melhor explicado e mais atreito às questões meramente

76
16 Desenhos técnicos da Instrucción Náutica de Diego Garcia de Palacio (Cidade do
México, 1587)

77
técnicas, em detrimento, como dissémos, por exemplo das
discussões filológicas (embora também por lá passem); não
se estranha todavia a falta de eco de um manuscrito que
estava escrito em português e nunca saíu do país.
Porque é que Fernando Oliveira o escreveu, ou que
conhecimento tinha em concreto da actividade dos estalei-
ros, são questões para as quais não é fácil encontrar respos-
ta. Nascido em 1507, foi educado no convento da Ordem
de S. Domingos em Évora, de onde fugiu com cerca de 25
anos, para dar início a uma vida aventurosa, que, sabemo-
lo, lhe fez ganhar certa reputação nos meios náuticos da
época; todavia Oliveira notabilizou-se sobretudo como autor
da primeira Gramática da Linguagem Portuguesa, publica-
da em 1536, e de um outro livro, a Arte da Guerra no Mar,
de 1555, onde, a par do pioneirismo da matéria que tratou,
deixou expressas opiniões tão radicais que lhe custaram a
prisão: entre elas negou a existência do milagre de Ourique,
e afirmou que os portugueses tinham sido os inventores do
tráfico de escravos. Foi piloto de galés ao serviço do rei de
França e esteve nas boas graças da corte do monarca in-
glês: onde é que aprendeu os preceitos da arte de construir
navios é que não se sabe, embora hoje em dia seja claro
que aquilo que escreveu no Livro estava bem mais próximo
da prática dos estaleiros do que era usual pensar-se até
há relativamente pouco tempo, ou seja, que era um autor
essencialmente teórico.
Pouco depois da redacção do Livro da Fábrica das
Naus, Diego Garcia de Palacio fazia publicar o primeiro texto
técnico de arquitectura naval a ser divulgado em letra im-
pressa, incluso na sua Instrucción Náutica (México, 1587),
obra que também não versava o assunto em exclusivo; não
traduz todavia um conhecimento de ponta, tal como aconte-
ceria mais tarde com outro autor espanhol, o canarino Tomé

78
17 O mestre construtor naval Manuel Fernandes é representado no início do Livro
de Traças de Carpintaria empunhando os instrumentos do seu ofício (manuscrito da
Biblioteca do Palácio da Ajuda, Lisboa)

79
Cano, cuja Arte para Fabricar y Aparejar Naos (1611) re-
conhecia a primazia qualitativa da construção naval portu-
guesa, mas até na forma – o livro está escrito em diálogo
– se afastava do que começavam a ser verdadeiros tratados
de engenharia naval. Todavia o livro de Garcia de Palacio
tinha uma vantagem apreciável sobre os dos outros autores
seus contemporâneos: era impresso, tendo maior impacto
e circulação do que obras que estavam tecnicamente mais
adiantadas mas que permaneciam em forma manuscrita.
O primeiro texto dos que podem merecer aquela clas-
sificação (embora um pouco abusiva para o tempo, reconhe-
çamo-lo) leva por título Livro Primeiro de Architectura Naval,
data dos últimos anos século XVI, e é da autoria de uma no-
tável figura dos meios técnicos e científicos da época: João
Baptista Lavanha, de ascendência e naturalidade portugue-
sas, e cuja carreira foi no essencial passada ao serviço dos
reis de Espanha, porque então também de Portugal. O seu
trabalho revela uma profundidade no tratamento dos assun-
tos que não tinha então paralelo.
Tal como acontece com Oliveira, também não se
percebe exactamente o que levou este autor a dedicar-se
ao estudo da arquitectura naval, apesar de se ter interes-
sado por assuntos muito diferenciados. Nascido por volta
de 1555, Lavanha veio a falecer em Madrid em 1624, ten-
do alcançado grande notoriedade ao serviço dos reis de
Castela e Portugal, essencialmente como técnico – foi ma-
temático, cosmógrafo e cartógrafo –, mas também como
historiador e literato. O que sucede é que de todas as suas
obras se pode dizer que decorrem do seu envolvimento pro-
fissional ou de encomendas régias: mas do Livro Primeiro
não; a obra parece escrita sem motivação ou incumbência
alguma que não o interesse do autor. Apesar disso, trata-se
de um texto notável: é o primeiro a apresentar o arquitecto

80
naval como alguém que deve ter uma formação técnico-
-científica completa, e, também pela primeira vez, se diz que
a construção do navio começa pelo plano em papel, só de-
pois se iniciando o trabalho de estaleiro. Quer dizer: era ne-
cessário planificar antes de executar, em vez de deixar tudo
ao arbítrio daqueles que no estaleiro dirigiam a construção
dos navios. Nestes dois aspectos reside talvez a maior novi-
dade da contribuição de Lavanha.
O caso do Livro de Traças de Carpintaria de Manuel
Fernandes é diferente: é o único destes tratados que pode-
mos datar precisamente (1616) e o único também que é da
lavra de um oficial da Ribeira. Mas, mais uma vez, não co-
nhecemos as circunstâncias que levaram à sua elaboração.
O Livro não é evidentemente um manual de construtores, ou
seja, um instrumento prático de trabalho; asseguram-no-lo o
grande formato e as mais de duas centenas e meia de de-
senhos, boa parte polícromos. Muito provavelmente foi feito
a pedido de alguém que pretendia ter na sua biblioteca um
livro com detalhes da construção das principais tipologias de
navios então em uso; era uma prática habitual, esta, e graças
e ela, deve acrescentar-se, chegaram até nós documentos de
notável valia.
Voltando a Manuel Fernandes: a explicação que sugi-
ro é a que a meu ver mais facilmente justifica certas perple-
xidades que a análise do Livro de Traças suscita, nomea-
damente as várias incongruências entre texto e desenhos.
Repare-se, por exemplo, que a parte dos textos se inicia
com o regimento para a construção de uma nau de quatro
cobertas, e os desenhos que lhe deviam ser corresponden-
tes mostram-nos uma nau com apenas três cobertas. Por-
tanto esta deve ser sobretudo uma obra de compilação, feita
a mando do oficial da Ribeira, da qual teria encarregue um ou
mais copistas: eventualmente um para a primeira parte, a dos

