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TÍTULO

subtítulo
AVALIAÇÃO, PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram avaliados por pares e indicados para publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

E26 É de menina ou menino? Imagens de gêneros, sexualidades e educação.


1.ed. [recurso eletrônico] / [org.] João Paulo Baliscei. – 1.ed. – Curitiba-PR,
Editora Bagai, 2022.
Recurso digital.

Formato: e-book
Acesso em www.editorabagai.com.br

ISBN: 978-65-5368-021-0 

1. Educação. 2. Gênero. 3. Sexualidade. 4. Cultura Visual


I. Baliscei, João Paulo.

CDD 370.7
10-2022/20 CDU 37.01
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Gênero.

https://doi.org/10.37008/978-65-5368-021-0.05.01.22

Este livro foi composto pela Editora Bagai.

www.editorabagai.com.br /editorabagai

/editorabagai contato@editorabagai.com.br
JOÃO PAULO BALISCEI
organizador

É DE MENINA OU MENINO?
Imagens de gêneros, sexualidades e educação
1.ª Edição - Copyright© 2021 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Bagai.
O conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) respectivo(s)
autor(es). As normas ortográficas, questões gramaticais, sistema de citações e referencial bibliográfico
são prerrogativas de cada autor(es).

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Dr. Claudino Borges – UNIPIAGET - CV
Dr. Cledione Jacinto de Freitas – UFMS
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Dra. Denise Rocha – UFC
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Dr. Ernane Rosa Martins – IFG
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Dra. Sueli da Silva Aquino - FIPAR
Dr. Tiago Tendai Chingore - UNILICUNGO – MOÇAMBIQUE
Dr. Thiago Perez Bernardes de Moraes – UNIANDRADE/UK-ARGENTINA
Dr. Tomás Raúl Gómez Hernández – UCLV e CUM - CUBA
Dr. Willian Douglas Guilherme – UFT
Dr. Yoisell López Bestard- SEDUCRS
SUMÁRIO
“É DE MENINA *E* DE MENINO!”: TROCANDO O “OU” PELO “E”:...8
João Paulo Baliscei

GÊNERO COMO PRIMEIRO APRENDIZADO DE VIDA...................................17


“PARABÉNS, É UMA CRIANÇA!”: CULTURA VISUAL (HETERO-
TERRORIZANTE) NOS CHÁS DE REVELAÇÃO: ...............................18
João Paulo Baliscei

“NÃO IMPORTA O SEXO, EU SÓ QUERO QUE SEJA MENINO”:


CISHETERONORMATIZAÇÃO DOS CORPOS EM CHÁS DE
REV ELAÇÃO.............................................................................................32
Isabela Daiane Pironi | Jean Pablo Guimarães Rossi | Eliane Rose Maio

MÁSCARAS COMO ARTEFATOS DEMARCADORES DE MASCU-


LINIDADES E FEMINILIDADES: GÊNERO, CULTURA VISUAL E
INFÂNCIAS................................................................................................47
Regina Ridão Ribeiro de Paula | Thalia Mendes Rocha

“BONECA É COISA DE MENINA”: A VIRILIZAÇÃO E A


DOCILIZAÇÃO DE MENINOS E DE MENINAS NO MUNDO DE
DOIS SEXOS...............................................................................................57
Andréa Zíngara Miranda

ANUNCIAMOS, SENHOR(A), O VOSSO GÊNERO..............................71


Rodrigo Pedro Casteleira

“EU POSSO FAZER ISSO”: GÊNERO, EXPERIÊNCIA E EDUCAÇÃO


FÍSICA.........................................................................................................80
Márcia Gonçalves Vieira | Samilo Takara

NARRATIVAS QUE MOLDAM GÊNERO E SEXUALIDADE:


DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO AO FALAR DE SI.............................88
Marcos da Cruz Alves Siqueira | Igor Micheletto Martins | Harryson Júnio Lessa Gonçalves

A CONSTRUÇÃO VISUAL DO FEMININO..................................................... 102


ONDE ESTÃO AS ARTISTAS MULHERES? UMA BUSCA EM LIVROS
DIDÁTICOS PARA O ENSINO MÉDIO................................................ 103
Vinícius Stein | Zuleika de Paula Bueno | José Henrique Rollo Gonçalves | Rose Mari Ramos

MULHERES E NATUREZA: APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS


GENERIFICADOS................................................................................... 116
Fernanda Amorim Accorsi | Judie Maria Rodrigues de Goes Souza | Ana Claudia Aragão Santos

MENSTRUAÇÃO E MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS: UM CAMI-


NHO PARA CONSTRUIR E RECONSTRUIR SIGNIFICADOS........128
Jéssica Fiorini Romero | Julia Tiemi Kurihara
“ELA SERÁ SALVA PELA SUA MATERNIDADE”: REPRESENTA-
ÇÕES FEMININAS ENTRE EVAS E MARIAS.....................................139
Ana Carla Vagliati | Geiva Carolina Calsa

“GAROTA?” DORIS, A “IRMÃ FEIA” DA ANIMAÇÃO SHREK:


CULTURA VISUAL E TRANSGENERIDADES................................... 153
Arthur Zanetti Ghizellini | João Paulo Baliscei | Lua Lamberti

“O MEU IRMÃO TINHA UMA BONECA O MEU IRMÃO MAIS NOVO


USAVA ISSO COMO CHANTAGEM”: REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
DE EDUCADORAS DA EDUCAÇÃO BÁSICA SOBRE GÊNERO ..... 166
Fabiane Freire França | Geiva Carolina Calsa

TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS DE CONTROLE DE GÊNEROS E


SEXUALIDADES...............................................................................................179
“MENINA FEMININA E MENINO MASCULINO”: DISCUSSÕES
ACERCA DE RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADE E COR NO VIDEO-
CLIPE NOSSO GÊNERO VEM DE DEUS (2019)...................................180
Andrey Gabriel Souza da Cruz | Gabriela Narumi Inoue

DESENHOS ANIMADOS COMO TECNOLOGIAS DE GÊNERO:


(DES)CONSTRUINDO MASCULINIDADE........................................ 193
Marcus Turíbio | Julia Moreira Guimarães | Jocy Meneses dos Santos Junior

“SERÁ QUE ELE É”: A CONSTRUÇÃO DO PRECONCEITO TRANS-


FÓBICO NO VILÃO ELE DO DESENHO AS MENINAS SUPERPO-
DEROSAS..................................................................................................207
Cristiano Aparecido da Silva

ILUSTRAÇÃO E LITERATURA INFANTIL: UMA PERSPECTIVA A PAR-


TIR DA CULTURA VISUAL NA COLETÂNEA CORPIM, DE ZIRALDO.. 220
Gabrielle Nayara do Prado Ramos | Eloiza Amália Bergo Sestito Silva

A GENERIFICAÇÃO ENDEREÇADA PELA PLATAFORMA POR-


NHUB NA ERA DA FARMACOPORNOGRAFIA: HORN Y BOY FUCKED
HIS STEPMOM (2017).................................................................................232
Larissa Nayara Coelho Kimura

“OS OUTROS QUE TINHAM PROBLEMA COMIGO”: HISTÓRIA


PÚBLICA E A HOMOFOBIA NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS DOS
JOVENS VINGADORES..........................................................................243
Leonardo Stabele Santos

SOBRE O ORGANIZADOR.................................................................... 256


ÍNDICE REMISSIVO............................................................................... 257
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Imagens de gêneros, sexualidades e educação. Fonte: Elaboração própria. 2021.

“É DE MENINA *E* DE MENINO!”:


TROCANDO O “OU” PELO “E”

João Paulo Baliscei1

EPÍGRAFE

É bastante comum que os artefatos da cultura visual, tais como


brinquedos, roupas, cores, materiais escolares, sapatos, produtos de
higiene pessoal e até mesmo medicamentos, sejam divididos conforme
o gênero ao qual são endereçados. Visualmente, uma série de estratégias
é acionada para identificar as coisas como masculinas ou femininas e,
com isso, atribui-se gênero àquilo que, na verdade, não o tem. "É de
menina ou menino?".
Essa pergunta – problematizada inclusive, no título deste livro
- limita as escolhas a uma visão binária e, sob diferentes configurações
linguísticas, poderia ser encontrada em qualquer lugar. Concorda comigo?
Poderíamos nos deparar com essa pergunta em uma loja - quando

1 
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Maringá - UEM. Professor na UEM. Coordenador do grupo de pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI; e artista visual.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6980650407208999.
8
É de menina ou menino?

na compra de um brinquedo; em um cinema - durante uma conversa


depois de um filme; em um vestiário - enquanto provam-se roupas; em
um encontro entre crianças - comentando sobre uma brincadeira; em uma
aula de dança - referindo-se a uma postura ou movimento específico; num
almoço familiar – decidindo-se entre quem deve preparar o churrasco ou
lavar a louça; e mesmo na escola - durante a atribuição de tarefas às crianças
ou quando elas são solicitadas a imaginarem suas futuras profissões.
Esses exemplos refletem que "ser mulher" e "ser homem", assim
como “ser menina” e “ser menino”, são identidades produzidas também
em níveis visuais. A imagem que criei para constituir a capa deste livro,
uma espécie de visão caleidoscópica constituída por artefatos da cultura
visual relacionados às infâncias, demonstram que há cores, formas, pesos,
texturas, estampas, padronagens, linhas e cheiros acionados na e para a
produção de masculinidades e outros, acionados na e para a produção de
feminilidades. A peculiaridade dos artefatos que compõem esse fractal e
a convenção socialmente estabelecida de que eles não podem ser usados
pelas pessoas sem que se levem em consideração o gênero delas, cha-
mam atenção para uma outra leitura. Não são só as feminilidades e as
masculinidades que são incentivadas, elogiadas e até mesmo censuradas
pelas imagens com as quais convivemos, mas também as sexualidades.
É bastante provável que, socialmente, interesse-se por saber quanto à
sexualidade de um homem que goste da cor rosa, assim como em se
perguntar quanto à sexualidade de uma mulher que prefira vestir calças
ao invés de saias. Se um menino pinta as unhas e cuida de seu caligrafia
com apresso, ou se uma menina, ao contrário, não compartilha desses
hábitos, eventualmente, receberão por parte de outras crianças, de adul-
tos/as e mesmo de professores/as olhares suspeitos em relação ao modo
como, futuramente, desempenharão suas sexualidades.
A exemplo disso, menciono as pesquisas da brasileira Susana Ran-
gel Vieira da Cunha (2010), quem demonstra que as imagens de gêneros
e de sexualidades são apresentadas às crianças desde seus primeiros anos
de vida e que lhes ensinam sobre como experimentar as feminilidades
e as masculinidades sob regras restritas, circunscritas ao binarismo de

9
João Paulo Baliscei (org.)

gênero e à heteronormatividade. As brasileiras Luciana Borre (2020) e


Megg Rayara Gomes de Oliveira (2020), semelhantemente, indicam
que essas lógicas se mostram presentes nos espaços escolares, “vigiando”
as crianças, e também nos espaços universitários, durante a formação
de profissionais de cursos de licenciatura. O currículo e a organização
escolar como um todo se mostram bastante eficientes na intenção de
ensinar às crianças como elas precisam performar suas masculinidades
e feminilidades, como sublinha o espanhol Paul Preciado (2019).
Desde o início da escrita de minha tese de doutorado em Educação,
defendida em 2018, com o título Vilões, heróis e coadjuvantes: um estudo
sobre Masculinidades, Ensino de Arte e Pedagogias Disney (BALISCEI,
2018), e posteriormente publicada como livro - PROVOQUE: Cultura
Visual, Masculinidades e Ensino de Artes Visuais (BALISCEI, 2020) –
tenho pensado sobre os aspectos educativos das imagens de gêneros e
sexualidades. Essa preocupação é recorrente não só em minhas pesquisas
científicas – como mais recentemente no livro Não se nasce azul ou rosa,
torna-se: Cultura Visual, Gênero e Infâncias (BALISCEI, 2021) – mas
também nos trabalhos acadêmicos que oriento, nas produções que realizo
como artista visual 2 e, sobretudo, em minhas vivências como homem gay.
De modo similar, os/as 37 autores/as convidados/as para compor
essa coletânea debatem sobre as imagens de gêneros e sexualidades,
estabelecendo interfaces com a educação. Para além de pesquisadores/
as e estudiosos/as das Relações de Gênero, a essas pessoas chamo, tam-
bém, como colegas e amigos/as, integrantes ou pelo menos conhecidos/
as do grupo de pesquisa que coordeno, o Grupo de Pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI. Nesses últimos anos, por conta das
restrições ocasionadas pela pandemia da Covid-193 e pela ineficiência do
poder público em buscar reparar e solucionar os desdobramentos dela,

2 
Exemplifico com (PIN)Ken (2020), Bar(BLUE) (2020) e 32 (2021), que podem ser
localizadas em meu perfil do Instagram: @joaopaulobaliscei.
3 
Resultante da transmissão de um novo vírus da família do coronavírus, o qual teve
seu primeiro registro em seres humanos em 2019, na cidade de Wuhan, na China.
Para prevenção, entre outros cuidados, recomenda-se manter o distanciamento social
e usar máscaras.
10
É de menina ou menino?

foi com essas pessoas que eu me comuniquei - em salas virtuais, eventos


científicos on-line, trocas de e-mails e conversas pelo WhatsApp - para
expressar meus pensamentos sobres assuntos afetos às imagens de gêneros
e sexualidades, assim como para saber o que elas pensavam sobre isso.
Os 19 artigos que compõem essa coletânea, então, não apenas
atualizam essa temática, pensando-a em um momento em que nossas
interações e rotinas foram modificadas e intensificadas pelo distancia-
mento social, mas também operam na tentativa de mudar o título do
livro, trocando o "ou" por um "e". É como se, ao invés da pergunta “É
de menina ou menino?”, esses textos, juntos, intentassem afirmar “É
de menina e menino!”. É isso e ponto – ponto de exclamação. Para
apresentar os pensamentos dos/as autores/as convidados/as, optei por
agrupar os capítulos em trêseixos, cada um com seis ou sete textos. Essa
combinação fora pensada conforme assemelhanças e proximidades que
eu identifiquei entre as reflexões durante as leiturasque fiz, porém, caso
deseje, trace seu próprio roteiro para a leitura.
O primeiro eixo, intitulado GÊNERO COMO PRIMEIRO
APRENDIZADO DE VIDA, reúne capítulos que abordam, semelhan-
temente, a generificação das crianças em seus primeiros momentos de
vida. Os textos analisam diferentes artefatos da cultura visual, tais como
festas de chá de revelação, máscaras de proteção, brinquedos, práticas
esportivas em aulas de Educação Física e mesmo memórias de sujeitos
adultos acerca de como se lembram das suas infâncias.
Em “Parabéns, é uma criança!”: Cultura Visual (heteroterrorizante)
nos Chás de Revelação, eu, João Paulo Baliscei, denuncio as práticas que
subjazem as visualidades criadas para as infâncias antes mesmo de elas
virem ao mundo. Caracterizo tais práticas como heteroterrorizantes e
chamo atenção para um evento específico: um chá de revelação organizado
pela família Bolsonaro em maio de 2020. “Não importa o sexo, eu só quero
que seja menino”: cisheteronormatização dos corpos em Chás de Revelação,
é o texto em que Isabela Daiane Pironi, Jean Pablo Guimarães Rossi e
Eliane Rose Maio sublinham a lógica cisheteronormativa por trás dos
eventos de chá de revelação e analisam três vídeos localizados no You-

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João Paulo Baliscei (org.)

tube. Em comum, os registros indicam que as revelações são recebidas


e comemoradas de maneiras assimétricas, conforme o sexo revelado.
Regina Ridão Ribeiro de Paula e Thalia Mendes Rocha chamam
atenção para a generificação das máscaras, artefatos populares durante
a pandemia da Covid-19. Em Máscaras como artefatos demarcadores de
masculinidades e feminilidades: Gênero, cultura visual e infâncias, as autoras
analisam os resultados obtidos em uma busca no Google, a partir dos
termos “máscaras de menino” e “máscaras de menina”. Andréa Zíngara
Miranda, em “Boneca é coisa de menina”: a virilização e a docilização de
meninos e de meninas no mundo de dois sexos, demonstra como as crianças
são vítimas de construções sociais que as fabricam a partir de uma visão
heterossexual compulsória. Para tanto, problematiza práticas como o
manuseio de bonecas e a perfuração de orelhas, para o uso de brincos.
Rodrigo Pedro Casteleira, em Anunciamos, Senhor(a), o vosso gênero,
problematiza o simbolismo falocêntrico que, desde a colonização, tem
operado tanto para a genitalização de deus, quanto para demarcar, como
pecaminosos e extermináveis, os corpos indígenas e suas práticas sexuais.
Esse processo referencia (e reverencia) culturas brancas eurocentradas,
heterossexuais e cristãs.
Em "Eu posso fazer isso?": gênero, experiência e Educação Física,
Márcia Gonçalves Vieira e Samilo Takara destacam a escola como um
dos espaços onde se regula e se conduz a construção dos corpos, tanto
de alunos/as como de professores/as. Chamam atenção para o controle
exercido, sobretudo, nas aulas de Educação Física, a partir dos jogos,
brincadeiras e esportes separados por gênero.
Por fim, há o capítulo Narrativas que moldam gênero e a sexualidade:
Diálogos sobre educação ao falar de si, elaborado por Marcos da Cruz Alves
Siqueira, Igor Micheletto Martins e Harryson Júnio Lessa Gonçalvez.
Nele, os autores transcrevem suas falas em um encontro quando, afetiva-
mente, puderam compartilhar, uns com os outros, as histórias, sonhos e
medos que marcaram suas infâncias dissidentes à norma heterossexual.
O eixo A CONSTRUÇÃO VISUAL DO FEMININO é integrado
por capítulos que, de modo semelhante, problematizam como produções

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É de menina ou menino?

artísticas, viagens espaciais, ativismo ambiental, museus, desenhos ani-


mados, representações de funcionárias da educação e demais artefatos da
cultura visual caracterizam as mulheres em condições de inferioridade
em relação aos homens.
Em Onde estão as artistas mulheres? Uma busca em livros didáticos
para o Ensino Médio, Vinícius Stein, Zuleika de Paula Bueno, José
Henrique Rollo Gonçalves e Rosi Mari Ramos identificam quais artis-
tas e grupos artísticos são expostos em livros didáticos para o Ensino
Médio. A pergunta que intitula o capítulo dá indícios dos resultados
(não) encontrados.
Fernanda Amorim Accorsi, Judie Maria Rodrigues de Goes Souza
e Ana Claudia Aragão Santos, por sua vez, problematizam a lógica de
dominação que objetifica as mulheres e coisifica a Natureza. No capítulo
Mulheres e Natureza: aproximações e afastamentos generificados, as autoras
se ancoram nas perspectivas Ecofeministas para denunciar a fusão entre a
prerrogativa patriarcal, os dogmas cristãos e pressupostos capitalistas que,
juntos, oprimem a feminilidade e a Natureza. Menstruação e manifestações
artísticas: um caminho para construir e reconstruir significados, escrito por
Jéssica Fiorini Romero e Julia Tiemi Kurihara, é um texto que traça
diálogos entre os tabus que circundam a menstruação, processo natural
que, devido à moral cristã e o patriarcado, passou de sagrado a impuro.
Ao final, as autoras mencionam dez artistas cujos trabalhos conferem
positividade à menstruação.
Ana Carla Vagliati e Geiva Carolina Calsa são autoras do texto
“Ela será salva pela sua maternidade”: representações femininas entre Evas
e Marias. Nele, as autoras se debruçam sobre metáforas bíblicas para
demonstrar como, socialmente, as mulheres têm sido aproximadas ora
da figura da (virgem) Maria, ora da figura de Eva. Indicam, ainda, as
conquistas dos movimentos feministas como importantes à ampliação
de significados e vivências associados ao feminino.
Em “Garota?” - Doris, a “ irmã feia” da animação Shrek: Cultura
Visual e Transgeneridades, Arthur Zanetti Ghizellini, João Paulo Baliscei
e Lua Lamberti analisam duas cenas de Shrek II (2004) e questionam as

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João Paulo Baliscei (org.)

imagens, falas, caracterizações e espaços que a história atribui a Doris - a


única personagem dissidente da norma cisgênero.
O último capítulo desse eixo tem como título “O meu irmão tinha
uma boneca e o meu irmão mais novo usava isso como chantagem”: Represen-
tações Sociais de educadoras da Educação Básica sobre Gênero. Ele é escrito
por Fabiane Freire França e Geiva Carolina Calsa, que investigam
as representações sociais de 18 mulheres, professoras e funcionárias
dos anos iniciais de uma escola da rede pública, no que diz respeito às
questões de gênero.
Por fim, o terceiro e último eixo, o qual tem como título TECNO-
LOGIAS CONTEMPORÂNEAS DE CONTROLE DE GÊNEROS E
SEXUALIDADES. Ele agrupa textos que, em comum, verificam como
diferentes mídias virtuais, digitais e impressas balizam e conduzem
os sujeitos a adotarem uma única sexualidade e identidades de gênero
específicas. Os artefatos analisados pelos textos que integram esse eixo
são: perfis em redes sociais, desenhos animados, histórias em quadri-
nhos, pornografia, um videoclipe gospel e livros de literatura infantil.
O primeiro texto desse eixo tem como título “Menina feminina
e Menino Masculino”: discussões acerca de raça, gênero, sexualidade e cor no
videoclipe nosso gênero vem de deus (2019). Nele, Andrey Gabriel Souza da
Cruz e Gabriela Narumi Inoue se debruçam sobre o conceito de inter-
seccionalidade para verificar enunciados de gênero, raça e sexualidade
em um videoclipe de uma canção gospel que se propõe a caracterizar
meninas como femininas e meninos como masculinos.
Em Desenhos animados como tecnologias de gênero: (des)construindo
masculinidades, Marcus Turíbio, Julia Moreira Guimarães e Jocy Meneses
dos Santos Junior abordam os desenhos animados como tecnologias de
gênero, e dão ênfase aos enunciados afetos às masculinidades. Anali-
sam duas publicações feitas no Instagram, as quais problematizam e
elogiam referências de masculinidade, respectivamente, em Homer, de
Os Simpsons, e em Ash, de Pokémon.
Cristiano Aparecido da Silva, em seguida, investiga os aspectos
transfóbicos que atravessam a caracterização de um personagem vilão, de

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É de menina ou menino?

uma série de desenho animado. No capítulo “Será que Ele é”? A construção
do preconceito transfóbico no vilão Ele do desenho As Meninas Superpodero-
sas, o autor confronta a caracterização diabólica e animalesca do vilão
queer com dados de violências e assassinatos cometidos no Brasil contra
pessoas transgênero e travestis.
Em Ilustração e Literatura Infantil: uma perspectiva a partir da
Cultura Visual na coletânea Corpim, de Ziraldo, Gabrielle Nayara do
Prado Ramos e Eloiza Amália Bergo Sestito Silva investigam dois livros
endereçados às crianças. Nas análises, problematizam ilustrações que
recorrem à cor rosa como marcador da pele e de legitimação da raça e etnia
branca, e elogiam outras, em que há sutis fissuras às lógicas de gênero.
Larissa Nayara Coelho Kimura, autora do capítulo A generificação
endereçada pela plataforma Pornhub na era farmacopornográfica: horny boy
fucked his stepmom, analisa o vídeo com mais acessos em uma plataforma
de conteúdo pornô. Diante dessa produção cuja narrativa exibe uma
madrasta transando com seu enteado, a autora associa o feminino à
disponibilidade e o masculino à sensação de identificação por parte do
expectador.
O último capítulo foi escrito por Leonardo Stabele Santos e tem
como título “Os outros que tinham problemas comigo”: história pública e
a homofobia na História em Quadrinhos dos Jovens Vingadores. Nele, o
autor comenta sobre os super-heróis Wiccano e Hulkling, da história
em quadrinhos Jovens Vingadores, e debate sobre a potencialidade desses
artefatos em tematizar as vivências de pessoas não heterossexuais.
Tendo apresentado os textos que integram esses três eixos, explico,
ainda, que há outros caminhos, combinações e ordens que podem ser
estabelecidas, e que, de diversas formas, os capítulos que compõem esta
coletânea estabelecem flertes e se abraçam. Seja seguindo a linearidade
que estabeleci, ou criando a sua própria, desejo que, conforme avance
nas páginas (impressas ou digitais), você passe a se incomodar com as
imagens de gêneros e sexualidades endereçadas às crianças; e que, com
isso, também suspeite, problematize e coloque em xeque brinquedos,
vídeos, músicas, animações, produtos alimentícios, roupas, livros e

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João Paulo Baliscei (org.)

demais artefatos frente aos quais, socialmente, as pessoas insistem em


perguntar: “É de menina ou menino?”. Boa leitura.

REFERÊNCIAS

BALISCEI, João Paulo. Vilões, heróis e coadjuvantes: um estudo sobre Masculinida-


des, Ensino de Arte e Pedagogias Disney. 2018. Tese (Doutorado) – Pós- graduação em
Educação, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2018.

. PROVOQUE: cultura visual, masculinidades e ensino de artes visuais. Rio


de Janeiro: Metanoia, 2020.

. Não se nasce azul ou rosa, torna-se: Cultura Visual, Gênero e Infâncias.


Salvador: Devires, 2021.

BORRE, Luciana. Bordado afetos na formação docente. Conceição da Feira: Andarilha


edições, 2020.

CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Menin@s nas tramas da cultura visual. In: BUS-
SOLETTI, Denise; MEIRA, Mirela (org.). Infâncias em passagens. Pelotas: Editora
e Gráfica Universitária da UFPel, 2010, p. 55-78.

OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. O diabo em forma de gente: (r)existências de


gays afeminados, viados e bichas pretas na educação. Salvador: Editora Devires, 2020.

PRECIADO, Paul. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Rio de Janeiro,


Editora Schwarcz S.A., 2019.

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É de menina ou menino?

GÊNEROCOMO PRIMEIRO
APRENDIZADO DE VIDA
“Parabéns, é uma criança!”:
Cultura Visual (heteroterrorizante) nos Chás de Revelação;

“Não importa o sexo, eu só quero que seja menino”: cisheteronormatização dos


corpos em Chás de Revelação;

Máscaras como artefatos demarcadores de masculinidades e feminilidades:


gênero, cultura visual e infâncias;

“Boneca é coisa de menina”:


a virilização e a docilização de meninos e de meninas no mundo de dois sexos;

Anunciamos, Senhor(a), o vosso gênero;

"Eu posso fazer isso?": gênero, experiência e Educação Física.

Narrativas que moldam gênero e a sexualidade:


diálogos sobre educação ao falar de si.

17
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Registro de chá revelação da filha de Eduardo Bolsonaro.


Fonte: <https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/celebridades/eduardo-bolsonaro-da-
-tiro-em-cha- revelacao-e-descobre-que-deu-uma-fraquejada-36660>. Acesso em 5
de ago. de 2021.

“PARABÉNS, É UMA CRIANÇA!”:


CULTURA VISUAL (HETEROTERRORIZANTE) NOS CHÁS DE
REVELAÇÃO

João Paulo Baliscei4

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade é bastante comum que diante da notícia


de uma gravidez, sujeitos - pais, mães, avós, madrinhas, padrinhos e
demais familiares e colegas – reúnam-se para criar e levantar expectativas
a respeito do corpo da criança,que ainda está sendo gerada. Dentre essas
expectativas, ressalto, neste capítulo, aquelas que preparam a criança
para assumir (com êxito) os papéis de gênero que lhes são socialmente
atribuídos, e destaco que essa atribuição acontece não apenasa partir do

4 
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Maringá - UEM. Professor na UEM. Coordenador do grupo de pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI; e artista visual.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6980650407208999.
18
É de menina ou menino?

nascimento, mas, também, antes disso, quando se identificam o sexo


biológico. Tenho denominado como Projeto de masculinização dos
meninos e Projeto de feminilização das meninas (BALISCEI, 2021)
as práticas culturais que intentam generificar os corpos das crianças,
desde muito cedo, a fim de adequá-las às normas binárias, cisgênero e
heterossexuais vigentes na contemporaneidade.
Esses conceitos reforçam minha compreensão de que ser menino
e ser menina não são consequências espontâneas do existir no mundo.
Contrariamente, são identidades resultantes de intensos, porém sutis,
projetos, nos quais ações, advertências, censuras, parabenizações e cons-
trangimentos atingem os corpos infantis na tentativa de fazê-los ou
masculinos ou femininos. Os enunciados que os/as adultos/as lançam
para e sobre as crianças, diferenciando-as conforme os gêneros, por
exemplo, ilustram que se têm expectativas distintas para os meninos e
para as meninas.
“Não se sente de pernas abertas”; “seja gentil e obediente”; “você
tem a letra mais bonita da turma”; “não corra para não sujar e amas-
sar a roupa”. Ainda que essas quatro assertivas não possuam, em suas
redações, marcadores de gênero, suponho que enquanto você fazia a
leitura delas tenha imaginado que se dirigiam a uma criança menina.
Semelhantemente “aperte a mão direito”, “não fuja de uma briga”, “você
precisa ser forte” e “que feio chorar em público” são frases que também
não levam gênero, contudo, durante a leitura é provável que você as
tenha imaginado endereçadas a um menino.
Somadas aos artefatos da cultura visual - tais como cores, brin-
quedos, roupas, acessórios, sapatos, produtos alimentícios, materiais
escolares, jogos, brincadeiras, móveis e talheres - essas e outras frases
operam em concordância aos projetos de masculinização dos meninos
e aos projetos de feminilização das meninas. Tais projetos ensinam
às crianças que, para serem reconhecidas como meninos ou meninas,
precisam fazê-lo de maneiras específicas e não naturais, portanto, for-
jadas e performáticas. Em um estudo recente, dediquei-me, com mais
profundidade, a investigar como as cores azul e rosa foram associadas à

19
João Paulo Baliscei (org.)

masculinidade e à feminilidade, respectivamente (BALISCEI, 2021).


Em outros, preocupei-me em investigar de que formas filmes de ani-
mações (BALISCEI, 2020) ensinam meninos e homens a desempenha-
rem masculinidades socialmente aceitáveis; e de que formas cadernos
universitários (BALISCEI, SILVA e CALSA, 2018) e imagens de
super- heroínas (ROMERO e BALISCEI, 2020) envolvem as meninas
e mulheres em práticas feminilizantes.
A obsessão da sociedade em ensinar os meninos e as meninas a
assumirem posturas, vozes, comportamentos e preferências distintas
entre si é abordada pela artista sueca Liv Strömquist, no livro de história
em quadrinhos intitulado A origem do mundo: uma história cultural da
vagina ou a vulva vs. o patriarcado (2018). No capítulo Homens que se
interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de “genitália
feminina”, a artista recorre à ironia e ao sarcasmo para organizar uma
lista de nomes de homens – santos, médicos e paleontólogos, por exem-
plo – cujas invenções e pensamentos não só privilegiaram os interesses
masculinos, como censuraram os modos como as mulheres se relacio-
navam com seus próprios corpos, sexualidades e prazeres. Menciona o
inglês Isaac Baker-Brown (1811-1873), por exemplo, quem, no século
XIX, defendera a remoção do clitóris alegando que, assim, “curaria” as
mulheres da depressão, da histeria, da dor de cabeça, da desobediência
e da perda de apetite. Segundo Strömquist (2018), nos Estados Unidos,
esse procedimento cirúrgico chamado de clitoridectomia foi realizado
pela última vez em 1948, e na ocasião fora acionado para impedir que
uma menina de cinco anos se masturbasse.
Isso atesta que a linguagem e a cultura, para além de caracteri-
zarem os sexos dos sujeitos conforme eles “naturalmente” são, acabam,
também, por atribuir-lhes características. Portanto, as práticas culturais
não apenas descrevem corpos, mas também criam corpos; não apenas
descrevem gênero, mas também criam gênero. Para tanto, recorrem a
procedimentos, estratégias, dogmas religiosos, imagens e mesmo a teses
científicas que privilegiam os homens, a quem, conforme defendem, os
corpos e as sexualidades das mulheres deveriam prestar subordinação.
Nesse ponto, menciono um último exemplo dado por Strömquist (2018):
20
É de menina ou menino?

a sonda espacial estadunidense Pioneer, lançada ao espaço em 1972 pela


Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço – NASA. Em duas de
suas versões, essa sonda recebeu em sua superfície placas douradas, sobre
as quais foram gravadas mensagens, como uma tentativa de comunica-
ção com as possíveis vidas extraterrestres. Uma das mensagens era um
desenho de habitantes da terra - um homem e uma mulher, ambos nus.
No caso do homem, o desenho deu visibilidade ao pênis, aos testículos e
ao volume da glande, ainda que de modo estilizado; no caso da mulher,
não. Na ilustração, a ausência de linhas, volumes, pelos e marcações na
região pubiana feminina sugere, mesmo aos/às extraterrestres, que a
fêmea da raça humana não possui genitália e que seu corpo e sexualidade
têm como referência e devoção o sujeito masculino. Em outras palavras:
homens têm pênis, mulheres não.
Considero, pois, que desde meados do século XX, os interesses e
curiosidades por separar os sujeitos a partir da anatomia de suas geni-
tálias têm se intensificado, já que tal “descoberta” se tornou acessível e
popular mesmo às famílias comuns, não necessariamente constituídas
por pais e mães cientistas, médicos/as e abastados/as. Com a invenção e
aperfeiçoamento de exames médicos, tais como a ecografia e a sexagem
fetal, os sujeitos não precisavam mais aguardar por todo o período da
gestação para se informar quanto à genitália da criança que estão rece-
bendo. Com essas tecnologias, podem antecipar algo que, em geral, só
seria realizado após o parto: a socialização do gênero. “É um menino ou
uma menina?” - perguntam os/as curiosos/as quando veem uma grávida
na fila do banco, no ponto de ônibus, no balcão de atendimento e nas
salas de espera de consultórios.
O desenvolvimento tecnológico tem possibilitado que a “desco-
berta” do sexo biológico da criança ocorra já na 13ª semana da gravidez;
e a popularização e acessibilidade de tais recursos - combinados com
as questões ideológicas, machistas e heteronormativas da sociedade a
qual organiza cores e profissões a partir do gênero - acarretaram práticas
culturais que celebram a espera de uma criança já generificada. A isso,
neste texto, exemplifico com as festas de chás de bebê e chás de revelação.

21
João Paulo Baliscei (org.)

Não te parece emblemático que, dentre tantas outras coisas que


poderiam ser investigadas quanto à nova vida que está por vir, social-
mente, interessam-se justamente por algo tão íntimo quanto à genitália?
Por que não se revelam o signo da criança, seu peso, sua altura, a cor de
seu cabelo, o time para o qual torcerá ou mesmo o dia em que ocorrerá o
seu nascimento, mas sim, se ela possui um pênis ou uma vulva? Quem se
beneficia desse sistema de classificação onde tudo – as cores, a decoração,
as expectativas para o futuro e até mesmo o nome – depende estritamente
do gênero a partir do qual a criança é socializada nas práticas culturais?
A figura que abre esse capítulo, inclusive antecedendo o título, é
exemplo da prática de chá de revelação e será analisada e problematizada
por mim com mais aprofundamento nas próximas páginas. Trata-se
de um registro feito em maio de 2020, quando a família Bolsonaro se
reuniu para “revelar” o sexo da filha do deputado Eduardo Bolsonaro
(1984--) e da psicóloga e coach Heloísa Wolf (1991--), à época, com três
meses de gravidez.
Nesse capítulo, portanto, proponho como objetivo denunciar as
práticas heteroterrorizantes que subjazem a cultura visual celebrada nas
práticas de chá de revelação. Para tanto, primeiro apresento as caracte-
rísticas do que me refito como heteroterrorismo; e depois, debruço-me
sobre o episódio ocorrido em maio de 2020, sobre o qual trata a imagem
já mencionada. Por fim, apresento minhas considerações finais cha-
mando atenção para o enunciado que intitula essa discussão: “Parabéns!
É uma criança”.

O HETEROTERRORISMO ASSOMBRANDO CORPOS

O heteroterrorismo é apresentado pela brasileira Berenice Bento


(2011) como uma espécie de imposição da norma heterossexual. Da
necessidade de ser e de parecer ser heterossexual resultam uma série
de práticas culturais, a partir das quais se separam tudo por gênero: há
cores, formas, preços, tamanhos, medidas, texturas, cheiros, timbres,
músicas, roupas, brinquedos e maneiras de mexer as mãos exclusivas
“para eles” e outras (diferentes, é óbvio) “para elas”. Ao contrário do que

22
É de menina ou menino?

se supõem socialmente, a heterossexualidade não é natural e espontânea


aos corpos. Daí que, para fazer com que os sujeitos sejam heterossexuais
- e mais importante ainda, para que passem a impressão de sê-lo - há
um controle bastante rigoroso, porém, minucioso, de seus corpos. Em
outras palavras: há produção de heterossexualidade. Como explica a
brasileira Letícia Nascimento (2021, p. 19) “[...] não somos naturalmente
generificados”, ao contrário “[...] há um processo de produção de nós, de
nossos gêneros, de nossos corpos”.
Como socialmente as práticas sexuais e os modos como os sujeitos
vivenciam (ou não) seus prazeres sexuais foram delegados para o âmbito
do privado e do íntimo, recorrem-se a uma outra instância para operar
na produção da heterossexualidade: o gênero.
As reiterações que produzem os gêneros e a heterosse-
xualidade sãomarcadas por um terrorismo contínuo. Há
um heteroterrorismo a cadaenunciado que incentiva ou
inibe comportamentos, a cada insulto ou piada homo-
fóbica. Se um menino gosta de brincar de boneca, os
heteroterroristas afirmarão: “Pare com isso! Isso não é
coisa de menino!”. A cada reiteração do/a pai/mãe ou
professor/a, a cada “menino não chora!”, “comporta-se
como menina!”, “isso é coisa de bicha!”, a subjetividade
daquele que é o objeto dessas reiterações é minada
(BENTO, 2011, p. 551).

O heteroterrorismo assombra, pois, os corpos de meninos e meni-


nas para que, em suas escolhas, habilidades, desejos e movimentos eles/
as se mostrem convergentes àquilo que a estrutura binária de gênero
legitima: eles se comportam de uma forma; elas, de outra. Desse modo,
é possível afirmar que, mais do que vigiar e constranger as práticas
sexuais diferentes da heterossexual, o heteroterrorismo tenta vigiar e
constranger as expressões de gênero que não passam a impressão de
heterossexualidade. Com isso, confundem-se gênero e orientação sexual.
Entende- se, equivocadamente, que se um menino usar azul, brincar de
carrinho, for habilidoso no futebol, não fugir de uma briga e cumprir
com todas as outras exigências do projeto de masculinização ao qual
fora submetido, será heterossexual. Semelhantemente, não suspeitarão

23
João Paulo Baliscei (org.)

da heterossexualidade de uma menina caso ela brinque com bonecas,


seja obediente e vaidosa e mantenha seus cabelos penteados e adornados
com laços de fita. Questionam-se somente aqueles/as que se “desviam”.
O menino ou menina que manifestar algum “desvio” ao que estabelece
o binarismo de gênero – coitado/a! - mais cedo ou mais tarde receberá
olhares denunciantes e constrangedores indicando que há suspeita quanto
à sua não-heterossexualidade. Se o menino for delicado ou caprichoso
com seu caderno, será “xingado”5 de viado, bicha ou mulherzinha; se
a menina for forte ou determinada em suas escolhas, será xingada de
sapatão, mulher-homem ou mamão-macho, como indicam, respectiva-
mente, as brasileiras Megg Rayara Gomes de Oliveira (2018) e Suellen
Aquino e Luciana Borre (2017).
É preciso destacar, ainda, que o heteroterrorismo não se manifesta
apenas durante a infância; ele continua acompanhando e amedrontando
os sujeitos durante a vida adulta, inclusive aqueles que, socialmente, já se
mostraram “heterossexuais” em outros momentos. É bastante comum,
por exemplo, que se suspeitem da heterossexualidade de um homem
caso ele se mostre sensível ou covarde, não torça para nenhum time de
futebol ou ainda se recuse a consumir álcool - ainda que ele esteja se
relacionando sexualmente com uma mulher. Para apontar alguém como
“desviante”, a expressão de gênero vale tanto ou mais do que a própria
vida sexual. Também se suspeita da heterossexualidade de uma mulher se
ela vier a demonstrar iniciativa, coragem ou conhecimento sobre política
e engenharia, ou se cortar os cabelos curtos ou não usar brincos - ainda
que ela se relacione afetiva e sexualmente com um homem. Em outras
palavras, o heteroterrorismo amedronta mesmo os sujeitos heterossexuais.
A isso, acrescento os estudos da australiana Raewyn Connell
(2016) que, dando ênfase às masculinidades, analisa que “ser homem”
não é um status vitalício, o qual, uma vez “conquistado”, permanece

5 
Uso o verbo entre aspas pois não concordo que “viado”, “bicha” e “mulherzinha” e
tampouco “sapatão”, “mulher-homem” e “mamão-macho” sejam palavras negativas,
contudo, preciso reconhecer a intenção de ofensa que subjaz a iniciativa daqueles/as
que escolhem essas palavras, entre tantas outras, para evidenciar o “desvio” que outro
corpo acarreta à norma.
24
É de menina ou menino?

assegurado por toda a vida. Ao contrário disso, a autora destaca que as


identidades masculinas dos homens, sobretudo dos heterossexuais, são
frequentemente contestadas. Para se mostrarem e serem reconhecidos
como “homens”, eles precisam oferecer provas públicas, as quais, dentre
outras coisas, passam pelo risco, violência, força, coragem, atividade
sexual, prática de esporte, consumo de álcool e não demonstração de
medo ou fraqueza. Caso não “passem” por essas provas, é provável que
esses homens sejam apontados como gays, ainda que não o sejam.
Sob esse funcionamento, o heteroterrorismo acaba por revelar o
caráter artificial da heterossexualidade. Afinal, se as normas e condições
para alguém ser reconhecido/a como heterossexual precisam ser insis-
tentemente lembradas, cobradas e repetidas, é porque tal sexualidade
não se manifesta natural e espontaneamente. Recorro mais uma vez a
Nascimento (2021, p. 126), quem afirma que “[...] não existem corpos
generificados/sexuados de modo essencial e imutável”. São muitas as
práticas culturais que, associadas ao heteroterrorismo, tentam generificar
os corpos das crianças, o quanto antes possível. Criam uma espécie de
cultura visual generificante, a qual atribui aos meninos e às meninas
marcas não dúbias para não deixar dúvidas quanto ao gênero a partir
do qual eles e elas são socializados/as. Furam-se as orelhas delas, as
deles não. Cortam-se os cabelos deles, os delas não. Pintam-se as unhas
delas, as deles não. Eles usam gravatas, elas não. Elas usam saias, eles
não. Dentre essas práticas heteroterrorizantes que assombram as crian-
ças desde antes mesmo do nascimento, proponho, a seguir, reflexões e
análises sobre os chás de revelação.

É MENINO OU MENINA? REVELANDO E PRODUZINDO CORPOS

Os chás de revelação são uma espécie de atualização e glamouriza-


ção daquilo que já estabelecem os chás de bebês nas versões “tradicionais”,
onde se celebra a vinda de uma criança. No caso dos chás de revelação,
contudo, é comum que a maioria das pessoas envolvidas – incluindo os
pais e as mães – não saiba ainda quanto ao sexo da criança. “É menino
ou menina?”. A resposta a essa pergunta é justamente aquilo que os/

25
João Paulo Baliscei (org.)

as convidados/as buscam revelar. Para a decoração das festas, é comum


que os/as anfitriões/ãs recorram ao uso dicotômico do azul e do rosa,
indicando a dúvida que se têm (ainda) sobre a criança. Para “solucionar”
esse mistério e, enfim, anunciar o sexo e gênero da criança, recorrem-se
a modos criativos e inusitados para dar ênfase a uma dessas duas cores.
Azul, se for menino; rosa, se for menina. O sexo da criança é, então,
“revelado” em âmbito visual, a partir de uma surpresa, a qual fora pre-
parada por alguém quem, antecipadamente, teve acesso ao resultado
indicado pelo exame médico.
Cortar um bolo, estourar um balão, acionar fumaça, abrir uma
caixa, quebrar ovos e misturar líquidos são algumas das ações a partir
das quais o sexo da criança é “descoberto”. Em algumas variações, outras
crianças e mesmo animais participam da festividade, trazendo laços
ou outros adereços que anunciam a chegada de um menino ou de uma
menina. A figura abaixo reúne uma série de fotos e vídeos postados na
rede social Instagram, em um perfil intitulado “Chá de revelação” e que
possui mais de 220 mil seguidores/as. A primeira imagem exibe um
bolo decorado de azul e rosa, e cuja cor do recheio indicará se a criança
gestada é um menino ou uma menina. A primeira imagem da segunda
linha, por sua vez, foi retirada de um vídeo em que dois bebês gigantes,
feitos de material inflável, lutam entre si. A vitória do bebê de chupeta
rosa e com cabelos longos e amarrados indica aos/às convidados/as o
sexo da criança: é uma menina! A imagem imediatamente ao lado, por
fim, mostra um casal heterossexual acionando um dispositivo que faz
surgir, de dentro do bolo, um dildo ereto e azul indicando o sexo do bebê:
é um menino! A isso acrescento que, ainda que as outras imagens não
deem visibilidade a representações de pênis e vulvas, assim, de modo tão
explícito como essa, considero que elas também estão comprometidas a
marcar o corpo, o sexo e a sexualidade da criança cuja vinda está sendo
celebrada de modo generificado.

26
É de menina ou menino?

Figura 2: Chás revelação.


Fonte: <https://www.instagram.com/chaderevelacao>. Acesso em 19 de jun. 2021.

Chamo atenção para a cultura visual valorizada nessas imagens e


retomo, agora, os aspectos visuais e culturais do registro apresentado na
primeira página deste capítulo: a imagem que registra o chá de revelação
da filha de Eduardo Bolsonaro. Para manter a surpresa quanto ao sexo da
criança, a família em questão recorreu a um balão preto; e para revelá-la,
fez uso de uma arma de fogo. A cor preta e os pontos de interrogação
do balão (que na Figura 1 já fora estourado) indicavam que, antes do
evento, o sexo biológico da criança não havia sido determinado. Poderia
ser menino tanto quanto poderia ser menina. Os balões menores, orga-
nizados em círculos crescentes e alternados entre as cores azul e rosa,
por sua vez, sugeriam que, apesar do desconhecimento sobre o sexo da
criança, os/as convidados/as já esperavam que ela seria ou apenas femi-
nina (rosa), ou apenas masculina (menino). Não eram possíveis outras
alternativas. Um menino feminino ou uma menina masculina não eram
cogitáveis ou bem-vindos/as. Ademais, sob essa configuração, o artefato
visual que guardava o segredo me remete a um alvo; a algo que tenha
que ser acertado com certa precisão; sem margens para desvio ou erro.
A cultura visual nitidamente binária dos chás de revelação me
faz recordar das pesquisas do espanhol Paul Preciado (2013) quando
argumenta que, sob justificativas religiosas e moralistas, os sujeitos que

27
João Paulo Baliscei (org.)

se apresentam como “cidadãos/ã de bem” ou “defensores/as da família”


apelam unicamente à estrutura de família política que privilegia a eles/
as mesmos. A família “verdadeira”, então, seria a heterossexual. Tais
sujeitos constroem um modelo familiar e uma concepção de infância
na qual, de antemão, todos/as são, indiscutivelmente, heterossexuais e
adequados/as às normas de gênero. Qualquer variação a isso é considerada
um “desvio” a ser corrigido, se não, exterminado. Semelhantemente ao
autor, importo-me em perguntar sobre quem acolhe e defende as crianças
que não correspondem às expectativas heteroterroristas que pais, mães,
tios e tias e demais familiares constroem e celebram juntos/as.
A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por
nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais.
A norma ronda os corpos meigos. Se você não é hete-
rossexual, é a morte o que te espera. A polícia de gênero
exige qualidades diferentes do menino e da menina. Dá
forma aos corpos com o objetivo de desenhar órgãos
sexuais complementares. Prepara a reprodução da
norma, da escola até o Congresso, transformando isso
numa questão comercial (PRECIADO, 2013, p. 98).

Voltando-me, de novo, à cultura visual do chá de revelação da


família Bolsonaro, debruço-me sobre um outro artefato: aquele utilizado
para estourar o balão e para revelar o sexo biológico da criança - a arma
de fogo. Sobre ele faço, ainda, algumas observações. Além da despropor-
cionalidade entre a força da arma e a fragilidade do balão, me provoca
certo estranhamento que, nesse caso, não tenha sido a mãe quem revelara
o sexo da criança gerada em seu ventre, mas sim o pai. Na cena, a mãe
permanece ao lado do homem adulto, assistindo-o, e surpresa àquilo
que o balão revela. Para mim, a arma de fogo, nesse caso, fora utilizada
pelo pai como uma espécie de símbolo intermediário; a partir do qual
ele pôde acessar espaços, brincadeiras e assuntos socialmente tidos como
“femininos”, como a parentalidade, o afeto e o cuidado para com a vida
de uma criança. O que implica descobrir o sexo de um sujeito se utili-
zando de uma arma de fogo? O que, exatamente, pretende-se atingir?
E se fosse a mãe a estourar o balão, não seria estranho que ela o fizesse
recorrendo a uma arma de fogo? Sendo o protagonista do estouro um

28
É de menina ou menino?

homem, por que ele precisou fazê-lo com uma arma? Soaria afetado e
feminino demais para ele estourar o balão com uma agulha ou outro
objeto delicado?
Os estudos da brasileira Marcia Tiburi (2020) quanto às questões
políticas, culturais e estéticas do Brasil bolsonarista oferecem significativas
contribuições para essa análise. Conforme explica a autora, no Brasil
contemporâneo sob o governo bolsonarista, tem se intensificado aquilo
a que ela denomina como turbotecnomachonazifascismo. Dentre outras
coisas, essa força opera com a “[...] barbárie e a brutalidade de homens
apresentados como ‘machos’ como tecnologia política”. Semelhantemente
ao heteroterrorismo, o turbotecnomachonazifacismo, então, não só
vigia os corpos das crianças para que elas sejam lidas e classificadas de
modos binários antes mesmo do nascimento, como também assombra
os corpos dos sujeitos adultos. Atribui o churrasco a eles, e a sobremesa
a elas; confere valentia a eles, e passividade a elas; armas de fogo a eles
e surpresa a elas.
Para que a sexualidade e mesmo a masculinidade de um homem,
branco, cristão, cisgênero e supostamente heterossexual não fosse ques-
tionada quando envolvido em uma brincadeira de “descobrir” o sexo da
criança – ainda que sua filha - ele teve que recorrer ao uso da arma de
fogo. De certa forma, esse artefato, como símbolo intermediário, auto-
riza-o a acessar jogos e valores tidos como “femininos” sem que tenha
sua masculinidade e heterossexualidade colocadas em xeque.

CONSIDERAÇÕES

“É um menino ou uma menina?”.


O fato de que, diante de uma gravidez, socialmente, perguntem-se
primeiro sobre o sexo do bebê revela a importância que tem sido atribuída
às normas de gênero a partir de concepções binárias. É como se, o quanto
antes, houvesse que saber sobre o gênero da vida que está por vir, não só
para que ela receba um nome, - masculino ou feminino - mas também
uma cor, um quarto, um brinquedo, uma roupa, um apelido carinhoso,
etc. A construção de expectativas sobre esse corpo ocorre, então, apenas

29
João Paulo Baliscei (org.)

mediante à sua generificação. Terá um enxoval azul ou rosa? Brincará


com carrinhos ou com bonecas? Frequentará escolinha de futebol ou
de balé? Terá interesse por dinossauros ou por panelas? Cursará Direito
ou Odontologia? Aproveitará a juventude e a solteirice ou se casará aos
20 anos? Essas perguntas, que soam como uma espécie de sondagem
do futuro de uma criança generificada, sublinham a necessidade que
o heteroterrorismo impõe de aniquilação do “outro”. Aniquilam-se o
não masculino e o não feminino; o não cristão; o não branco; o não
heterossexual; o não cisgênero. Esse compromisso tratado e reforçado
em práticas heteroterrorizantes se materializa, inclusive, em estéticas e
visualidades específicas – como as dos chás de revelação.
E se ao invés de se parabenizar pelo gênero, parabenizassem-se
pela vida? “Parabéns! É uma criança”. Tal cumprimento vai ao encontro
de minha defesa nestas considerações finais, que é a de que os sujeitos,
sobretudo os infantis, possam usufruir de sua experiência de vida sem as
amarras e restrições impostas pelas normas de gênero e pelos efeitos hete-
roterrorizantes que elas lhes causam. A infância - etapa de experimentação
do mundo, na qual os meninos e meninas deveriam ser incentivados/as
a testar cores, cheiros, brincadeiras, sentimentos e sensações, indiscrimi-
nadamente – é justamente quando, pelo contrário, as crianças aprendem
que há coisas específicas para meninos, e outras, para meninas.
Por fim, é preciso explicar que quando tematizo e problematizo a
cultura visual dos chás de revelação não pretendo demonizar tal prática
cultural e tampouco atribuir a ela toda a responsabilidade das forças
heteroterrorizantes que assombram as crianças. Infelizmente, a divisão
binária e dicotômica que separa meninos de meninas não se manifesta
apenas nesses eventos, e nem mesmo apenas em âmbitos visuais. Os
espaços escolares, religiosos, familiares, políticos, públicos, trabalhis-
tas, de lazer e artísticos, dentre outros, revelam que as assimetrias e
preconceitos decorrentes do heteroterrorismo ocorrem de maneiras tão
sutis e peculiares que chegam a ser naturalizados, ainda que provoquem
tristeza, violência e morte contra aqueles/es que não conseguem ou não
querem corresponder às suas normas.

30
É de menina ou menino?

REFERÊNCIAS

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PRECIADO, Paul B. Quem defende a criança queer? Revista Jangada, Viçosa, n. 1, p.


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claro que não!”: Estudo sobre protagonismo feminino em filmes de animação. In:
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STRÖMQUIST, Liv. A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva


vs. o patriarcado. São Paulo: Quadrinhos na cia, 2018.

TIBURI, Marcia. Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo ou seja lá o nome


que se queira dar ao mal que devemos superar. Rio de Janeiro: Record, 2020.

31
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Registros de chá de revelação. Fonte: Vídeos no Youtube, 2021.

“NÃO IMPORTA O SEXO,


EU SÓ QUERO QUE SEJA MENINO”:
CISHETERONORMATIZAÇÃO DOS CORPOS EM CHÁS DE REVELAÇÃO

Isabela Daiane Pironi6


Jean Pablo Guimarães Rossi7
Eliane Rose Maio8

INTRODUÇÃO

Saber o sexo da criança se transformou em um verdadeiro evento.


Os chás derevelação no Brasil e no mundo têm crescido cada vez mais

6 
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Maringá – UEM. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade
Sexual – NUDISEX. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5201767164101890.
7 
Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual
de Maringá. Professor na Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR. Integrante
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual - NUDISEX.
Lates: http://lattes.cnpq.br/8403751902893496.
8 
Pós-doutora e Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” - UNESP. Professora na UEM. Coordenadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual - NUDISEX.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9562371036022440.
32
É de menina ou menino?

e se tornando uma tendência nas redes sociais, tanto entre pessoas anô-
nimas, quanto entre famosos/as.
Esses chás acontecem da seguinte forma: geralmente se trata de
um casal heterossexual que está à espera de uma criança, e a algum/a
conhecido/a da família, é pedido que vá até a sala de ultrassom e veja
qual é o sexo do/a bebê, sem dizer nada a ninguém. Posteriormente,
o casal organiza uma festa para que o sexo do/a bebê seja revelado de
algum modo criativo, como: o estouro de balões, sprays com conteúdos
em azul ou rosa, fatias de bolo, fumaças coloridas, entre outros. E a
partir disso, são filmadas as reações dos/as convidados/as diante da
anunciação do sexo.
É menino ou menina? Estes são os únicos gêneros possíveis,
enunciados nesses chás diante do sexo biológico que a criança apre-
senta. É comum que se utilizem apenas de duas cores para a decoração
desses eventos, sendo a cor rosa mais empregada para se referir ao sexo
feminino, e a cor azul, ao sexo masculino - acompanhado de diversos
estereótipos sobre o “ser menino” ou o “ser menina”.
Relacionamos tais episódios àquilo que Judith Butler (2003)
conceitua como “gêneros inteligíveis”, que diz respeito aos corpos que
apresentarão relação e coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo.
Conforme acrescenta Berenice Bento (2011), esses corpos, obedecerão,
então, a lógica vulva-mulher-feminilidade se opondo ao pênis-homem-
-masculinidade. Sendo assim, por meio dos chás de revelação podemos
observar que mesmo antes do nascimento da criança, já são cristalizados
práticas e discursos para a manutenção das normas que regularão os
gêneros dos/as bebês, no sentido de vigiá-los/as para que se encaixem
dentro da perspectiva dos “gêneros inteligíveis”. Posto isso, Paul B. Pre-
ciado (2020) discute que é por meio da criança que se normalizará o/a
adulto/a e que este/a é responsável por naturalizar essa norma. Há uma
intensa vigilância nos berços para converter todos os corpos das crianças
em sujeitos/as que vivam sua sexualidade dentro da heterossexualidade.
A partir dessa discussão, ancorados nos Estudos de Gênero e nos
Estudos Feministas, sob a ótica de uma perspectiva pós-estruturalista,

33
João Paulo Baliscei (org.)

buscamos, com esse estudo, discutir sobre como se dá o processo de


cisheteronormatização dos corpos a partir dos chás de revelação. Para
tanto, utilizamos a rede social YouTube como lócus de pesquisa, de onde
coletamos três vídeos de chás de revelação, os quais são apresentados
visualmente na Figura 1, que abre este capítulo. Os três vídeos (sendo
um deles, Parte 1 e Parte 2) passaram pelo processo de transcrição e
tiveram as narrativas de seus/suas interlocutores/as (pais, mães, avô, avó,
amigas/os e convidadas/os) problematizadas no intuito de evidenciar
como a cisheteronormatização ocorre nestes eventos.

REVELANDO OU “LIMITANDO?” CHÁS REVELAÇÃO E O


PROCESSO DE CISHETERONORMATIZAÇÃO DOS CORPOS

De acordo com o site de notícias BBC News (British Broadcas-


ting Corporation), em notícia publicada por Rafael Barifouse (2019), o
primeiro registro que se tem sobre a prática chá de revelação se refere
ao ano de 2008, em que uma estadunidense chamada Jenna Karunidis,
ao engravidar de sua primeira filha, realizou uma festa para revelar
qual seria o sexo da criança. Para isso, ela cortou uma fatia de bolo que,
em seu interior, estava pintada na cor rosa, dando o indicativo de que a
criança seria do sexo feminino. Após esse fato, ela fez um post em seu
blog sobre o acontecimento e ele acabou viralizando. Todavia, onze anos
após esse episódio, Jenna alega que se arrepende por ter contribuído para
que esse fato se tornasse uma moda. E informa que tampouco quer ter
seu nome atrelado como a pessoa que criou essa prática. Isso porque
Jenna, ainda conforme a notícia, reconhece que a realização do chá de
revelação acaba por criar expectativas em relação ao gênero da criança, e
que esses eventos passaram a ser apropriados por pessoas conservadoras
que possuem maneiras específicas de pensar o gênero, limitando a criança
a partir da sua genitália. Diante disso, se faz necessário pensar como se
dá o processo de cisheterormatização nos corpos a partir da designação
do sexo biológico, como se houvesse apenas duas formas possíveis de
existência, feminina ou masculina, excluindo e levando para o campo
do abjeto a diversidade sexual e de gênero. Butler (2000) aponta que
desde o nascimento, aos/às sujeitos/as são impostos determinados papéis
34
É de menina ou menino?

que devem ser seguidos, obedecendo a uma lógica cisheterormativa.


