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O MILAGRE DA VELA DE NATAL

Prússia, junho 1870

Abri os meus olhos pela manhã sem imaginar que aquele seria o melhor dia da minha
vida, e o último de um longo tempo.

Papai acordou, muito cedo, todos os seus cinco filhos dos quais eu, com 18 anos, era a
mais velha. Ele fazia isso todos os domingos para que não chegássemos atrasados na
igreja, coisa que jamais aconteceu, graças a ele. Ele era o pastor da igreja do nosso
vilarejo, e quem me ensinou ler, escrever e o mais importante a fé. Fé que eu teria que
colocar em prática nos meses que viriam.

Quando chegamos a igreja Noah estava sentado à minha espera. Crescemos justos e,
apesar de ele ser dois anos mais velho que eu, éramos amigos inseparáveis. Depois, sob
o olhar atento do meu pai que ministrava sobre a obediência pela milésima vez, ele
conseguiu dizer que precisava falar algo comigo. Então, marcamos de nos encontrar após
o almoço, como sempre, na colina.

Mal consegui comer o delicioso assado de mamãe tamanha era a minha ansiedade em
encontrar Noah. Na verdade, não era só isso que me deixava com o coração aos pulos,
mas sim a vontade de estar com ele.

—Pensei que você não viria. —disse ele com as mãos nos bolsos enquanto andava de
um lado para o outro.
—Vim o mais rápido que pude. —justifiquei ofegante após subir a colina correndo.

Sentamos na grama tendo diante de nós a vista de nossa pequena vila e da floresta ao
lado dela. Estava preocupada com ele, pois nunca o vira assim. Achei por bem esperar
ele estar preparado e depois de uns minutos em silêncio, ele começou:

—Partirei amanhã para França.


—O que você vai fazer lá? —perguntei com os olhos arregalados.
—Eu fui convocado para guerrear contra os franceses.
—Não pode ser verdade. —não consegui esconder as lágrimas que corriam livremente.
—Não chore. —pediu ele, secando, com seus dedos longos, a minha face. —Prometo
voltar em breve, mas antes de ir eu precisava ver você mais uma vez, para não esquecer
de onde eu vim e o porquê de eu voltar.

Seu olhar roubou as minhas palavras e deixou as minhas pernas como manteiga nos dias
de verão.

—Você sempre foi minha amiga, mas a muito tempo que não consigo ver você apenas
dessa forma. Meus sentimentos por você são profundos e sonho que um dia você possa
aceitar ser minha esposa.
—Su..sua esposa?
—Imagino que você me veja apenas como irmão, mas eu não poderia partir sem abrir o
meu coração.

Sem poder acreditar no que ouvia, revelei a ele que os meus sentimentos a muito tempo
eram os mesmos que os dele. Passamos o restante das horas fazendo planos para o dia
do nosso reencontro. Fizemos juras de amor até o entardecer, e depois choramos juntos
pela necessidade de separação.

As tropas de Bismark, nosso chanceler estavam sendo reunidas para lutar contra o
Império Francês e alguns garantiam que o seu real desejo era a unificação dos Reinos
Germânicos. Noah partiu, na manhã seguinte, junto com dois outros jovens de nosso
vilarejo deixando uma sensação de vazio em nossa pacata comunidade.

Seu pai, o sapateiro de nossa vila, ficou sozinho e inconsolável, passou a trabalhar cada
vez menos e os seus ossos tornaram-se tão aparentes quanto a sua tristeza. Contudo, ele
não era o único a sofrer, pois não demorou para que a escassez nos encontrasse, e eu
passei a ajudar ainda mais o meu pai na assistência aos necessitados.

O Sr. Mayer tinha a casa localizada no final da vila, na entra da floresta. Ele era um
homem bondoso e que gostava de ajudar os viajantes que passavam à noite pelo
caminho, iluminando-o. Ele colocava em sua janela, todas as noites, uma vela. “Para que
os viajantes possam ver o caminho”, dizia ele, e foi assim por anos.

Todavia, diante das privações que nos alcançou tentei convencê-lo a poupar a suas velas.
O inverno já estava as portas e, com isso, as noites passaram a ser mais longas, mas ele,
sem me dar ouvidos, disse:
—Mais do que nunca elas são necessárias, pois logo o meu filho vai voltar e precisará de
luz para encontrar o caminho.

No início de dezembro recebemos a notícia de que a Batalha de Sedan fora vencida. Nós
sabíamos que esta era a frente na qual os nossos jovens lutaram, mas não sabíamos
mais que isso. As únicas cartas que chegaram até nós foram no início de agosto, e desde
lá, só o silêncio.