81
textos, e outro para os desenhos. Na realidade não tem sido
posto em causa que se trata de um autógrafo, mas também
é verdade que nada nos permite afirmar que o livro saiu di-
rectamente do punho do homem que se apresenta como seu
autor.
Seja como for: são justamente esses desenhos que no-
tabilizam o Livro de Traças de Carpintaria, pois não há outra
obra semelhante no seu conjunto.
Quanto a Manuel Fernandes, pouco ou nada se sabe,
excepto o que está escrito na legenda do retrato que abre o
seu Livro: era oficial da Ribeira e, a avaliar pela imagem, teria
uns 40 anos em 1616. Há fortes probabilidades de ser natural
de Vila do Conde, de onde teria saído para a Ribeira da Naus,
em Lisboa, e eventualmente para a Índia. Percebe-se que se-
ria um dos principais responsáveis pela construção naval do
seu tempo; mas não se pode adiantar mais.
A documentação técnica portuguesa de arquitectura e
construção naval não se fica por estes tratados: surge em
muitas outras obras, quer sobre a forma de comentários ou
discursos de natureza vária, quer sob a forma de regimentos
práticos de construção. Já se afirmou até que, para o período
de c. 1550 a c. 1650, Portugal dispõe da mais rica colecção
de documentos sobre a matéria existente em toda a Europa
(Pimentel Barata), o que provavelmente poderá ser verdade,
e é-o de certeza quanto aos ensaios de conceptualização
que se denotam em Oliveira e Lavanha; o que resta por expli-
car é a concomitância deste esforço de normativização com
o aparecimento dos primeiros sintomas de um processo que
levaria, mais tarde (mais tarde e mais lentamente do que por
vezes se afirma) ao termo da supremacia naval portuguesa,
em grande parte erecta sobre a maestria técnica visível na
construção e funcionalidade dos navios oceânicos de alto
bordo.

82
O Processo de Construção
Tanto Fernando Oliveira como João Baptista Lava-
nha deixaram exaradas por escrito as normas básicas do
processo de construção dos navios, o primeiro em relação
aos navios em geral, mas tendo em consideração os navios
redondos de alto bordo, o segundo tomando como exem-
plo uma nau da Índia de quatro cobertas. Num caso como
noutro, a escolha não é difícil de compreender: a Carreira
da Índia percorria a mais importante e longa das rotas es-
tabelecidas com regularidade, e simultaneamente exigia o
concurso dos navios de maior dimensão e complexidade.
Seguiremos estes autores numa exposição genérica
das diversas etapas da construção de um navio, a partir dos
preceitos da arquitectura naval. Deve-se a esta passagem
do articulado teórico para o trabalho do estaleiro a razão
de ser de tal opção: não cabe abrir um capítulo autónomo
nem inserir este tema na referência específica a qualquer
navio (que teria de ser a nau), porque antes de tudo o mais
estamos perante um problema de método. Não existem mui-
tas diferenças na forma de entender o que os textos esti-
pularam, quanto ao ponto de vista do processo técnico; a
interpretação da maneira como a arquitectura naval impera
sobre ou condiciona a construção naval é que tem dado
origem a interpretações historiográficas totalmente distintas
umas das outras.
Segundo João Baptista Lavanha, o arquitecto naval
devia principiar o trabalho pelo lançamento dos planos do
navio em papel, passando de seguida para a construção do
modelo. Como já disse, a definição desta sequência repre-
senta uma grande novidade face aos documentos técnicos
da época, mas tudo leva a crer que não passou disso mes-
mo: Lavanha determinou um procedimento que, tanto quan-
to é possível apurar, não correspondia à prática estabele-
cida. Quanto aos modelos, é o próprio a deixar entender

85
que os mestres evitavam fazê-los, talvez pressionados pela
redução de custos desejável por parte dos armadores ou
contratadores (Diogo do Couto afirmou-o também de uma
forma clara). No que diz respeito aos planos, não há traço
deles na documentação: é evidente que o Livro de Traças é
sobretudo um livro de planos e desenhos de peças de na-
vios, mas são mais ilustrações dos regimentos que planos
para a construção de partes dos navios; são duas coisas
completamente diferentes. Nos regimentos técnicos, gerais
(relativos a um tipo de navio) ou especiais (relativos a um
navio em particular), não há um único plano, mas apenas
regras escritas. Encontramo-los apenas nas obras dos dois
primeiros tratadistas, que seguramente não passaram para
as mãos dos construtores navais, nem foram por eles copia-
dos ou adoptados, neste ou noutro pormenor.
Esta fase prévia de conceptualização da obra marca
bem a distância que vai de Oliveira para Lavanha, sepa-
rando o trabalho do técnico da realização do engenheiro.
Oliveira fica-se por um nível mais imediato na aproximação
concreta ao seu objecto, Lavanha conceptualiza-o antes de
dar início à fase da construção. Menos atenta aos porme-
nores e mais genérica na descrição do processo em ge-
ral, a exposição de Oliveira torna-se mais acessível para o
acompanhamento das diversas etapas da fábrica do navio.
Sigo-o por esse motivo e por uma outra diferença muito no-
tória em relação a Lavanha, que deixa o Livro da Fábrica
das Naus bem mais próximo dos regimentos técnicos: é
que no Livro Primeiro de Arquitectura Naval subentende-se
que a concepção do navio fica a cargo do arquitecto naval
(denominação que surge pela primeira vez com Lavanha),
enquanto a fábrica é entregue ao construtor, muito embora
o seu autor não o estabeleça explicitamente. No Livro da
Fábrica e nos regimentos é claro que quem pensa o navio é

86
também quem o constrói, ou, vistas as coisas pela inversa,
o mestre construtor idealiza e dirige a execução da obra,
cometida aos carpinteiros navais.
Segundo Fernando Oliveira, conformemente aos regi-
mentos técnicos, a construção do navio iniciava-se pela de-
terminação do comprimento da quilha, a que chama “certa
parte”, o que quer dizer a unidade de referência a partir da
qual se tiravam todas as outras:

Esta certa parte na fábrica das naus de car-


rega é a quilha. A esta se referem a largura e altura
da nau, e o fundo e graminhos, e lançamentos, e
boca, e outras partes principais de que todas as
mais pendem. Por esta se compreende camanha,
e de que porte há-de ser a nau: por que sabida a
longura da quilha, sabe-se quão larga, e quão alta
há-de ser, e quanto há-de lançar para proa, e para
popa, e o que pode levar pouco mais ou menos. E
por esta via tornando ao revés, se sabe camanha
hão-de lançar a quilha, quando o senhorio diz,
que lhe façam a sua nau de tantos tonéis. Por que
os senhorios, que não sabem o modo por onde
procede esta fabrica, pedem o tamanho das naus
e não o das quilhas. Portanto quando pedem, ou
mandam que lhe façam uma nau de seiscentos
tonéis, sabem os carpenteiros, que hão-de lançar
a quilha de dezoito rumos, dos quais resulta uma
nau daquele porte.13

A primeira frase deste trecho não deixa de ser curiosa,


porque o preceito era aplicável a todos os navios (inclusi-
vamente os de remo), e não apenas às “naus de carrega”.

13 Fernando Oliveira, Livro da Fábrica das Naus, manuscrito da Biblioteca Na-


cional de Portugal, p. 69-70.

87
É de supor que Oliveira quisesse enfatizar que trataria da
construção deste tipo de navio em particular, muito embo-
ra derivasse depois para aspectos laterais ao seu objecti-
vo primeiro, como fez sempre em tudo o que escreveu.
Definido o comprimento da quilha, em função da to-
nelagem pretendida, a construção do navio iniciava-se por
aí: a quilha, de preferência de uma só peça para as em-
barcações mais pequenas, era colocada no chão, sobre
as atacadas, seguindo-se os lançamentos de proa e popa,
que faziam com que o comprimento total dessa estrutura
multiplicasse o da quilha quase uma vez e meia.

A quilha do navio era colocada sobre uma espécie de cubos feitos


de paus de madeira, as atacadas, que serviam exclusivamente para a
elevar em relação ao nível do chão. Depois do assentamento da quilha
acrescentava-se o cadaste (ou codaste) à popa, ou seja uma peça de
madeira disposta obliquamente que suportava o leme (governalho).
Já a proa implicava um processo de construção mais complica-
do, para fechar em curva o navio pela frente. Tanto para a inclinação do
cadaste como para a roda de proa (a parte do navio que se estendia
para além da quilha) Oliveira e Lavanha deram regras geométricas, ali-
ás não coincidentes. Independentemente disso, é certo que os mestres
experimentados tinham as suas próprias maneiras de resolver ambos os
problemas.

O cadaste rematava o navio pela popa, ligado à quilha


por um conjunto de peças cuja rigidez era fundamental para
assegurar o bom sucesso da construção e, posteriormen-
te, da navegação (era o couce de popa), e reclinava-se se-
gundo uma regra que variava de construtor para construtor.
Oliveira é muito claro nesta explicação, embora assuma
que preconiza uma regra ligeiramente diferente do que era
costume. Aliás, das várias alternativas que se costumavam
seguir:

88
18 Desenho técnico do couce da popa de uma nau, segundo o Livro Primeiro de
Arquitectura Naval de João Baptista Lavanha. Trata-se do ponto de ligação da quilha ao
cadaste, talvez o mais importante dos conjuntos de peças da construção do navio

89
19 Desenho técnico do cadaste de uma nau de 4 cobertas, no Livro de Traças de
Carpintaria de Manuel Fernandes: trata-se de uma das peças (ou conjunto de peças)
mais importantes do navio, de cuja resistência estrutural dependia muito da robustez da
embarcação

90
O lançamento da popa não é tamanho, nem
se faz em roda, como o da proa; mas lança o co-
daste direito, encostando-o para trás. Codaste é
aquele pau grosso, que se alevanta pelo meio da
popa acima, da quilha até ao gio. O qual também
como a roda da proa, é de ser grosso, e forte, e da
mesma madeira de que é a quilha: porque assim
como a quilha é alicerce desta fábrica, também
o codaste é como cunhal dela; e sustenta muita
parte da nau, em especial o governalho, no qual
carrega muita força dos mares (…). Eu ordeno
este lançamento por esta arte, que agora direi,
mais certa, e mais fácil. Alevanto sobre a quilha o
codaste a prumo, e ponho o compasso no canto
que ele faz com a quilha, que há-de ser canto
direito, e lanço sobre este canto uma quarta de
círculo do codaste até à quilha, e parto esta quarta
em sete partes iguais; e cada uma destas partes
é o lançamento, que o codaste deve lançar para
trás: o qual vem a ser quase o mesmo, que de
quatro e meio, que é o mais acostumado.14

O leme articulava-se com o cadaste por um sistema


de machos-fêmeas, devendo rodar perfeitamente sem pas-
sar água entre eles. Era rematado pelo gio, uma grossa peça
de madeira que se lhe sobrepunha perpendicularmente e
travejava o painel de popa.
O lançamento da proa era feito em roda, recorrendo
a cálculos geométricos um pouco mais complexos. Mais
uma vez, existiam soluções diferentes para determinar este
encurvamento para vante e remate do navio. Neste caso e
no do lançamento do cadaste, se fosse seguido um método

14 Idem, ibidem, pp. 81-82.

91
20 Forro liso – depois de construído o “esqueleto” do navio, este é revestimento por um
forro em que as tábuas têm os topos justapostos (desenho de Ian Friel).

21 Forro trincado - as tábuas são parcialmente sobrepostas, e depois do casco feito as


cavernas são então colocadas (desenho de Ian Friel).