Butler (2003), em relação ao conceito de heterormatividade, apresenta-o
como o processo de regularização da prática heterossexual, prescrita
aos corpos como uma norma imposta não somente pela cultura, mas
também pela biologia, no sentido de ser uma ordem compulsória de
combinação entre sexo, gênero e desejo. Assim sendo, todas as outras
formas de identidades e sexualidades são vistas como uma dispersão à
norma, compreendidas como desvios que precisarão ser reintegrados à
normatização. O termo heteronormatividade só pode ser usado dessa
maneira porque guarda relações com a cisheteronormatividade. Todo
sistema de relações que tem como base a heterossexualidade presume
que os/as sujeitos/as também sejam cisgêneros/as. Nesta lógica, um
corpo feminino irá sempre corresponder a um corpo que contém uma
biovagina, e um corpo masculino com um corpo que contém um biopênis
(PRECIADO, 2018). Guacira Lopes Louro (2000) aponta que, nesse
processo, apenas uma forma de sexualidade se apresenta como possível,
sendo reconhecida como um padrão de referência para todas as pessoas.
Louro (2000) problematiza: se a heterossexualidade fizesse parte da
natureza intrínseca do ser humano, qual seria o motivo de todo esse
investimento para uma rigorosa vigilância na manutenção dessa hete-
rossexualidade? A partir desse questionamento se faz oportuno pensar
que o fato de existirem pessoas que têm um processo subjetivo e de iden-
tidade que não corresponde a essas expectativas sobre a masculinidade
e feminilidade, revela que a perspectiva da naturalidade desse sexo não
é real. Há todo um processo de construção por trás dessa perspectiva.
Bento (2011) explica que é nas instituições sociais, como a família, igreja,
escola e a ciência, por meio de contínuas repetições, que a sociedade vê
formas de materializar, nos corpos, as verdades em relação aos gêneros.
Michel Foucault (1998) categoriza o conceito de sexualidade como um
“dispositivo histórico”, afirmando que ela é uma invenção social, que
foi sendo construída, reforçada e repetida historicamente por meio dos
discursos de legitimação.
Diante dessa discussão, vale pensar na necessidade de normati-
zação dos corpos que há por trás dos discursos dos chás de revelação.
35
João Paulo Baliscei (org.)

Nessas festas, estão inclusos diversos estereótipos sobre os papéis sociais


a serem desempenhados por essas crianças, manifestados, desde a tenra
idade, quando, por exemplo, ao menino são associados a cor azul e brin-
quedos que remetem ao campo público, como carrinho, bola e esportes,
e à menina são atribuídos a cor rosa e brinquedos ligados ao privado.
como casinha, bonecas e utensílios domésticos. Preciado9 (2002) argu-
menta que ao se dar a notícia “é um menino ou uma menina”, criamos
expectativas e geramos suposições em como será o futuro desse corpo
que passará a ter visibilidade a partir da resposta dessa notícia. Dessa
forma, aqueles e aquelas que não se enquadram nessas idealizações,
passam a ser invisibilizados/as e considerados/as abjetos pela lógica da
cisheterormatividade, como se não tivessem direto de festejar os seus
gêneros, seus corpos e suas sexualidades.

SOBRE OS VÍDEOS ESCOLHIDOS

Elencamos três vídeos disponíveis na plataforma Youtube para a


discussão que aqui empreendemos e, para a busca, utilizamos o descritor:
“chá de revelação”. Optamos pela análise do conteúdo narrativo presente
entre os/as interlocutores/as que aparecem nos vídeos. Sistematizamos
as informações acerca dos vídeos, coletadas em agosto de 2021, no
quadro abaixo:

9 
O livro Manifiesto contra-sexual – Prácticas subversivas de identidad sexual (2002) foi
publicado durante a transição de gênero do autor, por isso ainda fora associado ao seu
nome morto. Neste texto, para referenciá-lo, recorremos ao seu nome após a transição.
36
É de menina ou menino?

Vídeo 1 Vídeo 2 Vídeo 3


Chá revelação papai e
Aurora ou Théo? O meuParte 1 - Chá de revelação emo-
Baby é... Chá revelação10cionante pai desmaia!11 mamãe do Guilherme. (Pai des-
trói tudo)12
Canal: No Pique na
Canal: Fortes emoções Canal: Érika da Silva Britto
Nique Tempo: 13
Tempo: 5 min. e 40 seg. Tempo: 2 min. e 39 seg.
min. e 15 seg.
Visualizações: 4.713.475 Visualizações: 117.481
Visualizações: 7.789
Likes: 68.000 Likes: 959
Likes: 525
Dislikes: 8.300 Dislikes: 391
Dislikes: 7
Comentários: 4.751 Comentários: 197
Comentários: 45

Parte 2 - Chá revelação


pai tentando levantar após
desmaiar, enquanto é lida
a cartinha que o impactou

Canal: Fortes emoções


Tempo: 1 min. e 39 seg.
Visualizações: 1.055.492
visualizações
Likes: 9.400
Dislikes: 674
Comentários: 688
Fonte: elaboração das autoras e autor, 2021.

Após realizarmos a transcrição dos diálogos presentes nos vídeos,


frente à observação dos aspectos de maior ênfase, organizamos a discussão
do tópico seguinte, onde explanamos sobre alguns excertos narrativos
dos vídeos escolhidos, a fim de discutir os modos como a generificação
dos corpos, a partir da noção de sexo biológico, acontecem em chás de
revelação.

10 
Vídeo disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=TPVvyF3ZseM>. Acesso
em: 17 ago. 2021.
11 
Vídeo parte 1 disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=NdR7i7mtY-8>.
Acesso em: 17 ago. 2021.Vídeo parte 2 disponível em <https://www.youtube.com/
watch?v=EqtJS49GKaM>. Acesso em: 17 ago. 2021.
12 
Vídeo disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=KBPakHumFQA>.
Acesso em: 17 ago. 2021.
37
João Paulo Baliscei (org.)

“NÃO, PAPAI, A MAMÃE ENGANOU VOCÊ, SOU EU, A SUA


PRINCESINHA”: GENERIFICANDO O CORPO EM CHÁS DE
REVELAÇÃO

O Video 1, postado no canal No Pique da Nique, é referente ao


evento organizado para a revelação do sexo do/da bebê de um casal
heterossexual. A festa foi intitulada “Charraiá #theo#aurora”, - como
nos é mostrado nas filmagens dos copos personalizados - possivelmente
em alusão aos “arraiás” que ocorrem no mês de julho, quando as festas
juninas são celebradas no Brasil.
Também fica evidente que se trata de uma produção com muitos
requintes, já que o próprio vídeo foi produzido por uma equipe de pro-
fissionais contratados/as para a captação audiovisual, além da equipe de
massagista, maquiadora, fotógrafo/a e demais organizadores/as presentes
em um sítio locado para este fim. A mãe conta que nos planos iniciais,
a revelação aconteceria por meio de um avião que lançaria uma fumaça
no céu, mas que, por problemas técnicos com a companhia aérea, isto
não pôde acontecer, portanto, ao invés do avião, a revelação dar-se-ia
com um helicóptero. No vídeo em questão, fica evidente o marcador
não apenas de gênero, mas também de classe. Diferentemente da festa
no Vídeo 1, em que há uma superprodução, envolvendo a formação
de equipe, contratação de diversos/as profissionais, personalização de
enfeites e até um helicóptero... nos outros vídeos, notamos que as festas
são mais simples, organizadas pelos/as próprios/as familiares e amigas/
os, realizadas em casa e com registro audiovisual feito por um celular
de uma/um das/dos participantes. Além disso, a revelação do sexo
aconteceu por meios mais econômicos, como um bolo com glacê azul e
rosa e uma caixa de papelão decorada com essas duas mesmas cores. De
toda maneira, apesar dos modos de diferenciação sobre como os chás
de revelação ocorrem, compreendemos que a lógica que sustenta essas
três situações é a mesma.
A idealização e, principalmente, a grande expectativa oriunda
do reducionismo sexo/gênero pode ser observada no Vídeo 1, o qual
registra uma espécie de torcida, a partir da qual cada uma/um das/os

38
É de menina ou menino?

convidados/as devia fazer suas apostas: #teamtheo, para quem acredi-


tava que a criança seria do sexo masculino; e #theamaurora, para quem
apostava que ela seria do sexo feminino, como apresentam os excertos
das falas a seguir:
Mãe: Então gente, a cor do chá não é rosa e nem azul,
a gente, tipo, optou pelo verde e laranja. Então quem
entrar acreditando que é menina, vai usar uma pulseira
laranja, e quem entrar acreditando que é menino, vai
entrar usando uma pulseira verde [...] (Trecho 1 - Vídeo1)
Pai: Então galera, chegou o grande dia, nem tô com a
roupa da revelação ainda, mas já estou nervoso [...] já
queria deixar claro aqui, antes de mais nada, eu torço
por menino, a Monique por menina, mas quero deixar
bem claro aqui que isso é indiferente pra gente, prin-
cipalmente pra mim, se vier menino será amado pra
caramba, se vier menina, será amada da mesma forma,
então é isso, sabe, foi uma semana de ansiedade, de
nervosismo e... (Trecho 2 – Vídeo 1)
Avô: Espero que esse neném chegue bem bonitinho, com
muita saúde, o Theo vai ser lindo, lindo ver o garotinho
correndo saindo com o vovô passeando com o vovô,
mas se for a Aurora, vou passear do mesmo jeito, vou
ensinar andar de bicicleta igual ensinei o pai.
Avó: Não importa o sexo.
Avô: Não importa o sexo, eu só quero que seja menino,
não tem problema nenhum, pode ser qualquer coisa,
não tem problema.
Matheus (pai): Seu neto ou neta, no caso.
Avó: Que venha com saúde, amor vai ter de sobra (Tre-
cho 3 – Vídeo 1).
Sobre os trechos supracitados, gostaríamos de destacar dois pontos.
Em primeiro lugar, problematizamos o recorrente discurso “o importante
é que venha com saúde” (Trecho 3), já que perpassa a lógica de um corpo
ideal. Podemos pensar, que corpo “saudável” é tão esperado? No caso dos
chás de revelação, podemos pensar que se trata de uma idealização que
enquadra a composição corpóreo-fetal dentro dos parâmetros de uma

39
João Paulo Baliscei (org.)

“normalidade” biomédica, que implica uma pressuposição da identidade


física da criança frente ao sexo biológico. Desta forma, compreendemos
que chás de revelação avigoram o que Catherine Mathelin (1999, p. 66)
se refere, ao explicar que a preparação do “enxoval”, por exemplo, fabrica
“[...] para além da roupa, os braços, as pernas, a imagem do corpo do
bebê na cabeça da mãe [pais/responsáveis]. Instalar a cama, preparar
o seu espaço lhe permite conceber uma representação de seu filho[/a]”.
O segundo ponto diz respeito à expectativa, tanto do pai, quanto
do avô, de que este/a bebê fosse, preferencialmente, um “menino”. Além
disso, em vários momentos eles se referem ao feto a partir de uma
perspectiva e linguagem masculinista, ainda que não tenham tomado
ciência do sexo biológico deste/a bebê. Em outras palavras, o corpo (que
até o momento está “assexuado”) é tomado como suposto “neutro”, mas,
linguisticamente já é referido nas fronteiras centrais do “ser universal”:
homem, hétero, cisgênero. Na continuidade dessa discussão, também
fica evidente a lógica binária, em que o primeiro polo (masculino) é per-
cebido com valor, esmero e desejo e se opõe ao segundo polo (feminino),
tomado como secundário e menos desejável, como percebemos nas falas:
“se for menina”, “mas, caso seja menina”, “porém, se for menina”, “se
vier menina, também será amada” etc. Para Montserrat Moreno (1999),
o efeito disto é o fato de que a menina aprenderá, desde muito cedo, a
ocupar um papel subalterno e a renunciar a sua identidade sexolinguís-
tica, incorporando e também reproduzindo a lógica androcêntrica. Tal
fato pode ser percebido na fala do pai: “[...] se vier menino será amado
pra caramba, se vier menina, será amada da mesma forma [...]”. Neste
exemplo, o pai situa, primeiramente, o menino e coloca a possibilidade
da menina em segundo plano ao afirmar que ela “também” será amada
“da mesma forma”. A expressão “da mesma forma”, pode ser problema-
tizada aqui, já que nesse discurso o menino está situado como referência
central de afeto, e a menina como aquela que pode ser amada tal qual
ele. De modo semelhante, o avô, ao comentar que gostaria de ter um
neto menino, também diz que caso seja uma menina vai “ensinar andar
de bicicleta igual ensinei o pai”. Novamente temos a figura masculina

40
É de menina ou menino?

enquanto centro de referência e a menina como uma possibilidade


secundária e que deverá se moldar em alusão ao homem.
No vídeo 2 (partes 1 e 2), em que o “papai desmaia”, acontece
uma situação inusitada. Trata-se de um chá de revelação, em que a des-
coberta do sexo biológico se deu por meio de um bolo com glacê azul
e rosa, de modo que a cor do recheio revelaria o sexo da criança. Nesta
situação, o pai fez um discurso aos/às convidados/as anunciando que a
criança seria “bem-vinda independendo do sexo”. Depois, ao cortarem
o bolo, verificaram o recheio azul, indicando o sexo masculino. Durante
a leitura de uma carta, o pai logo desmaia, porém, na continuidade da
leitura da carta (na parte 2 do vídeo), ele descobre que a revelação era
uma brincadeira feita para enganá-lo, pois aquele era um chá de revelação
de uma bebê do sexo feminino.
Pai: Eu quero agradecer a Deus por cada um que veio em
segurança,que essa criança seja bem-vinda independendo
do sexo, que cada umvolte tranquilo na volta para casa,
quem vai com seu carro, com sua moto, quem vai de a
pé, quem vai de bicicleta. Eu amo cada um que tá aqui,
porque ninguém é melhor que ninguém, Deus preparou
tudo isso, não porque nós merecemos, é porque Ele é
bom. Deus abençoecada um grandemente.
Convidados/as: Corta, corta! [cortam o bolo, a fatia é
na cor azul indicando que é do sexo masculino. O pai
começa a ler a carta e
desmaia, convidado/as prestam assistência] (Trecho
4 - Vídeo 2, Parte 1).
Convidadas gritam: Lê a cartinha!
Mãe: Eu vou ler [começa ler a carta] Papai, se prepara,
estou chegando, em pouco tempo serei a mais nova inte-
grante da família. Papai, você deve estar se perguntando:
como assim a mais nova integrante da família? Não seria
novo integrante? Não, papai, a mamãe enganou você,
sou eu, a sua princesinha [o pai se levanta a esposa o
abraça] (Trecho 5 - Vídeo 2, Parte 2).
Nos trechos supracitados é possível perceber como há um ápice
de emoção, ressaltado pelo desmaio do pai, provocado pela notícia da

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João Paulo Baliscei (org.)

revelação do sexo masculino. Posteriormente, há a quebra/declínio dessa


expectativa, ao ser declarado que aquela não passava de uma brincadeira
e que a criança, na verdade, seria uma “menina”. Essa situação reforça a
polarização masculino/feminino, em que o polo masculino se aloca como
figura central, e o feminino como polo opositor e secundário, utilizado
nesta situação como forma de “pegadinha”. Tal afirmação coaduna ao
que Simone de Beauvoir (2009) se refere ao explicar o quanto o termo
“fêmea” não está inscrito no polo do desejo primário. Ser fêmea, para a
autora, soa como insulto, já que historicamente o “ser mulher” foi alocado
ao secundário, para o lugar do “segundo sexo”, assimetricamente inferior.
Além disso, no Trecho 5, a mãe, ao ler cartinha, revelou que se
tratava de uma “princesinha”. Chimamanda Ngozi Adichie (2017, p.
35), problematiza que geralmente revestida de uma suposta ideia de
“boa intenção”, a expressão “princesa” “vem carregada de pressupostos
sobre sua fragilidade, sobre o príncipe que virá salvá-la etc”. Há, nesse
ponto, uma conotação de que o “ser mulher” se inscreve numa posição
de fragilidade e, o “ser homem”, garante um patamar de superioridade.
No vídeo 3, em que o “papai destrói tudo”, notamos as performan-
ces de gênero (BULTER, 2003) que são acionadas no comportamento
e nas falas do pai, antes e após a descoberta de que o bebê é do sexo
masculino. Trata-se de um vídeo caseiro, que mostra o momento da
revelação, quando o homem, evidentemente alvoroçado, dispara alguns
xingamentos à esposa e destrói alguns enfeites da festa:
[As/os convidadas/os gritam alvoroçadas/os para que
abram a caixa contendo a revelação, decorada com
figuras e interrogações em azule rosa].
Convidado 1: Bora, porra! Vou dar tiro pro alto, ein!?
Mãe: Calma, gente.
Pai: Quer saber? Abre isso. Eu vou rasgar essa merda.
Abre logo! Você já tá vendo, cara! [dirigindo-se à esposa]
Você é retardada? [Euforicamente, o pai abre a caixa
gritando, visualiza os balões azuis e começa a derrubar
a decoração] Porra! Me dá minha Jurupinga! [pega a
caixa da revelação, coloca na cabeça e começa a rir]
Mais um, mais um!

42
É de menina ou menino?

Mãe: [dá um tapa no braço do marido] Para, Thiago!


[pega o resultado do exame médico que estava dentro da
caixa, enquanto o marido anda com a caixa da revelação
sobre a cabeça].
Convidado 2: Ai ai, compra paracetamol.
Convidado 3: [ouve-se ao fundo] É menino, né, cara!
[aparentemente em resposta ao questionamento de
outra pessoa].
Convidada 4: Eu fiquei o dia inteiro pra fazer isso [em
tom de indignação] (Trecho 4, Vídeo 2).

Sobre o trecho supracitado, é pertinente notar de que modo os


padrões de masculinidade hegemônica se revelam a partir das falas do pai
e dos convidados homens que estavam ali presentes. Um dos pontos em
que essa expressão da masculinidade se mostra pode ser notado na fala
“me dá minha Jurupinga”, dita pelo pai, no momento em que descobre
que o bebê é do sexo masculino. Segundo Eduardo Zoering Zanella
(2011) e Pedro Nascimento (2016), há uma relação intrínseca entre o
consumo de bebidas alcóolicas e a delimitação de fronteiras simbólicas da
masculinidade, uma vez que os corpos masculinos são entendidos como
mais fortes e resistentes do que os das mulheres. Homens são vistos como
fisicamente e emocionalmente dotados de maior autocontrole - daí advém
a expressão “beber como um homem”. O consumo de bebida alcoólica
e a sociabilidade masculina são aprendizados que ditam determinados
códigos de masculinidade. Além disso, notamos que não é só a bebida
alcóolica em si que anuncia o compromisso com a masculinização da
criança, mas o tipo de bebida: a Jurupinga, já que esta é uma bebida mais
potente, logo, supostamente mais apropriada aos homens.
Além do mais, percebemos que um dos convidados afirmou em
resposta a outra pessoa “é menino, né, cara!”, assumindo um tom de
“obviedade”, frente à reação do pai com a revelação. Explanando em
pormenores, podemos interpretar como se o convidado estivesse respon-
dendo ao outro: “É lógico que é um menino! Não está vendo a reação
dele? É obvio!”. Entendemos que se (re)produz um reducionismo sexo/
gênero ao estabelecer uma associação entre o comportamento agressivo

43
João Paulo Baliscei (org.)

do pai, com o sexo (masculino) do bebê. Consideramos muito expres-


siva essa associação, pois as falas e comportamentos do adulto aferem
diretamente ao que é esperado de um menino, caracterizando-se como
uma noção bastante restrita de masculinidade, que abafa quaisquer
traços de humanidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, buscamos discutir como os chás de revelação são


práticas que generificam os corpos, desde o útero, a partir de uma lógica
cisheteronormativa. Os vídeos analisados evidenciaram que, apesar dos
diferentes modos que essas festas podem se utilizar para a pressuposição
de um gênero a partir da noção de sexo biológico, a lógica que sustenta
a sua existência é mesma: a (de)limitação de fronteiras existenciais
que tomam como base de apoio, o discurso da suposta “normalidade”
cisheterocentrada.
Notamos que performances de gênero são acionadas a partir das
expectativas sociais de gênero. Tais performances tendem a colocar o
sexo masculino enquanto objeto de desejo primário, evidenciado pela
emoção e entusiasmo nos gestos e discursos, sobretudo do pai/mãe,
enquanto a menina é alocada ao objeto de desejo secundário, situada
nos interditos, como: “e se for menina”, “mas caso seja menina”, “tam-
bém será amada” etc. Tais atitudes trazem à tona diversos estereótipos
de gênero, sobre “ser homem” e “ser mulher”. Reconhecemos, por fim,
que, apesar de ter se popularizado nos últimos anos, a prática do chá de
revelação não inaugura uma nova lógica. Muito pelo contrário, apenas
dá respaldo à uma lógica já muito antiga e que se apresenta como um
artifício de reforço à cisheteronormatividade como elemento suposta-
mente “natural” da humanidade.

REFERÊNCIAS

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Tradução: Denise Bottmann. Sâo Paulo: Companhia das Letras, 2017.

44
É de menina ou menino?

BARIFOUSE, Rafael. Por que a ‘criadora do chá de revelação’ se arrepende de ter ajudado
a lançar a moda. BBC News Brasil. 5 dezembro 2019. Disponível em: <https://www.
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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica; tradução


de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2018.

. Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia. Rio de Janeiro:


Zahar, 2020.

45
João Paulo Baliscei (org.)

ZANELLA, Eduardo Doering. Masculinidade e consumo de bebidas alcoólicas: a


construção de maneiras de beber. Ponto Urbe, São Paulo, n. 9, 2011. Disponível em:
<https://pontourbe.revues.org/1820>. Acesso em 28 de ago. 2021.

46
É de menina ou menino?

Figura 1: Kit Máscaras infantis.


Fonte: Michele Diovana (2021).

MÁSCARAS
COMO ARTEFATOS DEMARCADORES DE MASCULINIDADES E
FEMINILIDADES: GÊNERO, CULTURA VISUAL E INFÂNCIAS
Regina Ridão Ribeiro de Paula13
Thalia Mendes Rocha14

INTRODUÇÃO

A mais de um ano, com o surgimento da Covid-19, passamos a


adotar medidas de prevenção contra este vírus, dentre elas o uso de más-
caras. A partir disso, temos a seguinte problemática: como as máscaras,
dispositivos de proteção individual, tornaram-se artifícios para reforçar
a divisão de gênero? A fim de encontrar possíveis respostas, temos como
objetivo problematizar as visualidades presentes nas máscaras, identi-
ficando aspectos que as caracterizam como artefatos demarcadores de
masculinidades e feminilidades. Por meio de uma pesquisa bibliográfica
13 
Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá – UEM.
Parte da comissão organizadora do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens
– ARTEI. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9337254115191656.
14 
Licenciada e laureada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá –
UEM. Cursa “Especialização em Arte e Educação Contemporânea” na Universidade
Federal do Tocantins – UFT. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0974002199620959.
47
João Paulo Baliscei (org.)

de caráter qualitativo, pautada nos Estudos da Cultura Visual - ECV


e de Gênero, ressaltamos os impactos de uma cultura patriarcal, com
dualidades generificadas sobre as infâncias.
Com o surgimento da Covid-19 em dezembro de 2019, e com o
anúncio de uma Pandemia, feito pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), o surto de Coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19,
ocasionou milhares de mortes em nível nacional e mundial. Até o atual
momento, com um ano e seis meses de pandemia, foram computadas
569,788 mil vítimas fatais só no Brasil, o que, dentre outras coisas,
acarretou no distanciamento social como principal método de prevenção
(AQUINO, et al. 2021). A partir de março de 2020 nossos hábitos diá-
rios foram modificados com mais intensidade e, desde então, o mundo
inteiro passou a adotar medidas de proteção obrigatórias como o uso
de máscaras, álcool em gel e o distanciamento social. Já se passou mais
de um ano do início da pandemia, e até o presente momento, ainda nos
apresentamos de forma diferente ao sair de casa, e a máscara passou a
ser componente indispensável e obrigatório15 para todos/as.
Sendo assim, a máscara, equipamento de proteção individual (EPI),
passou a ocupar outros espaços. Antes da pandemia, ela era comumente
relacionada apenas às áreas da saúde e beleza, agora, expandiu-se ao uso
domiciliar e cotidiano, tornando-se dispositivo indispensável à toda
população mundial. Após o início da pandemia houve uma grande oferta
de máscaras como produto de comercialização, sobretudo quando nos
referimos às máscaras de tecido, que são as escolhidas e adotadas pela
maioria das pessoas16 aqui no Brasil. Com a grande demanda devido à
expansão do consumo destas máscaras, cresceu também a variedade deste
15 
A Lei nº 14.019/2020 dispõe sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção
individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis à população, em
vias de circulação e em transportes coletivos, sobre a adoção de medidas de assepsia
de locais de acesso à população, durante a vigência das medidas para enfrentamento
da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia
da Covid-19.
16 
Apesar da grande utilização das máscaras de tecido pela população no início da
pandemia em virtude da grande demanda de outros modelos (inicialmente restritos
aos/às profissionais da área da saúde), estudos recentes recomendam a utilização de
máscaras tipo (PFF2), pois estas possuem maior poder de filtração contra o vírus.
48
É de menina ou menino?

produto, que pode ser encontrado em diversos modelos, tamanhos, cores


e estampas, fabricadas tanto por grandes empresas como por pequenos/
as empreendedores/as.
Desta forma, organizamos este capítulo, em dois momentos para
além desta introdução e das considerações finais. Em um primeiro
momento levantamos dados que nos respaldam ao problematizar as
visualidades presentes no uso de máscaras, questionando possíveis mar-
cadores de gênero, como por exemplo, cores, personagens, modelos e
estampas que reforçam as distinções entre comportamentos taxados como
exclusivos de meninos ou meninas, homens ou mulheres, acentuando
determinados padrões, ações e discursos a respeito das feminilidades e
masculinidades que culturalmente vêm sendo estabelecidas.
No segundo momento, que antecede nossas considerações finais,
apresentamos imagens que reforçam e dão vazão para a problemática
aqui proposta, argumentando que os indivíduos, desde suas infâncias,
têm seus corpos demarcados por identidades fabricadas visualmente,
estigmatizando-as a partir do feminino e masculino, mesmo que por
meio do uso de artefatos, como os que aqui problematizamos: as máscaras.
Perante o exposto, estas reflexões, apontam para um olhar crítico
diante das visualidades que compõem os artefatos da cultura visual
contemporânea. Por mais sutis que eles sejam, acompanham-nos em
nosso dia a dia, produzindo identidades que reforçam (ou não) modelos
restritos de feminilidades e masculinidades. Intentamos assim, apontar
as visualidades presentes nas máscaras, como exemplo de imagens que
precisam ser repensadas na contemporaneidade, relacionando-as com as
identidades de gênero que produzem, a quem são endereçadas e a quais
comportamentos e padrões elas reforçam e estabelecem.

“PAÍS DE MARICAS”: mASCULINIDADE FRÁGIL E O USO DE MÁSCARAS

Neste primeiro momento, ao problematizar o uso de máscaras,


realizamos um levantamento bibliográfico de materiais publicados até
agora. Pedro Kascher Silva, Camilla Costa Ribeiro e Marta Cristina
Duarte (2021) levantaram dados a partir de um questionário online

49
João Paulo Baliscei (org.)

disponibilizado nas redes sociais, entre os meses de agosto e setembro


de 2021, direcionado a indivíduos residentes na cidade de Juiz de Fora,
MG, e maiores de 18 anos de idade. Esses dados, junto aos ECV e
de Gênero, nos auxiliam a apontar para pensamentos e visualidades
que fazem alusão às identidades tidas como femininas e masculinas.
Possibilitam inclusive a identificação de marcadores de gênero que, de
formas tóxicas e sexistas, perpassam pensamentos e comportamentos
tidos como “naturais” e culturais em pleno século XXI, inclusive aos
relacionados à proteção individual.
De acordo com a pesquisa, os principais motivos que os/as entre-
vistados/as apontaram para justificar o não uso de máscara foi: por achar
incômodo (17,04%), por não acreditar na efetiva proteção das másca-
ras contra o Covid-19 (4,6%) e por achar feio (1,1%). Silva, Ribeiro e
Duarte (2021), ao comparar variáveis relacionadas ao uso de máscaras,
apontam para uma maior exposição de homens sem o uso de máscaras
em possíveis situações de contágio (9,76%), enquanto para as mulheres
entrevistadas, esses dados são de (4,4%). O autor e as autoras destacam que
outras pesquisas também indicam que o uso de máscaras pelos homens
é menos recorrente do que pelas mulheres. Nelas as justificativas são
de que os homens não “acham legal”, têm vergonha e até consideram o
uso de máscara como sinal de fraqueza. A pesquisa também apresenta
outro fator relevante: o de que os homens são mais negligentes com a
própria saúde.
As inferências de Silva, Ribeiro e Duarte (2021) aproximam-se
das reflexões apontadas pelos ECV, como destaca João Paulo Baliscei
(2020) que, a partir desse aporte teórico, identifica socialmente carac-
terísticas típicas de uma sociedade machista e heteronormativa. Baliscei
(2020, p. 16) destaca, por exemplo, algumas das características cobradas
socialmente como as que estabelecem
[...] que homens não choram; que homens não falam
fino e nem desmedidamente; que homens não sentem
(ou ao menos não demonstram) dor, medo e saudade;
que homens têm métodos específicos de andar, sentar e
cumprimentar; que homens não põem a mão na cintura,

50
É de menina ou menino?

não mexem o quadril, nem consideram outro homem


bonito e atraente.
Ao refletir e levantar dados sobre a violência que essas caracte-
rísticas machistas podem acarretar para sociedade, o autor considera
que esses comportamentos socialmente aceitos e atribuídos aos homens
podem acarretar consequências negativas como o consumo excessivo do
álcool, o uso agressivo da força, a velocidade em meios de transportes, o
estímulo à competição e, inclusive, o apagamento do sentimento de medo.
Atitudes que se ampliam ao menor sinal de ameaça ou em situações que
questionam tais masculinidades, apontando-as como “frágeis”. Desse
modo, estes comportamentos se tornam nocivos a quaisquer pessoas que
ofereçam ameaças à “normalidade” machista hegemônica e heterossexual.
Notícias de homens que se recusam a utilizar máscaras têm se
tornado cada vez mais frequentes no Brasil e também no mundo, desde o
início da pandemia. Dentre tantos destacamos o caso de uma funcionária
de uma padaria em Palmares Paulista, São Paulo (G1, 2021), que teve
o braço quebrado por um cliente que adentrou o estabelecimento com a
máscara na altura do queixo. Quando ele foi advertido pela funcionária
quanto à necessidade de utilizar a máscara da forma correta, revoltou-
-se e a agrediu fisicamente. A vítima foi encaminhada ao hospital com
hematomas e fratura em um dos braços. O homem foi encaminhado à
delegacia e liberado logo depois.
Outro exemplo que vai ao encontro daquilo que apontam Silva,
Ribeiro e Duarte (2021) e Baliscei (2021) é o comportamento do atual
presidente da república Jair Messias Bolsonaro (1955--) que, desde o início
da pandemia, demonstra-se relutante a adotar medidas de proteção como
distanciamento social, o lockdown e principalmente o uso de máscaras.
Ele se apresentou sem o equipamento de proteção individual em várias
ocasiões ao se expor publicamente e promoveu aglomerações, como as
motociatas realizadas em diversas regiões do país. Recentemente, Bol-
sonaro voltou a defender a desobrigatoriedade (ESTADÃO, 2021a) do
uso de máscaras pelos/as brasileiros/as e solicitou ao ministro da saúde,
Marcelo Quiroga (1931), um estudo sobre a dispensação do uso de más-
caras por pessoas que já foram vacinadas ou infectadas (ESTADÃO,
51
João Paulo Baliscei (org.)

2021b), o que contraria as recomendações da Organização Mundial da


Saúde – OMS e também muitas pesquisas científicas.
Assim como no título deste tópico o uso do termo “maricas”,
guarda relação com as inferências apontadas por Baliscei (2020, p.
107) ao descrever os termos “mocinha”, “mulherzinha” e “mariquinha”
como sendo provocações e ataques homofóbicos utilizados para insultar
os sujeitos masculinos. O autor destaca existir uma condição imposta
socialmente de “insubordinação” comum aos sujeitos masculinos que
se afastam de ideais hegemônicos, sendo esta condição tanto para os
homens não heterossexuais, como para os que são mas, mesmo assim, não
se identificam com as características indicadas socialmente com sendo
“masculinas”. Baliscei (2020, p. 107) completa inferindo ser necessário
um “[...] olhar para a homofobia como uma violência que não atinge
apenas os homens e mulheres homossexuais”.
Ao analisarmos os dados e reflexões relatados acima, consideramos
que o uso de um simples equipamento de proteção pode se tornar mais um
artifício para a divisão de gênero e para reforçar determinados padrões de
masculinidades e feminilidades, concordando com Luciana Borre (2010.
p. 60) quando aponta que “gênero é uma identidade fabricada, produzida
ao longo da vida por diversas pedagogias culturais, pois se aprende a viver
como homem e como mulher''. Assim sendo, consideramos relevante
apresentar imagens que, desde a infância, como indica a Figura 1 que
abre este capítulo, contribuem culturalmente para reforçar e dar vazão
a demarcadores de identidades que são fabricados socialmente e que
estigmatizam os corpos a partir do feminino e masculino.

MÁSCARA DE MENINO E MÁSCARA DE MENINA! REFLEXOS DA


IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO NOS CORPOS INFANTIS

Quando fazemos referência às crianças e ao uso de máscaras,


consideramos as recomendações da médica Alessandra Marins Pala à
Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), ao recomendar que crianças com
menos de dois anos não podem utilizar o equipamento de proteção pois
pode lhes ocasionar sufocamento. Para as demais crianças, assim como

52
É de menina ou menino?

para os/as adultos/as, há uma grande variedade de modelos, estampas e


tamanhos de máscaras. No que diz respeito às máscaras endereçadas às
crianças é possível notar uma gama de produtos coloridos, que fazem
referência a personagens de desenhos e filmes infantis.

Figura 2: Máscaras de tecido endereçadas aos meninos e meninas


Fonte: Google.com. A partir do termo de busca “máscaras para meninos” e “máscara
para meninas”, respectivamente. Acesso em: 29 jun. 2021.

A partir do termo “máscaras para meninas” e “máscaras para


meninos” no navegador de pesquisa do Google, localizamos as imagens
apresentadas na figura 2. Na imagem à esquerda, observamos a pre-
sença de personagens que são considerados socialmente endereçados aos
meninos, segundo resposta do navegador do Google. São eles: o Homem
de Ferro, Capitão América, Homem Aranha e o Ben 10. Além desses,
encontramos uma estampa de dinossauro, brinquedo considerado típico
“de meninos”, um pirata destemido e o personagem de desenho animado
Mickey. Notamos ainda certa predominância das cores verde, azul, ama-
relo, vermelho e preto. Nesta imagem em específico observamos que
o formato das máscaras endereçadas aos meninos é mais geométrico,
com linhas retas e firmes.
As máscaras encontradas pela busca de “máscaras para meninas”,
conforme a imagem localizada à direita da Figura 2, indicam a presença
de personagens de desenhos e filmes infantis endereçadas às meninas,
sendo elas, a Mulher Maravilha, Patrulha Canina, Peppa Pig e Minnie.
Diferentemente das máscaras “de meninos”, as “de meninas” apresentam
predominância da cor rosa, e de tons pastel, estampas mais delicadas,
53
João Paulo Baliscei (org.)

com arco-íris, nuvens, bolinhas, flores, laços, sapatos de salto, ursos


pandas e unicórnios. Além de apresentar um formato mais “delicado”
com formas arredondadas e linhas curvas e fluidas.
Frisamos ainda, que, ao procurarmos por máscaras infantis em
lojas físicas de roupas e brinquedos, a primeira pergunta que recebe-
mos por parte de quem nos atendeu foi: “de menino” ou “de menina"?
Posteriormente às respostas que demos, percebemos que as visualidades
apresentadas pelos/as vendedores/vendedoras envolveram as cores e
personagens semelhantes aos das imagens que aqui apresentamos.
Vale ressaltar, que as máscaras também compõem e adentram
os espaços formais e não formais de ensino, como escolas, creches e
Centros de Educação Infantil - CMEIs. Desta forma destacamos que:
As imagens que os estudantes trazem para a sala de aula
ilustram e promovem, certa “precisão”, os gostos, os
desejos e os comportamentos aceitos para cada gênero.
As crianças, através de suas preferências por determi-
nados brinquedos, personagens e materiais escolares,
demonstram que vivenciam diversas experiências visuais
que delimitam o que meninos e meninas podem fazer
pensar e desejar (BORRE, 2010. p. 70).

Como a autora destaca, assim como os inúmeros artefatos que já


adentram o universo infantil e sobretudo os espaços escolares - como
livros, cadernos, estojos, roupas, bolsas, brinquedos, sapatos, dentre
outros - acrescentamos, mais recentemente, as máscaras. Acreditamos
que, diante do atual contexto, esses artefatos da cultura visual permane-
cerão fazendo parte da rotina das crianças por algum tempo, visto que
as vacinas têm sido aplicadas por faixas etárias, e, no Brasil, este grupo
ainda não tem previsão de vacinação. É importante destacar que mesmo
após tomar as duas doses da vacina, ou a dose única ainda é necessário
o uso da máscara e das demais medidas de prevenção.
Dessa forma, o papel de profissionais da educação, conforme
teóricos/as que se debruçam sobre os ECV, não é o de evitar ou proibir
o uso de artefatos promovidos e padronizados culturalmente, como as
cores e personagens presentes nas imagens aqui apresentadas, mas sim,

54
É de menina ou menino?

como defende Baliscei (2020, p. 54) “Ao invés disso, incentivam-se que
as imagens da cultura visual – que há tantos anos vêm sendo evitadas
pelos/as profissionais, currículo e espaços escolares – sejam inseridas e
debatidas nas discussões educativas.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perante o exposto, estas reflexões apontam para um olhar crítico


diante das visualidades que compõem os artefatos da cultura visual na
contemporaneidade, inclusive as endereçadas às crianças. As caracte-
rísticas atribuídas culturalmente sobre os artefatos, considerando-os
como sendo “de menino” ou “de menina” são passíveis de reflexões
e transformações por meio de uma análise crítica e transformadora.
Neste ponto, os ECV e os Estudos de Gênero contribuem fortemente
para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e humanitária,
que não subvaloriza a disputa de poder em detrimento às identidades
dos indivíduos.
Contudo, as reflexões até aqui elencadas, apesar de identificarem
que na contemporaneidade também existem e persistem o uso e a prá-
tica de pensamentos e ações que caracterizam e delimitam identidades
de gênero, também revelam a sensibilidade que os ECV têm tido em
abordar esse tema e em contribuir consideravelmente para diferentes
construções de significados. Chamamos atenção para os discursos que
permeiam o simples ato de utilizar um item de proteção individual, e
como as visualidades das máscaras contribuem para a manutenção de
masculinidades e feminilidades hegemônicas. Por fim, ressaltamos a
importância de olhar, por meio de outras lentes, determinados comporta-
mentos e ações que ainda estão enraizados, naturalizados e reproduzidos
de forma “automática” em nosso dia a dia, inclusive nos espaços escolares.

REFERÊNCIAS

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máscaras em crianças. Portal FioCruz. Rio de Janeiro, 09 set. 2020. Disponível em:
https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-especialista-do-iff/fiocruz-orienta-sobre-o-
uso-de-mascaras-em-criancas. Acesso em: 29 jun. 2021.

55
João Paulo Baliscei (org.)

AQUINO. Estela Maria Leão de et al. Medidas de distanciamento social no controle


da pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde
Coletiva. Rio de Janeiro, 25 (Supl.1):2423-2446, 2020. Disponível em: https://www.
scielosp.org/article/csc/2020.v25suppl1/2423-2446/pt/. Acesso em 25 jun. 2021.

BALISCEI, João Paulo. Provoque: cultura visual, masculinidades e ensino de artes


visuais. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020.

BORRE, Luciana. As imagens que invadem as salas de aula: reflexões sobre a cultura
visual. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2010.

BRASIL. Lei Nº 14.019/2020 de 2 de Julho de 2020. Dispõe sobre a obrigatoriedade do uso


de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis
ao público. Brasília: Diário Oficial da União. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/
en/web/dou/-/lei-n-14.019-de-2-de-julho-de-2020-264918074. Acesso em: 24 jun. 2021.

DIOVANA, Michele. Kit 3 Mascaras 3d Infantil. Taquara, Rio Grande do Sul, 2021.
Disponível em/: https://www.elo7.com.br/kit-3-mascaras-3d-infantil/dp/12DCFAD.
Acesso em: 9 jul. 2021.

ESTADÃO. Bolsonaro volta a defender a desobrigatoriedade do uso de máscara no Brasil.


Nd+ Notícias. Santa Catarina, 11. jun. 2021a. Disponível em: https://ndmais.com.br/
saude/bolsonaro-volta-a-defender-desobrigatoriedade-do-uso- de-mascara-no-brasil/.
Acesso em: 29 jun. 2021.

ESTADÃO. Uso de máscara deve ser decisão de Estados e municípios, diz Bolsonaro.
Nd+ Notícias. Santa Catarina, 11 ago. 2020b. Disponível em: https://ndmais.com.br/
saude/estados-e-municipios-devem-decidir-sobre-uso-de- mascara-diz-bolsonaro/.
Acesso em: 30 ago. 2021.

HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: transformando fragmentos


em nova narrativa educacional. Porto Alegre: Mediação, 2007.

SILVA, Pedro Kascher; RIBEIRO, Camilla Costa; DUARTE, Marta Cristina. Avaliação
do uso de máscaras de acordo com sexo, idade e situação laboral durante a pandemia de
COVID-19. Revista: Brazilian Journal of Health Review. Curitiba, v.4, n.1, p.465- 474
jan./feb. 2021. Disponível em: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BJHR/
article/view/22735/18221. Acesso em: 29 jun. 2021.

TV TEM. Funcionária de padaria tem braço quebrado por cliente após pedir para homem
usar máscara contra a Covid. São José do Rio Preto, 14 ago. 2021. G1 Globo. Disponível
em: https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto- aracatuba/noticia/2021/06/14/funcio-
naria-de-padaria-e-agredida-apos-pedir-para- cliente-usar-mascara-contra-a-covid-19.
ghtml. Acesso em: 30 ago.2021.

56
É de menina ou menino?

Figura 1: Menino e menina brincando de boneca.


Fonte: <https://gq.globo.com/Paternidade/noticia/2019/05/meninos-podem-e-devem-
-brincar-de- boneca-se-eles-quiserem.html>. Acesso em 6 de set. de 2021.

“BONECA É COISA DE MENINA”:


A VIRILIZAÇÃO E A DOCILIZAÇÃO DE MENINOS
E DE MENINAS NO MUNDO DE DOIS SEXOS
Andréa Zíngara Miranda17

INTRODUÇÃO

A imagem de abertura deste capítulo é uma foto-divulgação que


ilustra a notícia intitulada Meninos podem (e devem) brincar de bonecas
se eles quiserem, veiculada pela revista digital GQ em maio de 2019. A
imagem poderia ser apenas uma fotografia realizada em um dia qualquer,
com crianças que se inserem nas atividades banais da casa onde vivem, e
brincam despreocupadamente, não é mesmo? A resposta a essa questão
seria muito óbvia, caso se compreendesse que toda e qualquer criança em
fase de desenvolvimento busca interação com tudo aquilo que a cerca,
sem ao menos suspeitar de que os objetos com os quais ela interage, se

Doutora em Letras pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de


17 

Maringá-UEM. Professora na Rede Pública de Ensino. Membra do Grupo de Estudos


Foucaultianos da UEM – GEF. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0907423423858609.
57
João Paulo Baliscei (org.)

identifica ou que ela refuta, marcariam para sempre sua sexualidade,


podendo, inclusive “manchar” a honra de seu sexo.
Consoante às percepções de Baliscei e Cunha (2021) quando
sugerem haver “projetos de masculinização dos meninos”, propõe-se,
aqui, problematizar os efeitos de evidência de uma cultura visual hete-
rocêntrica, cuja base se solidifica ora na docilização ora na virilização18
dos sujeitos meninos e meninas, desde seu nascimento. Para isso, esco-
lheu-se, para esta discussão, uma série enunciativa composta por duas
imagens que, juntas, formam um discurso emblemático da materialização
de um mundo de dois sexos, a saber: Figura 1) imagem composta por
um menino e uma menina brincando de boneca (GQ , 2019); e Figura
2) imagem de uma bebê recém-nascida com um brinco que atua como
uma espécie de identificador de seu sexo (Reportagem UOL, 2017).

Figura 2: Bebê recém-nascida, portando brinco.


Fonte: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2017/12/28/o-que-voce-
-precisa-saber- antes-de-furar-a-orelha-de-um-recem-nascido.htm>. Acesso em: 06
de set. 2021.

As noções de docilização e de virilização serão explicadas em momento oportuno,


18 

mais à frente.
58
É de menina ou menino?

Buscou-se, para isso, analisar o funcionamento do dispositivo da


sexualidade na e para a instituição de saberes que possibilitam o estabe-
lecimento e a naturalização de verdades concernentes à sexualidade de
meninas e de meninos. Desse objetivo mais geral, desdobram-se dois
questionamentos mais específicos: i) entender como o dispositivo da
sexualidade promove saberes sobre o sexo e a sexualidade dos sujeitos;
ii) compreender como os acontecimentos históricos atravessam a prática
discursiva social e instauram uma hierarquia entre os sexos, naturali-
zando discursos que ora docilizam e ora virilizam o menino e a menina.
Articularam-se, aqui, conceitos como os elaborados por Michel Fou-
cault (1985, 2009, 2020), cujos contributos possibilitaram uma análise
arqueogenealógica, isto é, uma análise que prioriza o imbricamento entre
a descrição dos enunciados e a análise das estratégias de poder neles
circunscritas, portanto, arqueológica e genealógica respectivamente.

A CONSTRUÇÃO DO MUNDO DE DOIS SEXOS

O sintagma provocativo “As confissões da carne”, que dá nome


ao último volume da História da Sexualidade (2020), dá continuidade à
investigação histórica sobre o cuidado de si mesmo e a consequente con-
dução das condutas, discutidos sobremaneira por Foucault nos volumes
I, II e III, aos quais se está, de certa forma, habituada ou habituado a
encontrar em pesquisas científicas. Entretanto, com a publicação póstuma,
em 2018, na França, do volume IV dessa densa e complexa pesquisa,
intensifica-se a problematização dos aphrodisia. É na terceira parte da
referida obra, intitulada Ser casado, que se percebe uma atualização das
já conhecidas técnicas estratégicas da arte cristã de governar. Tendo
como cenário o matrimônio, a submissão da mulher ao homem e todas
as consequências disso um tanto naturalizadas, encontram-se nessa
terceira parte sinais da proveniência de um machismo bem alicerçado
e cristalizado no Ocidente.
Se por um lado, o homem pode ser considerado “vilão” e “domi-
nador” do “sexo frágil”, por outro lado, houve tempos em que a mulher
foi considerada causa de todos os males. Somente no deserto os homens

59
João Paulo Baliscei (org.)

estariam a salvo das tentações e, especialmente, das mulheres, suge-


ria Santo Agostinho (CATTONÉ, 1994). Essa imagem ameaçadora,
concebida pelo cristianismo primitivo, sobrevive durante toda a Idade
Média, passando pelo Renascimento, indo até o século XVII. O cris-
tianismo, maior responsável pela construção da concepção da mulher
maléfica, instituiu uma relação entre a feminilidade, o sexo e o mal.
Nessa perspectiva, a mulher era traiçoeira, pois lançava os homens uns
contra os outros, semeando luxúria e ciúmes e, a partir da crença de seu
surgimento da “costela de Adão”, “[...] a mulher passa a corporificar a
corrupção material associada à carne” (NUNES, 2000, p. 22).
Concebida, então, como filha e herdeira de Eva, cria-se que ela era
inerentemente inferior, não apenas fonte do pecado original, mas também
um instrumento do diabo por ter sucumbido à tentação. Conforme Nunes
(2000), o clero, mesmo devendo pensar a humanidade, a sociedade e a
Igreja, incluindo aí orientações no plano da salvação, distanciava-se das
mulheres, enclausurado que estava no universo masculino em prol do
celibato e, portanto, de uma vida imaculada. Distanciava-se, enfim, da
portadora do mal e da morte, tendo como única imagem salvadora a da
Virgem Mãe, esta, inacessível às “Evas mortais”. O que se tinha até aí
era uma inferioridade contra a qual era inútil lutar, visto que a mulher
era tida como naturalmente inferior ao homem, já que somente graças
a ele, ela pôde vir a existir. Considerando essa perspectiva, identifica-se
aí sinais sólidos de fabricação de sujeitos segundo o modelo de mascu-
linidade heterossexual.
No âmbito da razão, há quem diga que a ciência e a filosofia, por
exemplo, não são compatíveis às mulheres. Entretanto, Nunes (2000)
retoma dados de estudos como o do filósofo de La Barre que, ancorado em
preceitos cartesianos para os quais a razão independe do corpo, postulava
a possibilidade de igualdade, ao menos intelectual, entre os dois sexos.
Para ele, a vocação das mulheres à maternidade é uma superioridade
moral, pois do contrário, não se lhe atribuiria uma responsabilidade tão
grande como a maternidade a um ser tão desqualificado. Foi preciso
muito tempo, todavia, para que a imagem diabólica da mulher come-
çasse a mudar. Com a chegada do século XVIII, transformam-na em
60
É de menina ou menino?

um ser sensato e indulgente. Finalmente, Eva, sem espaço para sê-lo,


dá lugar à Maria.
O novo perfil feminino, surpresa nenhuma, traz em seu bojo
mudanças na forma de pensar o perfil masculino. A mulher maléfica e
pecadora é disciplinada e as diferenças entre homens e mulheres passam,
assim, a ser vinculadas à diferença sexual, diferentemente do que se
fazia em períodos anteriores ao século XVIII. O segundo sexo, de que
falava Beauvoir (1986), parece ser fruto de um período bem anterior à
sua existência, período em que a mulher é percebida como um homem
incompleto, pensamento que dominou o Ocidente da Antiguidade
tardia à Renascença. A teoria dos humores de Aristóteles e de Galeno
e a descrição judaico- cristã formam dois sistemas que alicerçam tal
pensamento.
Na passagem a seguir, descrita por Foucault (1985) quando de
sua interpretação das análises de Galeno a propósito dos aphrodisia no
tratado Do uso das partes, compreende-se a teoria dos humores relacio-
nada à diferença sexual:
[...] para ele como para toda uma tradição filosófica,
é na falta de eternidade que se enraíza a necessidade
da separação dos sexos, a intensidade de sua atração
recíproca e a possibilidade da geração. [...] ‘vire para
fora as partes da mulher, vire e volte para dentro as do
homem, e encontrareis a ambas muito semelhantes’.
Ele supõe a emissão de esperma da mulher como no
homem, a diferença consistindo em que a elaboração
desse humor é menos perfeita e menos completa na
mulher: o que explica seu papel menor na formação do
embrião. (FOUCAULT, 1985, p. 110-112).

As análises de Galeno se inserem na temática antiga das relações


entre morte, imortalidade e reprodução. A questão da extensão do cará-
ter sexual para além da reprodução ficou fadada a um longo silêncio,
do século XVII ao início do século XVIII, por parte de filósofos e de
anatomistas, quando finalmente o silêncio rompido deu lugar a ques-
tionamentos, o que resultou em uma nova forma de pensar a diferença

61
João Paulo Baliscei (org.)

sexual. Nessa nova forma, tal diferença é considerada determinante do


caráter de homens e de mulheres.
O período da Renascença, citado há pouco, é marcado pela escrita
de vários textos nos quais se sublinham o masculino ao confrontar “[...]
a masculinidade à questão da impotência como à percepção do poder e
o lugar das mulheres na sociedade” (KRITZMAN, 2013, p. 217). Ao
transpor a formulação de Beauvoir para quem não se nasce, mas torna-
-se homem ou mulher, Kritzman (2013) enfatiza que a virilidade não
é um efeito comandado pelo corpo, mas é uma construção social e um
fenômeno psicológico, os quais dão acesso à virilidade. Mas, perguntará
a/o leitor/a, o que isso tem a ver com a virilização e a docilização de
meninos e de meninas? É com intuito de compreender como os acon-
tecimentos históricos atravessam a prática discursiva social e instauram,
por conseguinte, a hierarquia entre os sexos, que se responderá a essa
questão na próxima seção.

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA HIERARQUIA ENTRE OS SEXOS

Para discutir sobre a construção histórica da hierarquia entre os


sexos, é preciso, primeiramente, deixar evidente o que se pretende dizer
quando se reporta às noções de docilização e de virilização. Em uma
perspectiva foucaultiana, docilizar significa tornar o indivíduo dócil,
domesticado, isto é, tornar o indivíduo disciplinado; virilizar o homem
ou a mulher, por sua vez, significa, aqui, torná-la e torná-lo conforme
o modelo de masculinidade heterossexual. Fazer alusão a essas duas
noções significa entender que tanto o menino quanto a menina são,
ambos, vítimas de construções sociais que o e a fabricam a partir de
uma visão heterossexual compulsória. Sob esse mirante, meninos e
meninas são, desde muito cedo, disciplinados para se comportarem
de tal ou tal maneira segundo o seu sexo. Pode- se buscar em vários
momentos da história a edificação da hierarquia entre os sexos, mas basta
recuar ao século XVIII, com a importante figura do filósofo das Luzes,
Jean- Jacques Rousseau, para quem meninas e meninos devem ter seus
papéis sociais cuidadosamente definidos. Contrariando sua proposta de

62
É de menina ou menino?

igualdade universal, Rousseau negou às mulheres o estatuto de cidadã,


mas não deixava de valorizá-las ao atribuir-lhes a perfeição. Perfeição,
porém, quanto às suas características morais e biológicas condizentes
com as funções maternas e com a vida doméstica, sob o argumento de
que isso não era uma imposição social, mas um desígnio da natureza,
ideais eternizados em Emilio, quando esse pensador apregoava que “Sem
mãe, não há filho”. (ROUSSEAU, 1995, p. 22). O pai é dispensável,
caso se desconsidere esse determinismo biológico? A essa pergunta, o
próprio filósofo respondeu: “Se as mulheres voltarem a ser mães, logo
os homens voltarão a ser pais e maridos” (ROUSSEAU, 1995, p. 21).
Se a natureza, esse princípio normativo, advoga que cada sexo tem
sua especificidade e seu lugar no mundo, como preconizava o “grande” filó-
sofo Rousseau, e se, a dependência do sexo frágil em relação ao seu oposto
é condição natural, por que esse mesmo filósofo fez prescrições severas no
tocante à educação da menina? Ele sugeriu, por exemplo, disciplinar seu
corpo, seus sentimentos e seus desejos para que seu caráter dócil, passivo
e subserviente estivesse a salvo, como se pode observar nesta passagem:
Justificai sempre os trabalhos que impondes às meninas,
mas não deixeis de impô-los. O ócio e a indocilidade
são os dois defeitos mais perigosos para elas, e os de
cura mais difícil uma vez que os tenham adquirido. As
meninas devem ser vigilantes e laboriosas; não é só isso:
elas devem ser incomodadas cedo. Essa infelicidade, se
é que se tratade uma infelicidade, é inseparável de seu
sexo, e nunca se livrarão dela, a não ser para sofrer
outras muito mais cruéis. Devemos treiná-las primeiro
para as coisas obrigatórias, para que nunca lhes custem;
devemos ensiná-las a domar todas as suas fantasias,
para submetê- las às vontades de outrem. Nas nossas
loucas instituições, a vida da mulher de bem é uma
luta perpétua contra si mesma, e é justo que a mulher
compartilhe o sofrimento pelos males que nos causou
(ROUSSEAU, 1995, p. 509).

Os meninos também não teriam escapado à “rigidez” rousseau-


niana. Quando de sua extensa descrição a propósito da escolha de uma

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João Paulo Baliscei (org.)

profissão para Emílio, sob a justificativa de que o trabalho é um dever


indispensável ao homem social, afirmou:
Daí ao homem um ofício que convenha a seu sexo e ao
jovem um ofício que convenha à sua idade; toda profissão
sedentária e caseira,que efemina e amolece o corpo não
lhe agrada nem lhe convém. Nunca um jovem rapaz
aspirou a ser alfaiate; é preciso ter arte para levar a esse
ofício de mulheres o sexo para o qual ele não foi feito.
A agulha e a espada não poderiam ser manejadas pelas
mesmas mãos.Se eu fosse rei, só permitiria a costura e
os ofícios de agulha às mulheres e aos coxos reduzidos
a trabalhar como elas. Todo homem fraco, delicado,
temeroso, é condenado por ela à vida sedentária; é feito
para viver com as mulheres ou à maneira delas. Que
exerça alguma profissão que lhes seja própria, muito
bem; e, se foremabsolutamente necessários verdadeiros
eunucos, que se reduzam a tal estado os homens que
desonram seu sexo exercendo empregos que não lhes
convêm. Sua escolha anuncia o erro da natureza; corrigi
tal erro de uma maneira ou de outra, e só tereis feito o
bem. Proíbo aomeu aluno os ofícios insalubres, mas não
os ofícios penosos, nem mesmo os ofícios perigosos.
Eles exercitam ao mesmo tempo a forçae a coragem; são
próprios unicamente para os homens; (ROUSSEAU,
1995, p. 256-257).

Ao se considerar os papéis definidos a um e a outra, tal qual descrito


por Rousseau (1995), compreende-se, desde logo, que um menino não
só não pode, como não deve manusear bonecas, pois isso desonra seu
sexo, uma vez que efemina e amolece seu corpo. Tal escolha anunciaria
o erro da natureza. De qualquer modo seria um ledo engano e uma inge-
nuidade imputar ao filósofo a construção da hierarquia entre meninos e
meninas ou homens e mulheres, na qual as leis da complementaridade,
da essência e, por consequência, do determinismo biológico, criariam
a fatal incompatibilidade, seja física, moral ou intelectual. Reportando
a Foucault (2009), para quem os discursos não se formam no fundo
confuso das ideias, mas, ao contrário, sua emergência é possibilitada
por outros enunciados que tratam do mesmo objeto, ainda que disper-
sos, compreende-se que é justamente nessa dispersão, no tempo e no

64
É de menina ou menino?

espaço, que se buscam a “ruptura acontecimental”; os estilhaços da(s)


história(s), enfim, para fazer aparecer certa regularidade a partir da qual
se configura um acontecimento discursivo, isto é, certa evidência de uma
cultura visual heterocêntrica, cuja base se solidifica ora na docilização,
ora na virilização dos sujeitos meninos e meninas.
A partir do conceito de contrassexualidade, Preciado (2014)
propõe justamente ultrapassar a ideia de gênero e de sexo diferenciados
por visões essencialistas e biológicas pautadas na heteronormatividade
e no binarismo “construção social e natureza”. A proposta contrassexual
convida a deslocar os referidos conceitos e entendê-los como sistemas
tecnológicos mais amplos. Embora suas reflexões estejam em consonân-
cia com as teorias do dispositivo da sexualidade tratadas por Foucault
e com as identidades performativas discutidas por Butler 2012), tendo
com a última um diálogo teórico mais consistente, Preciado (2014)
prefere apostar no gênero como algo prostético e que só se daria na
materialidade dos corpos. Ao se deparar com os enunciados-imagens
das Figuras 1 e 2, muito provavelmente a menina com brinco não causa
estranhamento. Pelo contrário, ratifica a imagem que se espera de uma
menina recém-nascida. O primeiro brinco é parte indispensável de tudo
o que é pensado como sendo essencial a uma criança identificada como
possuidora do sexo feminino. Normalmente uma criança, ao nascer, tem
poucos cabelos e seus traços físicos nem sempre estão bem definidos a
ponto de se estabelecer, e isso é uma necessidade social, uma “identidade
de gênero” ao novo membro ou membra da família. Assim, o brinco
é, em muitas sociedades, mas principalmente no Brasil, o símbolo, por
excelência, da feminilidade.
Já a primeira Figura não só causa estranhamento, como gera
intrigas familiares com relação à conduta da mãe que permite que
seu filho, menino, brinque com um boneco ou boneca. Diz-se “mãe”
porque normalmente a figura paterna fica isenta dessas tarefas, isto é, o
pai não é convocado pela sociedade para os cuidados diários da criança
sob justificativa de que passa mais tempo fora de casa que a mãe ou de
que homem não “leva jeito” com infantes. Hoje, sabe-se que homens
e mulheres trabalham e passam igualmente um tempo relativo fora de
65
João Paulo Baliscei (org.)

casa, mas ainda assim, principalmente quando se trata de crianças muito


pequenas, os cuidados são deixados a cargo da mãe. O menino que vê
no boneco ou boneca apenas um brinquedo e, muitas vezes, imita o que
outras crianças ou adultos/as fazem, pode estar “manchando” a honra
de seu sexo. Advindo de uma concepção equivocada de sexo, o discurso
heteronormativo naturaliza as categorias de masculino e de feminino,
ancorado em um determinismo biológico, como critica Butler (2012),
confundindo sexo e sexualidade. Com isso, exclui-se a possibilidade de
o menino também aprender a lidar com um ou uma bebê para quando
for solicitado a fazê-lo.
Voltando ao campo do sexo, uma das metas da educação das jovens
no século XIX era evitar o desenvolvimento inadequado de um apetite
sexual. Em lugar do instinto sexual, busca-se produzir o instinto materno.
Para tanto, recomenda-se para a adolescente a criação de um animal,
como um gato, por exemplo. Quando mais velha, pode participar da
educação de uma criança. Nunes (2000) explica que a boneca, como um
brinquedo, chega com força total no século XIX e foi considerada pelo
filósofo Michelet uma maneira de aprender a ser mãe e um instrumento
capaz de desenvolver a habilidade de amar.

É DE MENINO OU DE MENINA?

Embora estudos sobre as diferenças sexuais tenham ganhado


força no século XIX, a ideia de uma diferença de essência permanece
sobre bases indissolúveis. A mulher frágil, dócil e essencialmente passiva
preconizada pelo filósofo Rousseau caminha a passos firmes ao lado
daquela descrita pelos ideais cristãos, cuja organização física e moral,
dotada de um excesso sexual que deve ser controlado, são suas carac-
terísticas principais. Nesse século, anatomistas a classificavam como o
ser mais ínfimo na cadeia da evolução, ao lado das crianças e dos povos
primitivos. A ideia de que a mulher foi feita para ter filhos e criá-los
é reforçada, assim como se reforçou a lei da complementaridade entre
homens e mulheres. A figura, por excelência, da feminilidade do século
XX é, então, a bailarina: etérea, desencarnada, assexuada. Assim, nos

66
É de menina ou menino?

dias atuais ainda causa estranhamento visualizar meninos brincarem com


bonecas ou com outros brinquedos considerados objetos de meninas ou
visualizar meninas que não portem brincos ou que desejem jogar bola,
por exemplo.
A leitura dos enunciados-imagens (Figuras 1 e 2) autoriza entender
que os discursos por eles veiculados replicam a ideia de docilização e
de virilização de meninos e de meninas. Embora a legenda da Figura
1, cujo enunciado da manchete “Meninos podem (e devem) brincar de
boneca se eles quiserem” induza a leitora ou o leitor a pensarem que
a sociedade, finalmente, está liberta de pré-concebidos estabilizados
acerca do sexo e da sexualidade dos sujeitos, o próprio uso dos verbos
“podem” e “devem”, denunciam que, pelo menos em algum momento,
isso não era permitido. Ademais, na linha fina da referida notícia, há
explicação de um especialista afirmando que a brincadeira não trans-
forma ninguém em homossexual. Pelo contrário, a proibição, sim, pode
gerar não só curiosidade, mas frustração e, pior, insegurança. Com isso,
meninos e meninas submetem-se a discursos que ora os tornam dóceis,
disciplinados e ora os fabricam conforme um modelo de masculinidade
heterossexual. Perseguindo a ideia de que ambos estão imersos nesse
processo de docilização e de virilização compulsórias em momentos
distintos da história, pensa-se tratar de uma estruturação do disposi-
tivo da sexualidade que ajusta os efeitos de verdade aos acontecimentos
múltiplos e independentes.
Se a boneca chegou com força total no século XIX e tinha a capa-
cidade de desenvolver nas meninas competências ligadas à maternidade,
o menino, ao brincar de boneca desenvolve, igualmente, capacidades
afetivas para cuidar de crianças e pode, inclusive, tornar-se um ótimo
pai, explicou Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Trans-
disciplinar de Identidade de Gênero e Orientação sexual do Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
USP- AMTIGOS- IPq-HCFMUSP). Se enunciados como esses ainda
precisam ser ditos e escritos, significa que a necessidade de problematizar
o funcionamento do dispositivo da sexualidade na e para a instituição
de saberes que naturalizam verdades sobre os sujeitos, é urgente. Se
67
João Paulo Baliscei (org.)

meninas recém-nascidas são mutiladas para reafirmarem sua anatomia


e, com isso, estão fadadas à maternidade inerente, a problematização
ganha contornos ainda mais amplos. Enquanto se classificar pessoas pela
sua anatomia, desprezando sua sexualidade, a pergunta “é de menino
ou de menina?” permanecerá muito viva nas práticas discursivas sociais
que continuarão a fabricar sujeitos ora docilizados ora virilizados, mas
nunca compreendidos em sua essência.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Certo incômodo acerca dos efeitos de evidência de uma cultura


visual heterocêntrica, cuja base se solidifica ora na docilização ora na
virilização dos sujeitos meninos e meninas, desde seu nascimento, motivou
a realização desse texto. Esteve- se, ao longo da discussão, calcado em
duas grandes inquietações: a primeira delas tem relação à multiplicidade
de saberes sobre a sexualidade do menino e da menina cujos contornos
delineiam subjetividades e, por conseguinte, comportamentos para um e
para o outro; a segunda inquietação se deve ao fato de o referido processo
de docilização/virilização não ser problematizado como um construto
sócio-histórico, no qual meninos e meninas são submetidos a um jogo
e, nele, ambos estão em processos de perdas.
A discussão permitiu entender que os efeitos de verdade concer-
nentes à sexualidade dos sujeitos, só podem ser formulados graças a um
conjunto heterogêneo de discursos construídos socialmente. A discussão
permitiu, também, compreender que a hierarquia entre os sexos, assim
como os saberes sobre a sexualidade dos sujeitos, é construída social-
mente graças a saberes oriundos de discursos religiosos, discursos da
medicina, da antropologia, ou discursos do senso comum, entre outros.
Fruto de pensamentos biologicistas e de correntes sexistas, a hierarquia
entre os sexos prevalece nos dias atuais. Assim, verificou-se que não há
verdades a serem buscadas nas diferentes etapas constitutivas do saber.
Menino e menina são ora docilizados ora virilizados, segundo o saber
que se tem sobre eles em determinado momento. Disso decorre que não
deve existir a questão “é de menino ou de menina?” e, se a questão não

68
É de menina ou menino?

tem lugar, não deve haver divisão de brinquedos, de tarefas e nem deve
haver mutilações como forma de identificar sexo ou gênero.
Essa análise permite entender que a violência de gênero se inscreve
nos corpos dos infantes muito antes de eles ou elas terem tempo para
compreender sua própria existência ou até mesmo de se decidirem se
querem ou não perfurar ou mutilar seus corpos, como no caso do uso
compulsório do acessório auricular, ou se prefere boneco/as ou aviões,
enfim. A docilização e a virilização são, em última instância, resultado
da concepção equivocada de sexo e de sexualidade. Ao apreendê-los
com um dado material, como a verdade de si, acolhem como verdadeiro
aquilo que lhe atribuem como sendo natural de um e de outro sem
considerar a experiência particular de cada indivíduo que só é possível
pela sua sexualidade.

REFERÊNCIAS

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cultura visual e o projeto de masculinização dos meninos. Revista Textura, Canoas, v.
23, n. 54, p. 367-391, 2021. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/
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BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. 4. ed. Rio de Janeiro:
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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução


Renato Aguiar. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CATTONÉ, Jean-Philippe. A sexualidade, ontem e hoje. São Paulo: Cortez, 1994.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Tradução Maria


Thereza da Costa Albuquerque. Revisão José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de
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. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2009.

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69
João Paulo Baliscei (org.)

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Acesso em: 25 de jun de 2021.

KRITZMAN, Lawrence D. A virilidade e seus “outros”: a representação da masculi-


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Georges (Org.). História da virilidade 1: a invenção da virilidade da antiguidade às
luzes. Tradução Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 217-241.

NUNES, Sílvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: um estudo sobre
a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

PRADO, Carolina; GUIMARÃES, Gabriela. Mães e filhos [UOL]. O que você precisa
saber antes de furar a orelha de um recém-nascido. Disponível em: <https://www.uol.
com.br/universa/noticias/redacao/2017/12/28/o-que-voce-precisa- saber-antes-de-fu-
rar-a-orelha-de-um-recem-nascido.htm>. Acesso em 25 jun 2021.

PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual: Práticas subversivas de identidade


sexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou da Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira.


São Paulo: Martins Fontes, 1995.

70
É de menina ou menino?

Figura 1: Chá de revelação de sexo de bebê termina em incêndio florestal de uma


semana. Fonte: <https://www.hypeness.com.br/2018/11/cha-de-revelacao-de-sexo-de-
-bebe-termina-em-incendio-florestal-de-uma-semana/>. Acesso em 04 de out. de 2021.

ANUNCIAMOS,
SENHOR(A),
O VOSSO GÊNERO
Rodrigo Pedro Casteleira19

INTRODUÇÃO

Do alto de um caralho, a Terra de Vera Cruz é avistada/batizada


pelos lusonautas. Realidade semântica ou ficcional, esse caralho pode ser
descrito como um cesto em que um marujo (ROSELLI-CRUZ, 2011),
balançando ordinariamente ao sabor dos mares, olha à volta para locali-
zar obstáculos ou terra firme e gritar, não sem pensarmos no escândalo
do grito desse marujo – traço de sua masculinidade salinizada oriunda
do Velho Mundo –, seus avisos. Essa comitiva toda, lusa, com certeza,
aporta em Pindorama junto de seu currículo europeu colonizador capaz
19 
Doutor em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá, professor do Depar-
tamento Acadêmico de Ciências da Educação, na Fundação Universidade Federal
de Rondônia, performer e artivista. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2234110887343110.
71
João Paulo Baliscei (org.)

de pecaminar os corpos já existentes no Novo Mundo, afinal, tudo é


permitido abaixo dalinha do Equador, ao mesmo tempo em que se deve
mortificar a carne para a ascensão da alma ao novo deus propagandeado
aos povos originários (Figura 2).

Figura 2: Sem título, série Tecnofaloterrorismo ou de como cis-falos usurpam, mani-


pulação digital, 2021, acervo do artista 20.

Parto, então, da ficção do descobrimento luso para ensaiar, aqui,


não o ‘terra a vista’, mas o ‘gênero a vista’ sob princípios de deboches (meus)
para estabelecer diálogos entre o falo, imagens de gênero e sexualidade à
luz da ocidentalidade desembarcada das naus portuguesas. As conexões,
aparentemente anacrônicas, enredaram-se para pensar o falo, mesmo
em uma linha temporal distante ainda das provocações freudianas, no
contato com os pênis e vulvas dos povos originais e seus usos.
Aportados, os portugueses avistaram as genitais dos povos ori-
ginários. Os corpos normais (originários), imagino, viram descer de
grandes objetos singrando pelo mar homens com os corpos encobertos,

Caso queira ver a imagem em cores, acesse: <https://photos.app.goo.gl/


20 

pEb6YcW35viCuSwv8>.
72
É de menina ou menino?

talvez envergonhados de suas genitais, estes sim, os corpos alienígenas


regressando para casa.
Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama
mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria
e porque eram perigosos para nós. Ele lhes deu uma
terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger das
epidemias e de suas armas. Foi por isso queos afastou.
Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos
dessa floresta e suas palavras propagaram por muito
tempo. Eles se lembraram: “É verdade! Havia lá, ao
longe, uma outra terra muito bela!”, e voltaram para nós.
Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram
viviam outros índios. Esses brancos eram pouco nume-
rosos e começaram a mentir: “Nós, os brancos, somos
bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos
viver a seu lado nessa terra com vocês! Seremos seus
amigos!” (Davi Kopenawa YANOMAMI, 1999, p. 18).

A imagem de gênero dos corpos que desceram das naus era narrada
(também) por indumentárias europeias. As vestimentas de marujos e
jesuítas, conforme a Figura 2, centralizam o entorno da haste cruzada
erguida, margeada pelos corpos dos povos originários. O símbolo falo-
cêntrico imprime, minimamente, dois movimentos: a) a genitalização
de deus; e b) demarca a égide pecaminosa dos corpos indígenas e suas
práticas. Ao genitalizar com o pênis o deus cristão europeu, a figura-
ção paterna, da proteção e da guerra subsidia as campanhas militares
ocidentais. Achille Mbembe (2020) demarca bem como as forças das
expedições, de conquista e/ou de repressão às contra insurgências da
colonização foram nevrálgicas no processo de colonização. Rebelar-se
era preciso. Em nome de deus, o pai, no entanto, a criação pela des-
truição ocidental materializa-se. E é em nome dele, também, que seus/
suas filhos/filhas precisam da correção para encontrar a retidão da vida.
Assim, pretendo articular este ensaio para pensar as ações orques-
tradas contra os corpos que verteram seus desejos (também) genitais
contrários ao que pregava os colonizadores cristãos para pensar a orga-
nização ocidental falocentrada. Problematizo, ainda, a ideia do falo
como algo não pensando desde e para corpos indígenas e negros, talvez

73
João Paulo Baliscei (org.)

uma das justificativas no (in)consciente coletivo ocidental para o campo


do fetiche e/ou violência contra eles. Finalizo aproximando a ideia de
punição pública pelo suplício junto da impressão da imagem de gênero
nos corpos em gestação e mesmo depois de nascidos pelas revelações
espetacularizadas.

OS FAÇO À MINHA IMAGEM, DISSE O OCIDENTE

As transfigurações das novas imagens, ou discursos, em circu-


lação no Novo Mundo eram conduzidas à luz da luz do deus cristão,
portanto, qualquer corpo, indiferente de seu gênero e cultura, precisava
ser purificado sob o toque da cultura ocidental. Ademais, essa cultura
ocidental jamais poderia ser confundida com qualquer outra ordinária
por ser “intocável”: só ela teria a capacidade de vincular qualquer cultura
a si sem perder sua posição “porque era somente por meio dela que outras
culturas existiam, e elas só existiam em relação a ela” (MBEMBE, 2020,
p. 118). Dividir para conquistar. Aglutinar para apagar. Escrever para
criar. Se, conforme a filosofia ocidental, existem “povos sem história”,
nada mais justo do que escrever sobre essa gente sob perspectivas sub-
jetivas, mas orquestradas como ‘ciência’.
Davi Kopenawa Yanomami (1999, p. 19), por exemplo, compreende
essa dinâmica da narrativa ficcional desde os livros para a imposição da
noção de verdade cunhada como ideia de descobrimento, mas não só:
““Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos
importantes!”, dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira.
Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para
se pôr a devastá-las””. ‘Possuímos os livros’: bíblias, manuais, mapas,
contratos, tratados, diários e toda sorte escrita para possuir o corpo
alheio, despossuí- lo e repossuí-lo, segundo sua própria noção cultural.
Despossuindo a sexualidade cá encontrada, intentaram toda a
sorte para criar pela destruição a sexualidade em conformidade com os
livros, leia-se ‘racionalidade a serviço da fé’. A sodomia, pederastia, fela-
ção e afins verteram-se em problemática de gênero e sexualidade, capaz
de eliminação pela (des)graça sacra cristã. Um dos primeiros registros

74
É de menina ou menino?

de assassinato, em decorrência da sexualidade, é o de um Tupinambá.


O termo tupimbá ‘tibira’ lhe adjetivava como homossexual, portanto,
praticante de sodomia, por isso, em 1613
em São Luís do Maranhão, por ordem dos invaso-
res franceses, instigados pelos missionários capuchi-
nhos, um índio Tupinambá, publicamente infamado e
reconhecido como tibira, foi amarrado na boca de um
canhão sendo seu corpo estralhaçado com o estourar do
morteiro, “para purificar a terra de suas maldades”. Em
1678, um segundo mártir homossexual é executado na
Capitania de Sergipe del Rei: um jovem negro, escravo,
“foi morto de açoites por ter cometido o pecado de
sodomia” (MOTT, 1998, p. 7-8).

A marca imagética dos corpos sodomitas explodidos pelos ares


traça as punições espetacularizadas sob cunhos pedagógicos para ensinar
pelo horror. É pelo horror público, já escreveu Foucault (1987), que o
suplício fazia parte do projeto de punição, o projeto disciplinar. O caso
de sodomia de tibira, julgada pelos missionários capuchinhos e executada
pelos ‘invasores franceses’, bem como a do negro açoitado até morrer,
disciplinaria publicamente os demais corpos. A sodomia é tornada
monstruosa pois transgredia o ficcionado limite natural, abalando toda
lei divina, religiosa e mesmo a civil (FOUCAULT, 2010), justificando,
portanto, uma punição pelo horror. Os invasores franceses – em terras
invadidas – atestam apenas os acordos eurocentrados entre seus iguais,
partilhantes de princípios do repovoamento da terra “pela via da preda-
ção humana, da extração de riquezas naturais e do trabalho de grupos
sociais subalternos” (MBEMBE, 2020, p. 28), assim, tudo é permitido
abaixo da linha do Equador, desde que a Europa defina.
A subversão (?) da sexualidade/genitais do Tupinambá e do negro
pelo olhar europeu evoca, talvez, a figura do marinheiro do alto do
caralho para observar e julgar os desejos dos corpos não brancos cami-
nhantes, agora na terra chamada Brasil, os primeiros que cá estavam e
os segundos trazidos. Ambos com corpos potencialmente demonizados,
ambos com seus corpos espiados pois suas sexualidades não estavam
em conformidade com seus gêneros. Há, na perspectiva fanoniana de

75
João Paulo Baliscei (org.)

Mbembe (2020), um sadismo e racismo declarados nas decapitações,


mutilações, torturas e afins, uma espécie de desejo
Implacável de não saber de nada, de não sentir a menor
empatia pelas vítimas, de se convencer da vilania dos
nativos, de considerá-los responsáveis pelas atrocidades
que lhes eram infligidas e pelas extorsões e enormes
prejuízos que sofriam – essa era a lei. (MBEMBE,
2020, p. 127)

A ordem dessa discursividade, segundo essas passagens que trouxe,


dá os indícios de controle da suposta criminalidade observada pelos
colonizadores, afinal, eles já estavam em meio ao terror de uma terra
composta por existências selvagens para dar cabo ao projeto civilizatório,
assim, os fins justificariam os efeitos negativos. A inimizade era a tônica
conectiva, não a semelhança, e era ela a presença ordinária internalizada
nesses processos todos (MBEMBE, 2020). Talvez por isso a correção
sádica pública e expiatória se materializava: exortava a si pelo desejo,
violentava as etnias outras, condenava a sexualidade considerada impura
e educava a plateia.

A CELEBRAÇÃO DE QUEM NÃO SE ANUNCIA

Na esteira de pensar os gêneros e sexualidades como posicionalida-


des, performatividades, existências, etc, problematizo não as teorizações
em suas explicações para tentar defini-los, mas o combo familiar quando
da ciência acerca da genitália escrutinada nos exames. Do alto de seus
caralhos há o orquestramento das definições da criança-paciente e da
criança-filho/a sem que a mesma possa anunciar- se em determinado
gênero e sexualidade.
A construção da ideia de homem e mulher carece de cuidado pois,
segundo Amara Moira Rodovalho (2017, p. 370), “‘Homem’ e mulher’
são palavras polissêmicas, palavras que comportam sentidos bastante
divergentes, até contraditórios, fazendo-se então necessário todo um
cuidado ao interpretá-las”. A inexistência de uma interpretação caute-
losa dessas palavras cria as ficções familiares da criança por vir: ela já
tem nome, sexo, sexualidade, às vezes um casamento definido, enxoval,

76
É de menina ou menino?

quarto, brinquedos e toda sorte de marcadores de gênero amparados


apenas na possibilidade de nascer e ser/estar homem ou mulher. Essas
possibilidades fomentam, hoje, a prática dos chás de revelação.
A apoteose do evento, do mais recatado ao mais dantesco, rei-
naugura uma nova explosão dos corpos e seus desejos, mesmo sem o
anúncio da pessoa envolvida diretamente, a saber, a criança não nascida.
Explosão no sentido mais belicoso e literal quando temos contato com
notícias, como a do caso de um pai que provocou um incêndio florestal
ao disparar contra os alvos que revelariam o ‘sexo’ da criança (Figura 1).
Não parece haver qualquer limite para limitar o projeto de quem não se
anuncia, ademais, eventos como esses parecem uma projeção fálica-e-
dípica herdada de Freud e Lacan, carregada em seu próprio bojo com o
masculino como paradigma, “uma versão masculina da diferença, na qual
o outro, o feminino, só pode ser pensado em simetria ou dessimetria ao
referencial fálico e formulado como ‘um a menos’ (castrado e invejoso
em Freud) ou ‘um a mais” (bi-gozo em Lacan)’” (NERI, 2004, p. 156).
Acrescento, ainda, a possibilidade de assimetrias pensadas em outridades
materializadas em existências travestis ou trans, e/ou naquelas em que
as práticas de desejos sexuais seriam facilmente monstrificadas.
Ouso em pensar nessa diretriz freudiana-lacaniana ficcionada
no cotidiano mais reiterando o paradigma sexo-gênero-sexualidade do
que problematizando-o. O falo, para além da matriz masculina, diz
sobre a reificação branca-ocidental-europeia- descendente e não sobre
indígenas e negritude, por exemplo, no entanto, ele está no meio de
nós. O falo não é a pica do preto ou a jeba da travesti, no limite apenas
uma genitália fetichizada para atender as prerrogativas dos que possuem
falo, sobretudo heterossexuais. Voltando ao chá de revelação, o mesmo
parece um tribunal, não menos sádico, do exercício fálico do poder para
o projeto de outrem de gênero e sexualidade, antecipando o estouro do
canhão e as chibatas por sobre os desejos alheios dos filhos e filhas, ou
mesmo já anunciar a desgraça dadivosa do olhar do pai ou da mãe ao
saber o ‘sexo’ do bebê – vídeos não faltam com as reações humanas das
mais diversas ao ver a fumaça quase papal de cor azul ou rosa.

77
João Paulo Baliscei (org.)

A decepção pode ser compreendida quando lemos a definição


de hétero- nação de Ochy Curiel (2013, p. 56), nada mais do que uma
[...] construcción de Nación a través de la Constitución
Política, lo cual se sintetiza en lo que propongo llamar la
Heteronación, es decir, cómo la nación y su construcción
imaginaria tienen como base fundamental el régimen
de la heterosexualidad, a través de la ideología de la
diferencia sexual, y ésta, a su vez, en las instituciones
como la familia, al parentesco, a la nacionalidad, todo
ello expressado en los pactos sociales que son reflejados
en un texto normativo como la Constitución.

A construção de nações orquestradas nesses princípios só são


possíveis graças à articulação política, familiar e heterossexual. Tibiras,
sodomitas, invertidos, travestis e toda sorte de gente não está na lista
desses chás, Amara Moira Rodovalho (2017), por exemplo, chama
a atenção para o caso das travestis que nunca foram criadas desde o
berço para serem travestis, restando apenas o tornar-se. A apoteose
desse evento não esconde, em absoluto, a colonização de um corpo pela
via do afeto familiar, menos ainda as estruturas cis-heterocentradas de
vigilância e possíveis punições a toda e qualquer criança não cis e/ou
não heterossexual (quando o desejado era que fosse.

DE BAIXO

As produções dos gêneros, sexualidades e desejos desde o ocidente


revelam os atravessamentos belicosos do controle por sobre os corpos. A
constante articulação de saberes ocidentais, capaz de aglutinar e apagar
as demais culturas e delas escrever sobre, instaura as artificialidades e
materializam discursos de uma verdade. O desejo sádico pela definição
do gênero e sexualidade alheia parece recorrente no âmbito colonial,
primeiro utilizado para punir as práticas sexuais indígenas e pessoas
negras e depois para antecipar as práticas sexuais, e de gênero, das
crianças que ainda não nasceram.
O canhão cede lugar para fumaças, balões com confetes, galinhas
(vivas) coloridas artificialmente e até armas para anunciar o que se vê
do alto de um caralho que balança. A marcação falocêntrica ocidental
78
É de menina ou menino?

eclipsa os pênis e as vulvas indígenas junto do jugo cristão marcado já


na primeira missa, conforme a segunda imagem que abre estas discus-
sões. Posteriormente, as das negras e dos negros, e, em um movimento
mais contemporâneo, os chás de revelação. Não igualo os sofrimentos
vivenciados por esses corpos assassinados pelo desejo sádico do branco,
mas compreendo uma indústria dispositiva reorganizada e sedutora para
deixar bem marcado para a sociedade a criança que se espera.

REFERÊNCIAS

CASTELEIRA, Rodrigo Pedro. Sem título, série Tecnofaloterrorismo ou de como


cis-falos usurpam. Manipulação digital. Acervo do artista, 2021.

CURIEL, Ochy. La nación heterosexual: análisis del discurso jurídico y el régimen


heterossexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Brecha lésbica y en la
frontera, 2013.

FOUCAULT, Michel. Os Anormais. 2. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2010.

. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987.

HYPENESS. Chá de revelação de sexo de bebê termina em incêndio florestal de uma


semana. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2018/11/cha-de-revelacao-
de-sexo-de-bebe-termina-em-incendio-florestal-de-uma-semana/>. Acesso em 04 de
out. de 2021.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 Edições, 2020.

MOTT, Luiz. Etno-história da homossexualidade da América Latina. História em


Revista, Pelotas, v. 4, 1998, p. 1-15.

NERI, Regina. Falo ou feminilidade: uma discussão instigante: gramáticas do erotismo.


Joel Birman. Rio de Janeiro: Record, 2001. Ágora v. VII n. 1 jan/jun 2004. p. 155-159.

RODOVALHO, Amara Moira. O cis pelo trans. Estudos feministas, Florianópolis,


25(1): 422, jan.-abr., 2017, p. 365-373.

ROSELLI-CRUZ, Amadeu. Homossexualidade, homofobia e a agressividade do palavrão.


Seu uso na educação sexual escolar. Educar em Revista, Curitiba, Brasil,n. 39, jan./abr.
2011. Editora UFPR, p. 73-85.

YANOMAMI, Dav Kopenawa. Descobrindo os brancos. Adauto Novaes (org.). A outra


margem do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 15-31.

79
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Meninos podem brincar com bonecas? E as meninas podem brincar com bolas?
Fonte: <https://novaescola.org.br/conteudo/7723/brincadeiras-nao-tem-sexo>.
Acesso em 06 de set. 2021.

“EU POSSO FAZER ISSO”:


GÊNERO, EXPERIÊNCIA E EDUCAÇÃO FÍSICA
Márcia Gonçalves Vieira 21
Samilo Takara 22

INTRODUÇÃO

Ao ocupar as posições de mães e pais, surgem as inquietações para


descobrir qual é o sexo biológico da criança e isso mobiliza a família e
amigas/os, pois querem saber sobre esse detalhe para comprar o enxoval
de acordo com o estereótipo de gênero. Ao nascer, a criança se depara

21 
Graduada em Licenciatura em Educação Física, pela Universidade Federal de
Brasília, pós-graduada em Psicomotricidade Clínica e Relacional, pela Universidade
Cândido Mendes, mestranda em Educação pela Universidade Federal de Rondônia,
2021. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0846504158119583.
22 
Doutor em Educação (UEM/PR). Professor do Departamento de Educação e da
Especialização de Gênero e Diversidade na Escola no Campus Rolim de Moura e do
Programa de Pós-Graduação em Educação no Campus José Ribeiro Filho da Universi-
dade Federal de Rondônia (DAED/GDE/PPGE- UNIR). Líder do Grupo de Estudos
e Pesquisas em Estudos Culturais e Educação Contemporânea – GEPECEC/UNIR.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9453815210695929.
80
É de menina ou menino?

com um mundo “cor de rosa ou azul”, identificando-a “como menino


ou menina”, sob imposições de que ela deve se desenvolver com base
nesses atributos, quer se identifique ou não.
Louro (1997) explica que desde a ecografia, a construção de gênero
começa a ser realizada sobre o corpo da criança. Assim, o corpo é educado
por parâmetros culturais que se iniciam tendo por base características
biológicas que são dicotômicas e binárias para o pensamento médico.
Entretanto, é relevante compreender que as construções de gênero e
sexualidade se constituem, também, por características da cultura e da
sociedade e, assim, como nos ensina Louro (2003, p. 11), os “[...] corpos
ganham sentido socialmente”.
Entre os espaços que produzem corpos, a escola se torna uma
instituição que regula e conduz a construção de modos de enxergar o
mundo, os/as outros/as e a nós mesmos/as. Educativo, esse movimento
contribui para compreendermos como existem intervenções e controles
que atravessam a ação escolar na construção de pessoas e que se valem
“[...] de um investimento científico na intimidade de sua fisiologia, na
gestão de seus desejos” (SOARES, 2015, p. 65).
Desse modo, o corpo passa a ser regulado e as experiências que
produzem nossas relações ficam tuteladas, também pelo trabalho escolar,
em disciplinar corpos. Assim, o corpo educado pela escola é adestrado
por sistemas de representação e por experiências que geram posturas,
modos de agir e responder aos sentidos que constituem a representação
do que é ser aluno/a no espaço escolar.
Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por
muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para
expressar gestos ou comportamentos indicativos de
interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo
disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num
determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo
e o espaço de uma forma particular. Mãos, olhos e
ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas
possivelmente desatentos ou desajeitados para outras
tantas (LOURO, 2003, p. 21-22).

81
João Paulo Baliscei (org.)

É por essas possibilidades que se faz necessário compreender o


aspecto da experiência na formação docente. Larrosa (2011, p. 5) explica
que a experiência é “isso que me passa”. E, ao pensarmos em gênero e
sexualidade nos espaços escolares, a discussão sobre os corpos está voltada
à docilização dos corpos dos/as alunos/as, mas é relevante compreender
como o corpo docente também é esquadrinhado, produzido e se torna
o corpo que deve representar padrões de gênero específicos.
“Ao tentar recordar os corpos de meus professores e professoras,
eu me sinto incapaz de lembrar deles. Eu ouço vozes, lembro de detalhes
fragmentados, mas muito pouco de corpos inteiros” (HOOKS, 2003,
p. 115). A pensadora nos mostra como o corpo docente é entendido
no espaço escolar. Takara (2021) problematiza como esses corpos são
esquadrinhados e são definidos como corretos ou incorretos para o
espaço escolar.
A experiência docente também precisa ser compartilhada para
que alunos/as possam pensar sobre suas dimensões e compreensões
sobre os corpos e suas práticas. As habilidades, os gestos e as formas
como empreendemos as ações que produzimos geram efeitos diferentes
ao sabermos como o processo educacional produziu nossas relações com
as práticas educativas que produzimos.
No que diz respeito à educação, essas concepções de discriminações
de gênero e sexualidade se tornam evidentes, pois no espaço escolar as
crianças passam a conviver com pessoas de culturas diferentes das suas.
Na Educação Física, mais especificamente, é visível tais discrimina-
ções, ou seja, observa-se que ocorrem separações por grupos (meninos
e meninas) no decorrer do desenvolvimento da aula. Finco (2010, p.
123) explica que essas separações advêm do modo como os professores/
as interagem com estes alunos/as:
Os brinquedos oferecidos às crianças também estão
carregados de expectativas, simbologias e intenções.
As expectativas em relação à diferença de comporta-
mento que se deseja para o menino e para a menina,
justificadas pelas diferenças biológicas, acabampropor-
cionando distintas vivências corporais e determinando

82
É de menina ou menino?

os corpos infantis: meninos e meninas têm no corpo a


manifestação de suas experiências.
Ao longo de minha carreira de magistério e, posteriormente, como
professora de Educação Física, pude observar em alguns momentos
como se desenvolve um/a aluno/a no decorrer da vida escolar, desde a
sala de aula até os espaços como a quadra ou campo aberto. Escolho
este último local por ser o mais utilizado em minhas aulas. Recorro a
ambientes grandes que se diferenciam da sala de aula, pelo modo como
deixam os alunos/as mais à vontade nos movimentos e interações. Egle
Becchi (2003 apud FINCO, 2010) afirma que se deve pesquisar mais
sobre a linguagem dos gestos por estarem relacionados aos movimentos
corporais, gestuais de exploração e contato com o outro/a.
A relação com o corpo também se dá nos processos em que as
crianças que estão na escola aprendem a conhecer como as culturas
diferenciam os processos de gênero, as diferenças que estão dispostas no
cotidiano e quais são as possibilidades que se encontram nos espaços em
que vivem. As pedagogias culturais que inscrevem as noções de gênero
no espaço escolar fixam para meninos e meninas um modo correto
de atuar e atividades que devem ser compreendidas como proibidas e
permitidas para os corpos.
E, na Educação Física, cabe questionar de que modo as práticas
esportivas, os jogos, as brincadeiras e os fazeres foram generificados e
determinados para meninos ou meninas. Essa separação que parece natu-
ralizada precisa ser questionada para que se possam construir possibilida-
des de uma educação que contribua para a formação e o desenvolvimento
pleno das crianças, pois na Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB
9394/96, não há recomendação, nem distinção por separações de gênero
no contexto das aulas no contexto escolar. Os Parâmetros Curriculares
da Educação Física - PCNs (BRASIL, 1998, p. 19) trazem que:
O princípio da diversidade aplica-se na construção
dos processos de ensino e aprendizagem e orienta a
escolha de objetivos e conteúdos,visando a ampliar as
relações entre os conhecimentos da cultura corporal
de movimento e os sujeitos da aprendizagem. Busca-se
legitimar as diversas possibilidades de aprendizagem
83
João Paulo Baliscei (org.)

que seestabelecem com a consideração das dimensões


afetivas, cognitivas,motoras e socioculturais dos alunos.
Os documentos curriculares mencionados mostram a relevância
de haver planejamentos que possibilitem que o/a aluno/a desenvolva
suas capacidades máximas, sem constrangimentos. Nas aulas, em que
verificamos, é visível que a maioria dos alunos/as participa das atividades
propostas, mas existe uma minoria que não participa. Quando observa-
mos, analisamos que as práticas propõem distinções de grupos (meninos
e meninas), podendo reforçar os sentimentos de disputas e até mesmo os
distanciamentos entre ele e elas, como relata Finco (2010, p. 127 e 128):
Além das expectativas as interações entre professoras e
crianças revelaram práticas e estratégias de organização
do dia a dia caracterizadas por uma intencionalidade
pedagógica na forma de umaorganização institucional
que tem no sexo um critério para a organização e o
uso dos tempos e dos espaços. Práticas cotidianas da
pré-escola, como a organização da fila e a distribuição
das crianças nas mesas, mostram que a escola acaba
por reforçar a separação entre meninas e meninos ao
estabelecer dinâmicas de atividades baseadas em disputa
de dois grupos (meninas e meninos). Assim, ao invés de
proporcionar vivências que possibilitem a integração,
acabam por rivalizá-las ainda mais.

Observamos que existem preferências por agrupar os/as alunos/


as por tipo de jogo, brincadeira e até mesmo por práticas esportivas. Por
vezes, a quadra é dividida ao meio: de um lado, futebol para os meninos
e do outro, voleibol para as meninas. As crianças que se identificam com
determinada atividade que não é vista como “comum” ao seu gênero,
como aquelas que integram a Figura 1, no início deste capítulo, sofrem
discriminações com impedimentos ou comentários agressivos. Em
determinado dia, por exemplo, uma mãe veio ao meu encontro e relatou
que a filha não poderia participar das aulas por causa da religião ou
porque ela não queria que a criança se relacionasse com outro aluno do
gênero “masculino”.
Compreendemos, também, que as crianças, ao realizarem as ati-
vidades propostas, tendem a escolher as que irão participar, a partir de

84
É de menina ou menino?

discriminações entre o que seria “masculino” ou “feminino”, e a formar


grupos distintos durante as aulas. Verificamos até mesmo separação de
caixa contendo brinquedos “de menino” e “de menina”. Entre os/as alunos/
as na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental já
são observados comportamentos de afastamento, conforme Finco (2010).
Esse comportamento gera prejuízos no processo de desenvolvi-
mento psíquico, individual, cognitivo e social dos alunos/as, pois produz
inquietações que os/as deixam confusos/as e amedrontados/as diante do
que os/as outros/as pensam sobre seu ser, sendo que o conhecimento
de corpo é particular de cada um/uma de nós. Torna-se necessário ao/à
professor/a, intervir de forma sábia diante dessas situações de modo que
os/as alunos/as que transgridam aquilo que é considerado “normal” ao
seu gênero sejam acolhidos/as. Silveira (2009, p. 14), após analisar o
livro O mundo dos garotos, chegou à seguinte conclusão:
As dificuldades de comunicação constituem um dos
traços marcantes atribuídos aos meninos – eventual-
mente, eles podem apresentar “imaturidade”, não notar
que algo está incomodando as meninas, ser inseguros
(“são tão inseguros quanto qualquer garota”), sequiosos
de elogios sobre suas habilidades. E, entre os conselhos,
um nos chama a atenção em especial: é aquele que avisa
às leitoras que “Alguns garotos (mal acostumados pelas
mães), podem acreditar que todas ascoisas chatas da vida
devem ser feitas por garotas”, arrolando-se as tais coisas
chatas: “limpar a casa, lavar e passar roupas e cozinhar”.
E prosseguem as autoras: “Para eles, restam as coisas
boas: esportes radicais, bandas de rock e brincadeiras
ousadas”. Uma exortação arremata tal conselho: “Não
deixe que essa tendência aumente!”

A professora ou professor de Educação Física tem várias possibi-


lidades de trabalhar relações de gênero no contexto das aulas, desde a
relação entre as/os coleguinhas até com os professores/as, sem definição
de atividades, jogos ou esportes que favoreçam determinados grupos. É
um componente que, segundo Altemann (2001), proporciona aos alunos/
as momentos de trocas de experiências de aprendizagens que mobilizam
os aspectos afetivos, sociais, éticos e de sexualidade.

85
João Paulo Baliscei (org.)

Entender que a docência é um gesto envolvido com a realidade


das crianças que participam daquele contexto e a necessidade de dis-
cutir sobre os objetivos que se referem ao desenvolvimento do corpo
são possibilidades de constituir uma prática pedagógica diferente, que
possibilite ao/à aluno/a desenvolver-se de modo integral com equidade
de direitos de aprendizagem, como indica a Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2019), partindo do entendimento de que podemos
sair dos estereótipos de gênero para discutir contribuições para que o/a
aluno/a respeite sua identidade e a do outro/a e não para a reprodução
de valores, ideias, experiências estereotipadas.
Ao flertar com a experiência, também se lida com a pluralidade.
“A experiência produz pluralidade” (LARROSA, 2011, p. 17). Olhar
para o corpo como uma possibilidade de experimentar o gesto e de ser
ensinado/a por ele é uma oportunidade de constituir uma relação positiva
com o corpo, com a vivência dos movimentos e o entendimento de que
existem as leituras sociais sobre as identidades de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Logo se vê que a Educação Física tem relevância no contexto esco-


lar por ser dinâmica, de infinitas oportunidades de vivências corporais e
culturais que proporcionam aos/às alunos/as experiências imprescindíveis
à construção de identidades de corpo e cultura. O/a professor/a, então,
pode ser sensível aos acontecimentos durante as aulas, identificando e evi-
tando que formas de agressões, exclusões e violências aconteçam no espaço
escolar, seja por parte dos/as alunos/as, pais/mães e ou funcionários/as.
Desta forma entendemos que os/as alunos/as, no decorrer da
Educação Básica, têm a oportunidade de vivenciar trocas de experiên-
cias que serão importantes para a construção de identidade; e que o/a
professor/a pode tematizar e pôr sob questionamentos os padrões e
expectativas de comportamentos que evidenciam práticas de exclusão e
agressões discriminatórias.

86
É de menina ou menino?

REFERÊNCIAS

ALTMANN, Helena. Estudos feministas. 2001. Disponível em: https://www.scielo.


br/j/ref/a/PthD6cgdcDC7MMvJw5zxXDr/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 29 de
junho de 2021.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


Educação Física / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC / SEF, 1998.

. Base Nacional Comum Curricular/ Brasília: MEC / 2019. Disponível:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_sit
e.pdf. Acesso em: 06 de julho de 2021.

FINCO, Daniela. Brincadeiras, invenções e transgressões de gênero na educação


infantil. Revista Múltiplas Leituras. 2010. Disponível em: https://www.
metodista.br/revistas/revistas- ims/index.php/ML/article/viewFile/1905/1908. Acesso
em: 29 de agosto de 2010.

HOOKS, Bell. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, Guacira Lopes
(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. 2. reimp. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. (113-123).

LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em Educação. Revista Reflexão e Ação. v.


19, n. 2. Santa Cruz do Sul, 2011. (04-27).

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997.

. Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes


(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. 2. reimp. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003. (7-34).

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel, Livros perigosos para garotos e maravilhosos para
meninas: O gênero social diferenciando o gênero discursivo. Simpósio Internacional de
Estudos de Gêneros textuais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2009. Disponível
em: https://www.ucs.br/ucs/extensao/agenda/eventos/vsiget/portugues/anais/arquivos/
livr os_perigosos_para_garotos_e_maravilhosos_para_meninas_o_genero_social_difer
enciando.pdf. Acesso em: 26 de agosto de 2021.

SOARES, Carmem Lúcia. Escultura da carne: o bem-estar e as pedagogias totalitárias


do corpo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo. (Orgs.). Pra uma vida
não- fascista. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. (63-82).

87
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: “Contracorrente”
Fonte: <https://www.acessa.com/cultura/arquivo/cinematografica/2017/08/22-vic-
tor-antes-depois-dzi- croquettes/>. Acesso em 30º de set. de 2021.

NARRATIVAS QUE MOLDAM


GÊNERO E SEXUALIDADE:
DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO AO FALAR DE SI
Marcos da Cruz Alves Siqueira 23
Igor Micheletto Martins24
Harryson Júnio Lessa Gonçalves25

PRÓLOGO: INTRODUÇÃO

Este capítulo faz uma interface entre gênero, sexualidade e edu-


cação por meio de narrativas de três pesquisadores da área de Educação
e de suas vivências na infância, na educação e no universo de Lésbicas,
23 
Doutor em Educação, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8097738870620043.
24 
Bicha doutoranda em Educação para a Ciência pela Universidade Estadual Pau-
lista (Unesp). Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Currículo: Estudos, Práticas e
Avaliação. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8544286037876527.
25 
Livre-Docente pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Professor associado
da Faculdade de Engenharia da Unesp, no campus de Ilha Solteira.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3260745033583199.
88
É de menina ou menino?

Gays Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (LGBTI+). Ques-


tionamos, de modo a conduzir este trabalho, de que modos as narrativas
tecem gênero e a sexualidade, propiciando uma reflexão sobre a educação?
Nesse percurso, discutimos sobre como as narrativas de si coproduzem
significados de gênero, de sexualidade e de raça, e sobre os limites de
pensar como a educação perpassa as fronteiras culturais e as relações
pedagógicas influenciando no modo de ser e de viver em sociedade.
Nosso objetivo é demonstrar narrativas de pesquisadores da área de
gênero e de sexualidade, por meio de suas reminiscências, trajetórias e
resistências, criando, assim, um diálogo sobre a Educação.
Para tanto, destacamos que a proposta de escrita deste texto se
inspira em uma postura de desobediência epistêmica e civil, à luz de
Ramón Grosfogue (2009), visando reconhecer a experiência, e dialogando
com Jorge Larossa (2002), como locus de conhecimento. O estilo de nar-
rativa do texto desencadeou atos, produzidos a partir de uma conversa
como construção de entendimentos entre, e a partir de, três amigos,
educadores, pesquisadores e LGBTI+. Cabe destacar, assim, que esta
escrita se manifesta como um posicionamento de outra(s) possibilidade(s)
mais respeitosas e honestas de vislumbrar as experiências, oportunizando
conhecer e aprender sobre outras formas de produzir conhecimento, a
partir da experiência de outros sujeitos, por vezes, objetificados e vio-
lentados, que se fazem presentes no mundo e que suas “existências” são,
por vezes, tão depreciadas pela Universidade (isso mesmo Universidade
com “U” maiúsculo). Universidade essa que finca suas estacas em uma
“dada Ciência” hegemônica e colonizada, talvez, descolada de outras
“epistemes”, que, mesmo sem se observar colonizada, reproduz as rela-
ções de poder, eurocêntricas, legitimando apenas certos conhecimentos
(tidos como válidos para ela) e silenciando outros e, consequentemente,
outras formas de “existências” no mundo, tornando-se, na esteira de Sueli
Carneiro (2005), de quando em quando, epistemicida.
Desse modo, analisar as memórias por meio das narrativas e pro-
blematizar as tensões em nossas trajetórias e resistências desloca os modos
de pensar a educação. Assim, apresentamos, por meio de diálogos, os
sentidos de existir e de resistir, os quais se manifestam a partir de pautas
89
João Paulo Baliscei (org.)

sociais sobre gênero, sexualidade e raça e que desenvolvem conhecimentos


sobre si. Para a realização do trabalho foi desenvolvido um encontro com
os três pesquisadores na Universidade Estadual Paulista (Unesp), para
que pudessem dialogar sobre suas vivências, trajetórias e experiências
com a temática de gênero e sexualidade. Além disso, as vivências e as
experiências cotidianas desse grupo, por meio de conversas, de entrevistas
e de participação em locais de convivências, propiciaram pensar as relações
educacionais. Nesse processo de experiência, entendemos as narrativas
como ação educativa, que se valem da história de vida para manifestar
seu posicionamento político e para instabilizar discursos de violência,
de opressão e, ao mesmo tempo, para aprender e ensinar sobre gênero
e sexualidade. Consideramos que as tecituras elaboradas nessas falas
podem incidir em tensões políticas e pedagógicas que afetam os modos
de ser e de viver. Assim, reconhecemos as reminiscências apresentadas
por meio das narrativas como um corpo político, com significação social
e educacional capaz de aproximar grupos identitários, de mobilizar ações
em prol da educação e de resistir frente à violência LGBTIfóbicas.

ATO I: ENCONTRO PARA FALAR DE SI26

Os pesquisadores Igor Micheletto Martins, Marcos da Cruz Alves


Siqueira e Harryson Júnio Lessa Gonçalves estão sentados em cadeiras
na sala da Unesp. O professor Harryson prepara um café na máquina
de expresso. Há um silêncio. A expressão facial dos pesquisadores é de
aflição, de riso e de deboche. Tentam achar coragem para falar sobre suas
vivências no ambiente escolar. Começam a falar sobre outros assuntos,
como, por exemplo, artigos, festas, trabalho, lazer entre outros. De
repente, Igor interrompe27.

26 
Utilizamos, durante o trabalho, uma escrita em terceira pessoa do plural. Quando
necessário, valemo- nos da primeira pessoa do plural para generalizações.
27 
As narrativas que se seguem são transcrições dos diálogos. Os diálogos foram gra-
vados por meio de um celular smartphone e depois transcritos. Após isso, cada pessoa
participante conferiu a transcrição e verificou se concordava ou não com o conteúdo.

90
É de menina ou menino?

Igor: Eu falava de forma afeminada e afinando a voz


na escola.
Marcos: Engraçado como você reprime o desejo durante
a escolarização. Eu sentia desejo por homens e mulheres
na escola e isso era uma grande confusão. As pessoas
falavam que eu tinha de decidir se eu sentia desejo por
homens ou por mulheres. Até minha mãe falou isso,
quando eu me assumi bissexual para ela, indicando
que eu não poderia sentir desejo por dois gêneros. Na
minha escola, era difícil achar pessoas bissexuais ou que
transitavam com seu desejo: ou você era gay e da turma
dos “viadinhos” ou você era da turma dos héteros. Então,
minha postura na escola era enrijecida, era diferente.
Harry: Então, eu fico me perguntando: como era minha
sexualidade e meu gênero durante a escola? Eu não sei,
não consigo saber se eu tinha atração pelos meninos,
mas eu sabia que era uma figura estranha. Eu tive um
carinha por quem eu acho que fui meio apaixonadinho.
Eu tinha um carinho por ele e meio que escondia meus
desejos sexuais. Só que eu me sentia a pessoa errada. Eu
não me sentia um homem e não me sentia uma mulher.
Então, por exemplo, eu não tinha uma vontade de ser
uma mulher, mas eu queria ser homem. Eu queria ser
homem, nesse sentido de ser homem relacionado à
masculinidade hegemônica. Porém, eu não conseguia,
tinha uma voz e um jeito que não condiziam com a
hegemonia masculina. Eu acho que foi isso que me
atravessou. Então, eu era uma criança tímida, que não
falava, que não conversava, que não participava. Eu
era excluído pelos meninos. Então, eu vivenciei esses
momentos durante a escolarização.
Igor: Eu não sei se eu tinha esse desejo de performar
essa figura de homem da masculinidade hegemônica
durante a escola. Eu me lembro que eu escutava muito
pop e adorava a Lady Gaga, mas eu não era a Lady Gaga
da escola, no sentido de ser o mais afeminado. Eu já
sabia que eu sentia atração por homens e não sentia
atração por mulheres. Eu era pressionado a ficar com
mulheres e cheguei a ter namoradinhas durante a escola,
mas nunca cheguei a transar com elas. Por mais que
eu sentisse prazer em me relacionar com as meninas,

91
João Paulo Baliscei (org.)

eu não tinha um desejo incessante de transar com elas.


Esse desejo, durante a escolarização e até os dias atuais,
foi direcionado para os homens. Eu ficava olhando os
meninos jogarem futebol e sentia muito desejo ao ver
seus corpos. Isso, nos Ensinos Fundamental e Médio.
Harry: Acredito que essa conversa é intergeracional!
Eu venho de uma cidade do interior, pequena, que é
a cidade ocidental de Brasília. É uma cidade muito
pequena. Eu era de uma família evangélica, por parte
de mãe. Meus pais eram separados. A família do meu
pai era constituída de católicos fervorosos: meus tios
por parte de pai frequentavam as igrejas todo domingo
e suas casas eram repletas de imagens religiosas. Eu
acho que estamos falando, no meu caso, do início dos
anos de 1980. Então, a situação era mais pesada. Ser
gay representava você ter AIDS (ser soropositivo) e
carregar as piores mazelas da sociedade. Eu não sei
em uma cidade grande, mas onde eu vivenciei, em uma
cidade pequena, representava isso. Por conta disso, eu
não queria ser o que eu era. Eu acredito que, por isso,
vivenciei essas frustrações. Acredito que foi muito sofri-
mento psíquico o que eu vivi. Eu não tive referências
de ser gay saudável. Todas as referências de ser gay que
eu tinha eram relacionadas à confusão: você precisava
aceitar Jesus em sua vida, pois estava praticando um
pecado ou, então, você teria AIDS. Talvez, existissem
outros gays no contexto em que vivi, mas eles eram
reprimidos e/ou casados. Estou falando da minha rea-
lidade, onde eu morava.
Harry se direciona ao Igor e pergunta: E você? Quando
você nasceu?
Igor: Eu nasci em 1995
Harry: Então, estamos falando dos anos 2000.
Igor: A minha referência de ser gay tinha relação com o
HIV e com ser soropositivo. Só que a minha referência
de ser gay, também, estava relacionada com as femini-
lidades. Então, ser gay como uma pessoa afeminada,
que feminiliza a voz e é espalhafatoso. Então, eu tinha
essa referência. A drag queen era uma referência de ser
gay. Por mais que eu saiba que, hoje em dia, uma pessoa

92
É de menina ou menino?

que faz arte drag e se monta não é necessariamente gay,


na minha época, era essa a referência.
Harry então questiona: Mas, Igor, isso não é positivo?
Igor: É, mas não. Neste caso, ao ser espalhafatoso e
muito afeminado, a pessoa gay acaba sendo sinônimo
de mulher.
Harry: E isso é legal, mas, para mim, não tinha nem
essa referência. Para mim, ser gay era sinônimo de
demônio, de assombração.
Igor pergunta a Harry: Isso era em que época
mais ou menos?
Harry: Início dos anos de 1980.
Igor: Então, foi a época que teve a explosão de pessoas
gays com HIV.
Marcos: Então, a minha infância foi na década de 1990.
Eu venho de uma cidade do interior do Paraná, que fica
ao lado de uma colônia de alemães: alemães rígidos e
católicos. A questão do gay ali na minha região, além
de estar associado à AIDS e ao HIV, estava, também,
associada à questão da prostituição. Estava associada de
uma forma muito forte e, posso até dizer, violenta, pois
não era essa imagem da prostituição como um trabalho,
como estamos discutindo hoje em dia. A prostituição
era vista como “você se assumiu gay, então você vai se
prostituir e não tem outro caminho”. Eu me lembro dos
meus pais falando, por exemplo, para não me relacionar
com outras pessoas gays, pois você poderia pegar alguma
doença e me prostituir.
Igor complementa o que Marcos disse: Eu me lembro
dessa associação com as pessoas. Se você se relacionar
com gay, você vai virar gay. Isso, eu também vivenciei
na minha família. Eu venho do interior de São Paulo,
de uma cidade chamada Araçatuba. Agora, estou lem-
brando dos motivos da minha referência de ser gay se
associar com as feminilidades! Na minha rua, morava
uma pessoa negra que, hoje em dia, eu sei que é uma
pessoa trans e/ou travesti, pois ela performava o gênero
mulher. Todo mundo da minha família e da rua falava

93
João Paulo Baliscei (org.)

que ele era gay. No fundo, eu acredito que, provavel-


mente, ele se enxergava enquanto mulher.
Marcos complementa o que Igor disse: Nesse tempo
não estava muito claro essa questão de identidade, não é?
Igor continua: Sim! Então, a referência que eu tenho
de ser gay é essa pessoa, que morava na minha rua e
era afeminada e espalhafatosa. Todo dia, ele passava
na frente de casa, porque a gente morava perto. Ele
passava com short curto, o cabelo repleto de tranças
longas, um andar afeminado e rebolando. Minha mãe
usava isso como referência de ser gay. Ela até me dizia
quando eu expressava trejeitos afeminados: então, agora
você virou essa pessoa? Então, a referência era esse corpo
negro, afeminado e feminino.
Marcos vem à tona com outras provocações e lembran-
ças: É muito importante você comentar essa questão
de identidades. Eu me lembro de quando eu comecei
a entender as identidades sexuais, de gênero, todas as
letras da sigla LGBTI+. Antes, na minha rua, o pessoal
pichava a sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes).
Eu não tinha essas informações do ser bissexual, da
pessoa trans e travesti. Tanto que eu achava que eu
era corpo destoante, pois eu gostava de homens e de
mulheres. A única via possível para mim era a psi-
quiatria e a psicologia. Eu tentava tratar isso, porque,
se eu não conseguisse definir se eu gostava de homem
ou de mulher, escolhendo apenas um gênero, eu estava
errado. Então, eu me sentia muito errado. Quando eu
assumi para minha família a bissexualidade e levava
para casa um dia um homem e no outro uma mulher,
minha família achava que eu era rebelde, que isso tudo
era apenas uma fase e que eu estava querendo chamar
a atenção. Na verdade, não era. Eu estava tentando me
compreender enquanto pessoa.
Harry: Então, nós temos três momentos de infância,
três décadas diferentes. Elas não representam caracte-
rísticas das décadas, mas, sim, das nossas histórias. Uma
era relacionada a essa questão demoníaca, talvez pela
minha história com a Igreja. Eu não tinha referência
nenhuma dessas questões identitárias, como GLS. Essa
discussão estava ausente. Estou resgatando essa memó-
94
É de menina ou menino?

ria, que eu vivi o que era para mim. As memórias do


Marcos estavam relacionadas à prostituição. E o Igor,
essa questão do feminino. O Marcos falou que para ele,
naquela época, já eram apresentadas essas siglas, não é?
Marcos responde o Harry: Sim, eram. Essas siglas
como GLS. Não tinha outras identidades visíveis. Ou
você era gay ou você era lésbica.
Harry complementa o que o Marcos disse: Ou era
simpatizante.
Marcos: Isso!
Igor: Engraçado, eu não conhecia a sigla GLS quando
eu era criança. Eu conheci depois. Eu conhecia a Parada
Gay de São Paulo, assistia quando transmitia na TV.
Agora, a sigla, eu não sabia da sigla. Eu não tenho uma
memória forte.
Harry comenta: Eu conheci a sigla quando era ado-
lescente. No Ensino Médio, eu ouvi falar da sigla e
descobri os significados. Essa discussão para mim era
ausente na escola, em casa e na Igreja. No ciclo de
amizades na escola, de maneira informal e pelo meu
relacionamento com os colegas, essa discussão era muito
presente. Ela se fazia presente no ciclo de amizades de
forma bem violenta: era a “bixinha”, o “viado”. Porém,
em momento algum se discutia.
Igor comenta: Na minha escola também. Eu não lembro
de discutir essas questões de gênero e sexualidade. As
discussões de sexualidade eram associadas à prevenção.
Tinha até um jogo que eles desenvolviam na minha
escola e as professoras de Ciências e Biologia tomavam
a frente. Elas ensinavam como colocar a camisinha,
como se prevenir de ISTs (Infecções Sexualmente
Transmissíveis) e toda aquela pedagogia do horror e do
medo, apresentando imagens de pessoas contaminadas
com ISTs. Elas até falavam enquanto apresentavam as
imagens: “Se você não usar camisinha, você pode ficar
assim, você pode ser contaminado desse jeito”. Não tinha
uma discussão sobre vivenciar seus diversos prazeres.
Marcos comenta: Sim, isso é bizarro. Eu comecei a
fazer teatro muito cedo e lá existiam pessoas que eram

95
João Paulo Baliscei (org.)

declaradamente homossexuais e lésbicas. Só que eu


comecei a conhecer pessoas dissidentes das normas
da sexualidade no Ensino Fundamental e Médio, na
escola, quando eu assumi minha sexualidade. Quando
você (Igor) começou a falar dessas questões de preven-
ção e do uso da camisinha, eu tinha amigas lésbicas
que comentavam comigo: “poxa, elas não tratam das
questões de prevenção das lésbicas, não tratam como a
mulher lésbica deve se prevenir para não pegar nenhuma
doença”. Então, era realmente focado no homem. Até
hoje, quando você ouve uma enfermeira falar sobre o
uso da camisinha, é pensando no homem.
Harry interrompe Marcos: Você discutiu isso na escola?
Você tinha amigas lésbicas.
Marcos responde: Sim, eu tinha/tenho amigas lésbicas.
Harry questiona: E vocês conversavam sobre isso?
Marcos responde: Sim, mas conversávamos entre nós.
O engraçado é que, quando eu leio sobre a história do
movimento LGBTI+ que fala sobre os guetos, eu me
lembro de nós marcando reuniões de estudo na casa
de um amigo ou de outra. Eu morava na periferia e
a maioria das pessoas que estavam no meu convívio,
ali da escola, era de periferia. Então, essas reuniões
de estudo aconteciam quando os pais saiam de casa e
ficávamos sozinhos. Era uma reunião para nos rela-
cionarmos entre si.
Igor interrompe Marcos: Nossa, o Marcos era
libertário!
Marcos diz: Eu não era libertário. Eu tive uma expe-
riência de enfrentamento.
Igor questiona: Você já fazia teatro nessa época?
Marcos responde: Sim. A homossexualidade e a les-
bianidade eram coisas naturalizadas no teatro. Era uma
forma muito livre. Eu passei a conviver com pessoas
que já discutiam isso. Então, eu tive um contato muito
cedo com isso. Só que nós conversávamos entre nós,
era o nosso gueto.

96
É de menina ou menino?

Igor comenta: Eu não tinha amigos gays ou lésbicas.