92
geométrico igual ou similar ao preconizado por Oliveira,
o mestre era obrigado a recorrer ao papel, compasso e
esquadro, para fazer o desenho antes da execução, tal
como aparece estipulado na “Regra geral para navios de
alto bordo de setenta ate trezentas toneladas”, um conjun-
to de instruções, único do seu género, datável dos finais
da década de 1580. Paradoxalmente, o anónimo redactor
da regra afirma que se devia proceder assim no traçado
da roda de proa do navio de oitenta tonéis, mas não nos
outros, sendo certo que a tarefa é tanto mais exigente
quanto maior é o tamanho do navio.
Depois da quilha e dos lançamentos, chegava a altu-
ra de colocar a caverna mestra, que decidia o desenho do
casco do navio e era uma das peças estruturais mais impor-
tantes. A partir da colocação da mestra determinava-se a
de todas as outras até às almogamas, quer dizer, as últimas
cavernas cuja colocação sobre a quilha era calculada por
regras. O desenho da mestra e cálculo do ponto da quilha
sobre o qual era assente, variava, uma vez mais, consoan-
te o construtor. Cabia-lhe ainda decidir dos tipos de réguas
graduadas (graminhos) que iria usar para obter a redução
da largura das cavernas, de modo a que a sua colocação
progressiva fosse definindo o estreitamento das linhas do
casco para vante e para ré. Segundo Fernando Oliveira, as
cavernas deviam ser colocadas em número igual aos dos
rumos da quilha para vante e para ré a partir da mestra.
Quilha, lançamentos e cavernas constituiam o esque-
leto do navio. Este processo de construção, não por acaso,
designa-se em inglês por skeleton-first, ou carvel-built sys-
tem. Em português é a junção pelos topos das madeiras
do forro que origina a expressão forro liso, por oposição ao
forro trincado em que as placas de madeira são justapostas
como as telhas, com um rebordo de uma sobre outra.

93
Retomando a primeira das designações inglesas, isto
significa que se constrói primeiro o “esqueleto”, que é em
seguida forrado pelas tábuas (o forro era especialmente
reforçado nos navios preparados para viagens excepcio-
nalmente duras, como as da Rota do Cabo). A técnica, ca-
racterística do Sul da Europa e do Mediterrâneo em geral,
opõe-se à do shell-first, ou forro trincado, na qual, como o
próprio nome o indica, a construção do casco precede a
colocação das cavernas, que são assim peças de reforço
estruturais. Mais comum no Norte da Europa, a técnica do
forro trincado era conhecida em toda a orla marítima eu-
ropeia, mas no Sul serviu sobretudo para as embarcações
mais pequenas, enquanto a Norte era usada em todos os
tipos de construção. As evidentes limitações do shell-first,
por falta de garantia de rigidez estrutural, levaram a que a
técnica oriunda do Sul fosse geralmente adoptada e nos
inícios do século XVI já era comum em toda a parte. Em Por-
tugal não se conheceu outra para a construção de navios
oceânicos; Fernando Oliveira não faz qualquer comentário
a tal propósito, porque não se punha sequer em causa que
as naus pudessem ser construídas de outro modo.
Esta técnica é também conhecida por carvel me-
thod, além de carvel-built system. Nos estudos de origem
anglo-saxónica é ainda muito frequente a expressão carvel
planking, para designar o método do forro liso. Já foi de-
fendida a ideia de que estas expressões derivam da cara-
vela portuguesa, ou seja, que os navegadores do Norte e
Noroeste da Europa passaram a identificá-la com os pri-
meiros navios que teriam visto serem construídos por este
processo.
Sabe-se que houve portugueses a construir navios na
Flandres para o duque Filipe o Bom, como disse, e que em
1438 construíram uma caravela, a que se seguiram mais,

94
sendo os trabalhos acompanhados pela duquesa Isabel, fi-
lha de D. João I; portanto ainda antes do aparecimento da
caravela latina de dois mastros nas navegações portugue-
sas ao longo da costa africana. Serão todavia precisos mais
dados para garantir que a expressão inglesa derive do nome
do navio português.
Voltando à nau. Com a colocação das peças estrutu-
rais do esqueleto do navio fica concluída uma primeira fase
da construção. Mas o mestre construtor é logo chamado a
intervir:

Chegamos ao mais duvidoso de toda esta


fábrica, porque não tem certas regras por onde se
governe, isto é, o alevantar do liame do fundo até
à boca. Na qual parte os mestres desta obra têm
liberdade para mostrar suas habilidades, e nisto
podem fazer boa obra, se souberem. Isto é o que
escondem, e guardam para si sós, e são nisto tão
avarentos que o não querem ensinar, nem a seus
filhos.15

Esta passagem é uma das mais importantes do Livro


da Fábrica das Naus e, porque não dizê-lo, de toda a docu-
mentação técnica portuguesa.
Como já se percebeu, uma boa parte da fábrica das
naus ficava ao arbítrio dos construtores. As regras ainda vão
mais além desta primeira fase que acompanhámos sumaria-
mente, embora nem Oliveira nem Lavanha tenham acabado
os seus navios, por assim dizer (em ambos os livros não está
concluída a explicação total do processo). Nos outros regi-
mentos existentes encontram-se determinadas as medidas
para a construção do casco até à primeira coberta, embora

15 Fernando Oliveira, op. cit., p. 108.

95
com escassas indicações sobre os procedimentos. Mas fi-
cava muita coisa por fazer, nomeadamente a erecção dos
castelos de popa e proa.
Compreende-se facilmente que a morfologia do navio
e as suas qualidades marinheiras dependiam em muito da
maneira como os mestres construíam as superestruturas,
para o que existem nos documentos algumas indicações de
medidas, por exemplo da tolda e do chapitéu, os pavimentos
do castelo da popa; mas nada que se compare às instruções
para a fase anterior, não dispensando, portanto, uma larga
margem de decisão do mestre.
Fernando Oliveira acrescenta um dado importante: o
mestre decidia também o levantamento do liame (isto é, o
conjunto das peças que definia o esqueleto do navio), do
fundo até à boca (largura máxima da embarcação), e todos
os profissionais do ofício rodeavam de grande segredo a
maneira de o fazer.
Importa nesta altura esclarecer uma confusão termino-
lógica frequente. A palavra caverna ocorre tanto nos docu-
mentos como nos textos historiográficos para designar aqui-
lo que é na verdade a baliza, ou seja, a peça de madeira
em forma de ‘U’ que assenta sobre a quilha e constitui parte
da “ossatura” do navio. Para exemplificar com a imagem do
próprio Fernando Oliveira, a quilha seria a espinha e as ba-
lizas as costelas.
A baliza divide-se em três partes: caverna, braço e
apostura, ou haste, como ocorre em Oliveira. No sentido
estrito, caverna é a peça de baixo, posta a direito sobre a
quilha na qual assenta. O ponto em que começa a curvar
para cima chama-se côvado, e aí começa o braço.
A palavra caverna tem por isso um significado próprio
que não é equivalente ao sentido que se toma por facilidade
de expressão, talvez por decorrência de ser a parte mais