Eu tinha amigas que jogavam futebol e eram mais
masculinizadas. No Ensino Médio, uma das minhas
amigas veio me confessar que estava se relacionando
com uma mulher, mas ela não assumia a identidade
lésbica. No Ensino Fundamental, eu não vivenciei essas
saídas de armário, do tipo: “sou lésbica”, “sou gay”. No
Ensino Médio, eu já vivenciei isso.
Marcos comenta: Eu me lembro da primeira vez que
tive contato com a palavra sapatão. Foi engraçado. Tinha
uma menina, na minha rua, que era mais masculini-
zada, tinha uma voz grossa e muitos pelos no corpo. A
sociedade e o bairro onde eu morava falavam que ela
era sapatão. Sempre observava os meninos chamando-a
de sapatão e, por conta disso, eu passei a chamar de
sapatão também. Teve um momento que eu perguntei
a uma amiga: “mas, por que sapatão? É por que ela
tem um pé grande?”. Minha amiga respondeu: “não, é
porque ela gosta de mulher, de couro e sapato”. Então,
foi assim que eu tive contato e comecei a conhecer. Isso
acontecia na escola, para você ser aceito em um grupo
de amigos, você tinha que se enquadrar naquele perfil.
Igor comenta: Estou recordando sobre a referência
de ser gay associado às feminilidades. Eu tinha uma
pessoa na família que todos suspeitavam da sexualidade,
porque ele já morou com um gay durante a faculdade,
falava de forma afeminada e pintava o cabelo. Então, a
referência de ser gay, associada à feminilidade é muito
forte na minha família. O pessoal da minha família até
comenta: “que bom que você já se assumiu, ao contrário
daquela outra pessoa que conhecemos”.
Harry comenta: Eu não vivi nada disso. As escolas em
que estudei eram completamente binárias. Meninos e
meninas. Não tem figura lésbica e não me lembro de
figuras afeminadas. Tinha um menino que, hoje, per-
cebo o quanto ele era forte, pois ele enfrentava as opres-
sões. Eu estava na sétima série e tinha medo de estar
perto desse menino. Ele era forte no sentido afeminado.
Marcos questiona: Mas, Harry, você era um corpo gay
nessa escola. Então, acredito que não era uma questão
binária. Você silenciou seu prazer.
97
João Paulo Baliscei (org.)

Harry responde: Eu era um corpo gay. Sim, eu silenciei


meu prazer. Eu me silenciei completamente, pois sentia
que eu era o holofote de tudo. Eu não conseguia nem
ficar atento a outras coisas. Eu não tinha nenhuma
referência. Era como se eu estivesse em uma viagem
sem destino. A única referência que tinha era de ser
menino masculino. A única referência do corpo gay
era essa forma depreciativa. Eu não tinha com quem
conversar. Eu tinha uma grande amiga e sinto que eu
era um grande amigo para ela também, pois nós nos
acolhemos. Ela era oriunda de uma família, em que a
maioria eram mulheres que criaram seus filhos sozinhas.
Ela fugia das normas de ser mulher na escola e, por isso,
era excluída. Logo, os dois excluídos se juntaram. Nós
nunca tratávamos de sexualidade. Ela comentava, às
vezes, mas, eu nunca me permiti falar sobre isso. Essa
amiga atravessou minha vida por muito tempo. Então,
eu vivi em uma escola muito complicada e foram muitas
violências, inclusive os professores que não souberam me
acolher. Hoje, vivenciando a condição de ser professor,
eu vejo tudo isso de forma assustada. Enquanto pro-
fessor, eu sempre presto atenção nos alunos que ficam
no fundo da sala e se estão vivenciando algum tipo de
violência. Não é possível que um professor não perceba
essas questões na sala de aula.
Igor e Marcos ficam em silêncio.
Harry continua: Na época da escola, os professores
faziam chamada por número e, todo ano, eu tinha pavor
de ser o número 24 da sala. Eu sofri muita violência na
escola. Eu respondia a chamada com vergonha da minha
voz. Por vezes, eu respondia de maneira um pouco
afeminada e as opressões já começavam ali mesmo, na
chamada. Então, eu tinha pavor de falar qualquer coisa.
O único lugar em que me sentia acolhido era em casa,
com a minha mãe. Mesmo não falando sobre sexuali-
dade em casa, eu era querido pela minha mãe e pelas
minhas irmãs. Era o único espaço em que eu podia ser
quem eu era, sem ficar tenso, atento. Eu passava o dia
pensando nesses momentos de opressões. Parecia que
eu estava escondendo algo e precisava esconder ou ser
escondido. Ninguém podia ver. É como se você fosse
uma fraude. Isso é comum entre as pessoas LGBTs
98
É de menina ou menino?

e negras, pelo menos entre as pessoas com quem eu


converso. Muitas vezes, essas pessoas sentem que não
são capazes de ocupar aquele lugar e se sentem uma
fraude quando ocupam este lugar. Eu acredito que nós,
enquanto LGBTs, vivenciamos algo que não somos, uma
fraude. Por exemplo, somos uma fraude ao performar
uma masculinidade pura, pois nós não somos isso.
Marcos comenta: O meu contexto é de muita miséria
social, material mesmo. Eu me lembro de uma conversa
que tive com um amigo declaradamente homossexual.
Ele comentou comigo: “Marcos, nós não temos nada
a perder. Então, não se perca de você.” Isso fez muito
sentido para mim. Os maiores problemas que eu tinha
no meu bairro era a questão material. Eu, por exemplo,
quando fui expulso de casa, não fui expulso por conta da
minha sexualidade. Eu fui expulso de casa com 13 anos
por conta do meu pai alcoólatra, dependente químico.
Então, nós tínhamos problemas maiores. Minha mãe
falava: “nós temos problemas maiores para resolver, ao
invés de ficar discutindo se você é viado ou não”. Os
problemas eram a fome, a falta de dinheiro, as contas
de água e de luz que sempre cortavam. Então, assumir
a sua sexualidade no contexto em que eu vivia era uma
forma de enfrentamento e demarcar: sou assim mesmo.
Por mais que as pessoas naquele contexto associavam
a doenças e outras questões, essa era forma de garantir
o respeito delas.
Após a última narrativa, os pesquisadores se entreolharam, em
silêncio. Mesmo que os diálogos tenham fluído, por meio de suas remi-
niscências, talvez, fosse o momento de parar e de digerir tudo o que
vivenciaram naqueles poucos minutos.

ATO FINAL: CONCLUSÃO

Para Manuela Carneiro da Cunha (2009), os resultados de uma


pesquisa que se utiliza de narrativas para compreender a história de vida
privada apresentam como a cultura é um traço marcante na formação do
indivíduo com seus hábitos, seus costumes, seus valores, sua educação,
entre outros aspectos que o constituem. Assim, destacando como as

99
João Paulo Baliscei (org.)

diferenças culturais por meio das narrativas de si contribuem para os


modos de ser e de viver em sociedade. Dessa forma, os pesquisadores,
ao dialogarem sobre gênero e sexualidade, interseccionaram com a
Educação. Teceram, assim, caminhos para compreender quais traços
culturais se formaram e se desenvolveram no processo educacional e,
assim, implicaram questões de gênero e sexualidade.
À guisa de conclusão, identificamos, por meio das reminiscências
e das narrativas, como a estrutura do machismo, da homofobia e do
sexismo se consolidara na Educação dos pesquisadores. Dessa forma,
as narrativas, que se propõem a pensar as temáticas de gênero e de
sexualidade dentro do âmbito educativo, por meio do diálogo para o
enfrentamento à violência homofóbica, é uma provocação constante.
Acreditamos ser importante analisar as narrativas voltadas para o
respeito à diversidade sexual, pois, segundo Sílvio Gallo (2007), é por
meio dessas narrativas que se consolidam políticas públicas educacionais.
Compreendê-las, então, possibilita que novos projetos sejam execu-
tados em acordo com as necessidades mais primárias sobre o assunto.
Além disso, oportunizar que pessoas LGBTI+ possam dialogar sobre
suas vivências, suas trajetórias e suas resistências no meio educativo é
uma forma de deslocar os modos de pensar a educação e o modo de
aprender e ensinar.

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento


do ser. Tese (Doutorado em Educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.). Cultura com aspas e outros ensaios. São
Paulo: Cosac Naify, 2009.

GALLO, Sílvio. Educação menor: produção de heterotopias no espaço escolar. In:


RIBEIRO, Paula Regina Costa; SILVA, Méri Rosane Santos da; GOELLNER, Silvana
Vilodre. Corpo, gênero e sexualidade: composições e desafios para a formação docente.
Rio Grande: FURG, 2007. p. 93-102.

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos da economia política e os


estudos póscoloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade glo-

100
É de menina ou menino?

bal. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra:


Almedina, 2009. p. 383-417.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Trad. de João


Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28,
jan/fev/mar/abr 2002.

101
João Paulo Baliscei (org.)

A CONSTRUÇÃO VISUAL DO

FEMININO
Onde estão as artistas mulheres?
Uma busca em livros didáticos para o Ensino Médio;

Mulheres e Natureza: aproximações e afastamentos generificados;

Menstruação e manifestações artísticas:


um caminho para construir e reconstruir significados;

“Ela será salva pela sua maternidade”:


representações femininas entre Evas e Marias;

“Garota?” - Doris, a “irmã feia” da animação Shrek:


Cultura Visual e Transgeneridades;

“O meu irmão tinha uma boneca e o meu irmão mais novo usava isso como
chantagem”: Representações Sociais de educadoras da Educação Básica sobre gênero.

102
É de menina ou menino?

Figura 1: Cartaz As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São
Paulo?, do coletivo Guerrilla Girls.
Fonte: MASP. Disponível em: <https://masp.org.br/busca?search=guerrilla>.

ONDE ESTÃO AS ARTISTAS MULHERES?


UMA BUSCA EM LIVROS DIDÁTICOS PARA O ENSINO MÉDIO
Vinícius Stein 28
Zuleika de Paula Bueno29
José Henrique Rollo Gonçalves30
Rose Mari Ramos31

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste texto apresentamos os resultados iniciais de uma pesquisa


vinculada ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
28 
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Professor no
Curso de Artes Visuais da UEM. Integra o Grupo de pesquisa em Arte, Educação e
Imagens – ARTEI (CNPq/UEM). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2140194065685423.
29 
Doutora em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
Professora no Curso de Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UEM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3201079249245037.
30 
Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ. Professor no Curso de História, no Mestrado Profissional em Ensino de
História (Profhistória) e no Mestrado Profissional em Políticas Públicas na UEM.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3295232368887413.
31 
Graduada em Arte-Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste - Uni-
centro. Professora de Arte na Educação Básica pela Secretaria de Estado da Educação
e do Esporte - Seed-PR. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6015913801265315.
103
João Paulo Baliscei (org.)

(Pibid), da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Referimo-nos


às ações realizadas entre os meses de outubro de 2020 e junho de 2021,
pelo núcleo de Arte32 do subprojeto interdisciplinar nas áreas de Arte,
História e Sociologia, vinculado ao projeto institucional da UEM.
O Pibid integra a “Política Nacional de Formação de Professores
do Ministério da Educação, visando intensificar a formação prática nos
cursos de licenciat ura e promover a integração entre a educação básica e
a educação superior” (BRASIL, 2019). Por meio de bolsas de iniciação
à docência33, possibilita aos estudantes que estão na primeira metade
dos cursos de licenciatura, a inserção em escolas públicas de Educação
Básica, com o propósito de contribuir para o aprimoramento da formação
de docentes em nível superior (BRASIL, 2019).
A pandemia de Covid-19, cujos impactos foram agravados devido à
má gestão realizada pelo governo federal brasileiro (BBC, 2021), impediu
o desenvolvimento de ações em campo, isto é, no espaço escolar. Diante
disso, as atividades de formação docente foram conduzidas e realizadas
de modo remoto. Dedicamos os primeiros meses do subprojeto para
pesquisas e estudos interdisciplinares34 e, além disso, cada núcleo realizou
ações orientadas para suas especificidades. Entre os integrantes do núcleo
32 
O núcleo de Arte é composto pelo coordenador de área (Vinícius Stein), pela
professora supervisora (Beatris Ribeiro Rocha, de outubro a fevereiro de 2021; e Rose
Mari Ramos, a partir de março de 2021) e por estudantes dos cursos de graduação
em Artes Cênicas e Artes Visuais da UEM (Brenda Monique Romanoski Ferreira,
Camila Ferreira de Oliveira, Carol Eduarda Schavaren de Lima, Carolina Von Der
Osten Mocelin, Daniel Macedo Lanes, Gabrielle Faria de Souza, Heron Gabriel
Alvares, Julia Harume Fujii, Letícia Garbuggio Armelin, Marjorie Donizeti Assano
e Mérily Nunes Monteiro da Silva).
33 
Apesar de o Pibid contribuir significativamente para a formação de professores
desde seu lançamento em 2007 (GATTI, ANDRE, GIMENES e FERRAGUT,
2014), ao longo dos anos, o programa tem sido alvo de disputas políticas e tem tido
sua execução afetada por ameaças de extinção e cortes orçamentários (CASTILHOS
e KNOBLAUCH, 2019), com expressiva redução no número de bolsas a partir de
2018 (BRUNS e RAUSCH, 2021).
34 
Parte das ações realizadas nesse período são descritas no texto Aproximações entre
arte-educação e o ensino de Sociologia: exercícios de Image Watching, de Zuleika de Paula
Bueno, Vinícius Stein, José Henrique Rollo Gonçalves e Danilo Cesar Macri Lazare
(2021), apresentado no 7º Encontro nacional sobre o ensino de Sociologia na Educação
Básica - ENESEB, promovido pela Universidade Federal do Pará - UFPA.
104
É de menina ou menino?

de Arte, tratamos sobre o objeto de estudo dessa área de conhecimento na


educação escolar, especialmente no Ensino Médio, atendendo a questões
comuns entre os estudantes, tais como: Quem define quais artistas e
exemplos de criações artísticas são expostos? O professor tem autonomia
para selecionar as temáticas e exemplos de Arte em suas aulas?
Mobilizados por essas perguntas, iniciamos uma investigação,
ainda em desenvolvimento, amparada metodologicamente em princípios
da Pesquisa Educacional Baseada nas Artes - PEBA 35 (DIAS, 2013;
IRWIN, 2013) e da A/r/tografia36 (BORRE, 2020; DIAS, 2013; HER-
NÁNDEZ, 2013; IRWIN, 2013). Nela, temos como objetivo identificar
quais artistas e grupos artísticos são expostos em livros didáticos para o
Ensino Médio e, com isso, mensurar quais nacionalidades, identidades
de gênero, etnias e modalidades de criação artísticas são visibilizadas e
invisibilizadas nas publicações pesquisadas.
Neste texto, tratamos especificamente sobre a desigual distribui-
ção e representatividade entre artistas homens e mulheres37 nos livros
consultados. Inicialmente apresentamos exemplos de criações artísticas
que nos mobilizaram a analisar os livros didáticos de Arte para o Ensino
Médio. Adiante, mencionamos os critérios utilizados para análise dos
livros e os resultados identificados. Por fim, indicamos as ações em
desenvolvimento mediante a constatação da baixa representatividade
de mulheres artistas nas publicações.

35 
Belidson Dias (2013) utiliza a tradução literal da expressão em língua inglesa Art-
s-based educational research (ABER). Segundo o autor, no Brasil também é utilizada a
terminologia Investigação Educacional Baseada nas Artes (IEBA).
36 
Conforme Dias (2013, p.25) “A/R/T é uma metáfora para: Artist (artista), Resear-
cher (Pesquisador), Teacher (Professor) e graph (grafia): escrita/representação. Na a/r/
tografia saber, fazer e realizar se fundem”. Assim, ao elegermos a a/r/tografia como
orientação metodológica, pretendemos que os participantes do Pibid vinculados ao
núcleo Arte vivenciem três formas de ser próprias às práticas a/r/tográficas (ser artista,
ser pesquisador e ser professor). Os resultados apresentados aqui referem- se particu-
larmente à dimensão da pesquisa.
37 
Discutimos a representatividade de homens e mulheres artistas, pois não identifi-
camos nas publicações artistas com outras identidades de gênero.
105
João Paulo Baliscei (org.)

ARTE CONTEMPORÂNEA, DESIGUALDADES DE GÊNERO E


EDUCAÇÃO ESCOLAR

Uma das propostas que mobilizou nossa investigação foi o projeto


História da_rte, desenvolvido por Ananda Carvalho, Bruno Moreschi
e Gabriel Pereira, por meio do qual investigaram a construção dos dis-
cursos oficiais da história da arte em 11 livros38 utilizados em cursos de
graduação em Artes Visuais no Brasil.
Moreschi convidou pesquisadores de diferentes áreas para a rea-
lização de um projeto capaz de “[...] mensurar o cenário excludente da
História da Arte oficial estudada no país” (HISTÓRIA..., 2021). Após
analisar mais de 5000 páginas dos 11 livros, a equipe sistematizou pla-
nilhas com os nomes; anos de nascimento e morte; locais de nascimento,
trabalho e morte; identidade de gênero e etnias; e técnicas principais
utilizadas pelos 2.443 artistas identificados. Mediante análise quantitativa
e qualitativa desses dados, os pesquisadores verificaram que a narrativa
acerca da história da arte apresentada pelos livros é estruturada para
excluir mulheres, artistas negros/as e não-europeus e valoriza a pintura
como meio de criação. Conforme registram:
de um total de 2.443 artistas, apenas 215 (8,8%) são
mulheres, 22 (0,9%) são negras/negros e 645 (26,3%)
são não europeus. Dos 645 não europeus, apenas 246 são
não estadunidenses. Em relação às técnicas utilizadas,
1.566 são pintores (HISTÓRIA..., 2021).

38 
Os livros analisados pela equipe do projeto História da _rte foram: 1) A História da
Arte (de Ernst Hans Gombrich, Editora LTC, 2000, 688 páginas). 2) Arte Moderna
(de Giulio Carlo Argan, Cosac Naify, 1992, 709 páginas). 3) Arte Contemporânea:
Uma História Concisa (de Michael Archer, Martins Fontes, 2001, 263 páginas). 4)
Arte Contemporânea: Uma Introdução (de Anne Cauquelin, Martins Fontes, 2005,
169 páginas). 5) Conceitos Fundamentais da História da Arte (de Heinrich Wölfflin,
Martins Fontes, 2015, 348 páginas). 6) Estilos, Escolas & Movimentos: Guia Enci-
clopédico da Arte (de Amy Dempsey, Cosac Naify, 2005, 304 páginas). 7) Guia de
História da Arte (de Giulio Carlo Argan e Maurizio Fagiolo, Editorial Estampa,
1994, 158 páginas). 8) Iniciação à História da Arte (de Horst W. Janson e Anthony F.
Janson, Martins Fontes, 2009, 475 páginas). 9) Teorias da Arte Moderna (de Hers-
chel B. Chipp, Martins Fontes, 1988, 675 páginas). 10) Tudo sobre Arte (de Stephen
FarthingSextante, 2010, 576 páginas). 11) História da Cidade (de Leonardo Benevolo,
Perspectiva, 2009, 728 páginas) (CARVALHO, MORESCHI e PEREIRA, 2019).,
106
É de menina ou menino?

Além do texto, a equipe analisou e identificou algumas recorrências


nas imagens e verificou que “[...] o discurso de exclusão e normatividade
dos livros não se restringe ao seu conteúdo textual, mas também ao
imagético”. Conforme detalham:
Das 5.516 imagens dos 11 livros, um total de 1.060
possui pelo menos uma figura feminina, sendo que
44,3% delas são de corpos femininos nus ou seminus.
Já a figura masculina aparece em 763 imagens, sendo
que 18,95% delas com homens nus ou seminus – e, dessa
porcentagem, 48,2% são na verdade representações de
Jesus (CARVALHO, MORESCHI e PEREIRA,
2019, p. 36).

Segundo a equipe, os resultados apresentaram uma “[...] narrativa


excludente, branca, misógena, eurocêntrica e extremamente autoritá-
ria”. Em oposição a esta lógica, eles buscaram dar uma resposta “[...]
a partir de uma prática que fosse acessível e ativista” (CARVALHO,
MORESCHI e PEREIRA, 2019, p.39), materializada na forma de um
panfleto39. O material, criado pelo designer Guilherme Falcão, apresenta
textos, gráficos e mapas que mostram os principais dados encontrados.
A estratégia de apresentação das informações se aproxima da linha de
experiências do campo do ativismo de dados.
Outra referência para nossa pesquisa foram as proposições
do coletivo Guerrilla Girls. Em seu website, o grupo se apresenta da
seguinte maneira:
As Guerrilla Girls são artistas ativistas feministas.
Usamos máscaras de gorila em público e usamos fatos,
humor e visuais ultrajantes para expor preconceitos
étnicos e de gênero, bem como corrupção na política,
arte, cinema e cultura pop. Nosso anonimato mantém o
foco em nossas questões e não em quem somos: podemos
ser qualquer uma e estamos em todos os lugares. Acre-
ditamos em um feminismo intersetorial que combate a

39 
O panfleto teve tiragem de 13 mil exemplares em português e 2 mil em inglês e foi
distribuído gratuitamente ao longo do ano de 2017 na entrada de museus do Brasil e de
outros países selecionados pela equipe. Também está disponível no website do projeto
(https://historiadrte.cargo.site/resultados).
107
João Paulo Baliscei (org.)

discriminação e apoia os direitos humanos de todas as


pessoas e de todos os gêneros. [...]. (Tradução nossa, 2021).
Um exemplo de como o coletivo expressa artisticamente seus
princípios pode ser visualizado na composição intitulada As mulheres
precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?, Figura 1,
que abre esse capítulo, a qual foi exibida na exposição Guerrilla Girls:
Gráfica 1985 - 2017, realizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand - MASP, entre setembro de 2017 e fevereiro de 2018.
Sobre um fundo amarelo vibrante e acompanhada de uma reprodução
da personagem feminina da tela A Grande Odalisca40, cujo rosto origi-
nal fora coberto pela cabeça de uma gorila, a pergunta feita em letras
garrafais no topo do cartaz é respondida logo abaixo: “Apenas 6% dos
artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são
femininos”. A composição faz referência ao cartaz Do women have to be
naked to get into the Met. Museum? [As mulheres precisam estar nuas para
entrar no Met. Museum?] realizado pelo coletivo em 1989, atualizada às
informações do museu brasileiro.
O apagamento de mulheres artistas nas narrativas hegemônicas
da história da arte também foi questionado pelas artistas EvaMarie
Lindahl e Ditte Ejlerskov Viken, por meio do projeto About: The Blanck
Pages [Sobre: as páginas brancas]. As autoras problematizaram a coleção
Basic Art [Arte Básica], publicada pela destacada editora alemã Taschen,
na qual cada livro apresenta um estudo monográfico sobre a obra de um
artista. Em 2014, as artistas realizaram um levantamento dos títulos
da coleção e constataram que dos 97 artistas publicados, apenas 5 eram
mulheres. Mediante uma extensa pesquisa, a dupla realizou um levan-
tamento de 100 artistas mulheres que atendiam aos requisitos da editora
para compor a série, como ter participado em exposições de museus e
a representação em importantes coleções (MASP, 2019). A lista foi
enviada em abril de 2014 à editora por meio de uma carta. Até 2019,

40 
A Grande Odalisca (1814) - Pintura de Jean Auguste Dominique Ingres (1780 - 1867),
disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ingre,_Grande_Oda-
lisque.jpg.
108
É de menina ou menino?

quando a instalação Sobre: as páginas brancas (Figura 2) foi apresentada


na exposição Histórias Feministas, a carta não havia sido respondida.
A instalação consiste na exposição dos 100 livros cujas capas fazem
referência às artistas pesquisadas pela dupla e imitam o design da série
Basic Art [Arte Básica] da editora Taschen, misturados aos demais títulos
publicados na coleção. Os exemplares são apresentados em estantes,
como as de livrarias, contudo, aqueles criados pela dupla, e que atri-
buem protagonismo às artistas mulheres, têm suas páginas em branco,
“[...] materializando a ausência dessas histórias, ainda a serem escritas
e publicadas” (MASP, 2019, p. 240).

Figura 2 - EvaMarie Lindahl e Ditte Ejlerskov Viken. Sobre: as páginas brancas. Insta-
lação. 200 livros e cartaz em impressão digital sobre papel. Em exposição no MASP.
Fotografia de Eduardo Ortega.
Fonte: MASP. Disponível em: <https://masp.org.br/acervo/obra/sobre-as-pagi-
nas-brancas>.

Esses três projetos artísticos problematizam os discursos oficiais


de legitimação da história da arte, investigando tanto as narrativas ofe-
recidas em livros, quanto aquelas promovidas em exposições realizadas
por instituições, como os museus. Partem de uma pesquisa quantitativa
e apresentam os dados levantados por meio intervenções artísticas.

109
João Paulo Baliscei (org.)

IDENTIFICANDO ARTISTAS EM LIVROS DIDÁTICOS DE ARTE

Como mencionamos anteriormente, os procedimentos utilizados


pelos artistas nos motivaram a analisar livros didáticos entregues aos
estudantes do Ensino Médio. Selecionamos o livro Percursos da Arte, da
Editora Scipione, escrito por Beá Meira, Silvia Soter e Rafael Presto
(2016), pois consistia no material didático disponível aos estudantes do
Ensino Médio na escola vinculada ao Pibid. O livro, de 376 páginas, foi
distribuído pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD) no ano de 2018 (BRASIL, 2017) e seu uso será descontinuado
e substituído pela escolha feita pelas escolas no PNLD 2021 (BRASIL,
2020). Tendo em vista a continuidade do subprojeto do Pibid no próximo
ano, também selecionamos um exemplar que integra a lista de títulos
aprovada para o PNLD 2021. Como a escola vinculada ao subprojeto
ainda não havia selecionado a obra para o próximo ciclo, elegemos o
livro #Novo Ensino Médio, de 208 páginas, escrito por Mariana Lima
Muniz, Murilo Andrade Rocha e Gabriela Córdova Chirstófaro (2020),
pois também fora publicado pela editora Scipione.
A primeira etapa para pesquisa nos livros selecionados consistiu
na identificação dos nomes de todas as pessoas e grupos41 mencionados,
mediante leitura das publicações na íntegra. Após a listagem dos nomes,
tendo como referência a sistematização feita pela equipe do projeto His-
tória da _rte (História..., 2019), criamos planilhas para complementar
dados sobre as pessoas e grupos identificados. Para preencher a planilha
referente às pessoas, buscamos informações biográficas sobre cada uma
delas e organizamos nas seguintes categorias: Nome, identidade de gênero,
etnia, ano de nascimento e morte, continente e país de nascimento e
morte, modalidade de criação e fonte da pesquisa42. Aqui, apresenta-

41 
Realizamos a opção de registrar também os nomes de grupos, para não legitimar
a ideia comum de que a Arte é produzida apenas individualmente. Neste texto tra-
tamos apenas dos dados sobre o gênero dos artistas. Informações sobre etnia, ano de
nascimento e morte, continente e país de nascimento e morte, modalidade de criação
e sobre os grupos serão objeto de análise em outras publicações.
42 
Priorizamos as buscas nas seguintes plataformas: Oxford Art Online, Enciclopédia
Itaú Cultural e Wikipédia.
110
É de menina ou menino?

mos os quantitativos referente ao número de artistas mencionados e à


distribuição entre homens e mulheres, pois os demais dados coletados
serão objeto de análise em outras publicações.
Tabela 1 - Dados sobre pessoas identificados nas publicações
Percursos da Arte #Novo Ensino Médio
Total de nomes
646 100% 105 100%
citados
Artistas43 522 80.80% 49 46.66%
Outros44 124 19.19% 56 53.33%
Fonte: Os autores.

Tabela 2 - Dados sobre gênero e etnia dos/as artistas


Percursos da Arte #Novo ensino Médio
Percentual do Percentual do
número total de número total de
Número total artistas Valor total
artistas
Homens (total) 437 83.71% 45 40 81.63%
Mulheres (total) 85 16.28% 9 18.36%
Fonte: Os autores.

Destacamos, a diferença no quantitativo de referências artísticas


entre uma publicação e outra. Enquanto Percursos da Arte nomeia 522
artistas, #Novo Ensino Médio traz apenas 49. Avaliamos que essa redução
está relacionada ao enfraquecimento da Arte na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), conforme analisa José Roberto Pereira Peres Peres

43 
Consideramos como artistas as pessoas cujas criações estão relacionadas às seguintes
modalidades de criação: Artes Visuais - inclui pessoas com produção nas áreas de arte digital,
body art, curadoria, desenho, design (moda, gráfico, têxtil e objetos), escultura, fotografia,
gravura, instalação, intervenção, performance, pintura e quadrinhos; Teatro - inclui pessoas
envolvidas com criação teatral, isto é, dramaturgos, atores, diretores e cenógrafos; Música -
inclui pessoas envolvidas com a criação musical, tal como, compositores, letristas, arranjadores,
instrumentistas e cantores; Dança - inclui pessoas envolvidas com a criação em dança, ou
seja, coreógrafos, dançarinos, bailarinos, cenógrafos e diretores; e Audiovisual - inclui pessoas
que se dedicam a criação de vídeos para cinema e televisão (diretores, roteiristas, produtores
e atores) e jogos eletrônicos (animadores, roteiristas, programadores, etc.).
44 
Listamos como Outros as pessoas que não se dedicam a nenhuma das modalidades de
criação anteriores, como, por exemplo, antropólogos, arquitetos, biólogos, cartógrafos,
colecionadores, educadores, empresários, escritores, filósofos, historiadores, jornalistas,
militares, nobres, pensadores, pesquisadores, poetas, políticos, religiosos, sociólogos, etc.).
45 
Devido ao arredondamento, a soma dos percentuais é diferente de 100% em algu-
mas tabelas.
111
João Paulo Baliscei (org.)

(2017). Esta situação também foi anunciada por Ana Mae Barbosa, em
2016, quando versões preliminares da BNCC estavam disponíveis para
consulta pública. Para a autora, a inserção da Arte na área de Linguagens
e suas Tecnologias no Ensino Médio, como um “sub-componente”, con-
siste em uma estratégia “SUB-repticiamente intencional com o objetivo
de, sem ferir a Lei de Diretrizes e Bases, retirar Arte do currículo, ou
melhor, não contratar professores de Artes, que ficarão atreladas às outras
disciplinas” (BARBOSA, 2016). De fato, o PNLD 2021, amparado pela
BNCC, não apresentou um livro didático específico para Arte, como no
PNLD 2018, mas sim, de Linguagens e suas Tecnologias.
Apesar da diferença no quantitativo de referências artísticas, de
modo geral, as publicações reproduzem a lógica de inviabilização da
Arte produzida por mulheres: Em Percursos da Arte, dos 522 artistas, 437
são homens e 85 mulheres e em #Novo ensino médio, dos 49 artistas, 40
são homens e 9 mulheres. Em ambos, cerca de 80% dos artistas men-
cionados são homens. Essa desigualdade, além de ser problematizada
pelos projetos artísticos que apresentamos, também tem sido discutida
no âmbito acadêmico por Luciana Loponte (2005, 2008, 2014) e Ana
Mae Barbosa e Vitória Amaral (2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que esta pesquisa foi realizada em um projeto de


iniciação à docência, compreendemos que mensurar o cenário excludente
dos livros didáticos é uma ação relevante, mas, para além disso, é neces-
sário propor alternativas para superar a desigualdade constatada e no
esforço de gerar mudanças significativas por meio da educação escolar.
É nesse contexto que se inserem as próximas etapas das ações do
núcleo de Arte, em uma perspectiva a/r/tográfica, como anunciamos em
nossa introdução. Nesse momento os estudantes trabalham motivados
por outras questões: Como transformar os dados da pesquisa em Arte?
Como dar visibilidade à desigualdade de gênero na Arte por meio de
outros suportes? Como articular diferentes modos de ser (ser artista/ser
professor/ser pesquisador) em uma mesma ação?

112
É de menina ou menino?

Mobilizados por elas, iniciamos um processo de criação coletivo


tendo como referência alguns encaminhamentos propostos por Luciana
Borre (2020, p. 123) para investigações de cunho a/r/tográfico:
combinar a produção poética (imagens/artefatos/pro-
cessos) com a escrita, preocupando-se com o potencial
comunicativo de seus possíveis resultados com realidades
educacionais; (b) utilizar metáforas, metonímia e símbo-
los, como elo de comunicação desses conhecimentos; (c)
dialogar entre as identidades do artista, do professor e do
investigador, em suas dimensões pessoais e sociais, pois as
experiências individuais podem ressoar em muitas outras
pessoas ou grupos; (d) utilizar de práticas/técnicas/ações
artísticas para criar, interpretar e retratar conhecimentos
significativos, criando e explorando novas formas de
estruturar e conceber ideias, abarcando aquilo que se torna
difícil colocar em palavras; (e) conectar experiências e
narrativas autobiográficas; (f) privilegiar nossas emoções,
sentidos, intuições e vibrações corporais, como elementos
primários de processos de criação.

Assim, a análise dos livros didáticos, como uma primeira ação de


pesquisa no Pibid, potencializará outras, de caráter artístico e pedagó-
gico. Com isso, esperamos que os estudantes em iniciação à docência
compreendam que as instituições escolares podem ser um campo aberto a
experimentações e processos de criação que, por sua vez, podem contribuir
para visibilização e redução de desigualdades, especialmente, de gênero.

REFERÊNCIAS

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ganha das lutas. 2016. Disponível em: <http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/
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115
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Elas envolvidas com o ambiente.


Fonte: Elaboração própria, 2021.

MULHERES E NATUREZA:
APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS GENERIFICADOS46

Fernanda Amorim Accorsi47


Judie Maria Rodrigues de Goes Souza48
Ana Claudia Aragão Santos49

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, acentuamos a Natureza como Pacha Mama,


entendida como integralidade de ecossistemas, cujos direitos estão
intrínsecos a sua existência.
46 
Este trabalho é um desdobramento do projeto de pesquisa intitulado Pedagogias
não-violentas: ecofeminismos e articulações para a cultura da paz, cuja realização incide
na Universidade Federal de Sergipe (UFS), com incentivo da Fundação de Apoio à
Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC).
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora da
47 

Universidade Federal de Sergipe (UFS). Líder do Grupo de Pesquisas e Estudos em Práticas


Educativas, Corpo e Ambiente (PEPECA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9618868352125200.
48 
Acadêmica do 3º período do curso de Letras - Língua Portuguesa, da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Participante do Grupo de Pesquisas e Estudos em Práticas Edu-
cativas, Corpo e Ambiente (PEPECA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3312996011679232.
49 
Acadêmica do 7º período do curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Sergipe
(UFS). Participante do Grupo de Pesquisas e Estudos em Práticas Educativas, Corpo
e Ambiente (PEPECA) Lattes: http://lattes.cnpq.br/7911547645870040.
116
É de menina ou menino?

Esquivamo-nos da concepção utilitarista de que ela serve ao ser


humano como propriedade de valor de troca (GUDYNAS, 2019). Nas
próximas linhas planificamos a Pacha Mama, que é tratada no femi-
nino, e foi submetida à hierarquia cultural da exploração e da morte.
No entanto, a opressão a que nos referimos não se restringe à Natureza,
ela se estende às pessoas, não todas, mas especialmente às mulheres
(ROSENDO, 2015; ANGELIN, 2015).
Problematizamos a lógica de dominação que objetifica as mulhe-
res e coisifica a Natureza. A lógica discutida é praticada pelos mesmos
algozes, os quais têm obsessão pelo controle, pela inferiorização e pela
exploração de outrem. O compromisso de preservação do planeta é uma
tarefa ético-política de todas as espécies, afinal, o vínculo entre elas faz
a manutenção das existências (GUDYNAS, 2019). Entretanto, são os
homens, os brancos, bem-sucedidos, cristãos e heterossexuais os principais
responsáveis pela deterioração ambiental e pelas tentativas de controle
da vida das mulheres e da Natureza. A prerrogativa patriarcal se funde
com os pressupostos capitalistas que, juntos, instituem a dominação
masculina sobre a Pacha Mama e sobre o gênero feminino (ROSENDO,
2015; ANGELIN, 2015).
Angelin (2015) discute a trindade masculina do Cristianismo,
representada pelo pai, filho e espírito santo, como uma das perspectivas
que afastaram os seres humanos da Natureza e, ainda, instituíram os
Tribunais de Inquisição, que perseguiram e exterminaram milhares de
mulheres porque as consideravam desordeiras. A Natureza e a mulher
seriam os desvios da ordem estabelecida pela sociedade da época, e
ambas, neste sentido, exigiriam controle e domínio para participarem
dos processos civilizatórios. Diante disso, nosso objetivo é problematizar
as relações de gênero articuladas à Natureza. Adotamos como suporte
teórico- metodológico as discussões dos povos originários (KRENAK,
2019; GUDYNAS, 2019), que anunciam um sistema de vida generoso
e místico, que nada se parece com a concepção de sustentabilidade e
ambiente reverberada pelo mercado, pelas marcas e pelas empresas.

117
João Paulo Baliscei (org.)

Ancoramo-nos nas teorizações Ecofeministas, as quais traba-


lham pela abolição de todas as formas de opressões por compreender
que elas se conectam, se fortalecem e se retroalimentam (ROSENDO,
2015; LESSA; TOSO, 2017; LERNER, 2019; ADAMS, 2018). Para
orientar nosso texto, perguntamos: Quais relações possíveis entre gênero
e Natureza? Nossa hipótese é de que as mulheres estão mais envolvidas
com o ambiente. Reivindicamos espaço para elas criarem seus próprios
significados e articulações, ainda que reconheçamos a existência de este-
reótipos, preconceitos e violências, em razão das práticas de dominação
e hierarquia estarem presentes na sociedade ocidental.

APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS

A sociedade antropocêntrica especista machista determina a


exploração animal e a opressão de mulheres. Por meio da cultura, ela
institui grupos de seres vivos como “de baixo” e “de cima” (ROSENDO,
2015). A responsabilidade pela divisão entre marginalização e suprema-
cia é endossada pela religião e pela ciência (LERNER, 2019; SAINI,
2018). As relações de gênero com base na religião argumentam que
“[...] a mulher é submissa ao homem porque assim foi criada por Deus”
(LERNER, 2019, p. 26). Na ciência, os corpos, anseios, intelectualidades
e necessidades femininas foram ignorados por séculos, uma vez que a
exclusão e/ou sub-representação estavam – e ainda estão – associadas ao
machismo e ao especismo, porque ambos conferem poderes superiores
aos homens (SAINI, 2018).
O consumo de carne e o trabalho doméstico são, respectivamente,
exemplos dos tentáculos da supremacia masculina. Adams (2018, p. 69)
critica que a “masculinidade de um sujeito é afirmada pelo que ele come”,
logo o alimento tem relação direta com os papéis sociais generificados,
ao passo que, o ato de comer, assim como o paladar e os rituais em torno
da nutrição humana, conduz ao binarismo estereotipado de gênero.
Em outras palavras, a carne animal está ligada à caça, cuja prática
envolveria, supostamente, virilidade, agressividade, destemor e vitória.
O cadáver animal é o troféu patriarcal. Entretanto, a caça foi, cultu-

118
É de menina ou menino?

ralmente, substituída pelo preparo e pelo consumo (LESSA; TOSO,


2017). Adams (2018) explica que os livros de culinária sobre churrasco
são os únicos sobre o assunto endereçados aos homens. Ocorre que a
generificação não se restringe à alimentação, pois se estende aos papéis
desempenhados no espaço doméstico, que correspondem à segregação
sexual em que as mulheres são desvalorizadas e sobrecarregadas.
A elas são destinados os significados de passivas, inertes, dóceis,
controláveis e menos evoluídas, assim como os vegetais, alimentos que,
conforme a misoginia, possuem papéis secundários no cardápio ocidental
(ADAMS, 2018; ROSENDO, 2015).
A obsessão dos homens pelo poder tem levado o mundo
a guerras suicidas, ao envenenamento e à destruição do
planeta, à devastaçãodas florestas para alimentar gado
que engorda os bolsos e corpos doshomens ditos carnívo-
ros, nomeados pelos antiespecistas de carniceiros, pois
a carne não foi caçada, foi comprada já em processode
deterioração e putrefação (LESSA; TOSO, 2017, p. 31).

No entanto, as proximidades entre as mulheres e a Natureza


são múltiplas, históricas e culturais. Ainda que existam movimentos
politizados de resgate do enaltecimento feminino, os quais proble-
matizamos mais adiante, observamos que os significados circulantes
são retirados do contexto, distorcidos e adaptados conforme deseja o
sistema capitalista-patriarcal. Na mitologia grega, Gaia, a Mãe Terra,
é considerada a criadora do universo, articulada à vida, à magia e à
fertilidade. A dança cósmica de origem da vida é induzida, pelos donos
do poder, de modo violento quando abarca as mulheres. São lançados
significados que condenam as mulheres cisgênero à homogeneidade da
compulsoriedade da maternidade para, assim, elas serem comparadas à
Gaia (ANGELIN, 2015).
O patriarcado consolida culturalmente o que é natural, a exemplo
da menstruação, da gravidez, da amamentação e da menopausa. Entre-
tanto, por meio da medicina, da publicidade, da escola, da família e da
igreja oprime as mulheres quando, por exemplo, denota o ciclo mens-
trual como vergonha, a gravidez como responsabilidade individual da

119
João Paulo Baliscei (org.)

mulher, a amamentação como um ataque se for realizada em público, e


a menopausa como o fim da vida feminina. Ou seja, o patriarcado esta-
belece que para ser mulher é preciso menstruar, engravidar, amamentar
e entrar no climatério, porém, essa lógica violenta os processos que ela
mesma defende - porque são processos de mulher.
Sugere-se, portanto, que a transgeneridade estaria livre das opres-
sões, mas não. A ausência dos processos tidos como “de mulher” é o
mecanismo usado para violentar as mulheres trans, estruturando-as
em um não lugar. Assim, a ausência também oprime. Por isso, Angelin
(2015) e Saini (2019) explicam que a inferiorização e a dominação de
mulheres se baseiam na concepção de natureza feminina, porque foi
uma invenção da masculinidade hegemônica para definir o que é ser
mulher. Oyewúmí (2004) é taxativa ao afirmar que a categoria mulher,
que conhecemos, é uma invenção do patriarcado-colonial, assim como
também o é a concepção de família nuclear generificada, cuja raiz está
na figura da esposa passiva, domesticada e materna, valores que, sob
nossa ótica, decantam no trato com a Natureza.
A violência contra as mulheres e contra a Pacha Mama é um
método de domesticação, a partir do qual ambas são alocadas em proces-
sos de subordinação, que configuram a estrutura social antropocêntrica,
ancorada na desigualdade de gênero. Neste cenário, a vida no concreto
prevalece porque é normalizada. As pessoas são consumidoras, não cida-
dãs. Ocupadas com o trabalho nem sempre remunerado, são seduzidas a
viver no automático, “[...] em ambientes artificiais produzidos pelas mes-
mas corporações que devoram florestas, montanhas e rios” (KRENAK,
2019, p. 20). O afastamento cultural da Natureza é proposital, porque é
rentável. Rosendo (2015) explica que é intencional a discriminação dos
humanos sobre os outros terrestres, porque a dominação, exploração e
comercialização, que a autora intitula de Naturismo, fomenta as estru-
turas conceituais opressoras.
Esse afastamento se organiza a partir da dicotomia excludente
que trabalha pela oposição entre forte/fraco/a, civilizado/a/bárbaro/a,
razão/emoção, cultura/natureza e homem/mulher. Proposital tam-

120
É de menina ou menino?

bém é o silenciamento e/ou o apagamento da relação entre mulheres


e Natureza em razão delas serem menos exploradoras e mais atentas à
manutenção da vida.
Como coletoras, elas adquiriram um conhecimento
dos vegetais, flores e frutos e puderam aprender, pela
experiência direta e pela observação contínua, o processo
de semeadura e germinação do mundo natural. Passo
seguinte, o reproduziram intencionalmente (KOSS,
2000, p. 73-74).

Portanto, a agricultura é uma invenção cultural das mulheres cam-


ponesas, as quais observaram o tempo, o solo, as sementes, os processos
e trabalharam para alimentar a família, bem como colocaram em xeque
a inferioridade feminina. Elas foram indispensáveis para os processos
evolutivos e conceberam, sobretudo, a possibilidade de uma alimentação
sem carne (ADAMS, 2018; ROSENDO, 2015; LERNER, 2019).
Logo, nossa hipótese de que elas estão mais envolvidas com o
ambiente se confirma parcialmente com a historicidade das mulheres,
cuja imagem apresentamos na Figura 1, que abre esse capítulo: Dian
Fossey, primatologista, fundadora da instituição contra a caça de gorilas
em Ruanda; Dorothy Mae Stang, missionária estadunidense, envolvida
com o reflorestamento de áreas degradadas no Pará, no Brasil; Berta
Cáceres, líder indígena de Honduras, que recebeu o prêmio Goldman por
proteger a terra da deterioração; e Dilma Ferreira Silva, coordenadora do
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), no Brasil. As quatro
ativistas estampam politicamente a abertura de nosso capítulo e, ainda,
compartilham o gênero e o final trágico: foram assassinadas, respec-
tivamente em 1985, 2005, 2016 e 2019, durante a prática de ativismo
ambiental. Neste sentido, entendemos que a relação entre mulheres e
Natureza se dá, também, pelo extermínio.
O genocídio dos povos originários, guardiões da Pacha Mama,
a matança de ativistas ambientais, bem como o feminicídio, cuja recor-
rência sedimentou a criação da Lei 13.104/2015, são o modus operandi
da “[...] barbárie colonial, que ampliam as relações de poder, uma vez
que a cidadania corresponde à imagem de um sujeito masculino, branco,

121
João Paulo Baliscei (org.)

heterossexual, proprietário de bens e letrado” (ACCORSI e MAIO,


2019, p. 36). Os demais seres vivos, que não se enquadram no referido
perfil são “de baixo” e passam por processos de docilização e aniquila-
mento para não criarem raízes que desequilibrem as estruturas opressoras
(ROSENDO, 2015).
O traquejo patriarcal desvaloriza as ações das mulheres porque
organiza as instituições, como as mídias, as escolas, as igrejas e a ciência,
para sedimentarem os pressupostos hierárquicos que as colocam em
segundo plano. Entretanto, nem todo sofrimento é igual e, ainda, nem
todas as mulheres sofrem, uma vez que carinho e dominação podem
andar juntos. Para obter cumplicidade e adesão, inclusive de mulheres, os
mecanismos de controle podem possuir o caráter de gentileza (HOOKS,
2017; FREIRE, 1989).
Neste sentido, o sistema se solidifica porque há, entre os/as opri-
midos/as, cúmplices de suas próprias opressões. Exemplo disso é a
viagem espacial realizada, em julho de 2021, por Jeff Bezos, fundador
da empresa de eletrônicos Amazon, que levou a bordo a aviadora Wally
Funk, de 82 anos. Ainda que treinada para o voo, na década de 60, a
aviadora foi excluída da viagem por ser mulher. O empresário bilionário
inaugura o ramo do turismo espacial e sugere, por meio do convite à
Funk, rever as falhas do passado e enaltecer a história feminina. Aos
olhos mais desatentos, o voo de 11 minutos, que custou um bilhão de
dólares, em meio à Pandemia do Covid- 19, parece um ato de genero-
sidade sem precedentes.
Entretanto, a pseudo redenção com o passado das mulheres esconde
a emergência de estratégias de fuga do planeta, que tem sido devastado
como se houvesse outra possibilidade de morada. Existem especulações
sobre a construção de bunkers espaciais para proteger os seres humanos
com poder aquisitivo do caos que tem tomado a vida na Terra. Diante
da emergência climática, representada por inundações, ondas de calor,
desmatamento, escassez de água potável, extinção de espécies e derreti-
mento de geleiras, o egocentrismo patriarcal é evidenciado pela viagem
à estratosfera, que emite, entre outras coisas, fuligem capaz de colaborar

122
É de menina ou menino?

com o aumento de temperaturas no planeta, o mesmo que deseja ser


visto pela janela do foguete em formato fálico.
Em vez de repensar os estilos de vida ancorados nas cidades, no
consumo exacerbado, cuja prática consolida o faturamento da Amazon,
e, ainda, na visão dualista de sujeitos-Natureza, o voo bilionário sugere
que a vivência na Terra está ultrapassada, obsoleta e popular. Diferente
mesmo é mercantilizar outros lugares, outras possibilidades exclusivas
de manter a hierarquia com base na extinção, assim como o modus
operandi do Covid-19.
O modo de vida predatório instituído pelos “de cima” é minimi-
zado porque junto da injustiça e da depredação, suas ações são apresen-
tadas como atos heroicos de generosidade (HOOKS, 2017; FREIRE,
1989; ROSENDO, 2015). Deste modo, ocorre o afastamento entre as
mulheres e a Natureza porque na medida que elas são seduzidas pelo
patriarcado, se beneficiam do capitalismo. Logo, o capitalismo não
favorece somente os homens, porque existe a dominação de mulheres,
com aspecto de gentileza, seduzindo o grupo oprimido à cumplicidade,
à manutenção de significados pré-estabelecidos, os quais não subvertem
a lógica patriarcal, pelo contrário, a sedimenta.
O sistema do patriarcado só pode funcionar com a
cooperação das mulheres. Assegura-se essa cooperação
por diversos meios: doutrinação de gênero, carência
educacional, negação às mulheres do conhecimento
da própria história, divisão de mulheres pela definição
de “respeitabilidade” e “desvio” de acordo com suas
atividades sexuais; por restrições e coerção total; por
meio de discriminação no acesso a recursos econômicos
e poder político e pela concessão de privilégios de classe
a mulheres que obedecem (LERNER, 2019, p. 267).

Nessa ótica, a hipótese deste trabalho é refutada porque Wally


Funk é um objeto de manobra do patriarcado, enquanto o planeta é
coisa que pode ser descartada. Identificamos a renovação da obsessão
do homem branco ocidental pelo controle. Não satisfeito com o domí-
nio das mulheres, das florestas, das espécies, ele amplia o processo de
exploração por meio do turismo espacial, ocorrido em aeronaves de

123
João Paulo Baliscei (org.)

anatomia falocêntrica, que demonstram mais uma dualidade entre os/


as que podem sair do planeta devastado e os/as que não podem deixá-lo.
Novamente, há os/as “de baixo”, que enxergam, vivem e sofrem com a
devastação, e os/as “de cima”, que olham a tragédia do alto, porque não
são assolados/as por ela. Do foguete, tudo parece menor, entretanto, a
aeronave não é para toda e qualquer pessoa. Nesta perspectiva, quem
contraria a postura abusiva com a Natureza, intuindo a manutenção da
vida na Terra, promovendo as relações multiespécies, deve ser exter-
minada. A mensagem é que a exploração antropocêntrica é definitiva e
não pode ser contrariada.
Às mulheres de grupos ecológicos, comunidades camponesas
e movimentos de justiça ambiental, a morte compulsória. Aquelas,
seduzidas pelos seus algozes, recebem destaque, tornam-se símbolos de
avanço feminino, mesmo que estes sejam construídos com o patrocínio
e, especialmente, a autorização do patriarcado. Petrificadas no universo
masculino, não percebem que o planeta apresentado, finalmente a elas,
tem sido produzido pelos e para os homens. A generosidade é, portanto,
injustiça, porque não altera a ordem das coisas, mas as atualiza, conforme
a necessidade da época em que elas acontecem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse cenário, as mulheres, somadas às crianças e às/aos idosas/


os, são as que mais sofrem com a degradação ambiental. A preservação
do planeta é obrigação de todas as pessoas, mas na lógica capitalista-pa-
triarcal, o sofrimento é desproporcional para as mulheres, uma vez que
elas são, culturalmente, as responsáveis pelas crianças e pelas/os idosas/
os, em razão de ambos os grupos necessitarem de cuidado, este que é
naturalizado, estereotipado e generificado. Diante das crises econômi-
cas, sociais, políticas e sanitárias, as mulheres são as primeiras a serem
afastadas dos bens materiais. São elas que reivindicam água potável e
alimentos saudáveis e, ainda, são injustiçadas na distribuição dos recursos
naturais. A sustentabilidade liberal constrói a crise humana-ambiental

124
É de menina ou menino?

porque faz da sociedade uma grande fazenda lucrativa, que se baseia na


opressão de quem ali existe.
A Mãe Natureza é feminilizada e as mulheres, animalizadas,
significados depreciativos que estabelecem o domínio e o controle dos
homens machistas, que visam ao lucro como eixo fundador de existên-
cia. Entendemos que a divisão de poder, de propriedade, de práticas de
cuidado e de segmentação sexual do trabalho fomenta a relação entre
gênero e Natureza, ainda que o compromisso de sobrevivência do planeta
- e suas múltiplas espécies - seja atribuição de todos/as. As mulheres
têm transgredido a regra de exploração, porque são as protagonistas na
revisão das injustiças sociais e ambientais. São elas que têm proposto
alternativas e soluções em um horizonte coletivo, por uma ética construída
a partir da liberdade e da justiça plural, o que somente é possível com
reais condições de trabalho, moradia, alimentação, direitos reprodutivos,
consciência de classe e de gênero.
Entretanto, constatamos a existência do deslumbre patriarcal,
que ocorre pelofetiche capitalista, em que as mulheres são usadas como
símbolos de uma era histórica em que, mais uma vez, o homem branco,
heterossexual, abastado, é o responsável pelos (tidos) avanços dos processos
civilizatórios. A preocupação do patriarca não é com a mulher, nunca
foi, é com o que a aliança com ela pode representar aos seus negócios.
O afastamento das mulheres com a Natureza beneficia o patriarcado
porque a divisão entre humano e não humano, razão e emoção, Natureza
e cultura e civilizados/as e bárbaros/as não são meras divisões, são hie-
rarquias que instituem as relações de poder e colonizam os imaginários
e os comportamentos dos diferentes grupos identitários.
As relações entre gênero e Natureza nos provocam a pensar que,
mesmo diante das conquistas feministas, as quais vão desde à resistência
indígena, perpassam pelo período escravagista e se estendem até os dias
atuais, há ambivalências e paradoxos que, ainda, instituem às mulheres o
espaço de coadjuvantes, e quando lideram em prol da Pacha Mama, são
exterminadas como as espécies que já não podem ser encontradas na Terra.

125
João Paulo Baliscei (org.)

O aniquilamento de Dian Fossey, Dorothy Mae Stang, Berta


Cáceres e Dilma Ferreira Silva indica a ausência de direitos das mulheres
e da Natureza, ao passo que a vida delas estava associada à preserva-
ção. Sem vida, sem preservação. O extermínio indica a abertura de
caminhos que, antes, pelas existências femininas, estavam repletos de
obstáculos. Agora os trajetos para a exploração estão (mais) livres para
aqueles que consideram as riquezas naturais infindáveis, mas já têm
orientado outros modos de vida fora da Terra. Ao convidar/convocar
Wally Funk à experiência de voo que lhe foi negada décadas atrás, ele,
Jeff Bezos, se apropria da história da aviadora, dando outros contrastes
e contornos conforme sua autorização. Este mecanismo de controle das
histórias femininas não é novo, mas é resiliente e se reinventa, porque
demonstra uma pseudo melhoria no status das mulheres, o que significa
certa vantagem no patriarcado para algumas delas. O ideal, levando em
conta o horizonte coletivo, é uma reforma integrada de transformação
social para abolição do patriarcado. Não há como fazer pactos com os
opressores, é preciso questionar as prerrogativas deste sistema que, ao
destruir a Natureza, desumaniza as mulheres.

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127
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Ilustração de Nicole Miles (edição própria).


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MENSTRUAÇÃO
E MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS: UM CAMINHO
PARA CONSTRUIR E RECONSTRUIR SIGNIFICADOS

Jéssica Fiorini Romero50


Julia Tiemi Kurihara 51

INTRODUÇÃO

“É de menina ou menino?”. Respondemos a esse questionamento


argumentando que os gêneros são construídos socialmente, cultural-
mente e historicamente. Reforçamos nosso ponto de vista a partir das
definições e conceitos propostos por Jaqueline Gomes de Jesus (2012,
p. 8), quem argumenta que Sexo é biológico, gênero é social, construído
pelas diferentes culturas. E o gênero vai além do sexo: O que importa,
na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou
50 
Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá. Integrante
do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens – o ARTEI.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9775136825060582.
51 
Acadêmica do curso de Artes Visuais na Universidade Estadual de Maringá. Inte-
grante do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens – o ARTEI.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9116958700778961.
128
É de menina ou menino?

a conformação genital, mas a auto-percepção e a forma como a pessoa


se expressa socialmente.
Dessa forma, afirmamos, a menstruação pode acontecer com
mulheres, meninas, homens trans, pessoas intersexuais, queer e não
binárias. A figura que apresenta este capítulo, produzida pela artista
Nicole Miles, ilustra, de maneira sutil e bem-humorada, essa afirmação.
Recorremos também a Guacira Lopes Louro (2003, s/p), que reforça
que “Gênero e sexualidade não são definições seguras e estáveis, mas
históricas e cambiantes”. A autora expõe que os corpos vão sendo cons-
truídos a partir de marcas carregadas de significados que são lidos e
entendidos de maneiras diferentes em cada cultura, momento histórico
ou local geográfico, incluindo, até mesmo, a hierarquização entre elas,
como marcas mais relevantes que outras. São marcas, conforme afirma
Louro (2003, s/p), “[...] de raça, de gênero, de etnia, de classe ou de
nacionalidade, decisivas para dizer do lugar social de cada um”. Em vista
disso, entendemos que a menstruação, enquanto uma marca identitária,
passa a ser significada historicamente como um traço inferiorizado e
como constituinte da identidade da mulher (e apenas dela).
Essa marca é notável em construções sociais que ensinam os
corpos que menstruam a esconderem ou mesmo repudiarem o sangue
menstrual, constituindo uma violência de gênero que é normalizada.
Nesse cenário, elaboramos o seguinte questionamento: Como produções
artísticas podem ressignificar tabus acerca da menstruação no contexto
atual? A fim de encontrar respostas para esta pergunta, objetivamos
reunir trabalhos e artistas que manifestam formas de protesto, crítica e
reflexão às questões que envolvem a menstruação. Utilizamos da pesquisa
bibliográfica para traçar diálogos entre tabus que circundam as temáticas
menstruação e manifestações artísticas na atualidade.
Para que esse diálogo fosse possível, recorremos aos aportes teó-
ricos e metodológicos dos Estudos da Cultura Visual e também dos
Estudos de Gênero. Os Estudos da Cultura Visual, em concordância
com Luciana Gruppelli Loponte (2010), são um campo de estudos e
pesquisas que se propõe a pensar criticamente as imagens ao nosso redor,

129
João Paulo Baliscei (org.)

especialmente aquelas que ensinam, produzem e reproduzem modos


de ser e estar no mundo. Já os Estudos de Gênero, conforme Jesus
(2012) e Louro (2003), investigam e se preocupam com as limitações,
restrições e formas de regular os corpos no meio social.
Nessa escrita, de início, apresentamos o processo de transição
a partir do qual a menstruação passa de sagrada, a ser tratada como
nojenta e impura. A isso relacionamos com a inserção da moral cristã e/ou
patriarcal. Em sequência, atentamo- nos sobre como a cultura oportuniza
a disseminação de tabus a respeito da menstruação através da falta de
diálogo sobre o assunto, motivando, muitas vezes, constrangimento e
repulsa. Por último, em outro tópico, buscamos manifestações artísticas
que ressignificam tais práticas. Apontamos que a arte possui potencial
para a criação de outros significados à menstruação.

DO SAGRADO AO NOJENTO

Liv Strömquist (2018) expõe que anterior à disseminação de cren-


ças e religiões patriarcais na sociedade, a menstruação fora tratada por
sociedades de estruturas matrilineares como misteriosa, mágica, divina,
sobrenatural e sagrada - em função da sincronicidade com forças cósmicas,
marés e ciclos lunares. E afirma que “[...] a menstruação passou de fazer
parte do ‘sagrado’ a se tornar a antítese do sagrado” (STRÖMQUIST,
2018, p. 111). Recorremos também a Caluã Eloi52 (2018) quem reforça
que representações de culto ao feminino e de religiões matrilineares
foram destruídas e demonizadas com a propagação da moral cristã e a
formação de um pensamento patriarcal na sociedade. Mencionamos, como
exemplo, o livro de Levítico, da Bíblia cristã, no qual é declarado que a
mulher, quando menstruar, “[...] ficará impura durante sete dias. Quem
a tocar ficará impuro até a tarde. O lugar em que ela deitar ou sentar,
enquanto está impura, ficará impuro." (LEVÍTICO, cap. 15, v. 19-20).

52 
Em respeito à sua identidade de gênero, utilizamos o pronome masculino para nos
referirmos ao autor, um homem transsexual, ainda que na autoria de sua publicação
conste seu nome civil.
130
É de menina ou menino?

Em outro exemplo, abordado pelo documentário Absorvendo o tabu


(2018) que se refere ao interior da Índia, expõe-se que o sangue mens-
trual é tratado como ruim, sujo e vergonhoso. Devido à desinformação
e à falta de recursos básicos, como absorventes, coletores ou calcinhas
menstruais, as garotas enfrentam muitas dificuldades após a menarca
durante o período escolar. Inclusive no documentário é apresentada uma
jovem que desiste de seus estudos em razão desses problemas.
Essa questão, apresentada no documentário, caracteriza um pro-
blema de saúde pública que não está limitado ao contexto rural indiano.
No Brasil, por exemplo, temos que “Uma em cada quatro adolescentes
brasileiras não tem acesso a absorventes” (FOLHA DE SÃO PAULO,
17/03/2021)53. A pobreza menstrual, termo que se refere à falta de acesso
de itens essenciais de higiene íntima e saneamento básico durante o
período de menstruação, prejudica a saúde física e psíquica de pessoas
que menstruam, amplia a disparidade econômica entre gêneros, além
de prejudicar ainda mais pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Sobre isso, a Organização das Nações Unidas (ONU) afirmou, em
2014, que o acesso à higiene menstrual é uma questão de saúde pública
e direitos humanos.
Somado à pobreza menstrual, o silenciamento de discussões
relacionadas à menstruação implica a construção e reprodução de tabus
e o desconhecimento do próprio corpo. Acerca dos períodos menstruais,
Chimamanda Ngozi Adichie (2017) argumenta que estes são essenciais
para a criação da espécie humana, logo, não deveriam existir motivos para
se envergonhar deles. A autora explica que “A vergonha que atribuímos
à sexualidade feminina se refere a uma questão de controle. Muitas cul-
turas e religiões controlam o corpo feminino de uma ou de outra forma”
(ADICHIE, 2017, p. 67). A respeito desses controles, mencionamos as
variadas maneiras de se educar um corpo, dentre elas, as que propõem
às meninas serem quietas; educadas; boas donas de casa, esposas e mães;
cozinharem bem; serem sensuais e não sexuais; não serem agressivas e

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2021/03/


53 

uma-em-cada-quatro- adolescentes-brasileiras-nao-tem-acesso-a-absorventes.shtml>
Acesso em: 04 set. 2021.
131
João Paulo Baliscei (org.)

se arrumarem. Essas são algumas atribuições que (re)produzem padrões


e estereótipos pautados em um ideal de ser mulher. Quando casadas, é
exigido, em determinados contextos, que engravidem. Boas moças são as
que respeitam tais exigências. Essas atribuições classificam as ações que
as mulheres fazem e devem fazer, apagando-lhes suas individualidades.
De acordo com Loponte (2010), vemos as imagens a partir de
marcas identitárias de gênero e sexualidade específicas de um período
histórico e local geográfico, nas quais, normalmente, predomina-se a
arte ocidental e se apaga representações marginais, como por exemplo
a arte de mulheres. Com isso, temos a prática artística como potência
para a produção de outras histórias, de forma a romper com o padrão de
controle, a partir de produções realizadas por pessoas que são agentes
protagonistas da construção de suas próprias existências.

DIÁLOGOS ENTRE GÊNEROS, SEXUALIDADES, CORPOS E SANGUE


MENSTRUAL

Ao nos voltarmos para o campo da arte, deparamo-nos com


artistas que fazem do período menstrual um processo de reflexão aos
tabus sociais e culturais, em especial aqueles que remetem aos temas
de gênero e sexualidade.
Justificamos a escolha da arte enquanto meio de ressignificação
mencionando os estudos sobre performances e feminismo de Renata
Andrea Santana de Lucia e João Paulo Baliscei (2020). Nesses estudos,
afirmam, que no meio artístico, produções de mulheres são despreza-
das, ignoradas ou diminuídas sob a hegemonia do reconhecimento de
produção artística de homens. E, ainda, Loponte (2010) colabora com
essa discussão ao entender que as imagens de mulheres difundidas e
exaltadas na narrativa dominante e hegemônica da História da Arte
são, em seus sentidos e construções, endereçadas ao olhar masculino.
Quando nos voltamos para corpos que menstruam, em seu contexto
amplo e, aqui, abrimos esses parênteses para as diversas manifestações
de gêneros, percebemos que suas representações na História da Arte são
ainda mais invisibilizadas.

132
É de menina ou menino?

Reunir trabalhos de artistas que tratam temas como gêneros,


sexualidades, corpos e menstruação faz com que atravesse
[...] o discurso masculino de modo a subvertê-lo, de
transmutar o lugar dado para a nudez feminina, inclusive
na Arte, e tirá-la do aspecto erótico (o corpo-objeto de
prazer) ou sagrado (o corpo que produz vida), e colocá-la
num lugar de enfrentamento, de força e coragem, no
lugar da denúncia da violência de gênero. (LUCIA e
BALISCEI, 2020, p. 105-106).

O sangue menstrual, mesmo que não vindo das diversas violências


que atacam diariamente populações de mulheres, crianças e comuni-
dade de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis,
Intersexuais e outras - LGBTTI+, é ainda o sangue que, em diversos
contextos sociais e culturais, provoca nojo, repulsa, violência de gênero
e privações na vida de muitas pessoas.
Desse modo, nós, autoras, pesquisadoras, artistas, mulheres cis,
que menstruam e tivemos acesso a informações e condições básicas
de higiene menstrual, elaboramos esta pesquisa com base em nossas
vivências e a partir do nosso recorte de privilégios. Porém, esperamos
que essas reflexões contemplem todas/os aquelas/es que podem mens-
truar, além de atravessar outras pessoas que possam tomar posse das
discussões aqui colocadas e ressignificar relações negativas construídas
acerca da menstruação. Para isso, agrupamos dez produções de artistas
que dialogam com esse tema, os quais têm seus trabalhos representados
na Figura 1 e também, abaixo, na Figura 2.

133
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 2: Taste Flower de Anna Volpi; Visión (2009) de Isa Sanz, Tecitura de um EU mulher (2019)
de Beatriz Nolli; Period piece de Nolwen Cifuentes; Ummeli (2011) de Zanele Muholi; fotografia
de Yung Cheng Lin, The Vulva Gallery de Hilde Atalanta, performance de Cass Clemmer e Corpo
que flui (2019) de Jacqueline Amadio.
Fontes: <http://annavolpi.com/albums-work/flower/>; <https://www.isasanz.com/english/
art-work/i- bleed-but-do-not-die/>; NOLLI, Beatriz Marques, 2019;
<https://phmuseum.com/nolwencif/story/period-piece-6bc7e1ed82>;
<https://www.designindaba.com/articles/creative-work/period-pains>;
<https://www.hypeness.com.br/2015/07/serie-fotografica-retrata-temas-do-universo-feminino-
-que- ainda-sao-alvo-de-preconceito/>; <https://www.thevulvagallery.com/the-vulva-gallery>;
<https://www.allure.com/story/artist-cass-clemmer-viral-photo-periods-women-men>; ABREU,
Jacqueline Amadio de, 2019. Acesso em: 04 de set. de 2020.
Ao nos voltarmos para as diversas manifestações artísticas que
exploram as questões de gênero, sexualidades, corpos e menstruação,
selecionamos, no campo da fotografia, por exemplo, as artistas fotógrafas
Anna Volpi, italiana, e Isa Sanz, espanhola. Ambas registram suas visões
acerca da menstruação e expõem suas relações com o sangue, de forma
a revelar beleza, levantar reflexões e ressignificar tabus sobre o período
menstrual. Nolwen Cifuentes, por sua vez, quem nasceu em Califórnia

134
É de menina ou menino?

e, hoje, mora em Los Angeles, captura momentos de afeto em relações


sexuais de casais durante a menstruação. Yung Cheng Lin, fotógrafa
taiwanesa, faz uso do incômodo e sarcasmo para provocar reflexão e
crítica aos tabus menstruais. A artista brasileira Jacqueline Amadio
emprega, em suas pinturas, uma estética feminista, na qual sua própria
existência apresenta maneiras de ser mulher. Ressalta o poder criador e
cíclico feminino em seus trabalhos, nos quais é notável a presença da cor
vermelha ao se referir ao sangue como símbolo de vitalidade, ciclicidade
e sagrado. Beatriz Nolli, também brasileira, faz o resgate dos ciclos
femininos e ancestralidade, com o aporte do sagrado feminino. Nolli
se utiliza da tecitura com os fios como ferramenta de autoconhecimento
e de transformar a relação com o próprio corpo.
Em meio às temáticas de inclusão e representatividade, encontra-
mos Cass Clemmer, Hilde Atalanta, Nicole Millo e Zanele Muholi. O
artista e ativista estadunidense Cass Clemmer afirma que “Nem todas as
pessoas que menstruam são mulheres, e nem todas as mulheres mens-
truam”54 (tradução livre). Em suas ações, promove reflexões a respeito
da menstruação de pessoas que se identificam como transsexuais, não
binárias, queers e/ou intersexuais. Hilde Atalanta, de Amsterdã, traba-
lha com ilustração e pintura, e une temas como identidade de gênero,
sexualidade e inclusão. Desenvolve o projeto The Vulva Gallery, o qual,
por meio de ilustrações em aquarela de vulvas em diversos aspectos, for-
matos e tamanhos, trata de positividade corporal e educação para saúde
corporal. Dentre essas ilustrações, podemos encontrar algumas em que
o sangue menstrual se faz presente. Também no campo da ilustração,
Nicole Miles, de Bahamas e quem hoje mora no Reino Unido, em uma
ilustração exposta no Museu da Vagina, representa uma série de roupas
íntimas, algumas com sangue menstrual e outras não, para expor essa
diversidade de corpos que menstruam. Em protesto às diversas formas
de preconceito contra a homossexualidade feminina, em especial, a de
mulheres africanas, no trabalho Ummeli (2011), da coleção Isilumo siya-

54 
“Not all women menstruate and not those who menstruate are women”. Period.
Inc. “Let Us Bleed” Ft. The Period Prince, 3 jul. 2018. Disponível em: <https://www.
facebook.com/periodmovement/videos/850952811771443/> Acesso em: 04 jul. 2021.
135
João Paulo Baliscei (org.)

luma (“dores da menstruação”, em zulu), Zanele Muholi, sul-africana,


ativista e fotógrafa, traz manchas de sangue menstrual como forma de
expressão perante aos assassinatos cometidos por discriminação e às
ameaças de estupro coletivo que violentam mulheres lésbicas negras da
África do Sul.
Por último, destacamos um espaço artístico, o Museu da Vagina,
localizado em Londres. Ele foi criado como uma forma de protesto a um
museu do pênis, na Islândia, uma vez que espaços voltados para vaginas
são raros. Destacamos que o museu, para além do espaço físico expositivo,
conta com divulgação em redes sociais, sites e materiais educativos que
conversam com temáticas como, por exemplo, anatomia, sexo, gravidez,
menstruação e higiene.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que, enquanto mulheres cisgênero, aprendemos,


desde pequenas, a esconder manchas de sangue menstrual de nossas
roupas; assustamo- nos com a possibilidade de ter vazado sangue de
nossos absorventes e coletores; temos vergonha de expor nosso bem estar
durante o período menstrual; evitamos dialogar sobre tais temáticas com
homens cisgênero; além de recebermos, cotidianamente, argumentações
falhas - sejam elas vindas de homens ou mulheres - acerca do “mau”
cheiro, da “sujeira” e da “impureza” a respeito da menstruação.
Nesse contexto, concordamos que a arte contribui como potência
de (re)criação de significados e atua como forma de protesto aos diversos
modos de inferiorizar e excluir pessoas que menstruam, sejam mulheres,
homens trans, pessoas intersexuais, queers e/ou não binárias.
Essa pesquisa nos aproximou de uma relação mais íntima e sig-
nificativa com a menstruação. (Res)significamos nossas memórias que
foram capturadas por pensamentos que inferiorizam a menstruação
ao ponto de sentirmos vergonha de um processo que nos é natural.
Deparamo-nos com artistas que nos eram desconhecidas/os e que tra-
tam o sangue menstrual, seus corpos e suas sexualidades com tamanha
potencialidade e sensibilidade em suas produções. Consideramos, enfim,

136
É de menina ou menino?

que o campo artístico se torna um meio de disseminação e exploração


de novos significados, exposição de outros corpos e novas expressões
que não foram atingidas pelos interesses da hegemonia dominante da
História da Arte.

REFERÊNCIAS

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de habitar o corpo e figurações possíveis para um devir-mulher. 2019. 116f. Gradua-
ção (Trabalho de Conclusão de Curso em Artes Visuais) - Universidade Estadual de
Maringá, Maringá.

ABSORVENDO O TABU. Direção: Rayka Zehtabchi. Produção de Melissa Berton,


Garrett Schiff, Rayka Zehtabchi e Lisa Taback. Estados Unidos: Netflix, 2018.

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feminino que ainda são alvo de preconceito. Hypeness, 2016. Disponível em: <https://
www.hypeness.com.br/2015/07/serie-fotografica-retrata-temas-do- universo-feminino-
-que-ainda-sao-alvo-de-preconceito/> Acesso em: 04 jul. 2021.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e


termos (e-book). Brasília, 2012. Disponível em:<http://www.diversidadesexual.com.br/

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LOPONTE, Luciana Gruppelli. Gênero, visualidade e arte. In: ICLE, Gilberto (Org.)
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teiro; AMESTOY, Micheli Bordoli; MALAVOLTA, Ana Paula Parise (org.). O que
pode a educação no Brasil hoje? 2. Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020. v.2. p.95- 115.

MCNAMARA, Brittney. Period Activist Cass Clemmer Responds to hate after posting
period photo. Teen Vogue, 2017. Disponível em: <https://www.teenvogue.com/story/
period-activist-cass-clemmer-what-its-like-to-get- perios-while-transgender>. Acesso
em: 06 de abril de 2021.

NOLLI, Beatriz Marques. Tecitura de um eu mulher. 2019. 148f. Graduação (Trabalho


de Conclusão de Curso em Artes Visuais) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá.

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com/articles/creative-work/period-pains>. Acesso em: 07 de abril de 2021.

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phmuseum.com/nolwencif/story/period-piece-6bc7e1ed82> Acesso em: 04 jul. 2021.

SANGRO, PERO NO MUERO. Isa Sanz, [s.d.]. Disponível em: <https://www.


isasanz.com/espa%C3%B1ol/ensayos/sangro-pero-no-muero/> Acesso em: 04 jul. 2021.

STRÖMQUIST, Liv. A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva


vs. o patriarcado. Tradução de Kristin Lie Garrubo, 1ª ed. São Paulo: Quadrinhos na
Cia, 2018.

138
É de menina ou menino?

Figura 1: Eva e Maria, juntas.


Fonte: <https://www.salusincaritate.com/2016/10/maria-e-eva-na-historia-da-redencao.
html>. Acesso em 1º de jun. de 2021.

“ELA SERÁ SALVA


PELA SUA MATERNIDADE”: REPRESENTAÇÕES
FEMININAS ENTRE EVAS E MARIAS
Ana Carla Vagliati55
Geiva Carolina Calsa 56

INTRODUÇÃO

Por que apresentar a história dos movimentos sociais e políticos


das mulheres em um capítulo que dialoga sobre as representações das
mulheres? Em nosso ponto de vista, a compreensão das representações
sobre o gênero feminino neste início de século é produto de movimentos
históricos que envolvem o corpo feminino, a sexualidade feminina, seu

55 
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Esta-
dual de Maringá – UEM. Professora na Universidade Cesumar – UniCesumar.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5245170435261805.
56 
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Campinas – UNICAMP. Professora na Universidade Estadual de Maringá – UEM.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3457378901881611.
139
João Paulo Baliscei (org.)

sexo e a violência a que continuam sendo submetidas na vida privada


e pública.
Ser mulher é, muitas vezes, pensado como ser mãe e boa esposa,
identidades associadas à imagem da virgem Maria. Outras vezes ser
mulher é o avesso disto – a mulher que optou por não ser mãe e não casar,
esta última, por distanciar-se do modelo ideal de mulher cunhado pelo
cristianismo, é representada pela figura de Eva. Tais representações, que
se estendem até os dias atuais, ancoram-se no ideal cristão predominante
no Brasil desde o século XVI.
Para tanto, queremos salientar que esta dualidade entre Maria e
Eva pode ser revista ao considerarmos que ambas identidades podem
conviver em uma mesma mulher. Conforme a imagem escolhida para
abrir esse capítulo, Maria e Eva, num gesto de acolhimento das suas
diferenças, podem coexistir, possibilitando que a mulher pós-moderna
seja múltipla.
Com o objetivo de, nesse capítulo, conhecer as representações
femininas e entender a construção das identidades das mulheres de
hoje em dia, faremos uma breve visita a história contada sobre o gênero
feminino. Assim, na primeira parte, denominada “Entre Eva e Maria”
apresentaremos a construção de um modelo ideal de mulher – associada
à imagem da virgem Maria e o seu avesso – associada à imagem de Eva.
Descreveremos ainda, sobre as relações entre o cristianismo e a medicina
que contribuíram para que o corpo e a sexualidade feminina permane-
cessem restritos ao estatuto biológico e patológico. Acompanhando as
mudanças advindas da Proclamação da República, no século XIX, as
mulheres brasileiras protagonizaram a Primeira Onda do movimento
feminista por meio do qual buscaram o direto ao voto e organizaram-se
contra a obrigatoriedade da maternidade e da vida doméstica. Nesse
contexto, métodos contraceptivos passaram a ser pesquisados e adotados
pelas mulheres em sua luta pela liberdade e independência sobre seu
corpo e sua vida.
A segunda parte, que chamamos de “Fases de Transição”, bus-
camos mostrar como, apesar das conquistas das mulheres quanto à sua

140
É de menina ou menino?

sexualidade, no início do século XX, ainda se mantinham representações


do feminino pautadas no determinismo biológico de seu sexo e gênero.
Neste momento, a Segunda Onda do movimento feminista destaca
o caráter social, político e cultural das desigualdades entre homens e
mulheres, enquanto posteriormente, na segunda metade do século, a
Terceira Onda introduz a categoria de gênero como uma forma de com-
preender as relações entre gênero, sexo e sexualidades na organização
social burguesa.

ENTRE EVA E MARIA

Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes,


se enfeitem com pudor e modéstia; Nem tranças, nem
objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso;
Mas que ornem, ao contrário, com boas obras, como
convém a mulheres que se professam piedosas.
Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com
toda submissão.
Eu não permito que a mulher ensine ou dotrine o homem.
Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi
formado Adão, depois Eva.
E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que,
seduzida, caiu em transgressão.
Entretanto, ela será salva pela sua maternidade,
desde que, com modéstia, permaneça na fé, no amor e na
santidade.

(Timóteo, 2: 9-15)
Durante séculos a Igreja Católica em aliança com os poderes
seculares ditou as normas sociais e protagonizou o discurso moralizador
sobre o uso dos corpos no ocidente. Ademais, exerceu seu pensamento
moralizante na nova terra, a Terra de Santa Cruz, o Brasil colonizado
por Portugal no século XVI. Neste percurso, uma de suas atividades
mais significativas foi o adestramento da sexualidade e dos corpos de
nativos/as e colonizadores/as para o estabelecimento de famílias como
eixo da moral da nova sociedade. Para que esse objetivo se concretizasse,

141
João Paulo Baliscei (org.)

tornou-se essencial demarcar o padrão da mulher ideal para a constituição


das novas famílias em solo brasileiro.
Como indicam os versículos bíblicos que iniciam este capítulo,
para os ensinamentos cristãos, a mulher ideal para o casamento é aquela
dedicada aos cuidados da casa, do marido e dos/as filhos/as, com o corpo
recatado e obediente às regras estabelecidas pela Igreja, pelo marido e,
posteriormente, será pela medicina e pelo Estado. Conforme Emanuel
Araújo (2015), a mulher não deve chamar a atenção dos homens para si,
com exceção de seu marido, para quem, discretamente, pode se enfeitar.
É preciso que conserve o silêncio e a submissão, para que, assim, alcance
seu destino essencial, a maternidade, que a salvará de todo o mal que traz
em si. De acordo com a Igreja, essa é a mulher que pode, finalmente, se
aproximar da Virgem Maria, ou seja, o ideal feminino a ser cultuado.
No entanto, se há um ideal feminino para o casamento, há também
o seu avesso, que, conforme o versículo, seria Eva, a mulher naturalmente
corrompida e sedutora, que utiliza penteados, objetos de ouro e vesti-
mentas chamativas; a transgressora. Para Mary Neide Damico Figueiró
(2010) e Emanuel Araújo (2015), a existência de Eva leva a mulher à
condenação de pagar eternamente por seu pecado original. Foi Eva,
pecadora e sedutora, quem levou Adão a pecar, e toda mulher partilha
da “[...] essência de Eva [e] tinha que ser permanentemente controlada”
(ARAÚJO, 2015, p. 46). No seguimento do versículo está posto que
a única forma da mulher se livrar desse mal e conseguir sua salvação,
é através da maternidade, que, segundo a autora, seria o “[...] ápice da
vida da mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de
Maria” (ARAÚJO, 2015, p. 52).
Conforme Mary Del Piore (1994), essa normatização dos corpos
femininos, sobretudo a partir do século XVII, esvaziou as mulheres de
qualquer uso prazeroso de seu corpo, camuflado sob os panos da boa
mulher, contida e obediente, pois “[...] o acordo epistolar entre autores/as
laicos/as ou religiosos/as gira sempre em torno das mesmas questões: o
casamento como elemento de equilíbrio social, e dentro dele, a ausência
de paixões, a obediência e a subordinação feminina” (ARAÚJO, 2015, p.

142
É de menina ou menino?

20). É exaltada, assim, a suposta pureza feminina, consolidada na ideia


de maternidade e santidade para melhor controlar seu comportamento
e pensamento.
Vale ressaltar que a urgência em vigiar o sexo feminino para que
se mantivessem honradas e aptas ao casamento faz parte da organização
das novas famílias, as famílias burguesas, para quem o corpo da mulher
e sua sexualidade passava a ser considerada “[...] coisa importante, frágil
tesouro, segredo de conhecimento indispensável”, e responsável pela
manutenção das famílias, como aponta Michel Foucault (2014, p. 131).
Assim, enquanto instância social de controle dos/as cidadãos/ãs, a família
burguesa sexualizou a mulher, “ociosa” no antigo regime, e à ela atribuiu
obrigações sociais, conjugais, domésticas e maternais.
No entanto, apesar dos regramentos sociais e econômicos e dos
dogmas cristãos, as mulheres das camadas populares, ainda que submeti-
das à valorização do casamento cristão e da fecundidade, diferentemente
das burguesas, mantiveram-se alheias a um controle tão rigoroso de sua
sexualidade mantendo certa liberdade (FOUCAULT, 2014).
Referindo-se ao nosso país, Del Priore (1994, p. 20), destaca o
quão distante da pregação religiosa “[...] se encontravam as mulatas e
negras forras e as brancas empobrecidas. Ao discurso monocórdio sobre
seus comportamentos, [...] elas respondiam com práticas tidas por desa-
busadas, mas apenas resultantes de suas condições materiais de vida”,
incluindo a prostituição e a violência sexual.
Como enfrentamento do regramento religioso e político-moral, as
mulheres casadas também lutavam para se livrar de maridos indesejados,
como os adúlteros ou violentos, recorrendo aos tribunais eclesiásticos
para denunciá-los com o argumento de que os maridos não contribuíam
para formar uma família cristã. Além disso, muitas vezes elas cometiam
adultérios e abortos como forma de se defender das rígidas normas
de conduta moral do casamento. Acompanhando esse movimento de
regramento moral, curiosamente, a prostituição foi tornando-se a única
forma de manter relações sexuais lícitas antes do casamento e fora do
casamento e não direcionadas para procriação, consideradas, portanto,

143
João Paulo Baliscei (org.)

como “[...] pacificadoras da violência sexual contra as donzelas casa-


douras e do desejo que pusesse em risco a fidelidade às esposas” (DEL
PRIORE, 1994, p. 22).
Prostitutas e donzelas casadoiras reforçavam a cisão das mulheres
em Marias e Evas, cuja linha divisória era considerada bastante tênue
devido aos comportamentos tidos como moralmente desviantes, e que
transformavam rapidamente Marias em Evas. Com o desenvolvimento
dessa divisão entre as mulheres, os homens assumiram uma dupla moral
aceita socialmente: em casa um comportamento e na rua, outro, afinal,
faziam com as prostitutas aquilo que não era aceito que fizessem com
suas esposas. Invadindo o leito conjugal, as normas religiosas pregavam
a abstinência e relações sexuais destinadas exclusivamente à procriação,
como indicam as autoras Marilena Chauí (1984) e Mary Neide Damico
Figueiró (2010).
Durante o século XIX, além da Igreja e do Estado, o discurso da
medicina acabou reforçando a restrição do papel feminino à reprodu-
ção, agora visto sob o estatuto biológico da mulher. A medicina nutria
grande interesse pelo útero, que passou a desempenhar um duplo papel:
conceder à mulher a salvação, ao gestar uma ou mais crianças, ou à
maldição, caso não exercesse sua função reprodutora dentro dos moldes
aceitos para a época.
Ao final do século XIX, começaram a aparecer os primeiros grupos
de mulheres brasileiras que, inspiradas em movimentos internacionais,
buscavam desestabilizar as representações femininas que reduziam a
mulher ao biológico e à vida doméstica. Como parte da Primeira Onda
do movimento feminista, as suffragettes, inicialmente na Inglaterra,
organizavam-se para lutar pelo direito da mulher ao voto nas eleições,
até então exclusivamente decididas pelo voto dos homens. No Brasil,
a Primeira Onda do feminismo também se pautou na luta pelo direito
ao voto, conquistado em 1932, com a promulgação do Novo Código
Eleitoral brasileiro (DEL PRIORE, 2015).
Em meio à Primeira Onda e devido às políticas de controle da
natalidade em vários países, como os da Europa, dos Estados Unidos

144
É de menina ou menino?

e do Brasil, o começo do século XX foi marcado pelo desenvolvimento


de métodos contraceptivos centrados nos corpos das mulheres, com
objetivo inicial de controlar a natalidade. Isso também contribuiu para
uma nova forma de entender a sexualidade feminina, relacionando-a à
liberdade e autonomia para as próprias mulheres decidirem sobre sua vida
e seu corpo, conforme explicam as autoras Joana Maria Pedro (2010) e
Céli Regina Jardim Pinto (2010). O ato sexual deixou de servir apenas
à procriação e, em fins dos anos 1960, já se viam slogans sobre o direito
das mulheres ao prazer. A nova forma de controlar o crescimento da
família contribuiu para ampliar os horizontes femininos, como poder
estudar ou participar do mercado de trabalho.

FASES DE TRANSIÇÃO

Sofrendo as influências da década anterior no que diz respeito


ao casamento e à sexualidade feminina, na metade do século XX, se
desenvolve com maior ímpeto a ideia de que um casamento satisfatório
dependia do afeto entre as/os cônjuges. No entanto, o controle sobre a
sexualidade feminina permanecia em pauta como um problema.
As jovens deveriam aprender a se controlar e distinguir o “certo”
do “errado”, de forma a conservar suas virtudes e conter sua sexualidade
em limites bem estreitos. Mantêm-se como características próprias do
gênero feminino o instinto materno, a pureza, a resignação e a doçura,
e de acordo com Carla Bassanezi Pinsky (2015, p. 609) “[...] a mulher
que não seguisse seus caminhos estaria indo contra a natureza” Até a
segunda metade do século XX, mulheres e homens continuam acredi-
tando que “[...] a felicidade conjugal depende fundamentalmente dos
esforços femininos para manter a família unida e o marido satisfeito”,
inclusive sexualmente (PINSKY, 2015, p. 607-608).
Essas perspectivas, porém, não significam que todas as mulheres
pensavam e agiam de acordo com o esperado, e sim que essas expecta-
tivas sociais faziam parte de sua realidade, influenciando suas atitudes
e pesando em suas escolhas pessoais, morais e sociais. Nesse âmbito,
vontade e coragem de transgredir percorriam desde o ato fumar, ler

145
João Paulo Baliscei (org.)

textos proibidos, explorar a sensualidade de roupas e penteados, investir


no futuro profissional, até contestar secreta ou abertamente a moral
sexual, chegando a abrir mão da virgindade e, com isso, por vezes,
do casamento. Sem dúvida, segundo Pinsky (2015, p. 622), esses “[...]
questionamentos, e contestações colocaram em perigo as normas de
comportamento e contribuíram para a ampliação dos limites estabele-
cidos para o feminino”.
A partir da década 1960, com o crescimento da participação
feminina no mercado de trabalho, em setores menos relacionados à sua
suposta natureza maternal como ser professora e enfermeira, as mulheres
passam a trabalhar no comércio, serviços públicos e escritórios. O que
exigia delas maior escolaridade, qualificação profissional e mudanças em
seu status social, mas que não evitava os preconceitos quanto ao trabalho
fora do lar. Predominavam, portanto, as representações de que lugar
de mulher é no lar e na família, implicando, assim, que trabalhar seria
viver como homem durante o dia e como mulher durante a noite; essa
seria uma das causas dos lares infelizes.
Com a ascensão da Segunda Onda do movimento feminista ao
longo da segunda metade do século XX, mudanças nas representações
da mulher se aceleram. A afirmação de Simone de Beauvoir de que
“não se nasce mulher, torna-se mulher” denuncia as raízes culturais da
desigualdade sexual e oferece sustentação às novas perspectivas desses
movimentos. Essa nova fase fundou-se na diversidade de mundos sociais
e culturais nos quais a mulher se torna mulher, diversidade essa que,
mais tarde, veio a ser denominada como identidade de gênero, inscrita
na cultura. Nesta visão, as identidades de gênero se constituem por meio
do processo de socialização o qual determina funções sociais específicas
para cada gênero. Assim, o movimento da Segunda Onda reivindicou
a igualdade em todos os níveis, seja no mundo externo – predominan-
temente masculino, seja no âmbito doméstico – predominantemente
feminino (ALVES; PITANGUY, 1981; SARTI, 2004).
Betty Friedan (1963), apoiando-se em Beauvoir, recolhe, nos
Estados Unidos, uma série de depoimentos de mulheres da classe média e

146
É de menina ou menino?

publica o livro A Mística Feminina. Nele, ao observar as mulheres estadu-


nidenses e seus comportamentos em meados da década de 1950, a autora
aborda o papel da mulher na função de dona de casa e suas implicações
na sociedade. No Brasil, dentre as mulheres que escreveramm sobre a
condição feminina, Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1976) publicou a
obra A Mulher na Sociedade de Classes, em que faz uma análise da condição
da mulher no sistema capitalista brasileiro. Semelhantemente, Cyntia
Andersen Sarti (2004) explica que os movimentos feministas brasileiros
foram marcados pela contestação à ordem política instituída no país,
desde o Golpe Militar de 1964 até o final dos anos de 1980. Parte desses
movimentos estava articulada a organizações clandestinas de vertente
marxista, o que imprimiu ao movimento características próprias, como a
presença de mulheres na luta armada. Além do enfrentamento da ordem
política e cultural vigente, essa participação implicava uma profunda
transgressão nas representações do que era considerado feminino.
As militantes brasileiras questionavam o lugar tradicionalmente
atribuído à mulher, que ainda permanecia rígido e fixo, e assumiam
uma postura mais liberal diante do sexo e da sexualidade, colocando
em questão a virgindade e a instituição do casamento.
A família brasileira dos anos 1970 foi resultado desse cenário de
enfrentamentos e resistências. Com métodos contraceptivos mais eficien-
tes e segurança profissional, as mulheres buscavam se reinventar dentro
da casa e da família. As relações verticais de autoridade do marido sobre
a esposa passaram a ser questionadas, rompendo-se lentamente ou pelo
menos flexibilizando o ciclo de dependência e subordinação da mulher.
Apesar disso, a imprensa geral e a destinada às mulheres continuaram
a difundir as representações da mulher como mãe e da dona de casa, ao
seguirem repletas de fórmulas para “agarrar maridos”, receitas culinárias
e cuidados com a beleza (DEL PRIORE, 2014).
Em 1979, com a anistia, as mulheres exiladas começaram a retornar
para o Brasil, reencontro que contribuiu para fortalecer o movimento
feminista brasileiro, pois elas traziam em sua bagagem vivências políticas
em outros movimentos feministas nos quais foram atuantes, sobretudo

147
João Paulo Baliscei (org.)

da Europa. O movimento feminista brasileiro ganhou novo fôlego,


proliferando pelo país e assumindo novas bandeiras, como os direitos de
reprodução, o combate à violência doméstica e sexual contra a mulher
e a liberdade de sua sexualidade.
Organizados próximos aos movimentos populares de mulheres,
esses grupos abarcaram, também, as lutas por educação, saneamento,
habitação e saúde. Além dos movimentos populares, os movimentos
feministas introduziram-se nos meios de comunicação por meio de pro-
gramas femininos e personagens de novelas e seriados, nos quais, junto
às tradicionais informações sobre culinária, moda, educação de filhos/
as, traziam temas como sexualidade, orgasmo feminino, anticoncepção
e violência doméstica, como explica Ana Alice Alcantara Costa (2005).
Com uma pesquisa publicada pela revista Veja, em 1980, Del
Priore (2014, p. 82) descreve as representações de mulher sobre ela
mesma, predominantes e concomitantes aos movimentos feministas em
desenvolvimento. Segundo a autora, a mulher brasileira se considerava
“[...] nem Amélia nem ativista, a brasileira dos anos 1980 era conservadora
e tímida, mas sabia que sua filha precisava conquistar independência”.
A mulher passava a comprar roupas feitas e aos poucos deixava de ser
necessário que soubesse manusear uma máquina de costura. Quanto à
vida sexual livre para solteiras e à legalização do aborto, não tinham
certeza. Mostravam- se divididas entre valores novos e tradicionais, mas
rejeitavam a ideia da submissão da mulher.
A Terceira Onda do movimento feminista, nos anos 1980, trans-
formou o conceito de gênero como uma categoria de análise das socieda-
des modernas com inspiração nos estudos de Joan Scott (1989). Como
categoria conceitual e de análise, o gênero passou a investigar as relações
entre homens e mulheres dentro da organização social, política, cultural
e moral em que ambos/as estão inseridos/as. No plano governamental,
essa perspectiva teve consequência na criação de políticas públicas e de
conselhos federais, estaduais e municipais sobre a condição da mulher.
Com o advento do século XXI, aspectos significativos da sexualidade
feminina passaram a ser levados em conta, como a preocupação dos

148
É de menina ou menino?

parceiros homens com a satisfação sexual das mulheres, e liberdade de


carícias e posições nas relações sexuais como menor estigmatização do
que é sexo saudável e sexo depravado. Para as mulheres, de modo geral,
a busca pelo prazer sexual consolida-se como desejável e o orgasmo
feminino passou a ser alcançado e debatido por uma maior quantidade
de mulheres, que antes não percebiam seu corpo e suas sensações íntimas
(DEL PRIORE, 2014).
Entre idas e vindas, mesmo no século XXI, as representações
femininas permanecem pautadas em comportamentos e valores conven-
cionais relacionados à divisão entre Marias e Evas. Estas representações
são visíveis em estudos mais recentes, como demonstra uma pesquisa
sobre sexualidade e sexo, realizada em 2011 e apresentada por Del Priore
(2014). À pergunta: “Você casou virgem?”, 98% dos homens disseram
“não”, enquanto uma menor quantidade de mulheres, 42,5%, respondeu
“não”. Outra questão lançada pela pesquisa foi: “Você manteve relações
sexuais fora do casamento?”. Entre os homens casados, o reconhecimento
de traições foi de 50%, contra 13% entre as mulheres casadas. Além
disso, um terço das mulheres que participaram da pesquisa declarou
não ter orgasmo nem desejo sexual, assim como mencionou ter relações
sexuais com menos frequência que os homens.
De acordo com Del Priore (2014), esses dados sugerem que estamos
em uma fase de transição, em que é possível reconhecer avanços e, ao
mesmo tempo, persistência de valores e condutas femininas cristalizadas.
Avanços são constatados em áreas importantes como a contracepção e
a concepção, uma vez que hoje há possibilidades da dúvida em ser ou
não ser mãe, por parte das mulheres. As mulheres já podem retardar a
maternidade e escolher o melhor momento para serem mães, ou mesmo
escolher não as ser. Socialmente, a maternidade ainda é explicada e
justificada pelo desejo de continuidade, pela busca de um sentido para
a vida, pela necessidade de valorização e reconhecimento social, pelo
amor às crianças e pelo modelo de família tradicional.
Nesse contexto, as marchas feministas contemporâneas, consi-
deradas como a Quarta Onda, não diferem muito das pautas das ondas

149
João Paulo Baliscei (org.)

feministas anteriores, como violência, assédio, sexualidade, aborto,


trabalho, sexismo, padrões compulsórios de beleza e de comportamento,
superação das desigualdades econômicas, sociais, de gênero, raça e etnia.
A diferença parece estar localizada nas formas de encaminhamento
dessas questões, por meio da capacidade multiplicadora e articuladora
da internet (COSTA, 2005).
Para Costa (2005), a Quarta Onda se destaca por não apresentar
uma estrutura hierárquica e sim, prezar pela descentralização e hori-
zontalidade; uma linguagem política que passa pela performance e pelo
uso do corpo como a principal plataforma de expressão. Nesses novos
momentos, a coletividade se sobrepõe à ação individual e sua organi-
zação se dá em torno de interesses diversos. Movimentos nas ruas, por
exemplo, vêm adquirindo força e permitindo novas formas políticas de
afeto, no sentido de afetar e ser afetado pela multidão. A força das ruas,
em conjunto com a web, parece constituir fatores estratégicos e centrais
das marchas feministas contemporâneas.

CONSIDERAÇÕES

Entre Maria e Eva. Ao longo da história das mulheres, é possível


constatar instituições como a Igreja Católica, o Estado e a Medicina
contribuindo para que as representações de ser mulher a restrinjam ao
estatuto biológico, logo, representações do que seria uma boa mulher, que
para a religião católica é consagrada na imagem da virgem Maria, uma
mulher comum que, escolhida para ser mãe do filho de Deus, preserva
a doçura e a virgindade.
Já a figura de Eva, a mulher que desobedeceu a regra do paraíso
ao comer a fruta proibida, representa a mulher transgressora das normas.
Assemelha-se à Eva a mulher que opta por não vivenciar a maternidade
e não constituir casamento, também aquela que vive sua sexualidade de
forma irrestrita etc.
Coexiste com essas representações o acolhimento de Evas e Marias
e o reconhecimento de que é possível a existência e a coexistência de

150
É de menina ou menino?

ambas identidades. Esta última forma de representação advém dos


movimentos femininos individuais, sociais e políticos.
Por fim, frente ao breve histórico apresentado nesse capítulo,
consideramos que, por muito tempo, propagou-se representações sobre
a mulher pautadas em comportamentos e valores convencionais rela-
cionados à essa divisão entre Marias e Evas, e que persistem no século
XXI. Para tanto, como vimos, os avanços nos campos sociais e políticos
têm contribuído para que representações cristalizadas sejam ampliadas.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:


Brasiliense, 1981.

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PRIORE, M. (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 6. ed. São Paulo:
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COSTA, Ana Alice Alcantara. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma


intervenção política. Revista Gênero, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p.1-20, 2005. Disponível
em: <https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/31137/18227>. Acesso em: 21
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DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 4 ed. – São Paulo: Contexto, 1994.

. Histórias e conversas de mulher. 2 ed. – São Paulo: Planeta, 2014.

. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, M.


(org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

FIGUEIRÓ, Mary Neide Damico. Educação sexual: retomando uma proposta, um


desafio. 3 ed. rev. e atual. Londrina: Eduel, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. 1 ed. – São Paulo,


Paz e Terra, 2014.

PEDRO, Joana Maria. A trajetória da pílula anticoncepcional no Brasil (1960-1980).


In: MONTEIRO, N. Y. História da saúde: olhares e veredas. São Paulo: Instituto de
Saúde, 2010.

PINSKY, Carla Bassanezi. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary.
(org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

151
João Paulo Baliscei (org.)

PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Rev. Sociol. Polít., Curi-
tiba, v. 18, n. 36, p.1-11, 2010. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/rsp/article/
view/31624/20159>. Acesso em: 10 de setembro de 2021.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e rea-


lidade. Petrópolis, Vozes, 1976.

SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando


uma trajetória. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 264, p. 35-50,
2004. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2004000200003/7860>. Acesso em: 09 de setembro de 2021.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1989. Tradução: Chris-
tine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%A Anero-Joan%20Scott.pdf>.
Acesso em: 25 de setembro de 2021.

152
É de menina ou menino?

Fonte: Print Screen do 28’17’’ da animação Shrek 2 (2004). Disponível em <www.netflix.


com/br>. Acesso em 1º de maio de 2021.

“GAROTA?”
DORIS, A “IRMÃ FEIA” DA ANIMAÇÃO SHREK:
CULTURA VISUAL E TRANSGENERIDADES

Arthur Zanetti Ghizellini57


João Paulo Baliscei58
Lua Lamberti59

INTRODUÇÃO

A infância contemporânea, dentre outras coisas, é marcada pelo


acesso a imagens advindas da mídia, filmes, televisão, jogos, brinquedos,
roupas e materiais escolares, por exemplo. Esse repertório imagético
compartilhado e distribuído pelos meios de comunicação faz parte

57 
Graduado no curso de Licenciatura em Artes Visuais através da Universidade
Estadual de Maringá. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8067557049468786.
58 
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Maringá - UEM. Professor na UEM. Coordenador do grupo de pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI; e artista visual.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6980650407208999.
59 
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Estadual
de Maringá. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9222816124433562.
153
João Paulo Baliscei (org.)

daquilo que, conceitualmente, temos nos referido como artefatos da


cultura visual. Essas imagens são propagadas por pessoas e ou marcas
e difundem padrões e discursos de gênero, sexualidade, infância, entre
outros, a serem imitados, ressignificados ou transgredidos pela sociedade.
Crianças estão suscetíveis aos artefatos da cultura visual, pois também
são consideradas consumidoras em potencial. Sobre isso, Mariângela
Momo (2008) argumenta que mães, pais e professores/as nem sempre
se questionam ou se preocupam com as imagens que chegam até as
crianças e, com isso, os significados que tais imagens valorizam tendem
a ser naturalizados. Segundo a autora, as mudanças culturais têm ressig-
nificado o conceito de infância: enquanto no passado se aprendia a “ser
criança” através de instituições mais tradicionais, como a igreja, a escola
e o círculo familiar, hoje a infância é vivida e transformada também
por meio da mídia e do consumo. Como pesquisadora da infância, de
suas subjetividades e identidades tanto nas escolas quanto fora dela, a
autora sublinha, a partir da concepção de Infância Pós-Moderna, que os
sentidos atribuídos às crianças, em outras épocas, já não abrangem mais
a multiplicidade de vivências e formas a partir das quais as infâncias são
construídas na contemporaneidade.
Tendo em vista que crianças e adolescentes estão suscetíveis aos
artefatos da cultura visual e que dialogam constantemente com (e sobre)
estas representações que eles fazem circular, mencionamos a pesquisa de
Ruth Sabat (2003) que vê, nas animações infantis, maneiras pelas quais
a cultura formula e regula os indivíduos, sutilmente. Para a autora, as
animações não só entretêm, como também produzem significados acerca
dos gêneros, sexualidades e raças e etnias, por exemplo, ao passo que
regula os corpos dos/as espectadores/as, convocando-os/as a se identificar
com os padrões dos heróis e heroínas, e a desprezar os padrões assu-
midos pelos vilões e vilãs. Como artefatos da cultura visual, os filmes
– as narrativas, personagens, cores, falas, canções, cenários, discursos e
desfechos - exercem poderes que, por vezes, podem se configurar como
controle social quando, por exemplo, apresentam de forma recorrente
identidades estereotipadas, desejadas, tipos físicos específicos para corpos
masculinos e femininos, como João Paulo Baliscei (2020) exemplifica
154
É de menina ou menino?

em outra pesquisa. Nela, debruça-se sobre 20 personagens masculinos


da Disney, dentre vilões, heróis e coadjuvantes, personagens humanos,
animais e seres fantásticos, para verificar de que maneira a empresa
contribui para a construção visual e identitária de masculinidades.
Caluã Eloi (2018) contribui para essa discussão quando argumenta
que as animações, semelhantemente aos contos de fadas e às fábulas
contadas oralmente, de modo geral, apresentam um princípio moral
constituído por dogmas cristãos e por interesses capitalistas e políti-
cos: há uma protagonista virgem que precisa ser salva por um homem
branco, para que, ao final, celebrem um casamento cristão, monogâmico
e heterossexual. O autor se refere a esses artefatos como “contos morais”,
explicando que, socialmente, têm-se utilizado deles, há séculos, como
forma de prestar manutenção aos interesses de grupos dominantes:
homens cisgênero, brancos, heterossexuais e cristãos.
Afinado a isso, Preciado (2020), ao analisar o império Playboy,
propõe que as mídias desempenham um papel de produzir novas formas
de ser e estar, um novo tropo social que se relacionava diretamente com
o tropo da utopia erótica de seu criador, o estadunidense Hugh Hefner
(1926-2017). O autor considera a Playboy como uma espécie de Disney-
lândia para adultos, lembrando “[...] que em 1983 o Playboy Channel e o
Disney Channel (aparentes polos opostos nos debates morais e religiosos
que opõe sexo e família, a liberdade de decisão sobre o próprio corpo e a
defesa da infância) compartilham suas redes televisivas” (PRECIADO,
2020, p. 206).
É possível entender que as narrativas expostas nas visualidades
instauram formas de se relacionar com determinadas figuras, no caso
do presente trabalho, pessoas trans e travestis, que estão intrinsicamente
amarradas ao projeto de mundo de quem cria, de quem propõe. Portanto,
entendemos Doris como uma representação trans partindo de uma noção
cisgênero hegemônica.
O documentário Disclosure: trans lives on screen (2020), dirigido
pelo estadunidense Sam Feder, reúne depoimentos de artistas trans, em
sua maioria de Hollywood, comentando as supostas representações trans

155
João Paulo Baliscei (org.)

no cinema, nas séries e no campo audiovisual. As discussões giram em


torno da insistência no estereótipo, na narrativa sem final feliz, pautada
na dor, na violência e na transfobia, além de tornar muito gritante a
não identificação das pessoas trans para com as figuras que se propõe a
representá-las, e, por isso, saber sob qual perspectiva a identidade trans
será veiculada faz toda a diferença.
As pesquisas até então mencionadas, somadas aos nossos interesses
pessoais, políticos e acadêmicos, impulsiona-nos ao questionamento:
Como, no âmbito da infância e da representação das animações, os
artefatos da cultura visual caracterizam e produzem corpos dissidentes
da norma? Para responder a essa pergunta, lançamos como objetivo
analisar as imagens de transgeneridades produzidas pela cultura visual,
mas especificamente pela série de animações Shrek. Por transgeneridades
nos referimos às identidades dos sujeitos que se identificam com o gênero
diferente daquele a partir do qual foram identificados e socializados. Com
isso, como explicam Letícia Nascimento (2021), Paul Preciado (2019) e
Jaqueline Gomes de Jesus (2012), diferentemente das pessoas cisgênero,
as pessoas transgênero precisam, ao longo da vida, reivindicar e lutar
pelo reconhecimento de suas identidades como homens e mulheres, o
que, colide com as violências transfóbicas praticadas socialmente.
Em três dos quatro filmes que até então integram a série de ani-
mações Shrek, da companhia Dreamworks Animation, é apresentada a
personagem Doris. Em comum Shrek II (2004); Shrek Terceiro (2007);
Shrek para sempre (2010) representam Doris como uma das “irmãs feias”
de Cinderela. Diferentemente da feminilidade “tradicional” declarada
na caracterização de personagens como Cinderela, e até mesmo da
feminilidade “inusitada” explícita na caracterização da princesa Fiona60,
a feminilidade de Doris é colocada em xeque. Como demonstramos nas
60 
Durante a animação, as princesas Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida e
Rapunzel são personificadas reforçando a “normalidade” estereotipada da heterossexua-
lidade feminina de modo visual: corpos brancos, magros, cabelos lisos e bem penteados,
adereços e joias, personalidades frágeis, doces, meigas, delicadas, sensuais, ingênuas,
puras, contidas e pacientes. A princesa Fiona, em contrapartida, apresenta sua femini-
lidade de forma inusitada, pois, mesmo seguindo alguns dos estereótipos endereçados
às princesas, é uma Ogra e suas características físicas e corporais são diferenciadas.
156
É de menina ou menino?

análises de duas cenas problematizadas no desenvolvimento deste artigo,


as imagens, falas, caracterizações e narrativas dos filmes sugerem que
Doris, a única personagem dissidente da norma cisgênero, seja alguém
de quem os/as demais personagens (e o público) possam rir e debochar,
e contra quem possam exercer a transfobia.

“VAI LÁ GAROTA, VÊ SE FAZ UMA TRANSFORMAÇÃO TOTAL”!

Em nenhum momento das três animações às quais nos referimos,


a identidade de gênero de Doris é anunciada, explicitamente. Sua trans-
generidade, neste caso, fora percebida por nós, em sua caracterização,
como destacamos na figura que abre esse capítulo. Nela, evidencia-se
uma personagem que reúne roupas, cabelo, maquiagem, seios e outros
marcadores de feminilidade, combinando-os com outras características
tidas como masculinas. Posteriormente, em material extra na mídia DVD
do filme Shrek II (2004) é confirmada a identidade trans da personagem,
além de outras pesquisas como a de Belidson Dias e Alice Maria Lara
(2012) indicarem análises bastante similares, com outras personagens
que apresentam signos de gênero não conforme, como Pinóquio de
calcinha, o Lobo Mau e Mabel, a outra irmã feia.
A figura que demos destaque se refere à primeira aparição de
Doris, que ocorre no segundo filme da série de Shrek, intitulado Shrek II
(2004). Ela acontece no momento em que o Rei de “Tão Tão distante”
entra no bar “Maçã Envenenada” e pergunta pela “Irmã-feia”. A figura é
um frame do exato momento em que Doris, por trás do balcão, volta-se
para atender o Rei de “Tão Tão distante” que, encapuzado, permanece
de costas para o enquadramento da cena, à esquerda. Ao fundo, além de
barris com bebidas, há outros elementos como armas, crânios humanos
e velas que cooperam para a criação de um cenário escuro e sinistro. Na
primeira aparição de Doris, portanto, nos é revelado que ela trabalha
como bartender em um bar frequentado por personagens vilões e vilãs,
como bruxas, árvores amaldiçoadas, a Rainha Má, Capitão Gancho,
Cavaleiro sem cabeça e Ciclope. De certa forma, o bar representa uma

157
João Paulo Baliscei (org.)

das divisões sociais da vida real que é reproduzida pelo reino fictício e
fantástico que integra a série de animações Shrek.
Ainda que Doris expresse uma personalidade gentil, respeitosa e
ética, nessa cena ela é equiparada aos vilões e vilãs. Apesar de sua bon-
dade, ela é, portanto, localizada como má, inclusive fisicamente. Além
disso, para nós, quando optam por apresentar Doris como bartender na
“Maçã Envenenada”, não é apenas sugerido que ela ocupa um lugar de
igualdade e semelhança entre os/as antagonistas no que diz respeito
ao repúdio e desaprovação por parte do público, mas também, que ela
está em um nível inferior ao deles/as. Enquanto vilões e vilãs bebem e
se divertem em um momento de lazer, Doris trabalha, servindo-os/as.
Ainda sobre a cena ilustrada pela figura, verificamos que o foco da
câmera evidencia o rosto de Doris. Ela é apresentada utilizando vestido
roxo, cabelo preso e maquiagem “carregada”. Suas sobrancelhas grossas,
o maxilar largo e arqueado, a voz grave, os ombros largos, e sobretudo a
cor acinzentada da parte inferior de seu rosto (indicativos de resquícios
de barba), podem ser associados ao que socialmente se entende como
masculino. Se por um lado não há “transparência” quanto à identidade
de gênero de Doris, por outro, é bastante “transparente” sua condição
de sujeito à margem dos/as demais personagens. Isso fica evidente, por
exemplo, nas piadas que lançam sobre e contra ela.
Nesse sentido, pensando com Preciado (2020, p. 218), ao colocar uma
figura que não responda à norma, no caso, uma personagem trans, é preciso
entender os contrapontos que, ao invés de a estruturarem e complexificarem,
têm mais a ver com a validação de uma forma específica, o que o autor chama
de “encenação da diferença (desde os freak shows estadunidenses que confir-
mavam ao visitante sua própria normalidade [...])”. Em outras palavras, as
relações que circulam Doris servem para legitimar as feminilidades cisgênero
em cima da negação ou violação de sua identidade. Ela está ali para que as
princesas cis sejam naturalizadas, em contraponto à aberração, o que fica
muito nítido nos espaços que ela ocupa dentro da narrativa.
Ainda em Shrek II (2004) há, por exemplo, uma cena pós-créditos,
que integra a versão especial e estendida do filme, na qual a transfobia é

158
É de menina ou menino?

disfarçada de humor e provoca riso e deleite às/aos personagens cisgênero.


Nela, é mostrada uma competição de canto nomeada “Ídolos de Tão Tão
Distante” em alusão e referência ao programa televisivo American Idol. A
cena conta com uma versão animada do britânico Simon Cowell (1959-
-)61, jurado de diversos programas de talentos internacionais. Nesta cena
em particular, Shrek, Fiona e Simon se reúnem diante de uma mesa,
como júri da competição, como indicamos na Figura 2.
Nessa referência ao programa, outros/as personagens coadjuvan-
tes se apresentam em grupos ou individualmente. Ao chegar a vez de
Doris, a personagem canta sozinha a música “Girls Just want to have
Fun”, da cantora estadunidense Cyndi Lauper (1953--), e é avaliada
por seu desempenho pelo júri. Diante da apresentação de Doris, Fiona
demonstra entusiasmo e satisfação, e incentiva a personagem gritando
“É, vai lá...!”, com o intuito de animar a performance. Porém, antes de
terminar a frase, ela olha em direção a Shrek e questiona “...Garota?”,
como se não estivesse certa ou segura o bastante para se referir àquela
personagem com um substantivo no feminino.

Figura 2: “Vai lá garota, vê se faz uma transformação total”.


Fonte: Print Screen entre 00’48’ e 02’07”, da cena pós-créditos da animação Shrek 2 (2004).
Montagem e elaboração nossas, 2021.

61 
Simon é conhecido por alavancar a carreira de diversos grupos de sucesso, como
o One Direction - grupo de meninos cantores - mas também conhecido por ser muito
rígido em suas críticas.
159
João Paulo Baliscei (org.)

Nessa cena, Shrek, semelhantemente, realiza uma expressão


de questionamento e incógnita por também não estar certo quanto ao
gênero da personagem. Por fim, chamamos atenção para a atitude agres-
siva de Simon, quem permaneceu de braços cruzados e com expressão
mal-humorada durante toda a performance de Doris. Ele ridiculariza a
personagem ao afirmar “É, vai lá garota, vê se faz uma transformação
total e algumas aulas de canto”, criticando-a não somente por sua voz,
como também por sua aparência, e principalmente pelo fato de, segundo
ele sugere, não ter realizado “completamente” sua transição de gênero.
A desconfiança com as quais o júri questionou o gênero de Doris
exemplifica a denúncia de Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p. 8) de que
“[...] a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos
genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher”. A isso, recorremos
a Lua Lamberti (2021, p. 22), quem argumenta que as “[...] perfor-
matividades queers são, nesse sentido, o escancaro do teor fictício das
construções hegemonicamente naturalizadas de ‘homem’ e ‘mulher’”, já
que denunciam que cores, cortes de cabelo, roupas, acessórios e mesmo
as genitálias não são signos “fixos” aos corpos biológicos, mas espécies de
próteses que podem ser modificadas, acrescentadas e retiradas, conforme
os desejos, condições e práticas culturais.
Ainda sobre o conjunto de imagens que reunimos na Figura 2,
no que diz respeito especificamente à agressividade expressada pelo
personagem Simon contra Doris, lembramo-nos dos relatos que Preciado
(2019) fez durante seu processo de transgenerização. Em um conjunto
de crônicas o autor relata algumas das vezes em que seu corpo, em
transição do feminino para o masculino, fora parado, barrado e revis-
tado por transgredir aquilo que socialmente se entende como “norma”.
Além disso, comenta sobre os trâmites burocráticos para a solicitação
de novos documentos. Referindo-se a uma viagem específica, em 2018,
após uma sucessão de questionamentos sobre seu passaporte que exibia
uma fotografia que não mais o representava, o autor escreveu: “Com
uma aparência cada vez mais masculina e um documento de identidade
feminino, perdi o privilégio da invisibilidade social e da impunidade de
gênero. Tornei-me um migrante de gênero” (PRECIADO, 2019, p. 34).
160
É de menina ou menino?