96
importante da baliza, passando a designá-la por extensão.
Um hábito que se tornou confuso, sem dúvida, mas o certo
é que se encontra a expressão “caverna mestra” com mui-
ta frequência, e quando acompanhada por um desenho é
da baliza que se trata. Acontece assim, por exemplo, com
uma das figuras do Livro da Fábrica das Naus, que leva
por título “Figura dos braços, e hastes das cavernas mes-
tras, e rol delas”.
Aquilo que Oliveira diz no trecho da sua obra de onde
se extractou a passagem citada acima é que as regras só
explicavam a colocação da caverna propriamente dita. O
prolongamento a partir do côvado ficaria integralmente por
conta do mestre, o quer quer dizer que este decidia da for-
ma do casco, em última análise. Há regimentos que são
mais completos, nomeadamente no Livro de Traças de Car-
pintaria, a partir do qual Pimentel Barata estudou a recon-
tituição geométrica do traçado da mestra por comparação
com a regra dada por Lavanha. Fica por explicar o sentido
exacto da frase de Oliveira, à qual tem de se dar o relevo
devido neste lugar.
A leitura atenta dos tratados e regimentos técnicos de
arquitectura naval deixa claro que o navio podia ser cons-
truído até ao convés (a coberta que tem uma parte aberta
ao ar livre) seguindo regras estipuladas, mas a partir daí
tudo dependia do arbítrio do mestre. A fábrica dos navios,
até à época da tratadística e incluindo-a, é essencialmente
empírica, no sentido em que as mais rigorosas das regras
deixavam o remate da obra entregue a um critério de execu-
ção que decorria em absoluto da prática. O resultado final
tinha que o reflectir. Nestas circunstâncias, compreende-se
melhor o que queria dizer Fernando Oliveira quando afirma-
va que no fundo ninguém sabia bem o que esperar como
resultado final da construção de um navio:

97
22 Figura dos braços e hastes das cavernas mestras, segundo Fernando Oliveira.

98
posto que tenha regras por onde se há-de gover-
nar no principal, nas miudezas, e partes em que
se comete ao entendimento dos mestres, tem
tanta variedade que quase é infinita: por que não
abasta ser tanta como são os mestres, conforme
ao provérbio vulgar, que diz quantas são as cabe-
ças tantos são os sentidos; mas nem os mesmos
mestres se conformam consigo mesmos: porque
muitas vezes acontece um mestre fazer dois navios
juntamente em um tempo, em um varadouro, a par
um do outro, da mesma madeira, com as mesmas
medidas, e do mesmo tamanho, e sair um melhor
que outro; e não somente um bom e outro melhor,
mas um muito bom e outro muito ruim. Quero dizer
que um navega muito bem e outro navega muito
mal, sem o mestre entender o porquê disto.16

Ter-se-ia de esperar muito mais tempo para que a en-


genharia naval viesse a ser capaz de idealizar um navio ao
mínimo pormenor, deixando ao estaleiro apenas a parte da
execução. Mas no início nessa longa caminhada pontifica-
ram os primeiros autores dos tratados portugueses de arqui-
tectura naval, que em muitos aspectos lançaram os primór-
dios da arte.

16 Fernando Oliveira, op. cit., pp. 49-50.

99
100
Antologia
Livro da Fábrica das Naus
de Fernando Oliveira17

PRÓLOGO

Para a arte da navegação os mais necessários instru-


mentos são navios, sem os quais se não pode executar esta
arte; nem se pode cuidar, como houvesse jamais navegação
sem navios, de qualquer maneira que fossem, ainda que im-
perfeitos, e não tão acabados como agora são. Porque ne-
nhuma arte teve instrumentos perfeitos em seus princípios;
nem os navios logo no começo foram perfeitos; mas quanto
mais os homens usam deles, mais entendem as faltas que
neles há, e as vão emendando: como fazem em todas as
artes, e instrumentos delas. E porquanto os navios são ne-
cessários para a arte da navegação, e a navegação para a
gente desta terra de Portugal, cujas vivendas em muita parte
pendem do mar: não somente as do povo, mas também a do
estado real, que pelo mar tem muitas ilhas, e terras, e con-
quistas: as quais se não podem conquistar, nem governar
sem navegação. Portanto considerando eu quanto releva a
este reino ter bons navios, e carpinteiros que os façam, de-
terminei escrever este livro da fábrica das naus: no qual po-
nho esta arte em regras, e preceitos ordenados, e claros; de
maneira, que os possa entender, e usar toda pessoa: porque
até agora andou isto escondido em poder de homens ava-
rentos, que o não queriam ensinar; e se ensinavam alguém,

17 Fernando Oliveira, Livro da Fábrica das Naus, ms. 3702 dos Reservados da
Biblioteca Nacional de Portugal. Vertido para português moderno, mantendo a
pontuação original, a partir da fixação do texto in Francisco Contente Domingues,
Os Navios da Expansão, Dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade
de Lisboa, vol. II, 2000, pp. 13-169.