Entendemos essa inspeção não só como reflexo do estranhamento que


um corpo trans acarreta à uma sociedade cisnormativa, como também
reflexo da transfobia.
Em comum, os julgamentos que o júri de Shrek II (2004) conferiu
ao corpo de Doris, uma mulher trans, e os estranhamentos provocados
pela aparência de Preciado (2019), um homem trans, sublinham os privi-
légios das pessoas cisgênero, cujos corpos, aparências e identidades – por
coincidirem com a norma - não são colocados em xeque, inspecionados,
tocados, apontados, violentados e mortos. Sobre isso, Nascimento (2021,
p. 97) explica que “[...] os corpos cis gozam de um privilégio capaz de
coloca-los em uma condição natural, com sexo/gênero real, verdadeiro,
na medida em que as transgeneridades são caracterizadas como uma
produção artificial e falseada”. A autora exemplifica esse privilégio na
prática de cirurgias, mencionando que ainda que homens e mulheres
cisgênero também modifiquem cirurgicamente seus narizes, abdomens,
bundas, pênis, seios e vulvas, apenas os corpos de pessoas transgênero
são vistos (e julgados) como produzidos e modificados. Concordamos
com a autora, então, quanto a necessidade de tomar a cisgeneridade
como um conceito que desvela o caráter construtivo e artificial da norma.
Vale ressaltar, também, que as representações midiáticas são loca-
lizáveis, não só por quem as cria, mas para quem é pensada enquanto
consumo. Ou seja, tendo em vista que a franquia de filmes Shrek é de
ordem cisnormativa, sem deixar passar o detalhe de que a personagem
Doris é dublada por um homem (JUNIOR; LARA, 2012), resta-nos
questionar: de quem e para quem é essa representatividade? O humor
está em favor de subverter, ou de reiterar uma narrativa transfóbica?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa subjetividade - bem como a forma como nos identificamos,


como agimos, as escolhas que realizamos, nossos relacionamentos com
outras pessoas e com o mundo ao nosso redor - sofre influências dos
artefatos da cultura visual que nos atravessam cotidianamente. Estes

161
João Paulo Baliscei (org.)

artefatos formam e transformam as infâncias pós-modernas e afetam


diretamente a constituição de suas identidades culturais.
Em uma sociedade marcada pelo efêmero, estamos constante-
mente em busca de representatividade - o que nos leva a embates entre
grupos hegemônicos e grupos marginalizados que disputam por poder.
O que nos interessa nesta reflexão é o fato de que esses embates são,
muitas vezes, travados com subsídios visuais, simbólicos e midiáticos. As
imagens e demais sistemas de comunicação visual, portanto, oferecem
também referências para constituição e manutenção dos preconceitos,
do ódio e das violências praticadas socialmente e para sinalizar – como
um alvo – os corpos que “merecem” ser corrigidos e punidos.
Através das animações destinadas ao público infantil, por exem-
plo, é possível visualizar maneiras pelas quais a cultura formula e regula
os indivíduos. Esses artefatos, então, não só entretêm, mas também
produzem significados acerca de gêneros, sexualidades e padrões de
beleza, e buscam regular e constranger os corpos dos/as espectadores/as,
convocando-os/as a assumir determinadas concepções de normalidade.
É também um traço comum das produções midiáticas – e em mui-
tas outras áreas – uma predominância da narrativa cisgênero e branca, em
função da manutenção de uma ordem naturalizada hetero-cis-normativa.
Podemos identificar isso no filme na repulsa que outras personagens
demonstram por Doris, na abjeção e no não pertencimento, conforme
é medida, por faltas ou excessos, ou quando é cobrada uma “transfor-
mação total” - o que supõe que aquela forma particular de ser e estar
no mundo não é o suficiente, não é legítima enquanto uma identidade
feminina. Como demonstramos na análise de duas cenas de Shrek II
(2004) os recursos visuais, sonoros e representacionais que atravessam a
caracterização de Doris e seus papéis na narrativa investem na construção
de uma personagem abjeta e marginal. Neste caso, normaliza e auto-
riza o riso, deboche e violência quando destinados a corpos de pessoas
transgênero. Os demais filmes da série, reiteram a abordagem marginal
e cômica atribuída a Doris. Em Shrek Terceiro (2007), por exemplo, ela
é retratada com mais frequência no castelo, na companhia das princesas

162
É de menina ou menino?

e nos eventos da realeza, e não mais em um bar. Contudo, fica nítido


que, mesmo próxima às princesas, Doris não tem lugar como “igual”
entre elas. Em uma celebração de chá de bebê, enquanto as princesas
se encontram reunidas em círculo e sentadas sobre um sofá, Doris per-
manece em pé e atrás delas. Mais adiante, Branca de Neve exclui Doris
da contagem do grupo, afirmando “Somos apenas quatro, quer dizer...
três princesas super gostosonas, dois monstrengos de circo, uma ogra
grávida e uma velha”. Interessante observar que mesmo os personagens
não humanos (como o Burro e o Gato de Botas, a quem a princesa se
refere como “monstrengos de circo”) são considerados nessa contagem,
o que posiciona Doris em uma categoria inferior aos animais. Por fim,
no quarto e último filme da série, Shrek para sempre (2010), Doris faz
uma única e breve aparição. Durante a festa de aniversário dos/as filhos/
as do casal protagonista, mesmo Doris sendo amiga de Fiona e tendo a
ajudado nos filmes anteriores, a personagem não participa como convidada
ou amiga, mas sim fantasiada e trabalhando como garçonete na festa.
Há de se suspeitar sobre a responsabilidade que esses e outros
artefatos da cultura visual têm em relação às violências cometidas contra
pessoas transgênero para além do âmbito ficcional, como documenta a
Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil – REDETRANS Brasil62. A
instituição registrou o assassinato de 105 pessoas transgênero no ano de
2019 - em sua grande maioria mulheres. Somente no mês de dezembro,
foram registradas sete vítimas de mortes violentas. Mais recentemente, a
Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA63 registrou
175 casos de assassinato contra travestis e transgêneros no ano de 2020 no
Brasil. Em 2021, só nos quatro primeiros meses, já foram contabilizados
56 assassinatos. Esses dados refletem que apesar de vivermos em um
país que se anuncia como “plural” e onde as diferenças são supostamente
“valorizadas”, a existência de corpos dissidentes à norma é condicionada
pelos preconceitos e violências que constituem a transfobia.

62 
Site oficial REDETRANS Brasil: <http://redetransbrasil.org.br/>. Acesso em: 15
de nov. de 2020.
63 
Site oficial ANTRA: <http://antrabrasil.org.>. Acesso em: 16 de maio de 2021.
163
João Paulo Baliscei (org.)

Em vista disso, como a “representatividade” de Doris atinge as


existências trans e travestis fora das telas? Nessa narrativa a figura trans é
a marginalizada, bondosa demais para ser vilã e grotesca demais para ser
princesa, ocupando um “não lugar” que, em partes, existe para endossar
o lugar normativo dos personagens cis centrados e heteronormativos.
O “final feliz” da norma é casar, ter uma lua de mel, ser uma princesa,
enquanto que para a pessoa trans, estar ali já é o suficiente.
Será que essa narrativa, se produzida sob uma ótica trans, teria esse
mesmo desenrolar? Será que apenas pessoas trans e travestis conseguem
vislumbrar narrativas em que o final feliz não seja um privilégio cis?
Enquanto dispositivo pedagógico, essa representação está em função de
legitimar e empoderar identidades trans e travestis ou em marcar um
lugar de não pertencimento para endossar um estigma social? Faz-se
necessário, portanto, reconhecer os limites da suposta representatividade
e voltar nosso olhar para as potências da autorrepresentação, reconhe-
cendo que uma voz terceira não dá conta de contemplar as sujeitas que
não são convidadas a falar.

REFERÊNCIAS

BALISCEI, João Paulo. Provoque: cultura visual, masculinidades e ensino de artes


visuais. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020.

BEZERRA JUNIOR, Belidson Dias, LARA, Alice Maria Vasconcelos. O Lobo Mau,
Pinóquio e as Irmãs Más como imagens transgêneras em Shrek: traços pedagógicos.
Visualidades, Goiânia, v.1, n.8, 2012, p.177-189. Disponível em<https://www.revistas.
ufg.br/VISUAL/article/view/18225/10889>. Acesso em 31 de jul. 2021.

ELOI, Caluã. Não se nasce Malévola, torna-se: a representação da mulher nos contos
de fadas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2018.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: Conceitos e termos.
Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para formadores
de opinião. [Online] Brasília: 2012. Disponível em:<http://www.diversidadesexual.com.
br/wp- content/uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.
pdf>.Acesso em 29 de mai. 2020.

LAMBERTI, Lua. Pe-drag-ogia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2021.

164
É de menina ou menino?

MOMO, Mariângela. Condições culturais contemporâneas na produção de uma infância:


o pós-moderno que vai à escola. In: 30ª reunião da Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Educação - ANPED, Caxambu, 2008. Acesso em: 19 de fev. 2019.

NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Rio de Janeiro,


Editora Schwarcz S.A., 2019.

PRECIADO, Paul B. Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia.


São Paulo: N-1 edições, 2020.

SABAT, Ruth. Filmes infantis e a produção performativa da heterossexualidade.


Tese (Doutorado). Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul Porto Alegre, 2003.

165
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Meninos podem (e devem) brincar de boneca se eles quiserem


Fonte: https://gq.globo.com/Paternidade/noticia/2019/05/meninos-podem-e-devem-
-brincar-de-boneca-se-eles-quiserem.html Acesso em: 20 de set. de 2021.

“O MEU IRMÃO TINHA UMA BONECA


E O MEU IRMÃO MAIS NOVO USAVA ISSO COMO CHANTAGEM”:
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE EDUCADORAS DA EDUCAÇÃO
BÁSICA SOBRE GÊNERO64

Fabiane Freire França65


Geiva Carolina Calsa66

INTRODUÇÃO

O presente capítulo consiste em investigar as representações


sociais de professoras e funcionárias dos anos iniciais de uma escola da
rede pública no que diz respeito às questões de gênero. Nessa direção
buscamos responder a seguinte questão: quem representa e quem é

64 
Parte dessas discussões foram publicadas em França e Calsa (2017) e França (2014).
65 
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Uni-
versidade Estadual de Maringá - UEM. Professora da UNESPAR. Coordenadora
do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Diversidade e Cultura - GEPEDIC.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8009677334152001.
66 
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora da
UEM. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3457378901881611.
166
É de menina ou menino?

representado pelas educadoras da Educação Infantil e dos anos iniciais


do Ensino Fundamental?
Do ponto de vista empírico, as respostas a estas questões e objetivos
foram buscadas em grupos de estudos configurados como um círculo
dialógico (FREIRE, 1987; JOVCHELOVITCH, 2008; ACCOR-
SSI, 2011; FRANÇA, 2014, FRANÇA; CALSA, 2015, FRANÇA;
CALSA, 2017), realizados com 18 participantes que trabalham em
uma escola pública da cidade de Campo Mourão-PR. Em diálogos,
essas profissionais manifestaram suas representações e foram incitadas
a refletir sobre maneiras de perceber as relações de gênero e sexualidade.
A escola, lócus desta investigação, indicada pelo Núcleo Regional de
Educação de Campo Mourão- PR, foi selecionada após seu aceite para
o desenvolvimento da pesquisa.
Os dados obtidos na pesquisa de campo e as discussões resul-
tantes de sua análise foram organizados em eixos dialógicos. Inicial-
mente propomos estabelecer uma relação entre gênero e representações
sociais no campo da Psicologia Social e realizar uma discussão voltada
à educação. No segundo eixo dialógico, apresentamos a metodologia
da pesquisa da qual faz parte a descrição das trilhas metodológicas de
caráter quantiqualitativo, com o intuito de evidenciar as representações
sociais de gênero que circularam no grupo de docentes. Este grupo foi
considerado um círculo dialógico por representar discussões, debates,
temas, problemáticas acerca do gênero no cotidiano escolar.
As representações das participantes durante um dos círculos
dialógicos são apresentadas no terceiro eixo de discussões por meio de
reflexões, organizadas sob a nossa interpretação, fornecendo-lhes signi-
ficados abertos a novas possibilidades de sistematização. Os resultados
da pesquisa evidenciam que há uma gama de representações sociais de
gênero que circulam na escola investigada. Ao estabelecer as discussões
sobre as mesmas em um círculo dialógico foi perceptível a coexistência
de saberes sobre gênero em uma mesma situação, em um mesmo sujeito.

167
João Paulo Baliscei (org.)

TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E OS ESTUDOS DE GÊNERO

Para compreender a relação entre gênero e representações sociais


é necessário entender em qual campo, como e o porquê esta teoria foi
pensada e elaborada. Em vista disso, trazemos para a discussão algumas
das contribuições da Psicologia Social. Nogueira (2001) explana que a
Psicologia Social teve influência do Construcionismo Social, da Aná-
lise do Discurso, do Estruturalismo e Pós-estruturalismo, bem como
outras áreas. Para a autora, estas vertentes contribuem à área de ciências
humanas com potencial para sustentar as instituições sociais, o status
quo, ou por outro lado problematizá-los, sendo a vertente feminista um
dos caminhos de questionamento e levantamento de dúvidas. “É dado
grande valor a novas formas de trabalhos que lentamente fazem caminho
nas ciências humanas e à frente deste movimento está a produção da
teoria feminista” (NOGUEIRA, 2021, p. 125).
A Teoria das Representações Sociais teve origem na Europa no
campo da Psicologia Social. Jovchelovitch (2008,) define representação
como um processo fundamental da vida humana que envolve o desen-
volvimento do indivíduo, da sociedade e da cultura. “Representar, isto
é, tornar presente o que está de fato ausente por meio do uso de sím-
bolos, é fundamental para o desenvolvimento ontogenético da criança”
(JOVCHELOVITCH, 2008, p. 32). Representar, para a autora, seria
“apresentar de novo” a sua leitura sobre o mundo. O saber, por exemplo,
seria como uma representação que expressa o desejo de representar de
tal maneira, de determinada perspectiva mediante relações de poder e
de interesse envolvidos na comunicação entre o “Eu” e “Outro”.
Moscovici (2011) salienta que as representações sociais com-
preendem teorias científicas, bem como, valores e crenças religiosas que
são representações de alguém ou de alguma coisa. É nesta direção que
Jovchelovitch (2008) nos convida a compreender a diversidade do saber
nos instigando a pensar como os sujeitos conhecem o mundo (JOVCHE-
LOVITCH, 2008, p. 83). Em vista disso, criar padrões comparativos
pode contribuir e ao mesmo tempo nos trazer perigos, pois produzem
entendimentos, expressões mediante a experiência do outro, mas podem

168
É de menina ou menino?

também produzir hierarquias ao definir o que é bom ou ruim, melhor


ou pior, superior ou inferior evidenciando sistemas bipolares.
É nesta direção que propomos uma pesquisa voltada ao diálogo,
sendo que as narrativas podem unir acontecimentos, produzir uma his-
tória coerente sobre a identidade social e individual do grupo. Foi este
processo dialógico que nos permitiu constituir narrativas de cada uma das
participantes, seus mitos, seus contos, suas histórias que correspondem
às suas origens, às suas morais, as maneiras como lhes foram ensinadas
a serem mulheres, mães, professoras, profissionais. Narrar nossas pró-
prias histórias nos faz pensar e problematizar como fomos ensinadas e
ensinados a fazer, a pensar, a dizer, a nos comportar.
As pessoas ouvem, assistem, falam sobre si e sobre o outro de
uma maneira tão naturalizada que reforçam práticas preconceituosas,
androcêntricas, sexistas, dentre outras centradas em um discurso nor-
matizador ancorado em práticas sociais históricas. Investigar, dialogar
e problematizar estas práticas pode nos possibilitar um posicionamento
político que não mais tolere e aceite ações como estas. É nesta direção,
que repensar as representações de gênero pode ser um caminho para a
escola reler e rever suas práticas.

TRILHAS INVESTIGATIVAS DA PESQUISA

O desenvolvimento empírico da presente pesquisa se iniciou com


a obtenção da autorização da escola selecionada para a participação de
seus/suas professores/as e funcionários/as nas atividades pedagógicas. O
consentimento da equipe pedagógica, da direção e dos/as profissionais
da escola foi obtido após a exposição do projeto de pesquisa. Com os
aceites em mãos e a assinatura dos Termos de Consentimento Livre e
Esclarecido, a pesquisa cumpriu as normas do Conselho Nacional de
Saúde e do Comitê de Ética/UEM. Os dados foram coletados durante
os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 2011 por meio
de oito encontros coletivos, às terças-feiras, das 17h h às 18h30, corres-
pondentes às discussões sobre as temáticas de gênero e sexualidade. O

169
João Paulo Baliscei (org.)

trabalho contou com a participação de 18 profissionais, mulheres67 - 11


professoras, 2 orientadoras, 2 auxiliares de serviços gerais, 1 diretora,
1 auxiliar de cozinha e 1 servente geral, funcionárias de uma Escola
Municipal da cidade de Campo Mourão-PR.
Jovchelovitch (2008) cita o educador Paulo Freire e sua metodo-
logia de alfabetização de adultos/as como um exemplo metodológico de
encontros dialógicos entre diversos conhecimentos. A autora comple-
menta que Freire postulou uma teoria da comunicação entre sujeitos com
diferentes saberes, a partir da qual o autor considera que a construção
dos diálogos entre os/as interlocutores/as deve ser reconhecida sem haver
uma hierarquização de um determinado saber sobre o outro. Sugeriu a
comunicação mediante círculos de culturas.
Com base na premissa freiriana, Accorssi (2011) e Romão, Cabral,
Carrão e Coelho (2006) salientam que o círculo epistemológico se cons-
titui um recurso no qual pesquisados/as se tornam pesquisandos/as,
enquanto o/a pesquisador/a é desafiado/a a questionar suas próprias
representações. As discussões do círculo epistemológico produzido por
Accorssi (2011, p. 90) e a sugestão de Jovchelovitch (2008) em pensar
a pesquisa como um ato dialógico, ambas ancoradas em Paulo Freire,
permitiram-nos a organização de um novo recurso metodológico: o círculo
dialógico. A proposta adaptada do círculo de cultura de Paulo Freire
(1987) foi utilizada nesta pesquisa como um recurso pedagógico capaz
de favorecer e acompanhar o movimento de conflitos e negociações das
reflexões e falas dos sujeitos acerca dos temas gênero e sexualidade no
transcorrer dos encontros de observação e diálogo em grupo, por isso o
nominamos de círculo dialógico.
Estes pontos de encontro nos permitiram construir um diálogo
entre o “eu” pesquisadora e as “outras” participantes ou as “eus” partici-
pantes e a “outra” pesquisadora, ao evidenciar os nossos pontos de vistas
de gênero e sexualidade. Este processo não foi harmonioso, tampouco
consensual, esteve carregado de conflitos e contradições. Neste sentido,

67 
Embora tivessem dois homens – um professor da quarta série e um técnico responsável
pelo laboratório de informática-, apenas as professoras aceitaram aderir à pesquisa.
170
É de menina ou menino?

apresentamos, na sequência, as representações das participantes durante


um dos círculos dialógicos com base na Teoria das Representações
Sociais e dos Estudos de Gênero. Devido a quantidade de material
coletado em cada círculo dialógico, optamos por apresentar a análise
de um dos encontros.

QUEM REPRESENTA E QUEM É REPRESENTADO NOS JOGOS DAS


IDENTIDADES DE GÊNERO?

Neste encontro nos propusemos a repensar o “quem” das represen-


tações sociais sobre gênero apresentado pelas participantes da pesquisa.
A organização deste círculo dialógico nos expôs que a maior parte das
docentes e funcionárias compreende que quem representa majoritaria-
mente a sociedade é o projeto normatizador de homem, branco, masculino,
cristão e heterossexual, enquanto quem é representado por este projeto
padrão é o “outro” que de alguma maneira não se enquadra no padrão.
Apesar de haver uma norma, as falas das participantes evidenciaram
momentos em que elas próprias tentaram se convencer deste projeto
naturalizado de quem deve ser o sujeito social padrão com o jeito “certo”
de ser no mundo. Tais movimentos ambivalentes nos apontam para um
processo de polifasia cognitiva, em que os sujeitos produzem diferentes
lógicas para explicar suas representações de mundo.
A representação social de gênero predominante neste encontro
do círculo dialógico é ancorada e objetivada em um parâmetro – sexo,
gênero e sexualidade – homem macho deve ser masculino e heteros-
sexual, mulher fêmea, feminina e heterossexual – como identidades
naturalizadas. Para problematizar essas representações sociais do grupo
buscamos favorecer a construção de novas ancoragens e objetivações,
bem como o reconhecimento da polifasia cognitiva de cada participante
e do grupo em seu conjunto.
A primeira manifestação do grupo sobre o tema proposto ocorreu
após comentarmos sobre a vida cotidiana das mulheres em comparação
com a dos homens. Mencionamos que, embora nós, mulheres, tenha-
mos conquistado alguns espaços sociais, parece natural que o espaço

171
João Paulo Baliscei (org.)

predominante das mulheres seja o campo privado, o cuidado dos lares e


de suas crianças. Destacamos como somos desvalorizadas profissional-
mente, por sermos mulheres, a dupla jornada que temos, como cuidar
da vida profissional e pública e ser também responsável, unicamente,
pela vida privada e pelo cuidado com a família (FRANÇA, 2014;
FRANÇA, 2016).
A professora P368, então, falou ao grupo: “Na verdade é uma
jornada tripla, a mulher que tem que trabalhar, cuidar da casa e dos
filhos”. É curioso que, após termos abordado aspectos sobre gênero e
identidade, somente quando nos referimos ao cotidiano das mulheres
uma das participantes se manifestou verbalmente. Mediante sua fala, o
grupo pareceu explicitar quem são elas: mulheres, professoras, funcioná-
rias, trabalham fora e cuidam da casa e dos/as filhos/as. Cogitamos que,
neste momento, a participante tenha se identificado com a representação
social sobre mulher, sobre quem é, ou sente ser.
Aproveitamos sua fala para perguntar ao grupo: como vocês mulhe-
res vão se dedicar aos seus trabalhos da mesma maneira que o homem
tendo uma jornada tripla? Ao que a mesma professora, P3, respondeu:
“é aquela ideia sexista também, o homem ganha mais, portando se ele
ganha mais ele é o provedor da casa, tem mais direito na casa, direito
de não fazer nada” (risos do grupo). Sua fala expressa a objetivação das
representações sociais de gênero como uma norma social binária, de
um lado as tarefas do homem e do lado oposto as tarefas da mulher,
acrescentadas do trabalho remunerado. Essa posição corresponde ao
explicitado por Lessa (2005, p. 52): “As mulheres, além do trabalho
remunerado, exercem todo ou quase todo trabalho doméstico e formam
maioria no trabalho voluntário em escolas, hospitais e outros locais na
comunidade. Elas teriam, então, uma tripla jornada de trabalho?”. No
entanto, no decorrer dessas discussões sobre o binarismo, P3 pergunta:
“E quem reproduz isso são as mulheres também, né? Começa com a mãe,
depois com as professoras” Ao que a pesquisadora, FF, acrescenta: “Mas,

68 
Identificação das participantes – P (professoras); F: Funcionárias; FF: Pesquisadora
(Fabiane França). A numeração é aleatória para diferenciação das participantes.
172
É de menina ou menino?

será que nós nos damos conta que fazemos isso? Que reproduzimos essa
divisão entre homens e mulheres?”. Essa discussão nos lembra a obra de
Alícia Fernández (1994), A mulher escondida na professora, na qual assi-
nala que, embora as mulheres se sintam insatisfeitas e sobrecarregadas
com a quantidade de afazeres que assumem, são também responsáveis
por consolidar as desigualdades nas relações de gênero ao assumirem o
papel de quem deve cuidar da casa e da família, tanto como mãe quanto
como professora. A fala e o silêncio das participantes condizem com o
comentário da autora ao indicar que a mulher em seu papel de mãe e
professora contribui para manter este “quem” é a mulher nas interações
com seus filhos e filhas, com seus alunos e alunas.
Essa influência foi evidenciada pelo grupo ao relatar duas dife-
rentes representações sociais sobre o brincar de boneca apresentadas
pelas participantes, P13 e P3, em que denunciam o modo como o olhar
do/a adulto/a direciona as escolhas das crianças. Na primeira situação,
um menino que gosta de brincar de boneca e tem de esconder isso por
ser chantageado (P13), enquanto na segunda, a ausência da boneca da
menina é substituída por um carrinho (P3).
P13: o meu irmão tinha uma boneca e o meu irmão
mais novo usava isso como chantagem e ele guardava
embaixo da cama. Quando fazia alguma coisa, o outro
dizia eu vou contar que você brinca de boneca (risos do
grupo, grifo nosso). P3: tem uma psicóloga que escreveu
um livro dizendo que queria mudar isso quando tivesse
filhos. Quando ela teve uma filha não deu pra ela uma
boneca, dava só brinquedos masculinos, mas ela tam-
bém fez uma inversão né [...] é uma coisa tão natural
da mulher, que a menina, uma vez ela se pegou com a
filha fazendo o carrinho dormir, dando mamadeira e
colocando no berço, ou seja, o carrinho era a boneca
dela, então daí ela percebeu que era uma coisa natural
que não pode forçar uma situação (grifo nosso).

As representações sociais assinaladas pelas duas professoras refor-


çam a tradição de quem é a mulher, sobretudo quando P3 salienta o
brincar de “mamãe” como algo natural da mulher. Tais afirmações
denotam as ancoragens das professoras em uma mulher universal, a

173
João Paulo Baliscei (org.)

mulher que foi objetivada pelo discurso religioso e médico, hegemônico.


Este entendimento reforça a mulher como um ser de essência materna,
designado ao campo privado. Intrigante a afirmação de P3 de que não
se pode forçar uma situação, no caso a menina que brinca de carrinho e
imagina uma boneca, pois, ao mesmo tempo, manifesta como natural
que meninas brinquem com bonecas. Não seria esta naturalização um
tipo de imposição? Mulheres só podem brincar de bonecas, porque é
o “natural” e é assim que são representadas. Estamos aqui novamente
diante da polifasia cognitiva, em que a professora problematiza uma
situação – menina brincar de carrinho – como uma imposição da mãe e
ao mesmo tempo legitima a representação social de que meninas devem
brincar de bonecas porque é o natural.
Esta naturalização do brincar de boneca e ser “mamãe” por parte
da mulher expressa no círculo dialógico apareceu também em uma das
situações observadas na escola. Durante uma aula do quarto ano, uma
das tarefas solicitada aos/às alunos/as foi que respondessem se tinham
bonecas. Em um primeiro momento, os meninos disseram que “não”,
porém, alguns, após certa hesitação, responderam que “sim” quando,
então, a professora P8 disse o seguinte: “Se a estagiária (refere-se a auxi-
liar de pesquisa) não estivesse aqui eu diria que os meninos não podem
ter bonecas, mas como ela está aqui eu vou dizer que podem! (risos)”
(Anotações do diário de campo durante as observações).
A manifestação da professora em sala de aula nos remeteu a
Foucault (1988), quando alerta sobre a maneira sutil como as práticas
cotidianas nos disciplinam conforme as normas vigentes. Somos insen-
síveis à legitimação de discriminações e preconceitos que nós mesmos
exercemos. Na mesma direção, Jovchelovitch (2008, p. 176) afirma
que “o que importa nestes casos é garantir a continuação de tradições e
saberes sobre ‘quem somos nós’ e a lógica dos saberes é governada pela
força do subjetivo”. Ou seja, as representações das participantes sugerem
que eles são homens que não podem brincar com bonecas e nós somos
mulheres que temos essa autorização. A objetivação dessa representação
social por parte da professora sobre gênero, manifestada em sua fala e
seu riso, evidencia a lógica da tradição sobre gênero.
174
É de menina ou menino?

Constatamos que o “quem” das representações sociais das parti-


cipantes está ancorado no ser mulher como mãe, como aquele indivíduo
cuja função é aprender a cuidar quando menina e cuidar do outro, quando
adulta. Tal representação social orienta as vivências e experiências do
cotidiano de meninos e meninas na escola. A boneca é compreendida
como parte exclusiva do universo feminino, e meninos são repreendi-
dos por gostarem deste tipo de brinquedo e o que decorre dele como o
cuidado com o outro.
Com o objetivo de desestabilizar certezas do grupo e fortalecer a
polifasia cognitiva das participantes, procuramos trazer posicionamentos
destoantes dos seus, verbalizados e observados69. Argumentamos que
vivências não convencionais de brincadeiras por parte de meninos e
meninas não implicariam a inversão de papéis (as meninas passarem a
brincar de carrinho e os meninos de boneca), mas experimentação de
outras possibilidades de ser. Oportunizar este tipo de vivência signifi-
caria apresentar outras alternativas de ser ao que a escola costuma fazer
como as filas de meninos e meninas, a atribuição de cores azul e rosa aos
gêneros, competições sexistas, entre outras atividades que influenciam
a formação da identidade de alunos e alunas.
Advertimos ao grupo que pretendemos evidenciar esta dinâmica,
que não há uma organização rígida e única do que acreditamos ser
homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, há uma flexibi-
lidade na formação de nossas identidades. O fato de um homem ser
“mais feminino” não significa que ele gosta de homens. Em respostas,
P10 comenta, “Mas, é muito estranho!” (todas riem). FF responde “É
estranho porque não estamos acostumadas, é que nós já fomos forma-
das para acharmos estranho”. Encontramos em Moscovici e Marková
(2011) uma explicação para as falas das participantes quando salienta
que a comunicação produz representações sociais e serve também para
tornar familiar o não familiar – o estranho; o exótico.

Tais posicionamentos foram recolhidos de materiais didáticos (BRASIL, 2007;


69 

PARANÁ, 2011), da literatura especializada (LOURO, 1997; 2013; WEEKS, 2007),


dentre outros destacados no decorrer da pesquisa.
175
João Paulo Baliscei (org.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estratégia de fazer com que os sujeitos se questionassem todo


o tempo e saíssem de cada encontro com mais dúvidas do que chegas-
sem foi um recurso que nos pareceu interessante para a pesquisa. Este
processo de discussão não buscou uma receita e/ou respostas prontas
sobre como trabalhar o gênero e a sexualidade em sala de aula, pelo
contrário, no círculo dialógico foram levantadas possibilidades para
que as participantes refletissem e permitissem a si e aos seus alunos
e alunas fazerem o mesmo processo, repensarem suas atitudes e seus
valores. Verificamos que muitas das representações das professoras e das
funcionárias da escola condizem com um discurso hegemônico sobre
o que esperam das discussões de gênero e sexualidade nas instâncias
sociais. Ao realizarmos o círculo dialógico, tivemos como intuito abrir
possibilidades, evidenciar outras abordagens destes conceitos em suas
práticas e vivências.
Após a conclusão da pesquisa, em 2014, seguimos com a utilização
dos círculos dialógicos com destaque a potencialidade do pensamento
de Paulo Freire para a efetivação de propostas voltadas à educação em
direitos humanos. Temos realizado pesquisas em rede para a efetivação
do processo de dialogicidade. Um dos exemplos são os trabalhos que
temos desenvolvido por meio de WebQuest (FRANÇA; SASSO,
CORDEIRO, 2021; ROSSI; FRANÇA, 2020). Essa experiência tem
nos propiciado, além de elaboração de uma website didática, troca de
saberes e de sensibilização com as narrativas do outro, das diferenças
e da diversidade, da interseccionalidade de gênero, raça, classe, dentre
outros marcadores sociais.
Além disso o Grupo de Pesquisa em Educação, Diversidade e
Cultura (GEPEDIC/CNPq) tem sido um canal para expandir essas
discussões a outros espaços. Esse movimento possibilitou compreender
como as mídias têm ocupado as nossas vidas, uma vez que o papel de
ensinar deixa de ser atribuído apenas às escolas, afinal, os meios de
comunicação também exercem o estatuto pedagógico.

176
É de menina ou menino?

Ao considerar o contexto pandêmico precisamos exercer ainda


mais as práticas dialógicas propostas por Freire para derrubar as notícias
falsas e problematizar o senso comum que desconhece a real função da
educação em direitos humanos e relações de gênero. Tendo em vista a
atual conjuntura política, reforçamos que pesquisas como essas com-
provam a necessidade da utilização de materiais educativos acerca do
gênero e da diversidade sexual na escola. Os resultados evidenciam que
mesmo os/as professores/as que querem trabalhar esses temas em sala
de aula sentem-se desamparados/as pela falta de formação e diálogo.

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de Janeiro: Graal, 1988.

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br/projetos/revista/index.php/educacao/article/view/2583. Acesso em: 31 de ago. 2021.

_______. A contribuição da dialogicidade de Paulo Freire aos Estudos de Gênero e à


Teoria das Representações Sociais: um relato de experiência. In: MILITÃO, S. C. N.;
DI GIORGI, C. A. C.; MILITÃO, A. N. FRANCISCO, M. V.; LIMA, M. R. C..
(Orgs.). A atualidade de Paulo Freire frente aos desafios do século XXI. Curitiba:
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FRANÇA, Fabiane Freire; GERALDI SASSO, Andrea; FERNANDA CORDEIRO,

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estágio de docência com o uso de WebQuest. Communitas, v. 5, n. 9, p. 312–333, 2021.

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questões de gênero: experiências de educadoras em debate. Interfaces da Educ., Para-
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index.php/interfaces/article/view/4492. Acesso em: 06 de set. 2020.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO. G. L. (Org.). O corpo educado:


pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 7-34.

178
É de menina ou menino?

TECNOLOGIAS
CONTEMPORÂNEAS DE

CONTROLE
DE GÊNEROS E SEXUALIDADES

“ “Olha o que a cor me faz”: discussões acerca de


raça, gênero, sexualidade e cor no videoclipe Nosso gênero vem de Deus;

Desenhos animados como tecnologias de gênero: (des)construindo masculinidades;

“Será que Ele é”? A construção do preconceito transfóbico


no vilão Ele do desenho As Meninas Superpoderosas;

Ilustração e Literatura Infantil:


uma perspectiva a partir da Cultura Visual na coletânea Corpim, de Ziraldo;

“Os outros que tinham problemas comigo”:


história pública e a homofobia na História em Quadrinhos dos Jovens Vingadores.

179
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Frame do videoclipe de Nosso gênero vem de Deus (2019).


Fonte: <https://youtu.be/vXo7cyfRLAc>. Acesso em: 03 de set. 2021.

“MENINA FEMININA E MENINO MASCULINO”:


DISCUSSÕES ACERCA DE RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADE E COR
NO VIDEOCLIPE NOSSO GÊNERO VEM DE DEUS (2019)70

Andrey Gabriel Souza da Cruz71


Gabriela Narumi Inoue72

DIÁLOGOS ANTECEDENTES

Durante a realização do evento de extensão intitulado II Ciclo de


Debates do ARTEI: O que as visualidades (não) dizem sobre mim, organi-
zado pelo Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens - ARTEI,
70 
Esse texto reúne dados elaborados em duas pesquisas do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC. São elas: Ser homem negro - Representações
e performances de masculinidade e negritude na série Sex Education (2019) e Para além do
azul e do rosa: o uso pedagógico das cores na Educação Infantil, ambas orientadas pelo prof.
Dr. João Paulo Baliscei.
71 
Licenciado em História - Universidade Estadual de Maringá - UEM. Bolsista
do CNPq, processo nº 1899/2020. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2646641732876596.
72 
Graduanda de Artes Visuais - Licenciatura pela Universidade Estadual de Maringá
- UEM. Bolsista da Fundação Araucária, processo nº 1713/ 2020.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3576708408741455.
180
É de menina ou menino?

no ano de 2021, experienciamos a mediação de dois encontros, os quais


nomeamos como: Olha o que a cor me faz: (re) produção de significados em
torno de cor, raça, gênero e sexualidade (2021). Nesses encontros, temati-
zamos as representações dos marcadores raciais, de gênero e sexualidade
nas e por meio das cores, em diálogo com a leitura do capítulo Mulher
negra: o outro do outro, de Djamila Ribeiro (2017).
As reuniões ocorreram quinzenalmente por meio da plataforma
Google Meet, assim como toda a programação do evento, devido à pan-
demia da Covid-1973 vivenciada no contexto em que fora executado.
Apesar desse cenário, os encontros virtuais oportunizaram que pessoas
de diferentes instituições e regionalidades do Brasil participassem das
discussões, totalizando, 141 inscrições. As discussões foram introduzidas
por um momento expositivo no qual apresentamos o tema, o texto base
e outras referências teóricas, seguidas pelos conceitos de raça, gênero,
sexualidade e cor, respectivamente. Por conseguinte, dialogamos sobre
esses marcadores, dispondo de algumas imagens e produções artísticas
que reafirmam ou refutam determinados estereótipos.
Diante disso, neste capítulo, tomamos da experiência de mediação
dos dois encontros junto ao Grupo ARTEI para discutir sobre os ende-
reçamentos imagéticos às infâncias. Tal investigação foi perpassada pela
seguinte problemática: Como as (re)produções de significados em torno
de cor, raça, gênero e sexualidade estão atreladas às imagens direcionadas
às infâncias? Nesse sentido, procuramos problematizar as construções
de identidades culturais associadas às (re)produções de significados que
envolvem cor, raça, gênero e sexualidade. Para isso, inicialmente apre-
sentamos os conceitos supracitados, bem como de interseccionalidade,
tendo como base os/as autores/as Berenice Bento (2011), Guacira Lopes
Louro (2007), Silvio Almeida (2019), Jaqueline Gomes de Jesus (2012) e
Djamila Ribeiro (2017). Posteriormente, entrelaçamos as (re)produções

73 
A Pandemia da COVID-19 foi originada pela transmissão de um novo vírus (SAR-
S-CoV-2) da família do coronavírus, tendo seu primeiro registro em seres humanos na
cidade de Wuhan, na China, ano de 2019. Os procedimentos de prevenção da doença
são: manter o distanciamento social, manter ambientes arejados, higienizar as mãos
frequentemente e usar máscaras, entre outros cuidados.
181
João Paulo Baliscei (org.)

de significados em torno de raça, gênero, sexualidade e cor às infâncias,


a partir da análise do videoclipe Nosso gênero vem de Deus (2019), do
qual, inclusive, trata a Figura 01, trazida para a abertura deste capítulo.
Por fim, trazemos como considerações finais, as problematizações acerca
dos direcionamentos de imagens que determinam e validam existências
e modos de atuar o gênero e a sexualidade em detrimento de outras,
limitando, assim, as vivências e potencialidades das crianças.

RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADE E COR

Em Mulher Negra: o outro do outro, inserido no livro O que é lugar


de fala, Ribeiro (2017) discorre sobre a mulher negra enquanto o "outro
do outro", aquelas que ocupam um espaço vazio, às margens da raça e do
gênero devido à sua dupla carência: não ser nem branca e nem homem.
Ao questionar a invisibilidade das mulheres negras em determinados
espaços da sociedade e refutar a universalidade das categorias identitá-
rias, o texto propõe um deslocamento do pensamento hegemônico e a
ressignificação das identidades, a fim de construir novos lugares de fala
e possibilidade de existência.
Nesse sentido, nos debruçamos inicialmente sobre a compreensão
quanto à racialidade, enfatizando como tratar de raça está para além de
uma mera contemplação de traços e fenótipos que compõem as estéticas
e corpos. Mais que isso, atrela-se a evidenciar como tal marcador social
fixa narrativas históricas e culturais nos indivíduos. Almeida (2019, p.
31) entende que "[...] raça é um elemento essencialmente político, sem
qualquer sentido fora do âmbito socioantropológico", para que assim
possamos entender como não há justificativas biológicas ou culturais
para tratamentos desiguais entre os indivíduos. Contudo, a desigualdade
e hierarquização dos corpos operam e geram indagações quanto aos
"porquês" e “como” se mantêm.
Compreender raça é também entender que inúmeros termos e
adjetivos que utilizamos de modo geral na nossa linguagem perpassam
por significações distintas, conforme o campo de estudo. Enquanto
conceito inserido no campo da biologia, raça portaria outros signifi-

182
É de menina ou menino?

cados, além de dar margem para um “racismo científico” que imperou


por séculos e que até mesmo nos dias de hoje flerta com pensamentos
discriminatórios. É justamente no campo da biologia que muitos/as se
ancoram para se opor às ideias de raça no quesito sociológico e, usando
de uma visão biologizante, expressam como “somos todos/as iguais”, por
pertencermos à mesma “raça”, a humana. Todavia, no teor socioantro-
pológico, raça não é uma só, e se constitui imersa em peculiaridades e
marcadores específicos, atrelando-se diretamente à hierarquização dos
corpos, isso variando segundo cultura e geografia.
Na sequência, abordamos gênero enquanto uma construção social,
histórica e cultural, em contraposição às proposições biológicas e essen-
cialistas, conforme afirma Jesus (2012, p. 08): “[...] a grande diferença
que percebemos entre homens e mulheres é construída socialmente,
desde o nascimento, quando meninos e meninas são ensinados a agir
de acordo como são identificadas, a ter um papel de gênero ‘adequado'”.
Nesse momento, também recorremos a Bento (2011) para complementar
que, com o advento da ultrassonografia, as construções sobre gênero se
iniciam antes mesmo do nascimento, como podemos observar na tradição
do “Chá de bebê”. Além disso, aproximamo-nos ao texto de Ribeiro
(2017, p. 21), quem argumenta que “[...] a mulher não é definida em si
mesma, mas em relação ao homem e através do olhar do homem. Olhar
este que a confina num papel de submissão que comporta significações
hierarquizadas”, enfatizando, assim, a lógica comparativa e dessemelhante
na constituição dos seres.
Deste modo, o gênero opera como meio de garantir adequações
no corpo social, ressaltando a variabilidade quanto à cultura e geografia,
visto que o perfil masculino e feminino valorizado por determinados
setores e grupos da sociedade brasileira não necessariamente é idêntico
às prerrogativas de outras sociedades, ainda que portem similaridades
quanto aos postos de hegemonia e normalidade. Assim, gênero a partir
da perspectiva construtivista, é utilizado, semelhantemente à raça, para
alocar indivíduos em posições, postos condicionados a ações, pensamentos
e formas de ser.

183
João Paulo Baliscei (org.)

Similarmente, o conceito de sexualidade tem sido compreendido


como um constructo histórico e cultural, oposto às perspectivas essencia-
listas e deterministas, que são pautadas em um híbrido de justificativas
biológicas e religioso-dogmáticas sobre a sexualidade humana. Produzido
na cultura cambiante e carregado da possibilidade de instabilidade, mul-
tiplicidade e provisoriedade, o conceito de sexualidade, para os Estudos
de Gêneros, envolve não só o corpo, como “[...] fantasias, valores, lin-
guagens, rituais, comportamentos, representações mobilizados ou postos
em ação para expressar desejos e prazeres” (LOURO, 2007, p. 210).
Relacionamos o conceito de sexualidade ao termo “heteroter-
rorismo” cunhado por Bento (2011), segundo a qual as infâncias são
atravessadas por afirmações e proibições que visam assegurar a hete-
rossexualidade por meio da disciplinarização dos gêneros hegemônicos.
Conforme a autora: “A cada reiteração do/a pai/mãe ou professor/a, a
cada ‘menino não chora!’, ‘comporta-se como menina!’, ‘isso é coisa de
bicha!’, a subjetividade daquele que é o objeto dessas reiterações é minada.
(BENTO, 2011, p. 552) Com isso, observamos as violências decorrentes
da normatização do gênero e da sexualidade, bem como instigamos à
reflexão e ao reconhecimento das marcas do heteroterrorismo em práticas
cotidianas, endereçadas às crianças por meio dos enunciados e outros
artefatos culturais que permeiam diversas instâncias das infâncias. Ao
abordarmos as questões cromáticas, por exemplo, consideramos que, para
além de um componente visual e expressivo, as cores também guardam
relações de significados atreladas às construções sociais de um deter-
minado contexto cultural e histórico, sendo utilizadas, inclusive, para
propagar conteúdos que produzem valores e saberes; regulam condutas
e modos de ser; formam identidades e representações. Nesse sentido,
as significações cromáticas perpassam as questões identitárias, como as
étnico-raciais, as de gênero e sexualidade, já mencionadas.
Entrelaçamos todos os marcadores apresentados a partir do con-
ceito de interseccionalidade, criado pela feminista Kimberlé Crenshaw
(1959--), que amplia a compreensão de como as formas de opressões
caminham de mãos dadas, intensificando ou amenizando as violências
conferidas contra as identidades socialmente inferiorizadas. Segundo
184
É de menina ou menino?

Crenshaw (2002, p. 177), “A interseccionalidade é uma conceituação do


problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas
da interação entre dois ou mais eixos da subordinação", evidenciando
como indivíduos/identidades que comportam mais de um marcador
social tido como abjeto têm que lidar constantemente com diversos
atravessamentos opressivos.

REDUZINDO AS INFÂNCIAS EM “MENINA FEMININA” E “MENINO


MASCULINO”

A trajetória teórica que até aqui nos ancorou servirá para embasar
e ampliar nossa criticidade quanto ao artefato cultural que nos instiga
inquietação devido aos endereçamentos ao público infantil e às mensa-
gens que comporta e propaga. O objeto de análise selecionado se trata
do clipe musical Nosso gênero vem de Deus (2019), interpretado pelo Trio
R3 - composto por duas meninas e um menino. Para melhor analisar-
mos e discorrermos sobre as imagens advindas do objeto, optamos por
utilizar como metodologia o conjunto de procedimentos que orienta
investigações visuais críticas e inventivas, denominado PROVOQUE,
de João Paulo Baliscei (2020a).
Para isso, seguindo a trajetória do PROVOQUE (BALISCEI,
2020a), somos incitado/a ao flerte com o objeto de análise, sendo esse o
momento que evidencia nossos interesses e aproximações com o video-
clipe. Ainda que sejamos interpelado/a por motivações diferentes e
atravessamentos sociais diversos, bem como inquietações e incômodos
subjetivos (que tocam um homem negro e uma mulher nipo- brasileira,
respectivamente), justificamos a escolha desta produção audiovisual
pelas possíveis limitações de expressões de gênero, assim como de raça e
sexualidade implícitas nos discursos e nas visualidades, principalmente
por meio das cores.
Percebemos, já nas cenas iniciais de Nosso gênero vem de Deus
(2019), a divisão dos grupos de meninas e de meninos, demarcados
visualmente. No videoclipe, todos os meninos utilizam alguma peça de
roupa com a cor azul, ao passo que as meninas usam vestidos, laços e a

185
João Paulo Baliscei (org.)

cor rosa. Além disso, os dois grupos se diferenciam pelos brinquedos que
carregam em cenas do videoclipe: os meninos manuseiam carrinhos e
as meninas seguram bonecas. Para reforçar tais diferenciações, a canção
irrompe com a exclamação das crianças intérpretes “Sou menino! Sou
menina!” e tem seu refrão marcado pelos versos: “Sou menina, menina
feminina/ Sou menino, menino masculino/ Não somos acidentes/ Nem
erros divergentes/ Fomos feitos pelo criador”. Durante todo o percurso
do vídeo, o cenário permanece segregado entre meninos e meninas, sem
que eles e elas se misturem.
Diante dessas observações, direcionamos o olhar de estranhamento
para questões como: de que modo os conceitos de raça, gênero, sexuali-
dade e cor atravessam as visualidades e os discursos de Nosso gênero vem
de Deus (2019)? Qual a concepção de masculinidade e feminilidade (re)
produzidas nesse videoclipe? A quem se referem os termos “acidentes”
e “erros divergentes” apresentados na canção? Por que as crianças intér-
pretes negam ser essas identidades?
Para investigar essas problematizações, confrontamos as narrativas
visuais e discursivas do videoclipe com os conceitos de raça, gênero,
sexualidade, cor e interseccionalidade, abordados anteriormente. Assim,
ainda que durante a análise reforcemos um conceito ou outro, salientamos
que todos os marcadores operam de modos interligados e confluem na
legitimação de determinados estereótipos.
Ao analisar a canção, nos chama a atenção a performatividade
incitada e esperada desse “menino masculino” e dessa “menina feminina”
- afirmativas enfatizadas na letra da música. Pois, advindas do senso
comum, observa-se como ambas as atuações de gênero supracitadas,
além de serem tratadas exclusivamente como dicotômicas, são expostas
e apresentadas como as únicas possíveis. Vemos que na música há uma
ênfase nos gêneros de modo binário, fixo, inato e resultante da decisão
(inquestionável) de um “ser superior” que determinaria a aparência bio-
lógica dos sujeitos. Mencionando as expressões de gênero no singular
(masculino e feminino), a letra se vincula à crença e à visão ideológica
que molda e oportuniza apenas um único jeito de ser homem e mulher,

186
É de menina ou menino?

restringindo e excluindo corpos e performances diversas, daqueles/as


que escapam da norma.
Verificamos também, que as diferenciações entre “menino mas-
culino” e “menina feminina” no videoclipe são (re)produzidas por meio
das cores, mais especificamente a cor azul e rosa, presentes nas vesti-
mentas e nos brinquedos que são manuseados pelas crianças nas cenas.
Como podemos observar no frame da Figura 1, as meninas apresentam
em comum as cores rosa em suas vestimentas, adereços e nas bonecas
com que brincam, ao passo que os meninos utilizam a coloração azul e
brinquedos como carrinhos. Essas visualidades se aproximam aos estudos
de Chimamanda Ngozi Adichie (2017, p. 14), quem observa diante das
seções de brinquedos e roupas infantis, as separações entre meninos e
meninas por meio das cores e das características atribuídas ao gênero:
“Os brinquedos para meninos geralmente são “ativos”, pedindo algum
tipo de “ação” — trens, carrinhos — , e os brinquedos para meninas
geralmente são ‘passivos’, sendo a imensa maioria bonecas”. Semelhan-
temente, Bento (2011) problematiza que os brinquedos como bonecas,
fogãozinhos e panelinhas, preparam a criança para atuar o gênero
feminino conforme as características de passividade, cuidado e bondade,
estritamente vinculadas à maternidade e à vida privada. Já os revólve-
res, carros, bolas e outros brinquedos que aguçam a competitividade,
conduzem a construção do masculino e sua atuação no mundo público.
Além disso, sobretudo no tocante às cores, Baliscei (2020b) destaca
que os elementos cromáticos são utilizados como pedagogias que ensinam
a performar o gênero e disciplinam os corpos infantis. O autor também
demonstra que a associação do masculino ao azul e do feminino ao rosa
são construções recentes historicamente, derivados de transformações
culturais, econômicas, religiosas e de gênero dos séculos XX e XXI. Mais
especificamente sobre a cor rosa, Marcia Gobbi (2015) percebe durante
uma investigação na Educação Infantil que há uma predominância
dessa cor nos desenhos em que representavam práticas convencionadas
como femininas, atuando como uma marca do universo feminino. Para
a autora, as associações entre cor rosa e a feminilidade “[...] denotam a
existência de uma didática de gênero que, perversa e vagarosamente, vai
187
João Paulo Baliscei (org.)

ensinando e constituindo qual é o lugar das meninas e das mulheres e


do feminino” (GOBBI, 2015, p. 150).
Quando essas demarcações entre “menino masculino” e “menina
feminina” são transgredidas, identificamos uma censura por parte tanto
dos/as adultos/as como das próprias crianças, envolvendo não só a ques-
tão de gênero como também a sexualidade. Observamos no relato de
Susana Rangel Vieira da Cunha (2010, p. 18) que no espaço da Educação
Infantil, uma aluna afirmou que “[...] se um menino usasse a mochila
rosa, da Barbie, ele seria diferente, um gay”. Tais expressões ganham
continuidade em outros níveis da Educação Básica, como identificamos
nas transcrições de Luciana Borre Nunes (2010) em diálogo com uma
turma da 3ª série do Ensino Fundamental. Na ocasião, os/as estudan-
tes afirmaram ser proibido um menino usar “coisas de menina”. Caso
contrário, esse menino é percebido pelos/as demais como “estranho”
ou “bichinha”, sendo ridicularizado principalmente por outros garotos.
Essas reações das crianças, percebidas por Cunha (2010) e Nunes
(2010) se associam às constatações de Baliscei (2020b), segundo o qual
o medo de ser identificado como homossexual se faz presente desde às
infâncias principalmente entre meninos, vigiando e conduzindo seus
comportamentos em público. Tal temor deriva “[...] em parte, pelos tra-
tamentos distintos que os/as próprios/as docentes e toda a comunidade
escolar direcionam aos/às estudantes conforme seu gênero” (BALISCEI,
2020b, p. 99). No videoclipe o temor é reforçado nos versos “Não somos
acidentes/ Nem erros divergentes” - aqui referindo-se a quem apresenta
atuações de gênero e sexualidades distintas da heteronormatividade. A
ótica excludente e discriminatória presente na produção, especificamente
na adjetivação de indivíduos como “acidentes”, encontra-se alinhada e
com similaridade direta às concepções sociais que hierarquizam corpos os
segregando entre hegemônicos (norma) e dissidentes. Segundo Douglas
Kellner (2001, p. 83), a norma encontra-se disposta então especificamente
sobre um corpo ideologicamente “elevado”, sendo, branco, masculino,
“[...] ocidental, de classe média ou superior; são posições que veem raças,
classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, derivativos,
inferiores e subversivos”.
188
É de menina ou menino?

Assim, passamos a compreender que tendo como perspectiva de


mundo as lentes hegemônicas, possivelmente nosso artefato cultural, pro-
paga pressupostos opressivos, que alocam dissidentes no posto pejorativo
de “acidentes”, uma vez que a conformidade (no caso a cisgeneriedade)
é o oposto. A funcionalidade da canção não está pautada então apenas
na interpelação de valores e tradições, mas também está em descredi-
tar a pluralidade/diversidade apresentada em nossa sociedade. De tal
forma que os discursos expressos na música permeiam e perpetuam a
norma para todos/as os/as ouvintes. Em síntese, o clipe trata-se de um
indicativo que naturaliza o gênero masculino e feminino como sendo
possibilidades de existências fixas, ao passo que, contraditoriamente nos
ensina como desempenhá-las a cada instante.
Segundo Raewyn Connell (1995), pioneira nos Estudos das Mas-
culinidades, é na cultura que se constitui o padrão ideológico do que
é “ser homem” e de como desempenhar a masculinidade, conforme
características físicas, psicológicas, econômicas e intelectuais específicas
que validam formas de ser e existir e invalidam outras. Todavia, para
a autora, o singular não revela a completude quanto aos assuntos de
gêneros, haja visto sua concordância com a existência de diversas formas
de masculinidades, e aqui acrescentamos também a pluralidade quanto
as feminilidades.
Assim, ser um “menino masculino” traz consigo ligações diretas
quanto à raça, sexualidade, desejos, status e afins, e tais “peculiaridades”
modificam as performances de gênero e suas leituras sociais. Conseguinte,
o mesmo se aplica para "menina feminina”. Seus marcadores sociais que
transcendem o gênero alocam os corpos diversos em outros espaços e
intensificam a contemplação da existência de performatividades plurais.
Nesse sentido, inferimos, então, que o uso do singular nas nomenclaturas
não está unicamente ali com a ambição de “aglutinar os indivíduos”,
tornando-os iguais, mas sim, desempenhando o papel de excluir a
diversidade, dado que a visão ideológica hegemônica não convida todos/
as ao topo social. Logo, ser um “menino masculino” e uma “menina
feminina" ainda não garante ascensão social, isso especificamente para
aqueles/as que divergem das características preconizadas pela norma,
189
João Paulo Baliscei (org.)

quanto à racialidade e à sexualidade, por exemplo. Dialogando com


Ribeiro (2019), sobre as implicações de ser “divergente”, salientamos
as dificuldades recorrentes do apagamento social que sofrem mulheres
negras, que “[...] por serem nem brancas e nem homens, ocupam um
lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por serem uma
espécie de carência dupla, a antítese de branquitude e masculinidade’”
(RIBEIRO, 2019, p. 22).
O ímpeto no discurso sobre ser “menino masculino” e “menina
feminina" nos direciona à questão com mais afinco quanto à racialidade
atrelada a tal concepção de gênero. O masculino e feminino não se des-
prendem dos demais marcadores, e aqui enfatizamos raça e sexualidade.
Ainda que as visualidades do clipe minimamente nos apresentem corpos
com racialidades diversas, ancorados em Kellner (2001), temos nota
de como o mundo se encontra pensado e organizado para o domínio
de homens brancos, o que nos leva à dúvida da funcionalidade de tais
corpos diversos em um clipe que preconiza a padronização.
Sobre isso mencionamos bell hooks (2019), quem, especificamente
tratando sobre o patriarcado e os benefícios que ele carrega e descarrega
sobre os homens, enfatiza como o corpo masculino esperado é branco, haja
vista que o patriarcado fora idealizado para tais indivíduos. Segundo a
pesquisadora, ainda que homens negros ambicionem serem contemplados
em todos os benefícios do patriarcado, este, por ser pensado e idealizado
para/por homens brancos, não apenas os exclui, como atrela narrativas
pejorativas sobre tais corpos, pela ação de a “[...] supremacia branca
bloquear continuamente seu acesso ao ideal patriarcal.” (HOOKS, 2019,
p. 178). Deste modo, pensar aqui em um “menino masculino”, dado as
constatações de hooks (2019), nos leva a entender que as masculinidades
têm narrativas diversas, e não obstante, estão atreladas à racialidade dos
indivíduos. O mesmo se aplica para à “menina feminina”.
Logo enfatizamos mais uma vez que não basta ser um “menino
masculino” ou uma “menina feminina” visto que os pressupostos ideo-
lógicos escapam do gênero e imbricam a racialidade e a sexualidade,
demarcadas conforme a normatização e seus dissidentes. Contemplar o

190
É de menina ou menino?

singular presente no videoclipe de Nosso gênero vem de Deus (2019) nos


evidencia, até o momento, a visão limitada de masculinidade e femini-
lidade, interpelada pelo machismo, racismo, LGBTfobia. Essas forças
impregnam nossa sociedade e excluem a pluralidade de existências para
além do “menino masculino” e da “menina feminina” coloridos de azul
e rosa, respectivamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao percorrermos pelos conceitos de raça, gênero, sexualidade e cor,


sob a ótica da interseccionalidade que reúne e imbrica estes marcadores,
bem como analisarmos o videoclipe Nosso gênero vem de Deus (2019) em
seus discursos verbais e visuais, verificamos que há uma legitimação de
modos de “ser menino” e “ser menino” bastante singulares e excludentes.
Contrariando o inatismo pressuposto na afirmação "nosso gênero vem
de Deus” presente no título e no decorrer da música, observamos que a
produção desempenha o papel de ensinar e reforçar visões ideológicas
que hierarquizam existências, marginalizando todos/as que transgridem
o singular “masculino” e “feminino” e circundado também por questões
raciais e sexuais. Nesse sentido, as cores azul e rosa não são empregadas
por acaso, mas são estratégia dupla de diferenciar os grupos de meninos e
meninas, ao mesmo tempo que aglutina e padroniza os indivíduos dentro
do mesmo gênero, desconsiderando questões raciais e sexualidades que
não sejam a hegemônica.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Companhia das letras, 2017.

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BALISCEI, João Paulo. Provoque: cultura visual, masculinidades e ensino de artes


visuais. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020a.

. Abordagem histórica e artística do uso das cores azul e rosa como pedagogias
de gênero e sexualidade. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 21, p. 223- 244, ago. 2020b.

191
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BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos


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Porto Alegre, v.20, n.2, p.185-206, 1995. Disponível em:<https://seer.ufrgs.br/educa-
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CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da


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GOBBI, Marcia Aparecida; FARIA, Ana Lúcia Goulart (Org.). Creche e feminismo:
desafios atuais para uma educação descolonizadora. Campinas: Edições Leitura Crítica,
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HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São
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JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos.
Brasília: Autora, 2012.KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais:
identidade e política entre o moderno e o pós-moderno, Bauru: SP: EDUSC, 2001.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas


às tensões teórico-metodológicas. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 46. p.
201-218, 2007.

RIBEIRO, Djamila. Mulher negra: o outro do outro. In: RIBEIRO, Djamila. O que é
lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017, p. 20-29.

192
É de menina ou menino?

Figura 1: Fred carrega Daphne nos braços para fora da piscina.


Fonte: Print Screen do 12’20’’ do desenho animado Scooby-Doo! Mistério S/A (2010-
2013), Temporada 1, Episódio 17. Exibido na emissora Cartoon Network.

DESENHOS ANIMADOS COMO


TECNOLOGIAS DE GÊNERO:
(DES)CONSTRUINDO MASCULINIDADES

Marcus Turíbio74
Julia Moreira Guimarães75
Jocy Meneses dos Santos Junior76

INTRODUÇÃO

Segundo De Lauretis (2019, p. 124), “o gênero é (uma) repre-


sentação”. O gênero, para a autora, é “produto de diferentes tecnologias

74 
Discente na Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.
Participante do PIP- UFG 2021/2022. Bolsista CNPq (PIBIC).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4126308941378703.
75 
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Univer-
sidade Federal de Goiás. Auxiliar de atividades educativas na SME/Goiânia.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5435151879610085.
76 
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade
Federal de Goiás. Bolsista FAPEG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1046601120345232.
193
João Paulo Baliscei (org.)

sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias


e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida
cotidiana” (DE LAURETIS, 2019, p. 123). Aprofundando a discussão
sobre esse tema, De Lauretis (2019, p. 124) explica que “a representação
de gênero é a sua construção” – o que, paradoxalmente, implica que “a
construção do gênero também se faz por meio de sua desconstrução”.
Tanto a construção quanto a desconstrução do gênero ocorrem, segundo
a autora, por meio de “tecnologias de gênero”, dispositivos discursivos
hegemônicos ou contra hegemônicos através dos quais ele é, por um
lado, criado e mantido, e, por outro, recriado e subvertido.
Neste escrito, que é uma ressonância das discussões ocorridas
no grupo de estudos em Cultura Visual e Práticas Pedagógicas77, abor-
damos os desenhos animados como uma dessas tecnologias de gênero,
buscando compreender de que modo eles operam na (des)construção
da(s) masculinidade(s). Essa abordagem implica dois desdobramentos.
Em um primeiro momento, discutimos de que modo os desenhos ani-
mados (re)produzem discursos normativos e filiados a binarismos no
que diz respeito à uma masculinidade hegemônica. Em um segundo
momento, utilizamos de publicações extraídas da página do Instituto
para el Desarrollo de Masculinidades Anti Hegemónicas na rede social Ins-
tagram (@demachosahombres) para debater como esses mesmos produtos
audiovisuais servem também para questionar e subverter as ideias que
pautam a masculinidade hegemônica, instaurando novas possibilidades
de ser homem.

HOMENS APRENDEM A SER HOMENS

Se, por um lado, construímos a sociedade, por outro, é evidente


que a sociedade nos constrói. Vigotskii (2017) demonstra, em seus
escritos, que é a partir do contato com o social que nossas aprendizagens
são desenvolvidas. Desse modo, é através de nossa inserção e imersão
77 
Composto por discentes da Universidade Federal de Goiás com vínculo na Licen-
ciatura em Artes Visuais, Julliany Oliveira e Marcus Turíbio e no Mestrado em Arte
e Cultura Visual, Jocy Meneses do Santos Junior e Julia Moreira Guimarães, com
orientação da Prof.ª Dr.ª Carla Luzia de Abreu.
194
É de menina ou menino?

na sociedade que conhecemos as normas vigentes nela, e delas nos


apropriamos. Nossos modos de agir, pensar, sentir, estabelecer relações
conosco e com o nosso entorno são mediados por sistemas simbólicos
externos. Quando assimilamos e reproduzimos as normas da sociedade
em que estamos inseridos – adequando-nos a elas e fiscalizando nossos
comportamentos e os daqueles que nos cercam com base nelas – acabamos
por nos filiar a um círculo viciado de ensino e aprendizagem.
As normas sancionadas socialmente vão além daqueles pactos
que preconizam a necessidade de usar roupas ou talheres, por exemplo.
Em sociedades como a brasileira, é possível verificar que algumas dessas
normas instituem e banalizam, por exemplo, o sexismo, a LGBTQIA-
P+fobia78, o racismo, o classismo, a gordofobia e o etarismo. Dessa
maneira, a sociedade legitima algumas existências, enquanto marginaliza
outras. Considerando que nossa construção enquanto sujeitos depende
do meio em que estamos inseridos, é possível depreender que as regras
que instituem o “normal” e o “desviante” de forma binária, arbitrária,
rígida e opressora influenciam nossas percepções e relações não apenas
com os outros, mas também conosco. Dentro desse sistema, gênero e
sexualidade são importantes marcadores sociais da diferença, construídos
socialmente, que formatam identidades e subjetividades.
E como a masculinidade é normatizada em sociedades como
a nossa? “Pare de chorar!”, “Recomponha-se!”, “Pare com essas emoções!”,
“Não seja covarde!”, “Seja maneiro e um pouco babaca!”, “Amigos vêm antes
de vadias!”, “Não deixe sua mulher mandar na sua vida!” e “Seja homem!”
são algumas das frases que iniciam o documentário “The mask you live
in” (2015). Frases como essas são escutadas, assimiladas e reproduzi-
das desde a infância. O documentário em questão mostra como uma
definição estreita e castradora de masculinidade influencia o processo
de desenvolvimento dos meninos, evidenciando, através de experiências

78 
A sigla LGBTQIAP+ refere-se às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans-
sexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexuais, agênero, pansexuais e às demais que
não seguem às imposições cisheteronormativas mas também não se sentem abrangidas
por essas nomenclaturas.
195
João Paulo Baliscei (org.)

reais, como eles são obrigados a (tentar) atender a padrões socialmente


construídos e impostos e a provar constantemente que são homens.
É flagrante que a masculinidade hegemônica é construída em
oposição àquilo que é atribuído socialmente como “próprio” das mulheres,
como carinhos, afetos e vulnerabilidades, bem como àqueles que não
aderem ao que prescreve a cisheteronormatividade. Essa oposição evi-
dencia o sexismo e a LGBTQIAP+fobia que (infelizmente) são marcas
registradas da nossa sociedade.

QUAIS MASCULINIDADES OS DESENHOS ANIMADOS (DES)


LEGITIMAM?

Conforme explica Zanello (2018, p. 46) a partir do pensamento


de De Lauretis (2019), o gênero é (re)produzido “por meio de códigos
linguísticos e representações culturais”. Assim, a imposição da mas-
culinidade se faz presente nas vidas de homens através de múltiplas
instâncias discursivas. Os desenhos animados, que constituem o foco
deste estudo, não estão isentos de discursos que instituem características
e comportamentos “naturais” e “corretos” com base no gênero. Conforme
explica Sabat (2001, p. 3),
Longe de serem simples mecanismos de diversão, tais
filmes podem ser considerados artefatos que exercem
uma determinada pedagogia cultural. [...] Freqüen-
temente, os filmes infantis produzidos constroem as
diferenças de gênero e sexuais de forma “convencional”,
determinando a construção hierárquica do feminino e
do masculino como definitivas e imutáveis.

Ao normalizar determinadas representações de homens e mulheres


que (re)produzem estereótipos segregadores e opressores, se estabelece
um padrão que leva todos que não se encaixam nele a serem percebidos
como errados, marginalizados e violentados. Baliscei, Calsa e Garcia
(2017, p. 173) explicam que, em “artefatos da cultura popular, tais como
filmes, publicidades e materiais escolares, certas masculinidades são
valorizadas e outras repreendidas”. Nesse cenário, sugerem que dese-
nhos animados – no caso específico do estudo dos autores, aqueles do

196
É de menina ou menino?

estúdio Disney – podem servir para legitimar, transformar e/ou censurar


masculinidades.
À primeira vista, pode parecer exagerado mencionar os modos
pelos quais desenhos animados influenciam a conformação de identi-
dades e subjetividades, mas certamente não é, como explicam Monteiro
e Zanello (2014, p. 37):
Como artefatos culturais legitimadores de identidades
sociais e de gênero, os filmes de animação acabam
estabelecendo relações de poder [...], constituindo um
circuito produtor e reprodutor de práticas sociais que
mantêm certos ideais de gênero. Por representarem, por
meio das cenas e falas dos personagens, o desejável e o
indesejável em determinada sociedade, os produtores
cinematográficos produzem e legitimam representações
sociais, enquanto os consumidores, em sua maioria
crianças, passam a legitimá-las e produzi-las ao repro-
duzir, na prática, os comportamentos das personagens
de que tanto gostam.

As crianças aprendem desde cedo o que devem ou não fazer


segundo as normas socialmente construídas de gênero e, os desenhos
animados, são uma das instâncias que contribuem para essa aprendi-
zagem. Nunes e Martins (2016) relatam que, a partir da relação que
as crianças estabelecem com as produções audiovisuais que consomem,
elas se apropriam das narrativas midiáticas como se fossem suas. Desse
modo, as imagens “se constituem mecanismos disciplinadores, naturali-
zando atitudes infantis”, com o potencial de perpetuar “olhares e práticas
hegemônicas sobre como ser menina e menino” (NUNES; MARTINS,
2016, p. 208). Nesse contexto, os autores ponderam sobre a constituição
de uma espécie de “currículo visual”, uma vez que “as pedagogias visuais
instituem experiências, modelam a percepção e a apreciação sobre o
mundo a partir das visualidades que instauram conhecimentos sobre o
cotidiano, moldando ‘verdades’, valores e formas de agir e ser” (NUNES;
MARTINS, 2016, p. 208). Desse modo, concordamos com Sabat (2002,
p. 1) quando, referindo-se aos desenhos animados, afirma que

197
João Paulo Baliscei (org.)

[...] considerando a enorme penetração que estes arte-


fatos culturais têm tido no mundo contemporâneo,
principalmente no dia-a-dia das crianças, [...] eles se
constituem como recursos pedagógicos de produção e
transmissão de conhecimentos e saberes, e fazem parte
de um amplo e eficiente currículo cultural.
Esses produtos audiovisuais ensinam suas audiências sobre gênero,
desde a mais tenra idade – e o aprendizado não se encerra nessa etapa
da vida, haja vista que animações que não são endereçadas ao público
infantil também cumprem esse papel. Assim, os desenhos animados são
poderosas tecnologias de gênero, que muitas vezes (re)produzem mas-
culinidades e feminilidades “adequadas”, legitimando e deslegitimando
determinadas formas de ser homem e mulher.
Dito isso, é importante perceber que protagonistas como He-Man,
Popeye, Batman, Super Homem, Wolverine, Hulk, Homem Aranha,
Max Steel, Tarzan e Goku, personagens de desenhos criados em diver-
sos tempos – mas que são (re)transmitidos pelas telas até nossos dias e
povoam os imaginários de diversas gerações –, são construídos de modo
a apresentarem comportamentos alinhados à “caixa dos homens” 79,
expressão criada por Kivel (1998) para demonstrar algumas expectativas
sociais que normatizam o que significa ser e agir como um homem.
A “caixa dos homens” elenca alguns comportamentos pré-definidos
socialmente para os sujeitos masculinos, por vezes contraditórios. Por
exemplo: “homens cuidam das pessoas”, “homens não cometem erros”,
“homens são maus”, “homens são violentos”, entre outras representações
(KIVEL, 1999). As conexões entre essas características e a construção
de personagens e narrativas de desenhos animados são evidentes. Isso
não significa dizer que as masculinidades se manifestam absolutamente
“dentro” da “caixa dos homens” – principalmente nas animações con-
temporâneas, que por vezes desconstroem alguns desses mitos –, mas
sim que é recorrente que um ou mais desses predicados sejam explorados
na caracterização dos personagens masculinos.

Tradução convencionalmente utilizada para “Act Like a Man box”, título original
79 

em inglês.
198
É de menina ou menino?

Scooby-Doo!80, por exemplo, representado na imagem que abre este


capítulo (Figura 1), é um desenho no qual é evidente a contraposição de
diferentes representações de masculinidades, como demonstra a análise
dos personagens Fred e Salsicha. Fred é um homem forte, bem arrumado,
corajoso e que protagoniza um flerte romântico heterossexual com outra
personagem do desenho, a quem sempre está “salvando”. Mesmo em um
grupo que “salva o dia” junto, formado por quatro pessoas e um cachorro,
é ele quem assume a liderança. Já Salsicha é um homem muito magro,
não tão bem-vestido como Fred, medroso e atrapalhado. Ter um homem
representado como forte, corajoso e líder em contraponto a um fraco,
medroso e atrapalhado gera, mesmo que inconscientemente, a percepção
de que existe um tipo de existência masculina “certa” e outra “errada”.
Baliscei (2020) demonstra a existência de nuances entre as mascu-
linidades performadas por diferentes “tipos” de personagens de desenhos
animados: os heróis, os vilões e os coadjuvantes. A caracterização dos
heróis dialoga com um ideal de homem corajoso, forte, heterossexual e
respeitado por outros sujeitos masculinos, sempre ocupando um lugar
de liderança. Aos vilões, cabe a representação das masculinidades des-
valorizadas socialmente, que devem ser punidas ou censuradas por
demonstrarem características que vão além ou ficam aquém das esperadas
dos homens. Por fim, há os personagens coadjuvantes, que assumem
representações próximas das tidas como femininas ou dissidentes, apre-
sentadas com um viés cômico e depreciativo. Através das diferenças,
interações e tensões entre heróis, vilões e coadjuvantes, ocorre “a produção
de pedagogias culturais dicotômicas, já que
valorizam expressões da masculinidade hegemônica e desautorizam
outras identidades de gênero que sujeitos masculinos podem assumir”
(BALISCEI, 2020, p. 186). No entanto, é importante ressaltar que os
desenhos animados nem sempre se conformam a esse modo específico
de formatar masculinidades. Atualmente, por exemplo, existe uma pro-
dução crescente de animações cujos personagens subvertem alguma(s)
das características normativas de masculinidade apresentadas até aqui.

80 
Nome original: Scooby-Doo. (1969-). Criado por Joe Ruby e Ken Spears.
199
João Paulo Baliscei (org.)

Todavia, esses desenhos são, muitas vezes, considerados subversivos à


ordem (im)posta, desencadeando polêmicas e contundentes manifesta-
ções contrárias às suas exibições, sobretudo nos setores mais reacionários
da sociedade. Dentro desse contexto, é evidente que ainda há muito a
dialogar e problematizar no que tange às construções de masculinidades.
E os desenhos animados podem ser aliados nessa discussão.

BRECHAS PARA PENSAR OUTRAS MASCULINIDADES POSSÍVEIS

Comprometer-se com o reconhecimento da (re)produção proble-


mática dos papéis e das relações de gênero nos desenhos animados pode
deflagrar possibilidades educativas. O pensamento de bell hooks (2009)
nos inspira a não ocultar as animações que constroem masculinidades
“dentro da caixa”, mas a reposicioná-las em práticas de ensino, buscando
problematizar a subordinação delas à cultura do dominador.
Para além dos desenhos animados que insistem em reforçar a
masculinidade hegemônica, há produções audiovisuais desse tipo (sobre-
tudo contemporâneas) interessadas em propor novos diálogos e em
traçar outras possibilidades de representações masculinas. Há, ainda,
outras, que apresentam em formato de sátira a decadência dos padrões
de masculinidade. Ao perceber o uso dos desenhos animados tanto para
disseminar quanto para questionar determinados padrões, o estudo das
“visualidades” e “contravisualidades” (MIRZOEFF, 2016) nos permite
dialogar com diversas masculinidades, demonstrando manutenções e
rupturas com ideias que determinam e impõem o que é ser e se com-
portar como um homem.
A internet surge como uma importante aliada na mediação des-
tas produções. Um exemplo possível, sobre o qual nos debruçamos, é o
trabalho do Instituto para el Desarrollo de Masculinidades Anti Hegemôni-
cas, criado pelo ativista criativo e empresário mexicano Nicko Nogués,
que, através da página @demachosahombres na rede social Instagram,
populariza conteúdos diversos com o intuito de contribuir para que a
sua audiência possa “hackear” masculinidades, desafiando o machismo
e as violências que ele fomenta.

200
É de menina ou menino?

Dentre esses conteúdos, estão análises das masculinidades repre-


sentadas em produtos audiovisuais da cultura de massa, que listam o
que podemos aprender (ou desaprender) com alguns personagens de
desenhos animados, como Big Mouth (2017), Bojack Horseman (2014),
Hey Arnold! (1996), Avatar: a lenda de Aang (2005), A Hora da Aventura
(2010), Os Rugrats (1991) e Doug (1991), entre outros.
Estão no cerne de nossa análise duas publicações da página @
demachosahombres, que desvelam o comportamento destrutivo de Homer
Simpson, representação do tradicional pai de família estadunidense em
Os Simpsons81, e o percurso de amadurecimento social do protagonista
Ash, em Pokémon82 (Figura 2). Com a discussão acerca desse material,
pretendemos demonstrar a existência de brechas para pensar e ensinar
sobre masculinidades a partir dos desenhos animados, visando apresentar
caminhos para a desconstrução e superação do machismo.

Figura 2: Imagens extraídas das duas publicações mencionadas no texto.


Fonte: <www.instagram.com/demachosahombres>

Em outubro de 2020, a página @demachosahombres compartilhou


a publicação “5 cosas que desaprenderle a Homero Simpson para construir
una masculinidad positiva”83. Protagonista do desenho animado, Homer
81 
Nome original: The Simpsons (1989-). Criado por Matt Groening.
82 
Nome original: Pokémon (1997-). Criado por Satoshi Tajiri.
83 
Tradução livre: “5 coisas a desaprender com Homer Simpson para construir uma
masculinidade positiva”.
201
João Paulo Baliscei (org.)

representa o tradicional pai de família estadunidense da classe traba-


lhadora nos anos 1980.
Sua postura de entrar em conflito com as pessoas que são diferentes
dele é colocada pela página como uma atitude a ser desaprendida rumo
a uma masculinidade positiva. O choque constante entre ele e outros
personagens expõe sua necessidade de se demonstrar superior.
Outro comentário na publicação reflete sobre a insistência de
Homer em resolver seus problemas com violência. Sem dúvidas uma
das visualidades mais icônicas do seriado é a de Homer enforcando o
seu filho, Bart Simpson, seja na tentativa de educá-lo ou simplesmente
para extravasar sua raiva frente a alguma situação difícil. No entanto, a
página relembra que esta ação nunca solucionou nenhum problema de
verdade. Masculinidades positivas desaprendem a associação cultural
entre ser homem e ser violento.
A animação normaliza o alcoolismo de Homer, através de sua
presença constante no Bar do Moe – um dos poucos espaços de socia-
lização masculina em Os Simpsons – e da onipresença das latas, garrafas
e barris de cerveja Duff nos episódios da série. O consumo excessivo de
álcool por parte de Homer, diversas vezes foi a causa de atritos entre ele
e sua família – principalmente com sua esposa, Marge Simpson –, de
acidentes e, até mesmo, de catástrofes na cidade de Springfield, onde se
passa a trama. Essas situações usualmente são mostradas com humor na
série. No entanto, é importante lembrar que não é saudável o consumo
de álcool em excesso.
Mais uma característica do personagem problematizada na publi-
cação é o seu descuido com a saúde. Homer já foi levado às pressas ao
hospital de Springfield diversas vezes por conta de sua negligência com
o autocuidado. Isso lembra a realidade dos homens brasileiros, que em
sua maioria creem não necessitar de cuidados, como apontam diversos
estudos sobre homens que só procuram ajuda médica quando tem sua
rotina atrapalhada84.

Como exemplifica uma pesquisa realizada pelo Centro de Referência em Saúde do


84 

Homem que mostrou que mais de 50% dos homens só procuram tratamento quando
202
É de menina ou menino?

Por fim, a publicação trata do egoísmo de Homer, que acredita


que, por ser “o homem da casa”, toda a família deve se ajustar aos seus
desejos. É sabido que a insensatez de querer assumir o controle sobre
tudo culmina na frustração por não ter esse poder, e que essa frustração
muitas vezes culmina na prática de violências no âmbito doméstico. A
publicação demonstra, assim, que não é necessário abandonar ou censurar
produções tais como Os Simpsons, mas que podemos aprender com elas
se reconhecermos as características negativas nessas representações e se
compreendermos os prejuízos que elas acarretam para os homens, suas
famílias e a sociedade como um todo.
Em “Ash (Pokémon) y 5 aprendizajes para potenciar masculinidades
positivas desde la infancia”85, publicada em abril de 2021, o personagem
Ash, protagonista das primeiras gerações de Pokémon, é utilizado para
promover, através de suas atitudes, reflexões sobre outras masculinida-
des possíveis. O primeiro tema discutido na publicação é a redefinição
de êxito. Ash nem sempre sai como vencedor dos torneios nos quais
participa. No entanto, reconhece que tais eventos têm mais que troféus
a oferecer, servindo de pontes para a construção de novas amizades e
aprendizados. Assim, se desmistifica a noção de que os homens precisam
vencer a qualquer custo. Outro aprendizado que Pokémon proporciona
está na relação entre Ash e Misty. Eles encontram força em uma ami-
zade respeitosa, na qual ambos se admirame se incentivam. A publicação
lembra que, ao contrário do que é muito dito, os homenspodem sim ter
amigas mulheres.
A maturidade de Ash no que diz respeito à posse é ressaltada pela
publicação. O personagem compreende que, apesar de capturar pokémons,
esses não lhe pertencem e, se ficam com ele, é por se sentirem conectados.
Além disso, ele compreende e aceita a hora de se despedir. Isso ajuda
a romper com a ideia de que os homens precisam ser conquistadores e
dominadores em suas relações.

algum sintoma atrapalha muito as suas rotinas (LEÃO, 2018).


85 
Tradução livre: “Ash (Pokémon) e 5 aprendizagens para potenciar masculinidades
positivas desde a infância”.
203
João Paulo Baliscei (org.)

A disposição de Ash para trabalhar em equipe é mais um atributo


positivo elencado na postagem. Em Pokémon, o personagem compreende
a importância de se apoiar e confiar em sua equipe para chegar mais
longe. A rede de apoio de Ash é uma alternativa à imagem do lutador
solitário, que não pode nem deve confiar em ninguém, muitas vezes
proposta aos homens.
Na última imagem que compõe a publicação, a página ressalta
a importância do respeito à diversidade, usando como pano de fundo
para essa discussão a relação entre as peculiaridades dos pokémons e
seus poderes. Apesar de ser extremamente importante para vida em
sociedade, muitas vezes parece difícil para alguns homens entender a
diversidade e aceitá-la. O desenho animado Pokémon, dentro de todas
as suas limitações e problemáticas, se mostra, assim, útil na abordagem
de temas importantes para a desconstrução de noções problemáticas
acerca das masculinidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que os desenhos animados funcionam como


mediadores de conhecimento no processo de desenvolvimento de identi-
dades e subjetividades, é necessário pensar o quê esses artefatos culturais
estão ensinando às suas audiências. No tocante ao seu papel enquanto
tecnologias de gênero, os desenhos animados muitas vezes (re)produ-
zem discursos implicados na legitimação de determinados sujeitos e na
marginalização de outros, bem como na manutenção de hierarquias de
poder das quais culminam preconceitos, discriminações e violências.
É necessário, então, que nos aproximemos dessas visualidades de
forma crítica, problematizando seus significados, e criativa, de modo a
produzir contravisualidades insubmissas às matrizes de dominação. Em
se tratando especificamente da questão das masculinidades, é preciso que
busquemos maneiras de aprender e de ensinar que há outras formas de
ser homem, não apenas aquelas “dentro da caixa”. Como demonstra a
página @demachoahombres, precisamos encontrar e multiplicar formas

204
É de menina ou menino?

de “hackear” masculinidades, pavimentando o caminho rumo a novas


possibilidades, não castradoras, de ser homem.

REFERÊNCIAS

BALISCEI, João Paulo. PROVOQUE: cultura visual, masculinidades e ensino de artes


visuais. Rio de Janeiro: Metanoia, 2020.

BALISCEI, João Paulo; CALSA, Geiva Carolina; HERRAIZ, Fernando García. Imagens
da Disney (re)produzindo gênero: revisão da produção acadêmica (2003- 2015). Revista
Digital do LAV, Santa Maria, v. 10, n. 3, p. 156-178, set./dez. 2017.

DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque


de (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2019. p. 121-155.hooks, bell. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática.
São Paulo: Elefante, 2020.

KIVEL, Paul. Men's work: how to stop the violence that tears our lives apart. 2. ed.
Center City: Hazelden, 1998.

LEÃO, Natália. Saúde: 50% dos homens só vão ao médico com sintomas avançados.
GQ, São Paulo, 26 out. 2018. Disponível em: https://gq.globo.com/Corpo/Saude/
noticia/2018/10/saude-50-dos-homens-so-vao-ao- medico-com-sintomas-avancados.
html. Acesso em: 04 set. 2021.

MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. Educação Temática Digital, Campinas, v.


18, n. 4, p. 745-768, out/dez 2016.

MONTEIRO, Clara; ZANELLO, Valeska. Tecnologias de gênero e dispositivo amoroso


nos filmes de animação da Disney. Revista Feminismos, Salvador, v. 2, n. 3, p. 36- 44,
set./dez. 2014.

NUNES, Luciana Borre; MARTINS, Raimundo. Cultura visual tramando gênero e


sexualidades na escola. Recife: Editora UFPE, 2016.

SABAT, Ruth. Infância e gênero: o que se aprende nos filmes infantis? In: REUNIÃO
ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM EDUCAÇÃO, 24., 2001, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: ANPEd, 2001, p. 1-11.

SABAT, Ruth. Filmes infantis como máquinas de ensinar. In: REUNIÃO ANUAL
DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM
EDUCAÇÃO,25., 2002, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: ANPEd, 2002, p. 1-17.

THE MASK you live in. Direção de Jennifer Siebel Newsom. Sacramento: The Repre-
sentation Project, 2015. 1 vídeo (90 min).

VIGOTSKII, Lev Semenovich. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade


escolar. In: VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEON-
205
João Paulo Baliscei (org.)

TIEV, Aléxis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 15 ed. São Paulo:


Ícone, 2017. p. 103-117.

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de


subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.

#DEMACHOSAHOMBRES. 5 cosas que desaprenderle a Homero Simpson para


construir una masculinidad positiva. [S. l.], 29 out. 2020. Instagram: @demacho-
sahombres. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CG7ylXXjuJH. Acesso em:
04 set. 2021.

_______. Ash (Pokémon) y 5 aprendizajes para potenciar masculinidades positivas


desde la infancia. [S. l.], 30 abr. 2021. Instagram: @demachosahombres. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/COS_1IwjzaM. Acesso em: 04 set. 2021.

206
É de menina ou menino?

Figura 1: Ele.
Fonte:<https://www.einerd.com.br/as-meninas-superpoderosas-filme-dos-beatles-ins-
pirou-criacao-do- vilao-ele/>.Acesso em 1º de maio de 2021.

“SERÁ QUE ELE É”:


A CONSTRUÇÃO DO PRECONCEITO TRANSFÓBICO NO
VILÃO ELE DO DESENHO AS MENINAS SUPERPODEROSAS

Cristiano Aparecido da Silva86

INTRODUÇÃO

Sexualidade é, segundo Louro (2000) uma construção histórica e


cultural que correlaciona linguagens, comportamentos, crenças, represen-
tações, posturas, identidades e inscreve todos esses elementos no corpo
por meio de estratégias de poderes e saberes sobre os sexos. Tendo em
vista esse conceito o presente trabalho pretende analisar a construção do
preconceito transfóbico a partir da caracterização do personagem Ele (Him,

86 
Pós Graduado em Psicopedagogia Clínica e Institucional – UNIPAR; e em Gestão
Escolar – Faculdade São Brás. Graduado em Pedagogia – UNIPAR. Professor da
Rede Estadual de Educação do Estado do Paraná – SEED e da Rede Municipal de
Educação de Terra Roxa, Paraná. Integrante do grupo de pesquisa em Arte, Educação
e Imagens – ARTEI. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1506234432415507.
207
João Paulo Baliscei (org.)

no original), vilão da série de desenho animado As Meninas Superpoderosas


(The Powerpuff Girls), produzida pela Cartoon Network, desde o ano de 1998.
Dentro das normas estabelecidas pelo senso comum e reforçadas
por questões políticas e religiosas, sexos e sexualidade são percebidos
como fatos naturais. Por isso, os estudos a respeito de gênero e de
sexualidade, assim como os casamentos entre indivíduos do mesmo
gênero, práticas de educação de gênero e sexualidade para crianças e
adolescentes são alguns dos temas que causam certo “ferimento moral”
nas vertentes sociais mais conservadoras. O sexo, segundo essa lógica, só
é considerado aceitável quando é definido e fundamentado na identidade
sexual biológica, masculina ou feminina (GONÇALVES JR., 2019).
A questão principal deste estudo é averiguar a caracterização do
personagem Ele com elementos característicos de sujeitos transexuais e
travestis e analisar o modo como isso pode impactar negativamente na
construção e afirmação do preconceito transfóbico, por esse persona-
gem ser idealizado como vilão, ou seja, vinculado ao ruim, ao mau e ao
indesejável. Questionamo-nos: O personagem apresenta algo positivo?
O preconceito está sendo problematizado por meio desse personagem?
A metodologia do presente estudo tem caráter exploratório teó-
rico e está embasada por meio de pesquisas bibliográficas a respeito dos
estudos das sexualidades, mais especificamente sobre a Teoria Queer,
Transexualidades, Transfobia e Gêneros. Nossa defesa, por sua vez, é
sustentada pela análise de dados a respeito dos assassinatos e violências
contra sujeitos travestis e transexuais no Brasil, bem como, por temáticas
sobre homofobia e transfobia que evidenciam a necessidade de abordar as
representações de gênero e sexualidade, tanto na área acadêmica quanto
em outras vertentes do espaço social, dentre elas, os desenhos animados.

A CONSTRUÇÃO DA TRANSFOBIA POR MEIO DA


REPRESENTAÇÃO QUEER NOS DESENHOS

As Meninas Superpoderosas é uma série de desenho animado que


foi criada pelo estadunidense Craig McCracken e produzida pela Cartoon
Network. No Brasil, essa animação foi exibida pela emissora SBT entre

208
É de menina ou menino?

os anos de 1998 e 2005, considerando a série original que possui 78


episódios ao longo de 6 temporadas, como explicam Mancio, Santos e
Maranho (2019).
O enredo da história conta a respeito do dia a dia de três meninas,
Lindinha, Docinho e Florzinha (ou no original, Bubbles, Buttercup e
Blossom). O nascimento das meninas ocorreu no erro de um experimento
químico no laboratório do Professor Utônio, que pretendia criar as
meninas perfeitas, mas que, acidentalmente, derrubou o Elemento-X
no experimento. Com isso, deu origem à três meninas com superpo-
deres, força sobre-humana e capacidade de voar, as quais se tornam
essenciais na defesa da cidade fictícia de Townsville contra os vilões da
série (POTTS, 2001).
Basicamente, a trama fica em torno do Prefeito da cidade, que é
respaldado pela secretária, Srta. Sara Belo,(ou no original, Miss Bellum)-
personagem feminina cujo corpo só é possível visualizar do pescoço para
baixo. Por meio de um telefone de linha-direta, o Prefeito clama por
socorro às Meninas Superpoderosas, para que elas solucionem dificuldades
em diferentes proporções, que vão desde abrir um simples pote de picles
a enfrentar vilões que estão destruindo a cidade.
A série possui diversos vilões e vilãs ao longo dos episódios, como
Gangue Gangrena, Mulher Fatal, Sr. Mímico, Fuzzy Confusão, Sedusa,
Trio Ameba, Os Meninos Desordeiros, Princesa MaisGrana e Macaco
Louco. Neste trabalho, tratamos apenas do personagem-vilão denomi-
nado como Ele, justificando nossa escolha pelo fato de Ele aparecer em
17 dos 78 episódios distribuídos em 6 temporadas.
O personagem Ele, como destacamos na Figura 1 que abre este
capítulo possui pele vermelha, garras em vez de mãos, orelhas e nariz
pontiagudos, cabelo raspado na cor preta e cavanhaque. Ele é denominado
no masculino como o próprio nome Ele sugere, porém, a caracterização
do personagem é composta também pelo uso de batom, maquiagem,
cílios acentuados, vestido vermelho, cinto preto e pompons na barra e
na gola do vestido que usa. Também faz parte das vestimentas que lhes
são características um par de botas pretas de salto que lembra patas de

209
João Paulo Baliscei (org.)

animal, como bode ou cabra. Chamamos atenção para o fato de esses


elementos serem, comumente atribuídos e relacionados ao gênero femi-
nino pela sociedade heteronormativa.
Como é possível observar na Figura 2, na qual o personagem
aparece pela primeira vez na série, mais especificamente no episódio
intitulado como O Polvilão.
Nessa narrativa, Ele utiliza o polvo de pelúcia da Lindinha para
manipulá-la e assim causa intrigas entre as três irmãs.

Figura 2: Ele, no episódio O Polvilão.


Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=7l-XJHkJCdc&ab_channel=DearMaidy>.
Acesso em: 29 de agosto de 2021.

As maldades do vilão estão sempre relacionadas à manipulação dos


demais personagens, sendo que sua felicidade é devidamente demons-
trada e realçada quando Ele alcança seus objetivos fazendo com que os
e as demais briguem entre si. As ambientações no qual Ele aparece estão
sempre caracterizadas cromaticamente com tons avermelhados, pretos e
rosados. Relacionamos isso ao fato de, culturalmente, essas cores também
estarem relacionadas a conceitos e corpos ligados à discriminação. A
cor preta, por exemplo, faz referência às pessoas negras, e o rosa, ao que
é feminino. Já a cor vermelha está diretamente relacionada ao próprio
Diabo. Heller (2013) sugere que, socialmente, o uso da cor vermelha
pode estar relacionado ao pecado e a tudo que seja considerado imoral,
dependendo do contexto no qual a cor se encontra. Durante a Idade

210
É de menina ou menino?

Média, por exemplo, em algumas regiões, as pessoas ruivas eram asso-


ciadas às bruxas e consequentemente púnicas.
Assim, o personagem em questão não faz apenas alusão à tran-
sexualidade, mas também à negritude e ao feminino, além de ser repre-
sentado como o próprio Diabo. Para nós, esse conjunto de visualidades
reforça a negatividade das características performadas pelo personagem.
O personagem possui uma voz andrógena, uma voz que oscila entre
suave e aguda quando está mais calmo, e grave e rouca quando as suas
verdadeiras intenções de maldade são reveladas, demonstrando assim,
sua ira e raiva. Na linguagem corporal, Ele é extravagante e saltitante e
quando está emocionado costuma gritar e rir de modos estridentes. Em
análise a esse mesmo personagem Mancio, Santos e Maranho (2019,
p.222) afirmam que “A oscilação entre agudo e grave em sua voz denota
a androginia, a não identificação de seu gênero. A transitoriedade de sua
voz, portanto, admite a ambiguidade, o ‘estar-entre’ dos corpos Queer”.
Percebemos, então, que o personagem apresenta uma discrepância
em relação a sua aparência e a sua denominação. Apesar de receber um
nome masculino, sua aparência não necessariamente corresponde a esse
gênero, de forma tão definida, conforme diretrizes heteronormativas.
O cavanhaque, os cílios longos, batom e maquiagem coexistem em um
único ser, enquanto que, nos espaços orientados pela heteronormatividade,
esses elementos são culturalmente construídos como especificamente ou
para o gênero masculino ou feminino. Portanto, Ele possui um corpo
híbrido, que é um corpo impensável na ideologia heteronormativa,
podendo ser designado à denominação Queer.
Louro (2018) sublinha que o termo Queer é usado para se referir
a algo que incomoda e que escapa das definições convencionais, ou
seja, é utilizado para indicar que algo é incomum ou mesmo bizarro. O
termo, em inglês, é, também, uma expressão pejorativa que se atribui
aos indivíduos não-heterossexuais. Dessa maneira, a autora ressalta
que o Queer se posiciona em oposição à lógica heteronormativa, a qual
define a manutenção pela continuidade da coerência entre sexo, gênero
e sexualidade. O que se encontra fora dessa perspectiva, portanto Queer,

211
João Paulo Baliscei (org.)

situa-se no impensável, inteligível ou transgressor. A autora ainda sub-


linha que definir o indivíduo como homem ou mulher, como sujeito
de gênero e de sexualidade definidos, significa nomeá-los segundo as
normas distintas de uma cultura “[...] com todas as consequências que
esse gesto acarreta: a atribuição de direitos ou deveres, privilégios ou
desvantagens” (LOURO, 2018, p. 82).
Além disso, na caracterização do personagem, mais especifi-
camente no que tange aos aspectos físicos, verificamos que o nariz e
orelhas pontudas, as garras e as botas que lhe atribuem uma aparência
animalesca, bem como a pele avermelhada fazem com que sua figura
fique demarcadamente relacionada ao Diabo. O cabelo preto e raspado
pode fazer alegoria às pessoas negras, também, assim, relacionando- as
ao indesejável e ao incorreto.
Conforme explica Oliveira (2017) e Costa e Andrade (2012), foi
a partir do século XII que a figura do Diabo começou a ser sistemati-
zadas no e pelos dogmas cristãos. Sua forma física passou por diversas
metamorfoses durante os séculos, indo de uma figura angelical – o anjo
caído – à imagem de um monstro com aspectos horrendos. À medida
que o Diabo vai se afastando do Deus cristão para, assim, tornar- se
seu oponente, ele começa a adquirir formas grotescas. Além disso, no
século IX, mesmo antes do contato entre a Europa e a África, o Diabo
passou a ser representado como um anjo preto e nu.
Neste contexto a cor preta passou a ser interpretada, entre os
sujeitos cristãos, como uma representação do mal, sendo relacionada
à pele do Diabo, em contraste da brancura e beleza da aparência dos
anjos. Sendo assim, o preto passou, desde então, a representar o mal e
outros sentidos negativos, como a poluição, o vazio, o desconhecido e o
impuro. A feiúra e o grotesco também passaram a ser pretos, à medida
que a beleza vai se embranquecendo. O preto passa a significar o sujo,
enquanto o branco é relacionado à limpeza (OLIVEIRA, 2017).
Na mesma época em que o Diabo ganhou cor e forma – pele negra,
patas de cabra, rabo e outras partes pontiagudas, como os chifres – sua
associação com a homossexualidade foi também sendo intensificada,

212
É de menina ou menino?

pois, para o dogma cristão da época, a sodomia era diretamente vincu-


lada à bruxaria e ao culto ao demônio (RICHARDS, 1993). Oliveira
(2017) enfatiza que entre os séculos XI e XVI, na Baixa Idade Média,
surgiram os traços básicos do preconceito contra a homossexualidade,
dando início à intolerância homofóbica, desconhecida até então. Cria-se
também o pecado da sodomia, que era inexistente nos primeiros mil anos
do cristianismo, englobando o sexo sem a intencionalidade de reprodução
e contemplando, também, as relações entre homens ou entre mulheres.
Percebemos que o personagem-vilão Ele, bem com sua aparência
e caracterização, tem por intuito vincular a imagem da travesti, tran-
sexual, do sujeito negro e/ou não-heterossexual, àquilo que há de mau
e ruim, ou mesmo ao próprio Diabo. Portanto, guarda relações com a
transfobia, prática que é entendida como preconceito e discriminação
em função da identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis
(JESUS, 2012).
Durante os episódios de As Meninas Superpoderosas, o persona-
gem é apresentado pela voz do narrador como sendo uma criatura tão
sinistra, tão desprezível, que o simples ato de pronunciar seu nome causa
temor no coração das pessoas. A isso acrescentamos que o “nome” Ele,
um pronome pessoal no masculino, pode subentender que o vilão não
é nem mesmo digno de receber um nome próprio.
Em outro momento, o Narrador faz referências ao personagem
como “aquele que não deve ser mencionado”, o que caracteriza ainda
mais a referência à figura do Diabo.
No modo como Ele é apresentado, associa a maldade, o egoísmo,
a falta de ética e muitas outras características negativas às pessoas que
se enquadram na mesma caracterização do personagem, ou seja, aquelas
que fogem ou transgridem a norma cisgênero e heterossexual. Essa visão
negativa diante do público – mais especificamente das crianças – não é
uma relação de causa-efeito, pois os sujeitos podem discordar ou pro-
blematizar aquilo que veem. Contudo, ao assistir o desenho As Meninas
Superpoderosas, é bastante provável que, mesmo que involuntariamente,
os corpos Queer, não hetero-cisnormativos, sejam associados à vilania, ao

213
João Paulo Baliscei (org.)

abjeto e ao Diabo. Desse modo, essa visão negativa vai sendo elaborada
e reforçada gradativamente e o indivíduo tende a se desenvolver formu-
lando pensamentos e construções pejorativos sobre pessoas que têm um
comportamento que não se encaixa dentro dos padrões heteronormativos.

A TRANSFOBIA NO BRASIL

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais


do Brasil – ANTRA e o Instituto Brasileiro Trans de Educação - IBTE,
no Dossiê Assassinatos e violência contra travesti e transexuais brasileiras
em 2020 (BENEVIDES e NOGUEIRA, 2021), constatou-se que, no
ano de 2020, o Brasil, novamente, assegurou o 1º lugar de assassinatos
de pessoas trans no mundo, apresentando índices ainda mais altos em
relação aos anos anteriores. Esse ranking é mantido desde 2008, de
acordo com os dados internacionais da Organização não governamental
TransgenderEurope - TGEU. Em 2020 foram registrados 175 assassi-
natos de pessoas trans no Brasil, sendo todas mulheres trans e travestis.
A pesquisa também traz o número de assassinatos entre o ano de
2008 e 2020, tendo uma média anual de 122,5 assassinatos. É possível
observar que o índice de 2020 está 43,5% acima da média geral de assas-
sinatos, e 201% acima em relação aos assassinatos relatados em 2008, que
foram de 58. Mesmo durante a pandemia devido a Covid-19, os casos
aumentaram significativamente de acordo com a publicação dos boletins
bimestrais ao longo do ano de 2020 (BENEVIDES; NOGUEIRA,
2021). As autoras ressaltam que esses índices ainda podem ser maiores,
pois no Brasil, 15 Estados e o Distrito Federal não apresentaram qual-
quer informação sobre violências motivadas por orientação sexual ou
identidade de gênero. Desse modo, tanto a subnotificação e a dificuldade
de acesso aos dados quanto a falta de informação de órgãos governa-
mentais são muito preocupantes, pois, “[...] ao se abster de mapear ou
informar sobre o transfeminicídio, o Estado se exime da responsabilidade
de pautar políticas de segurança para a população” (BENEVIDES e
NOGUEIRA, 2021, p. 29).

214
É de menina ou menino?

Silva e Maio (2020) semelhantemente salientam que as pessoas


trans ocupam mais manchetes de morte que lugares formais, e que essas
vidas passam pelos noticiários como se carregassem o peso de um “erro”.
Muitas notícias, inclusive, divulgam tais existências a partir de seus
nomes de origem, desconsiderando todo o processo de construção de
transgenerização pelo qual a pessoa trans passou. Benevides e Nogueira
(2021) relatam que há um ciclo de exclusão e violência, responsável pelo
processo de precarização e vulnerabilidade das pessoas trans. Esse ciclo,
conforme as autoras, pode ser responsável pela marginalização que, em
muitos casos, acaba levando à morte, tanto pela falta de acesso a direitos
fundamentais, sociais e políticos quanto pela omissão do Estado em
garantir esses direitos a essa população. As autoras ainda enfatizam
que as pessoas trans enfrentam a rejeição familiar desde a tenra idade,
sendo essa rejeição impactante aos indivíduos a ponto de ocasionar certo
isolamento dos espaços sociais que são essenciais ao bem-estar, além de
dificultar o acesso e continuidade na formação escolar.
Com Andrade (2012), observamos que dentre as políticas públi-
cas destinadas às travestis e transexuais, a maioria é direcionada para a
prevenção de doenças e combate à exploração sexual, e não destinadas
para a inclusão escolar e para a preparação para o mercado de trabalho.
Mesmo que homens, mulheres, meninos e meninas trans tenham o direito
de estar em uma instituição escolar por meio da força de uma legislação
inclusiva, isso não garantem que as relações interpessoais aconteçam de
maneira ética em relação às suas identidades de gênero.
Estudos como o de Silva e Maio (2019), por exemplo, apontam
as dificuldades e resistências que as escolas apresentam quanto a mudar
suas práticas em prol da inclusão dos corpos trans. O autor e a autora
relatam que a escola, por meio das pedagogias cis-heteronormativas,
oferta apenas um conjunto de informações restritas sobre as possibili-
dades de se viver a feminilidade e a masculinidade. Os currículos e as
práticas escolares, então, afirmam que a existência de gênero acontece
de forma única e vinculada ao sexo biológico. A travesti e a pessoa trans,
portanto, vivem num contexto de limitações à medida que transgridem
essas informações impostas pela escola. Nessa perspectiva, percebemos
215
João Paulo Baliscei (org.)

que a escola é pensada dentro dos padrões do fundacionalismo bioló-


gico e que sua organização curricular e mesmo a espacial e relacional é
representada a partir dos órgãos genitais e não relacionadas às práticas
sociais de gênero.
Gonçalves Jr. (2019) afirma que ao retirar as pessoas trans das
instituições escolares, justifica-se, por meio de um falso “pânico moral”,
a preservação das demais crianças de possíveis “abusadores/as” e “desa-
justes”, usando, dessa maneira, uma estratégia de controle de grupos
dominantes sobre grupos oprimidos.Em consequência, conforme apontam
Benevides e Nogueira (2021), apenas 4% da população trans feminina
possui emprego formal, com possibilidade de promoção e progressão na
carreira; 6% estão em trabalhos informais; e 90% das travestis e mulheres
transexuais possuem como renda primária a prostituição.
Esses dados mostram que o acolhimento familiar se torna um fator
de proteção para jovens trans, uma vez que pode contribuir para reduzir
a baixa escolaridade, depressão, ansiedade, uso de drogas e tentativas de
suicídio. A ANTRA trabalha com a estimativa de que cerca de 1,9%
da população brasileira seja não-cisgênero (1,1% mulheres travestis e
transexuais e 0,8% homens trans e transmasculinos) (BENEVIDES;
NOGUEIRA, 2021).
De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia - GGB de
2015, foram registrados 326 assassinatos no Brasil de pessoas que não
se encaixam nas normas cis-heteronormativas, isso somente no ano de
2014. Sendo um número 4% maior em relação ao ano de 2013 (LOURO
e VIEIRA, 2015). O relatório ainda destaca que dentre as vítimas, 134
eram gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de travestis
e 7 heterossexuais que foram confundidos com homossexuais. Esses
dados indicam que todo indivíduo que transgride as regras de gênero
da heteronormatividade, ainda que seja heterossexual, está passível de
sofrer violência e até mesmo à morte.
Benevides e Nogueira (2021) salientam que as travestis e as tran-
sexuais femininas são um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta
e precoce no Brasil. Embora não haja estudos específicos a respeito da

216
É de menina ou menino?

expectativa de vida das travestis e mulheres trans, os estudos elaborados


pelas autoras estimam que a expectativa de vida dessa população seja de
35 anos de idade, enquanto a estimativa da população brasileira, em geral,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística– IBGE, é de 76,6
anos (IBGE, 2019). Explicam, ainda que o cenário no qual a maioria das
pessoas travestis e transexuais vivem é composto por exclusão familiar,
abandono social, empobrecimento, precarização, vulnerabilidade, falta
de acesso a políticas públicas, invisibilidade, prostituição como renda
primária, violência, assassinato, preconceito, falta de representatividade
e ataques aos direitos conquistados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Louro (2018) enfatiza que para garantir uma coerência, uma soli-
dez e a permanência das normas são realizados grandes investimentos
continuados e repetitivos, sendo eles produzidos por diversas vertentes
sociais e culturais, como famílias, escolas, igrejas, leis, mídias e também
pela própria ciência. Há intuito de afirmar e reafirmar as normas que
regulam os gêneros e as sexualidades. Desse modo, essas normas são
voltadas aos corpos e delimitam a sanidade, moralidade, legitimidade
e coerência. Aqueles e aquelas que escapam ou atravessam esses limites
são vistos/as como corpos ilegítimos, imorais, insanos e patológicos, ou
seja, corpos impossíveis de existirem.
A partir da análise do personagem Ele, percebemos que esse vilão
é apresentado e entendido como um corpo estranho dentro de uma
sociedade cis- heteronormativa. Ao ser apresentado como vilão com
características Queer, esse personagem pode influenciar que, desde a
infância, travestis, transexuais e outros sujeitos que não se identificam
com as heteronormatividade sejam lidos como alguém a ser temido,
confrontado ou mesmo exterminado.
Além do mais, analisamos como negativa a incorporação de uma
identidade Queer na figura de um vilão com características relaciona-
das ao Diabo. Ele, no modo como é apresentado na série, é associado
à maldade, ao egoísmo e à falta de ética. Sua associação ao Diabo e à

217
João Paulo Baliscei (org.)

falta de humanidade faz com que o personagem seja temido e muitas


vezes ridicularizado mesmo entre as crianças.
A questão aqui apresentada é que a caracterização do personagem
associado às travestis e às pessoas trans como vilão pode contribuir para
uma visão negativa sobre corpos Queer, ainda mais, quando apresentado
ao público infantil, pois é na infância que os sujeitos passam pelos mais
significativos períodos de aprendizagem quanto às normas, regras e pre-
conceitos sociais. Portanto, concluímos que é de extrema importância a
criação de personagens que representem o Queer, mais especificamente,
as travestis e as transexuais, que quase nunca são representadas nas
narrativas infantis. No entanto, é necessário que a construção dessas
representações seja repensada, para que travestis e transexuais não sejam
inferiorizadas, temidas e repudiadas, sobretudo no Brasil, que é o país
que mais mata e violenta as pessoas lésbicas, gays, travestis e transexuais
e outras minorias sexuais.

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É de menina ou menino?

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Channeling_Girl_Power_Positive_Female_Media_Images_in_The_Pow erpuff_Girls>.
Acesso em: 7 maio 2021.

219
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: Um Sorriso Chamado Luiz.


Fonte: Pinto (1987b, p. 10).

ILUSTRAÇÃO E LITERATURA INFANTIL:


UMA PERSPECTIVA A PARTIR DA CULTURA VISUAL NA
COLETÂNEA CORPIM, DE ZIRALDO

Gabrielle Nayara do Prado Ramos87


Eloiza Amália Bergo Sestito Silva88

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por temática a análise das ilustrações da


Literatura Infantil a partir da Cultura Visual. Resulta de pesquisa
realizada a partir das reflexões do trabalho de conclusão do curso de
Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá – UEM realizado nos
anos de 2019 e 2020 (RAMOS, 2020).

87 
Gabrielle Nayara do Prado Ramos, graduada em Pedagogia pela Universidade
Estadual de Maringá- UEM/2020. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4429526526513583.
88 
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual
de Maringá - UEM. Professora na UEM. Participante do grupo de pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI. Lattes:http://lattes.cnpq.br/8659322801087223.
220
É de menina ou menino?

As Literaturas Infantis possuem grandes contribuições para o


processo de ensino-aprendizagem e se utilizadas adequadamente com
as crianças podem enriquecer o desenvolvimento da compreensão das
linguagens imagéticas e escritas. Mas, também estão carregadas de sen-
tidos e podem influenciar a criança com a padronização de informações
que, muitas vezes, gera estereótipos, portanto, é importante desenvolver
a capacidade de ver e observar as imagens de tais artefatos para além
dos níveis de apreciação e divertimento.
O texto que ora apresentamos tem por objetivo analisar como
o autor Ziraldo89 utilizou recursos visuais para ilustrar a temática do
corpo humano nas Literaturas Pelegrino e Petrônio (1987) e Um Sorriso
Chamado Luiz (1987), da coletânea Infantil Corpim (1987).
Trazemos as discussões dos Estudos Culturais, os quais estabe-
lecem relação com os estudos das visualidades que, por sua vez, partem
da construção social do olhar do sujeito. Apresentamos a metodologia
Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos - PROVO-
QUE (BALISCEI, 2020), a qual utilizamos para contemplar a análise
dos dois livros de Ziraldo a partir da Cultura Visual. Primeiramente,
apresentamos as análises realizadas sobre o livro Pelegrino e Petrônio
(1987), posteriormente, sobre o livro Um Sorriso Chamado Luiz (1987).

O QUE É CULTURA VISUAL?

Vivemos em um mundo impregnado de imagens que circulam


a todo instante produzindo infinidades de artefatos culturais, como
objetos, livros, filmes, cromatismos, vestuário, entre outros elementos
que demarcam as infâncias. Sob esse viés, Hernández (2007) profere a
importância de saber observar as imagens para, assim, compreender e
problematizar o que as representações sugerem a partir da visualidade.
Identificamos que as ilustrações dos livros de Literatura Infantil
fazem parte de uma linguagem direcionada, ou seja, com o propósito

89 
Ziraldo Alves Pinto é um cartunista, desenhista, jornalista, cronista, chargista,
pintor e dramaturgo brasileiro. Responsável por obras aclamadas, por seu diferencial
com as ilustrações.
221
João Paulo Baliscei (org.)

de transmitir algo a alguém; assim, se correlacionam à Cultura Visual.


Diante desse campo de investigação, chamamos atenção para as duas
palavras que o compõem: cultura, que caracteriza as práticas de uma
determinada sociedade; e visual, termo que relaciona a percepção visual
com a bagagem estruturada pelo tempo, articulando-se com as emoções e
com o senso do pertencer e de se fazer referência. Tanto as culturas quanto
as visualidades experimentadas por um indivíduo terão fundamentos
e significados a partir da razão pessoal e das suas vivências coletivas.
Os estudos da cultura visual emergem no final dos anos 80 entre o
cruzamento de debates propostos pelos saberes da história da arte, estudos
cinematográficos, linguístico, literatura e as teorias pós-estruturalismo
e os Estudos Culturais. Tendo como principal ponto de convergência a
afirmação de que verdades são constituídas pela linguagem (NUNES,
2010, p. 50).
Apostamos nos Estudos da Cultura Visual pois se fundamentam
nas visualidades, que, segundo Cunha (2010), têm relação com a cons-
trução cultural do olhar, uma vez que os significados do mundo social
são construídos (também) a partir de imagens. Assim, observar como
são apresentadas as imagens nos livros infantis para as crianças nos ajuda
a refletir sobre a construção do olhar. Como essas imagens representam
as crianças? Como representam os corpos? Há ênfase na diversidade
de cores, formas e medidas, ou a representação é generalizada a partir
de traços da cultura dominante? Esses são alguns questionamentos
que os Estudos da Cultura Visual buscam identificar ao olhar para as
imagens. Assim, são, também, questões que pretendemos responder ao
nos aproximarmos das ilustrações da série Corpim (1987), de Ziraldo.

AS ILUSTRAÇÕES DE ZIRALDO: CONTEXTOS E VISUALIDADES

Neste momento, buscamos analisar algumas imagens presentes


nos dois livros da coletânea Corpim (1987), com base na Cultura Visual.
Optamos pela aproximação das imagens a partir da sugestão do PRO-
VOQUE, desenvolvido por Baliscei (2020), com base nos Estudos da
Cultura Visual.

222
É de menina ou menino?

Baliscei (2020) traça caminhos para a análise das imagens, na


busca de provocar olhares e levantar questionamentos, a partir de uma
visão crítica, reflexiva e contextualizada, dando ênfase nos estereótipos
presentes no universo imagético do cotidiano. Percorremos, assim, as
etapas sugeridas por Baliscei (2020), cuja proposta denominou como
Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos - PROVO-
QUE. O autor descreve o PROVOQUE a partir de cinco momentos:
flertando, percebendo, estranhando, dialogando e compartilhando. Na
etapa “flertando”, segundo o autor, ocorre a aproximação com o corpus de
análise ou as razões da seleção das imagens escolhidas. Consideramos
que o intuito dessa etapa seja selecionar imagens que proporcionem um
debate e uma reflexão sobre a representatividade do contexto que os
livros nos viabilizam. Na mesma etapa, abordamos o porquê da escolha
das imagens selecionadas.
A etapa “percebendo” integra um momento no qual o corpus de
análise é exposto de forma descritiva e analítica quanto aos elementos
de composição. Nesse sentido, descrevemos as características da nossa
percepção sobre as imagens selecionadas. Em “estranhando”, o autor
aborda a formulação de perguntas que possam levar à reflexão dos
estereótipos. Traçamos perguntas como: Para qual cultura o ilustrador
deu ênfase? Quais cores foram mais utilizadas para ilustrar as pessoas,
indicando-lhes a pele? Dado isso, traçamos essa etapa elaborando per-
guntas “[...] a fim de que possam questionar e ressignificar as imagens”,
como recomenda o autor (BALISCEI, 2020, p. 74).
Na etapa “dialogando”, acrescentamos à pesquisa estudos e refe-
rências que dão suporte à temática e às problemáticas levantadas nos
questionamentos das etapas anteriores. Assim, seguindo as orientações
dadas, buscamos respostas que “[...] possibilitem evidenciar as relações
do poder que atravessam a produção visual” (BALISCEI, 2020, p. 76).
A última etapa, “compartilhando”, tem intuído de socializar as vivências
obtidas pelo PROVOQUE, e assim compartilhar entre os indivíduos as
investigações críticas de diversas maneiras, como por exemplo oficinas
de análise de imagens, roda de conversas, relatos de experiência ou,

223
João Paulo Baliscei (org.)

como foi nossa opção, pela publicação de um texto como capítulo de


uma coletânea.
Dessa maneira, abordamos questões visuais intrínsecas às ilustra-
ções da coletânea Corpim (1987) de Ziraldo, problematizando imagens
estereotipadas, como a cor da pele e as questões de gênero.

PELEGRINO E PETRÔNIO E UM SORRISO CHAMADO LUIZ

Contemplando o primeiro tópico da análise das imagens, “fler-


tando” (BALISCEI, 2020), o interesse em refletir sobre a representação
das imagens dos livros Pelegrino e Petrônio (1987a) e Um Sorriso Chamado
Luiz (1987b) se deu mediante as questões que podem ser levantadas
com um olhar direcionado, na busca de compreender as representações
imagéticas e identificar estereótipos que, porventura, possam se fazer
presentes.
O olhar crítico contribui para que aspectos que encontramos em
várias obras sejam analisados de maneira a refletirmos sobre as questões
predominantes que estão sendo valorizadas na Literatura Infantil, por
meio das ilustrações, e que podem, indiretamente, reforçar conceitos e
preconceitos. Compreendemos que, de modo geral, as ilustrações são
encaradas por professores como “neutras”, como se elas apenas repre-
sentassem os fatos narrados nas histórias, sem prestar-lhes interferência.
A série Corpim (1987), de Ziraldo, por exemplo, traz como personagens
protagonistas as partes do corpo humano, como a boca, umbigo, mãos,
joelho, nádegas e pés, sendo elas apresentadas como independentes do
restante do corpo. No caso de Pelegrino e Petrônio (1987a), apenas os pés
aparecem como personagens. Eles possuem vontades distintas entre si,
e o enredo destaca suas discordâncias quanto aos interesses: um quer
desenvolver habilidades para o balé, e o outro, para jogar futebol.
Diante da etapa “percebendo”, observamos que as ilustrações
desse livro trazem os traços característicos do desenho do autor. Eles
são originais, sem a utilização de cópias de outros meios. O autor traz
representações em todas as páginas, dando foco a um membro do corpo
humano. Os pés Pelegrino e Petrônio, que dão título ao livro, são repre-

224
É de menina ou menino?

sentados a partir de uma cor de pele clara e rosada (representativa da


branquitude), com olhos, nariz, boca e expressões que contribuem para
transmitir ao leitor suas emoções. No final da história, os pés brancos
se acertam diante de suas cogitações distintas sobre o que gostariam
de seguir praticando na vida e, por fim, decidem-se se serão, ambos,
bailarinos ou jogadores de futebol. Dessa maneira, o autor finaliza a
história quando os pés se acertam, em um consenso, e se decidem por
ocupar a chuteira do jogador Pelé, atacante do Santos Futebol Clube e
“brasileiro mais famoso do século XX”, como pontua o próprio autor
(PINTO, 1987a, p. 24) no texto das páginas que integram a Figura 2

Figura 2: Livro Pelegrino e Petrônio (1987a), de Ziraldo.


Fonte: Pinto (1987a, p. 19 e 22).

As perguntas que pensamos para refletir sobre as imagens de


ilustração são: Qual cor o autor mais utilizou para representar os pés
como membros do corpo humano? Com a representação utilizada na cor
da pele, qual cultura está sendo valorizada na ilustração? A cor utilizada
para representar os pés é semelhante à cor do jogador de futebol do qual
eles parecem se aproximar?
Análoga à raça e etnia branca, a cor da pele rosada presente na
ilustração dos personagens nos faz refletir sobre a representação e a
valorização de apenas uma cultura, mesmo em um país multicultural,
constituído por várias etnias, raças, cores, identidades e questões sociais.
Dessa maneira, nosso incômodo e interesse por analisar tal representação
se intensificou porque a história do livro em questão aborda os pés de

225
João Paulo Baliscei (org.)

um sujeito negro, no caso, a figura pública do mineiro Edson Arantes


do Nascimento (1977--), conhecido como Pelé.
Sabemos que nas Literaturas Infantis, tradicionalmente, tem
sido comum que personagens negros não assumam o papel central da
trama, e que, quase sempre, representem o cozinheiro, a empregada, o
amigo, o vilão, o coadjuvante, etc. Mais recentemente têm sido criadas
e divulgadas outras Literaturas Infantis, com outros encaminhamentos
aos personagens negros, apontando que todos temos diferenças, e que,
portanto, não somos todos iguais, como por exemplo, Amoras (2018) e
E foi assim que Eu e a Escuridão ficamos amigas (2020). Essas duas obras
literárias do rapper e compositor paulistano Emicida (1985--) trazem
personagens negros como protagonistas e com enredo diferente das
literaturas tradicionais. O “[...] número de personagens brancos/as, é
notoriamente maior quando comparado com o os/as personagens negros/
as. Este fato transmite a branquidade normativa, cujo ideal branco é
normalizado” (SILVIA; PACÍFICO, 2014, p. 2)
Outro ponto levantado é a respeito das questões estereotipadas que
identificamos nos pés, que representam expressões, como se possuíssem
rostos. Sobre isso, mencionamos Vianna (2010, p. 42), quem salienta
que as Literaturas Infantis costumam conter animismo ou humanização,
dando vida às coisas. Em específico, a autora caracteriza o fenômeno do
antropomorfismo, o qual é muito presente nas atividades realizadas no
ambiente escolar, por meio da criação de objetos com feições humanas
e dotados de características, posturas, atitudes, mímicas e roupas que
promovem, na criança, um distanciamento ou esquecimento do real.
Em um primeiro momento, as imagens parecem não representar
nada mais que uma “simples” ilustração coadjuvante do ornamento escrito,
mas, ao “flertar”, “perceber”, “estranhar” e “dialogar”, podemos inferir
que a cor rosada, característica da raça branca, representada nos pés da
história em questão não representa o personagem a que se refere. Além
disso, reforça o padrão generalizado da representação da cor de pele que
predomina na maioria das imagens, atribuindo aos protagonistas a cor
de pele clara, rosada ou branca.