103
era imperfeitamente: por que ensinavam somente algumas
coisas poucas por palavra, e prática muito vulgar. E também
me parece, que não ensinavam bem esta arte, por que a não
entendiam bem: porque os mestres que entendem mal o que
ensinam são escuros na prática, assim como os seus enten-
dimentos estão escuros nas matérias que praticam. Desta
maneira andava esta arte às escondidas, e não vinha a lume
para se emendar, e acrescentar pelos juízos dos homens de
bons entendimentos, que o costumam fazer nas outras artes,
como eu desejo que se faça nesta daqui por diante, e que
as pessoas que isto entenderem melhor que eu, escrevam,
e emendem o que me a mim falta: por que nisso me farão
honra e não afronta; porquanto eu pretendo aproveitar aos
que desejam saber, e não pretendo próprio louvor, nem inte-
resse; mas antes para mim será glória, e gosto dar eu causa
a se apurar esta arte: porque para isso tomei muito trabalho
andando por muitos portos de mar da Espanha, e França,
Italia, Inglaterra, e alguns de terra de mouros, vendo suas ta-
racenas, e praticando com seus carpinteiros, e aprendendo
seus estilos, e modos desta carpintaria, e fábrica. Da qual
ninguém escreveu até agora, em nossa língua, nem grega,
nem latina, nem outra alguma que eu saiba; nem há outra
escritura que trate desta matéria, somente a segunda parte
da minha arte da navegação, que escrevi em língua latina;
porém essa também é minha, e nasceu de meu trabalho, e
diligência, como esta. E para que a doutrina deste livro fosse
mais certa, cotejei o que vi pelas outras terras com o estilo
da ribeira de Lisboa, que agora precede a todas as que eu
vi; assim por que dela se fazem as mais grandes, e importan-
tes navegações de todo o mundo, as quais têm necessidade
de bons navios; como também, por que nela têm carrego
desta fábrica homens nobres, e graves, encarregados dis-
so por Elrei nosso senhor: os quais põem muita diligência

104
para que se faça com toda a perfeição possível. Toda esta
diligência, e mais, é necessária para coisa que tanto releva.
Mais releva esta fabrica, que a das casas, e procuram os
arquitectores de se esmerar em seu ofício; pois muito mais
se devem esmerar, e solicitar os nossos carpinteiros navais,
cuja falta, ou descuido pode fazer mais dano que o dos ar-
quitectores. Mais certo é o dano, e perigo de uma nau mal
feita, e sem proporção de medidas, que de uma casa des-
proporcionada: por que uma casa esconça, torta, desigual,
e sem medidas proporcionais, muito larga, muito estreita,
muito alta, muito baixa, e com outras faltas fora das regras
da sua fábrica, se for bem fundada em bons alicerces, e tiver
boas paredes, e telhado, só com isto fará seu ofício, que é
cobrir, e acolher os que nela moram, sem perigo, nem dano,
que por sua causa venha; mas uma nau ainda que tenha boa
madeira, e bem pregada, e seja forte, se não tiver boa sime-
tria, não prestará para nada. Se for mais baixa do que deve
ser, afoga-la-á o mar; se for mais alta emborca-la-á o ven-
to; se for muito estreita, não sofrerá vela; se for muito larga,
não governará; se tiver um costado maior que outro, pende-
rá com grande prejuízo dos que forem dentro nela. E assim
com qualquer outro defeito que tenha uma nau, por pequeno
que seja, não será boa, nem fará bem seu ofício. Portanto,
pois na arquitectura se esmeram muito os homens oficiais
dela, e escrevem preceitos, e regras dela, fazendo disso
muito caso, e encomendando muito que se guardem suas
regras, e encarecendo-as; e o mesmo fazem os da agricultu-
ra, e de todas as outras artes cada um na sua; não é muito,
nem deve ser estranhado, nem havido por desnecessário
fazer-se outro tanto nesta fábrica das naus; cujos erros são
mais prejudiciais, que os da arquitectura, nem outra alguma
arte; e depois de errados têm menos emenda: porque ou são
ocultos, e não se entendem; ou são em partes tão principais,

105
que para se emendarem é necessário desfazer a máquina
toda. Mas antes se devem espantar os homens que sentem
quanto isto importa, do muito descuido que há em coisa tão
importante como é esta; e de como nunca houve quem se
lembrasse de escrever desta fábrica, havendo tanta curiosi-
dade nos homens, que buscam vaidades sem proveito de
que escrevam; e esta arte tão necessária deixam de todo
esquecida: tanto que zombam de mim, porque escrevo dela;
e são estes os mesmos a que ela mais releva; deles porque
não sentem sua perda, e deles porque não querem que seja
sentida: porque diz Deus, que os que mal fazem fogem da
luz, por seu erro não ser visto. A ordem que leva este livro,
é tratar primeiro das madeiras acomodadas para a fábrica
naval, e de suas qualidades; e do tempo em que devem ser
colhidas, e por que modo; Depois trata dos achegos que
com a madeira são necessários: que são pregadura, estopa,
breu, e outros semelhantes. Depois das medidas, e simetria
das naus, e suas partes, em cada género, e espécie delas;
e de seus aparelhos, que são governalho, mastros, vergas,
velas, remos, enxárceas, cabres, âncoras, bombas, e outras
máquinas, e instrumentos necessários para o serviço das di-
tas naus, e das taracenas, e varadouros. Dos quais também
por derradeiro se dirá alguma coisa: e do modo, e engenhos,
de varar, e lançar as naus. Nisto acabará o presente livro,
com o favor, e ajuda do senhor Deus, para proveito dos sisu-
dos, e diligentes.

106
Livro Primeiro da Arquitectura Naval
de João Baptista Lavanha18

Cap. IIII
Da Arquitectura e Arquitecto Naval

A esta nossa Arquitectura Naval e ao seu professor


pertence o que se disse da Arquitectura e do Arquitecto Uni-
versal, e assim é ela gerada da Prática e da especulação e
ambas convém que tenha o seu Arquitecto sendo prático no
lavor da matéria, de que esta Arte se serve (que é madeira) e
muito especulativo para demonstrar e declarar a proporção
e Arte com que ordena o seu navio para que assim satisfa-
ça as perguntas dos sábios e se livre das zombarias dos
ignorantes. É mais necessário, que saiba traçar e debuxar
e tenha alguma boa notícia da Astronomia e muita da Arit-
mética, da Geometria e da Mecânica que são partes das
Matemáticas porque com a traça representará suas obras e
com o debuxo lhes dará a graça que sem ele não podem ter,
com a aritmética orçará a despesa do Navio que pretende
fazer e entenderá as proporções das suas medidas. A Ge-
ometria o ensinará medir todas as partes da sua fábrica e
nivela-as esquadra-as, e compassa-las, Arquear os Navios e
usar das Linhas dos ângulos, e das superficies, e de outras
muitas coisas, que desta ciência dependem, da Astronomia
há mister o conhecimento dos tempos acomodados para o
corte das madeiras segundo o sítio da Província em que nas-

18 João Baptista Lavanha, Livro Primeiro da Architectura Naval, Cod. 9/1068 da


Colecção Salazar y Castro, Biblioteca da Real Academia de la História (Madrid).
Vertido para português moderno, mantendo a pontuação original, a partir da
fixação do texto por Susana Münch Miranda, in João Baptista Lavanha, Livro
Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, pp. 15-63.