226
É de menina ou menino?

Após muitos anos em que as cores das peles foram restritas a


apenas duas das tantas cores – ou branco ou preto -, algumas marcas
de materiais escolares e produtos artísticos se conscientizaram quanto
à importância dessa representatividade do sujeito. Por ainda prevalecer
a representatividade da etnia e raça branca a partir da cor rosa, como
podemos ver não só na Literatura Infantil, como em desenhos de crianças
e materiais escolares, essas marcas começaram a comercializar outras
cores apresentando-as também como “cores de pele”,
Ainda em análise de Pelegrino e Petrônio (1987a), identificamos
que outras questões podem ser abordadas a partir dessas ilustrações e
enredo, como as questões de papéis atribuídos aos gêneros: Os pés que
calçam as chuteiras poderiam ser de uma jogadora de futebol? Os pés
que calçam as chuteiras poderiam também calçar as sapatilhas de bai-
larino? Por que os personagens precisaram escolher entre ser jogador ou
bailarino? Poderiam, os pés masculinos, assumir essas duas habilidades?
Por sua vez, o segundo livro, intitulado Um sorriso chamado Luiz
(1987b), conta a história de Luiz, o sorriso que vivia sorrindo indepen-
dentemente de a vida ir bem ou mal. Ele é apresentado como um sorriso
diferente e profissional; para vê-lo, basta ligar a televisão e lá está ele,
sorrindo para músicas, edifícios, lojas e para as “disneilândias”, como
apresenta o autor.
Um certo dia, Luiz ficou triste, pois percebeu que, por mais que
sorrisse para todos, ninguém lhe retribuía com sorrisos e pensou alto
“Eu sou boca e sou desejo é tudo isto que sou” (PINTO, 1987b, p. 18).
E o espelho, como de costume, o refletiu, e Luiz percebeu que podia ser
feliz, e assim se reencontrou, ora sendo sorriso, ora, beijinho; “quando
está sorrindo é Luizzzzzzzzzz; quando vira beijinho é Lulu” (PINTO,
1987b, p. 23).
A partir da etapa “flertando”, a respeito desse segundo livro, nosso
interesse se desenvolveu pelo contraponto dos questionamentos feitos
na analiso do primeiro livro, pois algumas das ilustrações, como aquela
apresentada na abertura deste capítulo, na Figura 1, nos possibilita uma
ideia menos restritiva e estereotipada quanto aos gêneros. Primeiro, é

227
João Paulo Baliscei (org.)

possível identificar o mesmo destaque da análise que demos ao livro


Pelegrino e Petrônio (1987a): nesse segundo livro, Ziraldo também se
utiliza do zoom para enfatizar a ilustração, com o intuito de impactar
o observador, apresentando as características do personagem que são
partes do corpo humano.
Nesse caso, semelhantemente ao que ocorre com Pelegrino e
Petrônio, também notamos, de novo, o uso da cor rosa como marcado
de raça e etnia branca, assim como a utilização de um nome próprio
masculino, Luiz. Nesse caso, contudo, ele é associado a marcadores
femininos na representação, como destacamos na Figura 1, que aborda
visualmente o cuidado estético no ato de aplicar o batom em um sujeito
masculino. Ziraldo, na ilustração, também apresenta Luiz a partir de
aspectos humanos, com lábios carnudos e bem-delineados somados de
olhos, movimentos e sobrancelhas.
A fim de direcionar os questionamentos a partir da visualidade,
delineamos algumas perguntas, tais como: o nome Luiz se refere a qual
gênero? Nas revistas de cosméticos do mundo real, qual representação
de gênero mais aparece nas capas? A mulher é vista como um produto,
induzindo ao consumo pela sedução do sorriso?
Quanto ao nome masculino dado a um rosto que, pelo batom e
lábios carnudos, socialmente tende a ser lido como feminino, é possível
perceber certa fissura aos estereótipos reforçados pelas e nas Literaturas
Infantis. A história trata de uma personagem feminina que se chama
Luiz ou, ainda, trata-se de um personagem masculino, Luiz, que tem
como prática o uso de batom? Em ambos os casos, a narrativa nos parece
ir na contramão dos estereótipos de gêneros.
Além desses assuntos, entendemos que o conteúdo da história
aborda a temática da relação do gênero feminino na mídia e como, nesse
contexto, a mulher é visualizada e padronizada.
É importante lembrar que, no Brasil, aproximadamente 44% da
população feminina é considerada economicamente ativa; sendo assim,
existe um grande público consumidor, atingido, principalmente, pela
vaidade e pelo narcisismo exacerbado nas campanhas publicitárias,

228
É de menina ou menino?

por meio da “oferta” de corpos estonteantes e de soluções milagrosas


para qualquer aspecto físico e desenvoltura feminina que não estejam
de acordo com a imagem de mulher estabelecida no imaginário atual.
(ARAUJO, 2006, p. 150).
Na mídia, podemos encontrar diversas propagandas direcionadas
às mulheres, vendendo-lhes produtos apresentados como “ideais” para a
perda de medidas “em até quinze dias”, a fim de satisfazer uma imposição
machista sobre como performar feminilidades. Assim, podemos recordar
das características reincidentes nos anúncios dessa espécie, compostos
por mulheres magras, brancas, jovens e maquiadas, usando o sorriso
para transmitir autoconfiança ao consumidor.
Ao observar as famosas “revistinhas” de cosméticos de variadas
marcas no Brasil, é possível identificar a utilização da mulher para des-
tacar o produto e a abordagem visual dada perante as poses, o foco no
rosto e nos olhares marcantes, denotando que “[...] o enquadramento
dado às imagens sugere uma aproximação com os modelos expostos
(ARAUJO, 2006, p. 154). A mulher, nesses casos, é vista pela sociedade
como sedutora e consumista, e tal representação estimula olhares de
outras pessoas para desejar e adquirir os produtos anunciados.
Perante os dois livros analisados, Pelegrino e Petrônio (1987a) e Um
Sorriso Chamado Luiz (1987b), problematizamos as imagens que, longe de
serem neutras, estão impregnadas de significados e conceitos, aos quais
adultos e crianças acabam tendo acesso. Dessa forma, apresentamos
um encaminhamento metodológico contendo observações críticas com
o propósito de problematizar as imagens, incentivando que os sujeitos
as enxerguem a partir de certa criticidade visual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos estudos realizados neste artigo para analisar as ilus-


trações a partir da Cultura Visual, buscamos discorrer sobre os Estudos
da Cultura Visual, sobre os quais nos respaldamos para analisar as
ilustrações da coletânea Corpim (1987), de Ziraldo. A Cultura Visual
vem problematizar a visualidade, com o intuito de fomentar discussões

229
João Paulo Baliscei (org.)

que sejam relevantes e contribuam para o desenvolvimento de habili-


dades e conhecimentos importantes à contemporaneidade. Os estudos
se concentram em desneutralizar as imagens, expondo-as. Para isso,
usufruímos das etapas de análise de PROVOQUE (BALISCEI, 2020).
As ilustrações estudadas nos indicam que, por um lado, predo-
minam características e estereótipos de uma hegemonia cultural branca.
Entretanto, por outro lado, Ziraldo, no segundo livro que estudamos,
apresenta questionamentos bastante contemporâneos: primeiro sobre
as sobreposições entre masculinidades e feminilidades, e depois sobre
a hiperexposição do corpo feminino para fins comerciais.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Denise Castilhos. O consumo e a mulher consumidora. Comunicação, mídia


e consumo, São Paulo. n.7, v. 3, p. 147-165, 2006. Disponível em:<http://revistacmc.espm.
br/index.php/revistacmc/article/viewFile/75/76>. Acesso em: 18 set. 2021.

BALISCEI, João Paulo. Provoque: Cultura visual, Masculinidade e ensino de artes


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BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 13 fev. 2021.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. DP&A: São


Paulo, 2006.

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NUNES, Luciana Borre. As imagens que invadem as salas de aula: reflexão sobre cultura
visual. Aparecida, SP: Ideia e Letras, 2010.

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(org.). Arte-educação: leitura no subsolo. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 127-141.

PINTO, Ziraldo Alves. Pelegrino e Petrônio. São Paulo: Melhoramentos, 1987a.


(Série Corpim).

_______. Um Sorriso Chamado Luiz. São Paulo: Melhoramentos, 1987b. (Série Corpim).

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cultura visual na coletânea “corpim”, de Ziraldo. Orientadora: Dra. Eloiza Amália
Bergo Sestito Silva. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) –
Universidade Estadual de Maringá, 2020.

230
É de menina ou menino?

SILVA, Flávia Carolina da; PACÍFICO, Tânia Mara Pacífico. Análise das relações raciais
nas imagens de um livro didático de português do 5° ano. In: ANPED SUL, 10., 2014,
Florianópolis. Anais eletrônicos […]. Florianópolis: UDESC, 2014. Disponível em:
<http://xanpedsul.faed.udesc.br/arq_pdf/681-0.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2021.

VIANNA, Maria Letícia Rauen. Desenhando com todos os lados do cérebro: possi-
bilidades para transformação das imagens escolares. Ibpex: Curitiba, 2010.

231
João Paulo Baliscei (org.)

Figura 1: A madrasta.
Fonte: Disponível em <https://pt.pornhub.com/view_video.php?viewkey=ph-
58c466aa61bc5>. Acesso em: 12 mar. 2021.

A GENERIFICAÇÃO ENDEREÇADA PELA PLATAFORMA


PORNHUB NA ERA DA FARMACOPORNOGRAFIA:
HORNY BOY FUCKED HIS STEPMOM (2017)

Larissa Nayara Coelho Kimura90

INTRODUÇÃO

A partir da ótica de um mundo atravessado por agentes simbóli-


cos midiáticos de circulação ativa, percebe-se que mais que entreter, as
representações atuam sobre as pessoas, contribuindo para a constituição
e transformação de suas opiniões e comportamentos e intermediando
suas relações.

90 
Especialista em Arteterapia pela Faculdade Vicentina e Núcleo de Arte e Educação
em Campinas. Arteterapeuta e Instrutora de Arte e Cultura na Secretaria de Assis-
tência Social de Presidente Epitácio – SP. Integrante do grupo de pesquisa em Arte,
Educação e Imagens – ARTEI. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7054270800542202.
232
É de menina ou menino?

Kellner (2001) caracteriza essas mercadorias da indústria cultural


como um dos materiais responsáveis na sociedade pela construção (e até
falsificação) das identidades. Esses aspectos são problematizados pelos
Estudos Culturas, a partir do conceito de Pedagogias Culturais que,
conforme afirmam Steinberg e Kincheloe (2015), estabelece um pro-
cesso educativo no qual novos locais políticos e culturais para além dos
tradicionais ganham espaço - filmes, livros, produtos, músicas, jogos,
outdoors, pornografia e demais artefatos são considerados meios em que
o poder se organiza e exerce suas representações.
Visualidades, consumo e mídias estão relacionados sobretudo na
sociedade atual, que segundo Debord (1997), é configurada por meios
de produção que se transformaram do capital para relações a partir de
imagens, constituindo a “sociedade do espetáculo”. Kellner (2004),
apoiado em Debord (1997), levanta questões a respeito dessa nova dinâ-
mica social e da cultura de mídia, apontando que uma ordem política,
econômica, social e de vida cotidiana se faz vigente.
Os conflitos sociais e políticos estão cada vez mais
presentes nas telas da cultura da mídia, que apresentam
os espetáculos de casos sensacionalistas de assassinatos,
bombardeios terroristas, escândalos sexuais envolvendo
celebridades e políticos, bem como a crescente violência
da atualidade. A cultura da mídia não aborda apenas os
grandes momentos da vida comum, mas proporciona
também material ainda mais farto para as fantasias e
sonhos, modelando o pensamento, o comportamento
e as identidades (KELLNER, 2014, p. 5).

Neste capítulo em específico, a intenção é compreender como a


pornografia, como artefato cultural, define os papéis de gênero por meio
de seus vídeos, endereçando comportamentos e performances ao público
espectador. Para tal, faz-se uma análise do vídeo Horny Boy Fucked his
Stepmom (2017), postado no site de vídeos Pornhub - o mais visualizado
no Brasil, desde sua criação, em 2007.
Em se tratando de gênero, toma-se o conceito de Sabat (2001)
que, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, associa feminino
e masculino não apenas ao sexo biológico, identificado e socializado

233
João Paulo Baliscei (org.)

no nascimento, mas também aos aspectos relacionais entre homens e


mulheres de acordo com valores construídos socialmente. Assim, há uma
representação destes a partir de uma sexualidade única, apropriada e
naturalizada, - o que guarda relação com uma lógica heteronormativa.
Pode-se dizer, segundo Hernandez (2000), que problematizar o
impacto desses artefatos culturais que envolvem as visualidades, como
a pornografia, e sua decodificação para além de um saber sistematizado
e habitual, contempla que o sujeito não atua como um mero “receptor”
indefeso diante da “enxurrada” de demandas midiáticas. Ao contrário,
entende-o como alguém capaz de compreender, de forma crítica, a atuação
das representações visuais, suas funções sociais e, ainda, as relações de
poder às quais elas estão associadas.
O olhar para com as imagens precisa, portanto, ser desenvolvido
e as reflexões quanto às questões pessoais e sociais na apreensão do
mundo precisam ser manifestadas. “Como a produção de imagens em
nosso cotidiano interfere na constituição de nossas subjetividades? Como
incorporamos as imagens no nosso dia- a-dia?”. (NUNES, 2010, p. 57).
Essas perguntas da autora nos auxiliam a fortalecer nossos apontamen-
tos quanto à necessidade do exercício de assumir um olhar atento. Nos
processos de reconhecimento da identidade, segundo Louro (2000),
inscrevem-se também as diferenças, abarcando as desigualdades, orde-
namentos e hierarquias – elementos que se vinculam a estruturas de
poder dentro de uma sociedade. Ao reconhecer o/a outro/a enquanto
sujeito que não compartilha de características, faz-se de um lugar social
que se ocupa, e nesse movimento são demarcados espaços onde estão
aqueles/as compatíveis com os padrões culturais,
deixando às margens os/as incompatíveis.
Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, his-
toricamente, remete ao homem branco, heterossexual,
de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a
referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os
"outros" sujeitos sociais que se tornarão "marcados", que
se definirão e serão denominados a partir dessa refe-
rência. Desta forma, a mulher é representada como "o

234
É de menina ou menino?

segundo sexo" e gays e lésbicas são descritos como des-


viantes da norma heterossexual (LOURO, 2000, p. 9)

AS (DES)AUTORIZAÇÕES DO DISCURSO SOBRE O CORPO E


SEXUALIDADE

Quando se fala em corpo e sexualidade, a polêmica está posta -


discutir sobre o que é constitutivo e inerente ao ser humano abarca uma
série de repressões e censuras. Nem sempre, porém, o discurso sobre o
corpo e a sexualidade se deu dessa maneira. Segundo Focault (2020), esse
debate atravessa a sociedade há tempos, mas com a “Idade da Repressão
do século XVII”, uma falsa moral burguesa passou a operar e retirar o
tema das falas públicas.
Na contemporaneidade, a educação sexual, instrumento para
proteger e dar autonomia a crianças e adolescentes, sofre ataques fre-
quentes, sendo criticada e distorcida por instituições, políticos e outras
corporações. No entanto, concordamos com o enunciado do Guia de
terminologia da Unaids (2017, p. 13), quando caracteriza essa prática como,
uma abordagem apropriada para a faixa etária e cultu-
ralmente relevante para o ensino sobre sexo e relacio-
namentos, por meio do fornecimento de informações
cientificamente corretas, realistas e sem juízo de valor.
A educação em sexualidade fornece oportunidades para
explorar os próprios valores e atitudes, bem como cons-
truir habilidades de tomada de decisão, comunicação e
redução de riscos sobre muitos aspectos da sexualidade.

A prática de programas como esse poderia proporcionar às crian-


ças e adolescentes informações e maior segurança quanto ao seu corpo.
Mas, como sinalizado anteriormente, falar sobre corpo e sexualidade
nos dias de hoje tem enfrentado retaliações de muitos lados. Em 2019,
por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro, de acordo com O Globo, suge-
riu aos pais e mães de meninas que receberam a “Caderneta de saúde
da adolescente”, distribuída pelo Ministério da Saúde, a rasgarem as
páginas contendo ilustrações “incômodas”, fazendo referência aos con-
teúdos sobre o uso da camisinha feminina e masculina, higiene íntima
e masturbação. O presidente também se manifestou dizendo que, em
235
João Paulo Baliscei (org.)

conversa com o ministro da saúde da época, Luiz Henrique Mandetta,


decidiu por imprimir novas cadernetas para distribuição, sem o conteúdo
vinculado à educação sexual. Além disso, o presidente já se mostrou
outras vezes contra (e equivocado) quanto ao programa, como quando
disse que “quem trata de sexo é papai e mamãe”.
Em um caso mais recente, de 2021, apontado pelo G1, um padre
chamado Christyan Shankar acusou escolas da sua cidade, Divinópolis,
de “perverterem” crianças e jovens – o que indica certa concordância e
repetição da ideologia do presidente. Nesse caso, em específico, o padre
se referia ao caso de uma psicóloga que palestrou, em uma escola, sobre
gênero, sexualidade e amor. Logo em seguida a Diocese da cidade teve
de se retratar pelos apontamentos e referências feitas por ele. Segundo
Mochi e Oliveira (2020), o objetivo da educação sexual ensinada às
crianças deve ser de auxiliá-las no percurso de um caminho de apren-
dizado, fortalecendo-as para sua atuação enquanto sujeito participativo,
podendo, nas escolas, construir juntamente com o/a professor/a o seu
conhecimento acerca da sexualidade.
Quando se recorre a dados do “disque 100”, de 2018, por exemplo,
constata- se que o número de casos de violência sexual contra crianças
é expressivo. Naquele ano, foram registrados mais de 17.000 casos de
violência sexual contra menores de idade – deles, 13.418 reportam abuso
sexual. No início de 2019 o governo registrou mais 4.700 novas denúncias.
Ao mesmo tempo que esse é um tema tabu, vigiado e muitas vezes
retirado das abordagens profissionais e didáticas dos espaços escolares,
há, socialmente, uma espécie de referência de corpo, sexo e sexualidade,
a partir da qual os sujeitos são ensinados direta ou indiretamente sobre
o assunto. Se não nas escolas ou pela comunicação familiar, por qual
meio a população em geral se aproxima e aprende acerca de gênero,
sexo e sexualidade?
Segundo o site G1, em 2018, 22 milhões de brasileiros/as revela-
ram consumir pornografia, sendo 76% deles homens, e 24%, mulheres.
58% dos consumidores têm menos de 35 anos. Com isso, vislumbra-se

236
É de menina ou menino?

que o sexo midiatizado aparenta ser um recurso de acesso ativo no que


diz respeito às experiências e às relações com o corpo.

A BIOPOLÍTICA DOS PAPÉIS DE GÊNERO PRESENTE NA


PORNOGRAFIA

Preciado (2018) aponta que após a Segunda Guerra Mundial,


socialmente se tem vivido uma terceira fase do capitalismo, conceituada
por ele como farmacopornográfica. Esse novo período conta com alguns
marcadores para sua estruturação, como a invenção da pílula anticon-
cepcional, a realização da primeira faloplastia, o avanço da tecnologia
médica e farmacêutica, a ascensão da prostituição, a criação do conceito
de “gênero” desvinculado do sexo e o aparecimento da pornografia –
impulsionada pela revista Playboy 91.
Uma nova gestão sobre os corpos passou a operar e discursos
sobre feminilidades e masculinidades fundamentados em uma impo-
sição “adequada” quanto às identidades sexuais se tornaram agentes de
controle e homogeneização heteronormativa. O surgimento da indústria
pornográfica alavancou uma movimentação lucrativa dentro da economia
contemporânea, relacionando “[...] performance, virtuosismo, dramatiza-
ção, espetacularização, reprodutibilidade técnica, transformação digital
e distribuição audiovisual” (PRECIADO, 2018, p. 282).
Os espetáculos pornográficos disponibilizadas pelas plataformas
digitais trazem, além de atuações megalomaníacas, representações de
corpos e sexualidades de maneiras próprias, como é o caso do vídeo
selecionado neste capítulo, exibindo uma relação sexual heterossexual,
na qual a mulher (com características que remetem a um padrão de
beleza já conhecido) tem uma representação objetificada não incomum.
Quando se trata de sexualidade, parece haver um consenso que
a estabelece como algo “naturalmente” dado a mulheres e homens,
91 
A revista foi fundada em nos Estados Unidos em 1953, quando o criador, Hugh
Hefner aos 27 anos, buscava um conteúdo para entreter o público masculino a partir
de mulheres nuas junto a outros conteúdos jornalísticos. Em novembro de 1972 foram
vendidas 7 milhões de unidades e o faturamento anual da revista já chegou a ultrapassar
a marca do US$ 1 bilhão.
237
João Paulo Baliscei (org.)

dificultando a discussão da sua dimensão social e política, conforme


aponta Louro (2000).
Podemos entender que a sexualidade envolve rituais,
linguagens, fantasias, representações, símbolos, con-
venções... Processos profundamente culturais e plurais.
Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente "natural"
nesse terreno, a começar pela própria concepção de
corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos
culturais, definimos o que é — ou não — natural; pro-
duzimos e transformamos a natureza e a biologia e,
consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos
ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêne-
ros — feminino ou masculino — nos corpos é feita,
sempre, no contexto de uma determinada cultura e,
portanto, com as marcas dessa cultura. As possibi-
lidades da sexualidade — das formas de expressar os
desejos e prazeres — também são sempre socialmente
estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e
sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações
sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma
sociedade. (LOURO, 2000, p. 6)

A Pornhub é líder no ranking das plataformas pornográficas mais


visitadas pelos/as brasileiros/as. O vídeo mais acessado desde o início da
atividade do site por eles/as é Horny Boy Fucked his Stepmom (2017), com
176.813.857 visualizações, 16 minutos e 35 segundos e o enunciado de
um “garoto com tesão que transa com sua madrasta”.
O vídeo se inicia com a figura da madrasta junto a seu enteado
dentro de um quarto de hotel, recém chegada de viagem - a represen-
tação dela é a de uma mulher branca, magra, cabelos lisos e castanhos,
de meia idade e usando um vestido rosa justo, como evidencia a Figura
01 no início deste capítulo.
O enredo do vídeo se dá a partir da falta de um outro quarto para
o garoto que, persuadido pela madrasta para que ele e ela durmam na
mesma cama e “tirem o melhor proveito disso”, acaba aceitando - “Vamos,
eu sou sua mãe”, ela diz. Diferentemente da madrasta, o rosto do garoto
não é mostrado no vídeo, de forma que sua representação acontece por
imagens recortadas de partes do seu corpo, como mãos, pés e outros
238
É de menina ou menino?

fragmentos. A presença da figura masculina é intensficada pelo pronun-


ciamento da voz do enteado e a relação da visão dele compatível com a
perspectiva da câmera.
Já deitados, a luz diminui e ela se oferece para esquentar os pés
do enteado entre suas pernas, percebendo em seguida que o garoto teve
uma ereção. Ele, porém, nega esse fato, contrariando-a: “Mãe, de jeito
nenhum”. Mesmo surpresa, ela dá a solução: que ele coloque seu órgão
genital contra ela. Logo, a madrasta começa a masturbar seu enteado,
faz sexo oral nele e propõe que ele a penetre.
Seguidas de muitas expressões representativas de prazer por parte
da madrasta, as posições sexuais vão sendo trocadas, mantendo sempre
o foco/olhar nela, enquanto o garoto usufrui da mesma configuração
no cenário, como demonstra o conjunto de frames reunidos na Figura 2.

Figura 2: Sequência de posições sexuais performadas pela “mãe”.


Fonte: <https://pt.pornhub.com/view_video.php?viewkey=ph58c466aa61bc5>.
Acesso em: 12 mar. 2021.

Por fim, ela se deita abaixo do pênis dele esperando para que ele
ejacule em seu rosto. O vocativo “mãe” é sempre presente nas frases
dele, que consuma a ação, agradece sua “mãe” e recebe como devolu-
tiva a frase: “ de nada querido, eu te amo”, e o pedido de que aquilo fique
apenas entre eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da compreensão do período contemporâneo identificado


com o gerenciamento dos corpos pelas frentes farmacológicas e porno-
gráficas, no qual a indústria pornográfica capitalista endereça atuações

239
João Paulo Baliscei (org.)

femininas e masculinas, fez-se uma análise do vídeo Horny Boy Fucked


his Stepmom (2017).
Reconhece-se uma pedagogia cultural na representação da figura
feminina no vídeo, uma mulher magra, branca, sensual e solícita. A
posição dela enquanto madrasta passa a assumir o caráter simbólico de
“mãe”, afirmado por ela e reiterado durante todo o vídeo pelo enteado,
verbalmente, de forma a lhe atribuir a satisfação de todas as demandas
masculinas, principalmente as sexuais.
Quanto ao papel masculino, em ambiente intimista, é demonstrado
um comportamento mais resistente e passivo, que passa a ser negociado
sobretudo pelas investidas da madrasta, cabendo a ele a decisão de aceitar
ou não as dedicações dela. A figura masculina não é representada de uma
forma específica, como a da mulher, abrindo espaço e sugerindo que o
espectador assuma esse personagem mais facilmente, já que conta com a
vantagem dos ângulos e perspectivas da câmera serem compatíveis com
o olhar dele. A partir disso, entende-se que o vídeo é direcionado para
o entretenimento do público masculino heterossexual.
A relação presente no vídeo contempla um contato heterossexual,
no qual o homem jovem e branco desfruta dos benefícios da objetificação
de uma mulher estabelecida como mãe, realizando sua fantasia incestuosa.
Ao final do vídeo, o gozo masculino é privilegiado e a mulher
é colocada literalmente abaixo do pênis, dedicando e oferecendo sua
face para o deleite do homem. Ao ser agradecida, ela performa um
comportamento além de amoroso pela frase “de nada, eu te amo”, con-
fidencial, quanto a sua serventia sexual pelo pedido que aquilo fique
“apenas entre eles”.
Ao confrontar a educação sexual e o acesso crescente a porno-
grafia, entende- se que quando se trata de educar positivamente os/as
jovens quanto aos seus corpos, prazeres e sexualidades, consolidando
uma autonomia própria e um conhecimento que os/as empoderaria e
protegeria, o discurso é censurado. Porém, outros códigos a respeito da
sexualidade são autorizados e aderidos ativamente por meio da porno-
grafia enquanto artefato cultural.

240
É de menina ou menino?

REFERÊNCIAS

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 10ª Ed. Rio de


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-paginas-sobre-educacao-sexual-de-caderneta-de-saude-da- adolescente-23506442>.
Acesso em: 16 set. 2021.

GONÇALVES, Mariana. Padre diz que escolas de Divinópolis pervertem crianças e


adolescentes, gera polêmica e bispo orienta retratação. Site G1, 2021. Disponível em:
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HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura Visual, mudança educativa e projeto de trabalho.


Tradução. Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia – estudos culturais: identidade e política entre


o moderno e o pós-moderno. Tradução: Ivone Castilho Benetti. Bauru, SP: Edusc, 2001.

_______. A Cultura da mídia e o triunfo do espetáculo. Revista Líbero, São Paulo, n°.
11, Vol. 6, p. 04 – 15, 2004. Disponível em: <http://docplayer.com.br/7654581-A-cultu-
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LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução


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MURARO, Cauê. 22 milhões de brasileiros assumem consumir pornografia e 76% são


homens, diz pesquisa. Site G1, 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop- arte/
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NUNES, Luciana Borre. As imagens que invadem as salas de aula: reflexões sobre a
cultura visual. Aparecida, SP: Ideias et letras, 2010.

PRECIADO, Paul. Textojunkie: sexo, drogas e biopolítica na era Farmacopornográfica.


Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

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241
João Paulo Baliscei (org.)

STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe. Cultura infantil: a construção corporativa


da infância. Tradução de George Eduardo Japiassú Bricio. Rio de Janeiro: Civilização
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UNAIDS, Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV, AIDS. Guia da termi-
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242
É de menina ou menino?

Figura 1: Os sujeitos diferentes.


Fonte: Heinberg, Allan; et. al. Young Avengers: Special. Marvel, 2006, p. 15.

“OS OUTROS QUE TINHAM PROBLEMA COMIGO”:


HISTÓRIA PÚBLICA E A HOMOFOBIA NA HISTÓRIA EM
QUADRINHOS DOS JOVENS VINGADORES

Leonardo Stabele Santos92

PONTAPÉ INICIAL

As revistas de história em quadrinhos – HQs e a História pos-


suem estreitas relações para a pesquisa acadêmica, incluindo nisso as
histórias de superaventura. Mais recentemente a abordagem dos sujeitos
homossexuais ganhou espaço nas páginas das revistas de histórias em
quadrinhos, em um movimento que reflete as mudanças sociais muito de
perto. Estas mídias tendem a acompanhar as variações do seu momento
de produção. São frutos do presente, objetos históricos confeccionados
por homens e mulheres que estão atentos ao meio sócio-político onde
estão inseridos (NETO, 2016). O objetivo deste texto é analisar casos
de homofobia, e corpos masculinos apresentados em uma publicação
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Pública pela Universidade
92 

Estadual do Paraná (UNESPAR). Membro do grupo de Estudo e Pesquisa em Educação,


Diversidade e Cultura – GEPEDIC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9915786030397490.
243
João Paulo Baliscei (org.)

dos Jovens Vingadores, mais precisamente, as personagens Wiccano e


Hulkling. Essa HQ foi publicada em 2006, intitulada Young Avengers:
Special (Jovens Vingadores: Especial) e reúne fatos da vida de cada um
dos membros93 do jovem grupo antes de eles serem recrutados para formar
a equipe conhecida como Jovens Vingadores. Ancorados em discussões
sobre sexualidades, gênero, masculinidades, cultura visual e da mídia
pretendemos questionar o que nos chega por meio desta publicação.
Conforme Sávio Queiroz Lima (2014), as quebras de paradigmas
e as diferentes abordagens epistemológicas conceberam novas indaga-
ções, fontes e objetos para a pesquisa histórica. As revistas de histórias
em quadrinhos, em sua ampla gama de temas, enfraqueceram os muros
da academia e a adentraram. Pesquisas, as mais variadas, levaram a
inúmeras perguntas, possibilidades, olhares para a investigação acerca
desse objeto-fonte.
Parafraseando Jill Liddington (2011), o campo da História Pública
tem se apresentado nas últimas décadas com grande procura e variadas
representações, e ressignificações do passado estão acessíveis para o
grande público por meio de filmes, documentários e programas seriados
com caráter histórico. Com as revistas de histórias em quadrinhos não
é diferente. Jerome de Groot (2009), historiador público estadunidense,
compreende que os quadrinhos podem e devem ser usados pela história.
Porque, segundo o autor, a natureza híbrida dos quadrinhos permite que,
por suas considerações, os acontecimentos históricos sejam desafiados,
interrogados e expostos de formas diversas para outras audiências. Por
exemplo, o quadrinho Maus: a história de um sobrevivente, ao qual o autor
se refere, foi publicado em 1972, por Art Spiegelman. Nessa história
Spiegelman relata, por meio de entrevistas com seu pai, a vida deste e
suas estratégias para a sobrevivência, além dos atos de resistências nos
campos de concentração da Alemanha Nazista, durante a Segunda
Guerra Mundial.

Neste primeiro momento, a equipe foi composta por Rapaz de Ferro, Wiccano,
93 

Hulkling, Gaviã Arqueira, Estatura, Visão (jovem), Patriota, e Célere.


244
É de menina ou menino?

Para a historiadora Claudia Priori e para o historiador Márcio


José Pereira, a História Pública é um campo de investigação de ampli-
tude variada e deslocamentos entre os diferentes saberes. Portanto, é
importante elucidar
Que não há uma única definição do que seja História
Pública, e sim que é um espaço amplo de debate his-
tórico, cujo grande esforço é defender uma história que
não se reduza aos meandros acadêmicos, mas que seja
feita para e com o público, tenha como foco a ampliação
das audiências, e entenda que os saberes e práticas pro-
duzidos fora do ambiente universitário são passiveis de
investigação semprejudicar a credibilidade cientifica e a
responsabilidade da produção e circulação dos saberes
históricos (PRIORI; PEREIRA, 2020, p. 7.)

O historiador Roger Chartier (2002, p. 17) debate sobre como o


ambiente social não é um local apático e imparcial, e que é por meio de
escolhas que são produzidas “estratégias e práticas (sociais, escolares,
políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por
ela menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou justificar,
para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”. Para Rodrigo
Lima Maciel (2019, p. 60), “O mundo das histórias em quadrinhos, por
exemplo, é um fértil e rico campo de narrativas que possibilita pensar as
diferentes inquietações sociais do século XX e XXI”. Se em um passado
não tão distante a história em quadrinhos era vista com desconfiança,
sendo até mesmo objeto de desprestigio acadêmico, hoje tais artefatos
têm muito a ensinar. Conforme Grant Morrison (2012, p. 5, grifo nosso)
Vivemos nas histórias que contamos. Numa cultura
secular, científica e racional, que deixa a desejar em lide-
ranças espirituais confiáveis, as histórias de super-heróis
falam mais alto e com mais força frente a nossos grandes
medos, nossos desejos mais profundos e nossas maiores
aspirações. Elas não têm medo de trazer esperança, não
se envergonham do otimismo e não têm medo do escuro.
Estão o mais distante possível do realismo social, mas
as melhores histórias de super-heróis lidam diretamente
com elementos míticos da experiência humana com os
quais todos nós podemos fazer paralelo, de forma cria-

245
João Paulo Baliscei (org.)

tiva, profunda, engraçada e provocante [...]. Devíamos


ouvir o que têm a dizer.
Com a exclusão de vários impedimentos durante o final do século
XX, as histórias em quadrinhos passaram a adotar uma abordagem
mais diversa do meio social. Temas, como as sexualidades, começaram
a ganhar mais espaço nas histórias mainstream. Por exemplo, na Marvel
Comics, em 2005, foi apresentado o novo grupo de heróis da editora:
Os Jovens Vingadores. Desde o início, a série deu visibilidade a um casal
gay, Wiccano e Hulkling. Assim, as revistas de histórias em quadrinhos
e História Pública entrecruzam-se, pois, ao nos debruçarmos sobre os
estudos de gêneros, campo de efervescência de debates em variados
espaços, e sobre a história em quadrinhos, enquanto objeto/fonte e veí-
culo da Industria Cultural, entendemos que estes campos investigativos,
em suas “formas visuais e cotidianas de se tornar público assuntos que
por tanto tempo estiveram na esfera privada” (PRIORI; PEREIRA,
2020, p. 6) são importantes para iniciar debates nas esferas públicas
acerca, por exemplo, da homossexualidade, dos corpos padronizados e
das violências homofóbicas.

CONSTRUINDO CAMINHOS PARA O ENFRENTAMENTO DE


ANGÚSTIAS

Os quadrinhos nos anos 2000 ainda lembravam as publicações


lançadas durante o século XX, isto é, cerceadas por dispositivos censo-
res94. É preciso compreender que os sujeitos homossexuais não surgem
“do nada” na história em quadrinhos.

94 
Pondera-se aqui sobre a atuação e a vigilância do Comic Code Authority (CCA),
uma espécie de código de ética e moralidade que deveria ser seguido pelas editoras
de quadrinhos para que suas publicações fossem permitidas para a comercialização.
Entrou em vigência em meados da década de 1950, por parte das próprias editoras de
quadrinhos estadunidense que entendiam que a regulamentação dos quadrinhos poria
fim à queda nas vendas. A face pública deste código foi o psiquiatra Fredrik Wertham
e seu livro A Sedução dos Inocentes, que apresentava os “males” da leitura de revistas
de histórias em quadrinhos para crianças e adolescentes. Segundo ele, a leitura de
quadrinhos do Batman e Robin, por exemplo, despertaria gatilhos homossexuais nos
meninos, pois estes dois super-heróis eram o sonho idealizado pelos homossexuais.
Contudo, com pesquisas recentes que tiveram acesso a documentos do estudo de
246
É de menina ou menino?

História em quadrinhos com personagens homossexuais evi-


denciam um ideal de sociedade mais igualitária, justa, democrática e
respeitosa. Algo que se almeja alcançar. A personagem Estrela Polar
(Northstar), por exemplo, abriu esse passado, e experienciou, em finais
da década de 1970, o nascimento de uma das primeiras personagens
homossexuais nas revistas de histórias em quadrinhos mainstream. O
que possibilitou que outros viessem. Assim, entendemos a história em
quadrinhos como uma extensão do real. Estrela Polar foi o início, mas
não o fim dos personagens gays nas revistas de histórias em quadrinhos
de super-heróis. Têm-se, com ele, o espaço de experiência da homos-
sexualidade nos quadrinhos, e com os jovens vingadores Wiccano e
Hulkling e outros, expande-se o horizonte de expectativa para uma
maior abertura, consolidação e quebras de tabus sociais e estigmas.
Douglas Kellner (2001) escreve sobre os quadrinhos e, para ele, este
meio de comunicação são frutos de uma cultura da mídia. Cultura esta
que essencialmente busca geração de capital e de riquezas. Portanto, os
quadrinhos não estão desconectados do mundo real, ou seja, do contexto
social, político, cultural e econômico. Em outras palavras, os quadrinhos
são uma produção elaborada por homens e mulheres inseridos naqueles
contextos. Nem sempre serão autorizados a falar, sendo preciso, por
vezes, a subversão de convenções historicamente construídas, para que se
possam escrever sobre, por exemplo, a homossexualidade e a homofobia
inseridas nesta mídia. Conforme escreve José Domingos (2015, p. 10) se
faz necessário que “as condições para o exercício da função enunciativa
sejam determinadas historicamente.”.
Quando os personagens Wiccano e Hulkling são apresentados
em 2005 pelas mãos de Allan Heinberg e Jim Cheung, parece que são
impedidos historicamente de revelarem sua homossexualidade, pois
suas primeiras aparições remetem às publicações do século XX ainda
sob influência do CCA. Pois, no primeiro volume dos Jovens Vingadores
(2005) ambos os personagens foram apresentados de forma subjetiva

Wertham, foi constatado e provado a adulteração, a má-fé de seus experimentos nas


consultas com as crianças e adolescentes.
247
João Paulo Baliscei (org.)

no que tange à homossexualidade. Numa leitura rápida, é possível que


nem seja percebido que ali existem dois personagens gays, sugerindo
um apagamento na representação das diversidades sexuais, talvez por
receio em relação às vendas95. Já uma publicação de 2006, um especial
dos Jovens Vingadores, retrata dois casos envolvendo Wiccano e Hulkling
enfrentando a homofobia e a aceitação de seus corpos.
A figura que abre este capítulo, por exemplo, traz Billy (Wiccano)
sentado sobre um banco de um parque. Aparentemente triste, ele encara
com o rosto marcado por hematomas sofridos por brigas contra o valen-
tão da escola. Uma mulher vestindo trajes vermelhos se aproxima dele
e o questiona sobre aquela situação. Tal mulher é a Feiticeira Escarlate,
mãe de Billy, que viria a descobrir isso algum tempo depois. A Feiticeira
Escarlate propõe para Billy que ele não mais fuja de seus problemas,
mas que os encare de cabeça erguida. A escola é um dos espaços onde
o personagem sofre de violências homofóbicas, e em muitos casos, ele
custa a responder a esses ataques. Vemos nisso uma das faces da homo-
fobia. São ataques simbólicos e verbais, que em um primeiro momento
não resultam necessariamente em agressões físicas, mas que provocam
graves perturbações mentais em quem as sofre. Concordamos com
Daniel Borrillo (2010, p. 34) que a:
A homofobia pode ser definida como a hostilidade
geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que,
supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais
com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do
sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles
que não se conformam com o papel predeterminado para
seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste
na promoção constante de uma forma de sexualidade
(hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia
organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa
postura, extrai consequências políticas.

Jeffery Dennis (2012) analisa as tiras de jornais (publicações que antecederam os


95 

quadrinhos) e sugere que o receio na perda de financiamento e lucros era um dos


impedimentos para tratar abertamente sobre as sexualidades para além da heterosse-
xualidade compulsória.
248
É de menina ou menino?

Nesta mesma publicação somos apresentados aos momentos ante-


riores de Teddy (Hulkling) se unir as Jovens Vingadores. Na página 11,
vemos Teddy no vestiário da escola com outros meninos. Teddy possui
a capacidade de alterar a forma de seu corpo. Naquele momento, seu
corpo é magro e de aparência frágil. Porém, numa tentativa de imitar
os corpos dos outros meninos ali presentes, num alusivo experimento de
ser aceito por aqueles, num piscar de olhos, Teddy altera seu corpo para
algo mais forte, mais robusto, mais semelhante ao dos outros meninos,
que aparentemente são todos esportistas. Nesse caso, as expressões
corporais se modificam para aquilo que é típico de um corpo mascu-
lino das histórias em quadrinhos. Conforme Oliveira (2001, p. 14), os
personagens das revistas de história em quadrinhos estão
Protegidos pela tinta e pelo papel, [...] materializam
representações que são constantemente retomadas, rea-
tualizadas e normatizadas sob a forma de um simples
exercício de leitura; do jogo lúdico entre palavra e imagem
que, aparentemente desvinculado do mundo real, retoma,
recria e fundamenta modelos e saberes. Modelos, ou
antes, representações ou falas que ecoam do discurso das
histórias em quadrinhos e saltam de suas páginas para
ordenar o nosso imaginário e constituir o real.

Dessa forma, a história em quadrinhos se converte em possibilida-


des de naturalização de valores, modelos e paradigmas que são decalcados
na memória coletiva sob a forma de representações, que são, muitas
vezes, recebidas como normas e verdades. Em diálogo com o que João
Paulo Baliscei e Susana Rangel Vieira da Cunha (2021) convencionaram
nomear por “projeto de masculinização dos meninos”, entendemos esse
fenômeno, que não é novo, como a junção de mecanismos, símbolos
e signos que visam transformar os meninos em homens. Referem-se:
ao conjunto de ações, pedagogias culturais e enuncia-
dos endereçados aos garotos, desde o nascimento, na
expectativa de que eles, ao longo da vida, assumam habi-
lidades, comportamentos, gostos, profissões, espaços
e a (hetero)sexualidade que a sociedade valoriza como
“apropriados” aos sujeitos masculinos (BALISCEI;
CUNHA, 2021, p. 368).

249
João Paulo Baliscei (org.)

Reforçamos, assim, o quanto a história em quadrinhos traz dilemas


cotidianos reais para o ficcional. E estes afetam diretamente a vida de
todos, sobretudo de meninos. Conforme Selma Regina Nunes Oliveira
(2001), os personagens de história em quadrinhos são como pequenos
Frankensteins, em outros termos, são recortados, moldados e colados
tendo por base reflexos do real. Para que alguém seja aceito pelos outros,
deve, por exemplo, esconder sua homossexualidade ou modificar seu
corpo, “assim, o processo de produção de um personagem de história
em quadrinhos é, na verdade, o processo de produção de uma represen-
tação, engendrado coletivamente na prática social (OLIVEIRA, 2001,
p. 178)”. Os dispositivos para as vigilâncias e punições dos corpos são
os mais diversos.
Conforme Michel Foucault (1999), nas escolas, nos esportes, nos
espaços de trabalho e em outros, os corpos são vigiados e aqueles que
se desviam das normas são punidos. É uma punição que vai para além
do corpo, “é a alma, à expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder
um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a
vontade, as disposições” (FOUCAULT, 1999, p. 18)”. Deste modo, a
microfísica do poder
É produzida permanentemente, em torno, na super-
fície, no interior do corpo pelo funcionamento de um
poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma
maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados
e corrigidos, [...] sobre os que são fixados a um aparelho
de produção e controlados durante toda a existência
(FOUCAULT, 1999, p. 28.)

É necessário, por meio das vigilâncias e das punições, que os corpos


sejam domados, fiquem dóceis e manipuláveis, permitindo mudanças,
modelagens diferenciadas de acordo com os contextos sociais, sendo
consequentemente transformados em pequenos e dóceis monstros.
Portanto, as histórias em quadrinhos enquanto “um veículo de expres-
são criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária que
lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma
história ou dramatizar uma ideia” (EISNER, 1989, p. 5), permitem
novos olhares para com o diferente. Esses veículos da cultura da mídia
250
É de menina ou menino?

possibilitam que os marginais da sociedade tenham seus problemas


cotidianos expostos para que outros possam ler e ver aquilo que ocorre,
pois, estes temas “a todo instante [são] reivindicados para o âmbito do
privado, do doméstico, do familiar” (PRIORI; PEREIRA, 2020, p. 6),
ficando invisíveis e perpassando a idealização de estar “tudo bem” com
estes indivíduos marginais da sociedade.

CONSIDERAÇÕES INCONCLUSIVAS

As editoras de histórias em quadrinhos mainstream até pouco


tempo abordavam de forma sutil os sujeitos marginais, sobretudo no
que tange às sexualidades não heteronormativas. Passos lentos foram
dados ao longo das décadas, até que personagens abertamente homos-
sexuais fossem os protagonistas em suas histórias - como é o caso de
Wiccano e Hulkling, desde sua primeira aparição modesta em 2005,
até a sexualização apresentada em 2020.
A indústria de revistas de histórias em quadrinhos de super-heróis
está a par das transformações sociais, refletindo isto em suas obras. Os
próprios Jovens Vingadores são exemplos dessa percepção. Em seu segundo
volume publicado em 2013, a equipe era quase que exclusivamente
formada por membros destoantes da heterossexualidade. Este mesmo
volume ganhou, em 2014, o prêmio de melhor quadrinho no GLAAD
Awards96, por sua inclusão e representação de grupos minoritários, sendo
entendido com um quadrinho queer. Porém, nem todas as sociedades
convergem neste ponto. Richard Miskolci (2007) chamou de “pânicos
morais”, o medo que determinada camada da sociedade possui frente
ao desconhecido, até mesmo pelo medo de algo tido como ameaçador

96 
Iniciativa surgida em 1995 que visava combater a midiatização pejorativa acerca do
HIV e da Aids, nos Estados Unidos. Também se propôs premiar iniciativas midiáticas
que retratassem, de forma coesa, positiva e representativa, as vivencias LGBTQIA+.
A publicação Young Avengers #2 (2013), ganhou o prêmio em 2014, por trazer uma
equipe majoritariamente LGBTQIA+. Em 2021, foi premiado o quadrinho Empyre
Aftermath: Avengers #1, que apresenta o desfecho para os super-heróis Wiccano e
Hulkling. Eles se casam, naquele que é tido por ser o primeiro casamento gay entre
super-heróis da Marvel.
251
João Paulo Baliscei (org.)

de toda uma ordem. As vivências gays fora do “armário”, as lutas por


direitos sexuais e sociais, além do casamento gay se tornaram
[...] uma possibilidade que evoca temores com relação à
sobrevivência da instituição em seu papel de mantenedor
de toda uma ordem social, hierarquia entre os sexos,
meio para a transmissão de propriedade e, principal-
mente, valores tradicionais. Assim, se a rejeição ao
casamento gay reside neste pânico da mudança social,
isto se dá porque nossa sociedade construiu historica-
mente a imagem de gays como ameaça ao status quo
(MISKOLCI, 2007, p. 104)

Este pânico moral ocasionado pelos sujeitos gays gera diferentes


enfrentamentos na sociedade. Um caso particular aconteceu na Bienal
do Livro na cidade do Rio de Janeiro, em 2019. Naquele contexto, o
então bispo e prefeito da cidade, Marcelo Crivella, mandou recolher
todos os exemplares da publicação dos Jovens Vingadores: A Cruzadas
das Crianças,” por considerar que o material atentava contra a moral e
os “bons costumes”, incentivando a homossexualidade por trazer um
beijo gay 97, como demonstramos na Figura 2.

Figura 2: A polêmica em torno do beijo gay


Fonte: HEINBERG, Allan; CHEUNG, Jim. Os Vingadores: especial- A Cruzada
das Crianças. Marvel, 2012. v. 9, p. 20.

Vale salientar que este foi o primeiro beijo entre Wiccano e Hulkling em mais de 7
97 

anos de existência e relacionamento, sendo apresentado em uma única página.


252
É de menina ou menino?

Stanley Cohen (2011) nos indica que estas situações e os pânicos


morais se desenvolvem de maneiras distintas nos grupos societários.
Atingem grupos “preenchidos por editores, bispos, políticos e outras
pessoas de direita; especialistas socialmente aceitos [que] pronunciam
seus diagnósticos e soluções; (COHEN, 2011, p. 11)”, naquele momento
a tática de acionada pela homofobia desse grupo foi a censura, o recolhi-
mento das unidades daquele livro em específico e de todos outros com
temáticas LGBTQIA+. A repercussão foi tremenda. O influenciador
digital Felipe Neto, em resposta, comprou todos os livros disponíveis e os
distribuiu gratuitamente envoltos em sacos pretos com os dizeres “Este
livro é impróprio – para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituo-
sas”. A polêmica98 gerou, em menos de duas horas, a venda de todos os
volumes da publicação A Cruzadas das Crianças disponíveis na Bienal.
Evidencia-se, com isso, a necessidade da continuidade e apro-
fundamento teórico nestas temáticas que ainda causam tantos medos,
repúdios, incertezas e que abalam as estruturas homofóbicas sociais e
historicamente construídas. Para tanto, caminha-se para mais análises
a respeito da diversidade nas histórias em quadrinhos, já que, como
demonstramos, esta indústria já anda em direção de maiores inclusões
sociais de grupos marginais.

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CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Rio


de Janeiro: Difel - Difusão Editorial, 2002. v. 1.

98 
Por meio das redes sociais, Jim Cheung ironizou a tentativa de censura por parte do
prefeito Marcelo Crivella, e para a divulgação de seus próximos livros, propôs convidar
o mandatário como garoto propaganda.
253
João Paulo Baliscei (org.)

COHEN, Stanley. Folk devils and moral panics: The creation of the Mods and Rockers.
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É de menina ou menino?

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percursos: Intersecções possíveis com a História Pública. 1. ed. Curitiba: Brazil Pub-
lishing, 2020. v.1

255
SOBRE O ORGANIZADOR

JOÃO PAULO BALISCEI é Doutor em Educação (2018) pelo


Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Maringá
com estudos na Facultad de Bellas Artes/ Universitat de Barcelona,
Espanha. Mestre em Educação (2014) pela Universidade Estadual de
Maringá; Especialista em Arte-Educação (2010) e Educação Especial
(2011) pelo Instituto de Estudos Avançados e Pós-Graduação; e Gra-
duado em Artes Visuais pelo Centro Universitário de Maringá (2009).
É professor no curso de Artes Visuais na Universidade Estadual de
Maringá; Coordenador do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e
Imagens - ARTEI; e artista visual com produções que versam sobre
gênero e infâncias. Desenvolve pesquisas sobre Educação, Arte/ Ensino
de Arte; Estudos Culturais; Estudos da Cultura Visual; Visualidades;
Gênero e Masculinidades. É autor dos livros: “PROVOQUE: Cultura
Visual, Masculinidades e ensino de Artes Visuais” (2020), “A vida de um
Chuveirando” (2021) e “Não se nasce Azul ou Rosa, torna-se: Cultura
Visual, Gênero e Infâncias” (2021).

256
164-166, 175-177, 179, 186-187, 191, 204, 206-
ÍNDICE REMISSIVO 207, 213, 217-219, 229, 231, 234-235, 239-
240, 242, 255
A escola 8, 11, 13, 27, 34, 44, 79-80, 82-83, 90,
94-97, 109, 118, 136, 153, 164-166, 168-169,
aluno 63, 80, 82-83, 85 173-176, 191, 204, 214-215, 217, 235, 247-248
arte 7, 9, 15, 17, 30, 46, 58, 63, 92, 102-114, 127, esporte 24, 102
129, 131-132, 135-137, 150, 152, 179, 192-193,
206, 219, 221, 231, 240, 253, 255 F
azul 9, 15, 18, 22, 25-26, 29, 32, 35, 37-38, família 9-10, 21, 26-27, 32, 34, 40, 64, 79,
40-41, 52, 76, 80, 174, 179, 184, 186, 190, 255 91-93, 96-97, 118-120, 142, 144-146, 148,
154, 171-172, 180, 200-202
B
feminilidade 12, 19, 34, 59, 64-65, 69, 78, 96,
bebê 20, 25, 28, 32, 37, 39-43, 57, 65, 70, 76, 155-156, 185-186, 190, 214
78, 162, 182
fobia 194-195
bissexual 90, 93
G
boneca 5-6, 11, 13, 16, 22, 56-57, 64-66, 101,
165, 172-174 gay 9, 90-94, 96-97, 187, 215, 245, 250-251, 253
brinquedo 8, 28, 52, 65, 174 gênero 2, 5-11, 13-25, 27-30, 32-35, 37, 41-44,
46-49, 51, 53-54, 64, 66, 68, 70-73, 75-77,
C 79-90, 92-94, 99, 101, 104-106, 109-112, 114,
capitalista 124, 146, 238 116-117, 119-120, 122, 124, 126-129, 131-134,
cisgênero 13, 18, 28-29, 39, 118, 135, 154-158, 136-140, 144-145, 147, 149-151, 153, 155-157,
160-161, 212 159-160, 163, 165-173, 175-199, 203-205, 207,
209-215, 218, 223, 227, 232, 235-237, 241,
corpo 17, 20, 23, 25, 28, 34-35, 37-39, 44, 243, 254-255
59, 61-63, 69, 73-74, 77, 80-82, 84-86, 89, 93,
96-97, 99, 115, 125, 130, 132-134, 136, 138- H
139, 141-142, 144, 148-150, 154, 159-160, 177, heroínas 19, 153
182-183, 187, 189, 204, 206, 208, 210, 216, 218, heróis 9, 15, 153-154, 198, 245
220, 223-224, 227, 229, 234-237, 240, 248-249
heterossexualidade 22-24, 28, 32, 34, 155, 164,
criança 5, 10, 16-18, 20-21, 24-33, 38-42, 183, 247, 250
56, 64-65, 75-80, 83, 90, 94, 153, 167,
186, 220, 225 homem 8-9, 20, 23, 27-28, 39-44, 50-52, 55,
58-61, 63-64, 68, 75-76, 90, 93, 95, 117, 119,
cultura 5-12, 14-19, 21, 24, 26-27, 29-30, 122, 124, 127, 129, 140, 145, 154, 159-160, 170-
34, 46-48, 53-55, 57, 64, 67-68, 73, 80, 82, 85, 171, 174, 179, 181-182, 184-185, 188, 193-194,
87, 98-99, 101, 106, 115, 117, 119, 124, 128- 197-199, 201-204, 211, 233, 239, 252
129, 145, 152-153, 155, 160-163, 165, 167, 169,
175-178, 182-183, 188, 190-193, 195, 199-200, homossexualidade 78, 95, 134, 211-212, 245-
204-205, 211, 219-222, 224, 228-229, 231-232, 247, 249, 251
237, 240-244, 246, 249, 252-253, 255 I
cultura visual 5-12, 14-18, 21, 24, 26-27, 29-30, identidade 34, 39, 44, 51, 64, 66, 68-69, 85, 93,
46-48, 53-55, 57, 64, 67-68, 101, 128, 152-153, 96, 105, 109, 128-129, 134, 136, 145, 155-157,
155, 160, 162-163, 178, 190-193, 204, 219-221, 159, 161, 163, 168, 171, 174, 191, 207, 212-213,
228-229, 240, 243, 252, 255 216, 218, 229, 233, 240
currículo 9, 44, 54, 70, 87, 111, 196-197 imagem 8, 21, 25-26, 39, 52, 56-57, 59, 64,
D 71-73, 78, 92, 120, 139, 149, 198, 203, 211-212,
228, 248, 251
discriminação 107, 119, 122, 135, 191, 209, 212
infância 23, 27, 29, 51, 87, 92-93, 152-155, 164,
docente 15, 81, 99, 103, 112, 176 194, 202, 204, 216-217, 241
E L
educação 2, 5-7, 9-13, 15-17, 30-31, 44, 46, 53, lésbica 78, 94-96
62, 65, 69-70, 78-79, 81-82, 84-89, 98-105,
111-115, 125, 127, 134, 137-138, 147, 150, 152,

257
M S
mãe 22, 27, 37-43, 59, 62, 64-65, 76, 83, 90-91, sexo 5, 10-11, 16, 18, 20-21, 24-28, 31-34,
93, 97-98, 118, 124, 139, 146, 148-149, 171-174, 36-44, 55, 57-66, 68, 70, 75, 78-79, 83, 127,
183, 237-239, 247 135, 139-140, 142, 146, 148, 154, 160, 170, 207,
masculinidade 6, 13, 19, 28, 34, 42-43, 45, 48, 210, 212, 214, 218, 232, 234-236, 238, 240, 247
59, 61, 66, 69-70, 90, 98, 117, 119, 179, 185, 188, sexualidade 5-6, 8, 11, 13, 16, 20, 24-25, 28,
190-191, 193-195, 198-201, 214, 229 32, 34, 44, 57-58, 64-68, 71, 73-77, 80-81, 84,
maternidade 6, 12, 59, 66-67, 101, 118, 138- 86-90, 94-99, 128, 130-131, 134, 138-140, 142,
142, 148-149, 186 144, 146-150, 153, 164, 166, 168-170, 175-181,
183-185, 187-191, 194, 206-207, 210-211, 218,
menstruação 5, 12, 101, 118, 127-130, 132-135 233-237, 239-241, 247-248
mulher 8, 20, 23, 41, 43, 52, 58-62, 65, 69, T
75-76, 90, 92-93, 95-97, 116-117, 119, 121,
124-125, 127-129, 131, 133-134, 136-137, 139- transexuais 88, 132, 162-163, 207, 212-217
147, 149-151, 159-160, 163, 170-174, 180-182, transgênero 14, 155, 160-162, 218
184-185, 191, 194, 197, 208, 211, 227-229, 233, V
236-237, 239, 247, 254
vilã 163
N
vilão 6, 13-14, 58, 178, 206-207, 209, 212,
natureza 5, 12, 34, 62-64, 101, 115-120, 122- 216-217, 225
125, 144-145, 237, 243
violência 24, 29, 50-51, 68, 73, 89, 97, 99, 119,
normatividade 106 128, 132, 139, 142-143, 147, 149, 155, 161, 201,
P 213-217, 232, 235
pai 22, 27, 38-43, 62, 64, 66, 72, 76, 91, 98, virilização 5, 11, 16, 56-57, 61, 64, 66-68
116, 183, 200-201, 243 visualidade 137, 220, 227-228
paternidade 56, 68, 165
patriarcado 12, 19, 30, 118-119, 122-
126, 137, 189
pedagogias 9, 15, 44, 51, 82, 86, 115, 136, 177,
186, 190, 196, 198, 214, 218, 232, 240, 248
personagem 13, 52, 107, 155-162, 198, 201-203,
206-212, 216-218, 225, 227, 239, 246-247, 249
política 23, 27-28, 77, 99, 103, 106, 125, 146-
147, 149-150, 176, 191, 232, 237, 240
pornografia 13, 232-233, 235-236, 239-240
preconceito 6, 14, 134, 136, 178, 206-207,
212, 216, 252
professor 7, 17, 22, 31, 70, 79, 84-85, 87, 89,
97, 102, 104, 111-112, 152, 169, 183, 206,
208, 235, 255
R
raça 6, 13-14, 20, 88-89, 128, 149, 175, 178-182,
184-185, 188-191, 224-227
representação 39, 69, 80, 104, 107, 136, 150,
154-155, 163, 167, 170-171, 173-174, 191-193,
198, 200, 207, 211, 218, 221, 223-225, 227-228,
233, 236-237, 239, 247, 249-250
rosa 8-9, 14-15, 18, 25-26, 29, 32-33, 35, 37-38,
40-41, 52, 76, 80, 86, 174, 179, 185-187, 190,
209, 226-227, 237, 255

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Este livro foi composto pela Editora Bagai.

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