107
cem, e se criam em respeito do Céu e de suas influências,
e assim as notícias das Marés dependentes do movimento
da lua e das suas conjunções e oposições para deitar os
Navios ao mar, ou tirá-los a Monte. A Mecânica lhe dá todas
as Máquinas, de que se serve na sua fábrica naval, como
são as Envasaduras, os Guindastes, Cabrestantes, Cabres
e Polés. Esta ciência mostra a razão da Querena do governo
do Leme e da navegação com os Remos, nela está fundado
todo o manejo da enxárcia, e com o seu conhecimento se
inventarão outras muitas Máquinas a tempo e a lugar conve-
nientes e necessárias.
E porque esta nossa Arquitectura Naval consta tam-
bém de Ordenação, Disposição, Correspondência, Ornato,
Decoro e Distribuição, convém que o seu Arquitecto guarde
com grande observância todas estas partes nas suas obras,
pelo que usando da Ordenação é necessário, primeiro que
tudo, que forme na sua imaginação, uma figura do Navio,
que quer fabricar, e que esta perfeiçoe com o entendimento,
e com as regras da sua Arte, para que emendada, por este
modo, das faltas, e inconvenientes, que se lhe representa-
rem, a possa logo (servindo-se da Disposição) traçar, em to-
dos os cinco modos, de que usa esta Parte. E assim fará as
Plantas do seu Navio, que nesta Fábrica, serão as figuras, da
Quilha, da roda de Proa, do Codaste, do Gio, dos Revesa-
dos, da Caverna mestra, do Braço da Apostura, da Abertura
do Navio onde é mais largo, e assim das cobertas e do mais
que quiser desenhar por este modo. Fará logo Montras da
Popa, da Proa, e de um ou do outro Costado do Navio. E
com o Perfil mostrará as suas partes interiores, cortando-o
ao longo, de Popa à Proa, ou através, por qualquer lugar que
quiser que se vejam. Porá depois em Perspectiva toda esta
fábrica segundo a vista e sítio, que escolher. E ultimamente
o que mais importa, obrará de Madeira um Modelo dela, no

108
qual conhecerá melhor as faltas que na imaginação e assim
emendadas o acabará para que por ele se faça com mui-
ta perfeição o Navio que determina fabricar. E não pareça
ao Professor desta Arte que quer merecer o nome de Arqui-
tecto dela, que pode escusar o uso destas cinco Partes da
Disposição e que lhe basta saber as medidas do proposto
navio para sem as ditas partes o poder acabar sem o que
se enganará grandemente e cometerá muitos erros. E para
fugir deles, convém que faça o Modelo, no qual primeiro os
emende, e este perfeito lhe sirva de molde e exemplar pelo
qual fabrique todos os Navios daquele género e grandeza.
Mas como o Modelo custe tempo, e dinheiro, dá-se por mal
gastada a despesa de ambos e não se faz consideração de
muito que importa a fábrica de uma Nau da Índia, para com
cem cruzados mais (mais é o que pode custar o seu modelo)
fazer-se acertada e sem erros.
Deve mais o nosso Arquitecto considerar com gran-
de cuidado, outras três partes da Arquitectura que são a
Correspondência, o Ornato, e o Decoro, e procurar que se
vejam nas suas obras, para o que lhe será de muito momen-
to a construção e presença do modelo, porque buscadas e
achadas nele estas 3 Partes as terá também o Navio, que
por ele se houver de fabricar. E assim convém que nas suas
partes se guarde a Correspondência, não bastando que to-
das elas tenham suas determinadas medidas, senão que es-
tas convenham de tal maneira entre si, que se responderão
proporcionadamente, para que nenhuma coisa sobeje nem
falte com a proporção, a obra seja firme e a Arte que se faz
maravilhosa. Tal é por certo esta nossa porque ver a Cor-
respondência em um Navio, na sua Quiha, no Codaste, no
Gio, nos Lançamentos, nos Delgados, na Caverna Mestra,
na Altura das Cobertas, na Maior Largura, no comprimento
e grossura dos Mastros, e vergas no tamanho das velas, na

109
Grandeza das Gáveas, no sítio e distribuição de alguns luga-
res, e assim em todas as outras coisas como se verá adiante.
Não é menos para admirar que a Artificiosa composição do
Corpo humano, no qual (sendo bem proporcionado) assim
como qualquer parte parte sua é comum medida de todo
e com ela só se pode vir em conhecimento de toda a sua
grandeza e compostura, do mesmo modo qualquer parte do
Navio fabricado com Arte o mede todo, e por ela, se poderá
conhecer o seu tamanho, e fazer outro Navio em tudo seme-
lhante ao desfeito. Tendo a fábrica do nosso Arquitecto esta
Correspondência tão necessária, todas as suas larguras,
comprimentos e alturas se responderão entre si com grande
Harmonia, como uma bem temperada viola, de que receberá
a obra uma agradável formosura e deleitosa vista, que é a
outra parte das três chamada Ornato. E quando se guardar
na mesma fábrica a propriedade devida ao tempo e ao lu-
gar fazendo os Navios conforme aos Mares por que hão-de
Navegar aos Portos em que hão-de entrar e ao serviço que
deles se há-de ter, conseguir-se-á o Decoro.
É também necessário que além das Partes ditas que
se hão-de manifestar nas obras do Arquitecto Naval, se en-
xergue nele a Distribuição para que usando dela gaste com
temperança as matérias da sua obra e a faça com a mais
moderada despesa que puder, acomodando-se a terra onde
fabrica servindo-se do que nela há e não procurando a que
se não pode alcançar sem grande despesa porque com tal
variedade obra neste mundo inferior a Natureza que em uma
Província produz Teca, o Angelim em outra o Sôvaro, o Car-
valho, o Pinho, em outra o Lerez, o Abeto e em outra diferen-
tes madeiras de que se podem fazer Navios, em uma parte
há Linho e Cânhamo em outra supre esta falta com Cairo em
uma dão as Árvores Breu e em outra há certo Bitume, que
serve ao mesmo efeito, com as quais variedades ornada a

110
terra, é mais formosa que se toda ela produzira tudo. Use pois o
nosso Arquitecto de todas estas coisas, segundo o lugar onde es-
tiver com que exercitando a Distribuição, e servindo-se das outras
cinco partes da Arquitectura, e acompanhado das ciências com
que o ornamos será perfeito na sua profissão e merecerá com Jus-
to título o nome de Arquitecto Naval.
Novas Leituras

113
114
O leitor que quiser aprofundar os seus conhecimen-
tos sobre os navios portugueses dos Descobrimentos tem à
sua escolha uma panóplia de leituras razoável, desde o pe-
queno texto de divulgação até às obras eruditas de grande
extensão. Nestas sugestões incluem-se sobretudo livros em
português, de modo geral relativamente acessíveis.
Trata-se de uma selecção que se assume como tal: a
ausência de um determinado título resulta de uma escolha
propositada e não de omissão, em função dos temas e na
forma como foram tratados no texto, o que também teve
consequências nas opções que se seguem. Outros temas
ou outro tipo de tratamento dos assuntos levariam a esco-
lhas diferentes.
Não se incluem artigos em revistas eruditas; essas re-
ferências mais específicas encontra-las-á o leitor no aparato
erudito das obras citadas abaixo.

OBRAS DE REFERÊNCIA

Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dir. de Luís


de Albuquerque e coord. de Francisco Contente Domingues, 2 vols.,
Lisboa, Círculo de Leitores e Editorial Caminho, 1994.

LEITÃO, Humberto (com colab. de José Vicente Lopes), Dicionário


da Linguagem de Marinha Antiga e Actual, 3ª edição, Lisboa, Edições
Culturais da Marinha, 1990.

PICO, Maria Alexandra Tavares Carbonell, A Terminologia Naval Portu-


guesa Anterior a 1460, Lisboa, Sociedade de Lingua Portuguesa,
1964.

115
BIBLIOGRAFIA

DOMINGUES, Francisco Contente, Arqueologia naval portuguesa. Histó-


ria, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003.

ARQUEOLOGIA NAVAL DOS SÉCULOS XV-XVI

HOWARD, Frank, Sailing Ships of War 1400-1860, Londres, Conway


Maritime Press, 1987.

UNGER, Richard, ed., Cogs, Caravels and Galleons. The Sailing Ship
1000-1650, Londres, Conway Maritime Press, 1994.

INTRODUÇÃO GERAL AOS NAVIOS DOS DESCOBRIMENTOS

ANDRADE, Amadeu de Carvalho, Os navios que descobriram o Mun-


do, Lisboa, Museu de Marinha, 1980.

BARRETO, Luís Filipe, Os navios dos Descobrimentos, Lisboa, Cor-


reios de Portugal, 1991.

MENDONÇA, Henrique Lopes de, Estudos Sobre Navios Portugueses


dos Séculos XV e XVI, Lisboa, Typographia da Academia Real das
Sciencias, 1892. Reedição: Lisboa, Ministério da Marinha, 1969.
[Trata-se do livro clássico sobre o tema, que iniciou os estudos de arqueologia
naval em Portugal; a sua leitura é ainda útil, apesar de estar ultrapassado em
alguns aspectos]

NAVIOS PORTUGUESES DOS SÉCULOS XV E XVI

BARATA, João da Gama Pimentel, Estudos de Arqueologia Naval, 2 vols.,


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.
[Colectânea dos trabalhos publicados em vida do autor, interessando sobretudo o
estudo geral intitulado “Os navios” e os dedicados à caravela e ao galeão]

116
CASTRO, Filipe Vieira de, A Nau de Portugal. Os navios da conquista do
Império do Oriente 1498-1650, Lisboa, Prefácio, 2003.

PIRES, António Tengarrinha, Caravelas dos Descobrimentos–II (D-Ca-


ravela de meados do séc. XV), Lisboa, Academia de Marinha, 1990.

PEDROSA, Fernando Gomes, “Os Navios”, in História da Marinha Por-


tuguesa. Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 1139-1499, Lisboa,
Academia de Marinha, 1999, pp. 1-183.

PISSARRA, José Virgílio Amaro, Chaul e Diu 1508 e 1509. O Domínio


do Índico, Lisboa, Prefácio, 2002.

SALGADO, Augusto, Os Navios de Portugal na Grande Armada. O poder


naval português 1574-1592, Lisboa, Prefácio, 2004.

CONSTRUÇÃO NAVAL

COSTA, Maria Leonor Freire, Naus e galeões na Ribeira de Lisboa.


A construção naval para a Rota do Cabo no século XVI, Cascais,
Patrimonia, 1997.

OLIVEIRA, Aurélio de, Porto. Comércio e Construção Naval, Porto,


Porto de Leixões, 2004.

TEORIA DA ARQUITECTURA NAVAL

DOMINGUES, Francisco Contente, Os Navios do Mar Oceano. Teo-


ria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII,
Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004.

XAVIER, Hêrnani Amaral, Novos Elementos para o Estudo da Arquitec-


tura Naval Portuguesa Antiga, Lisboa, Academia de Marinha, 1992.

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Índice

Um Mundo por Descobrir 5


Barcas e Barinéis 13
Caravelas Latinas e Redondas 21
Naus e Naus da Índia 37
O Galeão Português 55
Navios de Remos e Embarcações Auxiliares 61
Teoria da Arquitectura Naval 73
O Processo de Construção 85
Antologia 107
Novas Leituras 113

119
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