Comecei a reunir as mulheres, todas as noites, para orarmos mais intensamente pela vida
deles, mas com o passar dos dias, pouco a pouco, os homens também começaram a
participar conosco. Exceto o Sr. Maier que insistia em permanecer todas as noites fiel a
sua janela.

Com a proximidade do mês de dezembro, estava diante de nós mais um problema:


Deveríamos cancelar a festa de Natal? Afinal, as crianças haviam esperado o ano inteiro
para isso. Fizeram os seus deveres e ajudaram nos serviços da casa contando que
seriam recompensados com a chegada da festa.

Mesmo entristecida pela falta de notícias dos nossos jovens, a comunidade decidiu que
deveríamos sim fazer algo especial para as crianças. Com a ajuda delas, e dos idosos,
começamos a enfeitar toda a vila que era composta de duas ruas. Usaríamos aquilo que
tínhamos para a decoração e a ceia seria servida no celeiro que fora transformado em
prefeitura.

No domingo que antecedeu o Natal, a chama da fé fora reanimada em mim após a


ministração sobre a importância do Natal e de como a luz, que era Jesus, iluminara o
mundo. Meu pai deu o exemplo da estrela de Belém que ajudou os três reis a encontrar o
caminho até a fonte da luz, que era o Messias.

Olhando para o emocionado Sr. Maier sentado no último banco da igreja, senti no coração
de fazer algo especial para ele. Consegui convencer a todos os moradores a colocarem
em suas janelas, na véspera de Natal, uma das suas preciosas e escassas velas como
um presente especial para aquele solitário homem, e assim fizemos.

O vilarejo parecia um farol no mar de escuridão que uma tempestade de neve trouxera, os
moradores foram generosos e resolveram iluminar não apenas uma janela de suas casas
naquela noite, e eu voltei emocionada para casa sem me importar com a neve alta que
me deixava mais lenta.
Estava na cama, sem conseguir dormir, pensando em onde estaria o meu amado Noah. O
relógio cuco começou a badalar à meia-noite, avisando que era Natal. De repente, ficou
mais alto e eu percebi que era o som dos sinos da igreja que tocavam insistentes.

O coração acompanhando nervoso as suas batidas estridentes e corri para fora de casa,
assim como todos os moradores da vila. Esse era o sinal de que algo acontecera e não
vendo nada de anormal, em meio ao alvoroço e aos flocos de neve que nos cegavam,
procuramos quem estava tocando os sinos.

Para a nossa surpresa o Sr. Maier estava pendurado, num sobe e desce, nas cordas dos
sinos fazendo-os badalar. Tentei pará-lo, mas sem sucesso. Agucei os ouvidos para
entender o que ele tentava me dizer em meio ao som ensurdecedor.

—O Senhor me acordou e me disse: toque o sino. —contou ele quase gritando.


—Deus? —perguntei desconfiada da sanidade dele.
—Sim, Ele mesmo.

Com lágrimas nos olhos de tristeza pela situação do pai de Noah, que não parecia nada
bem da cabeça, fui até papai para pedir que me ajudasse a tirá-lo dali, pois as pessoas
começavam a se revoltar contra ele, mas foi nesse momento que vi um vulto saindo da
floresta e em um arrepio percorreu a minha espinha.

Logo vi outro vulto… E mais outro…

—Eles voltaram! —alguém gritou.


—É o milagre que nós tanto pedimos. —declarou a mãe de um dos jovens soldados. —
Um milagre de Natal.

Sem me importar com o decoro, levantei meu vestido azul até os joelhos e com a visão
embaçada pela neve e lágrimas, corri em direção a floresta, aos braços do meu amor.

—Voltei para você. —sussurrou ele ao meu ouvido depois de me girar duas vezes no ar.
—Nunca mais me deixe! —ordenei colando minha boca na sua.

Saí do seu abraço ao notar que alguém estava ao nosso lado, mas antes que eu
percebesse, e sem se importar com as pessoas a nossa volta, Noah tomara o velho
senhor, agora muito mais magro que antes, nos braços e chorando, disse:
—Papa, ich bin wieder zu Hause! —com a voz trêmula, repetiu: —Pai, eu voltei para casa.
—soluçando ele, completou: —Sinto muito ter demorado tanto.
—Tudo bem filho, eu esperei você.

Depois eles nos contaram que estavam perdidos na floresta em meio à tempestade de
neve. Sentados em um abrigo improvisado e quase sem esperanças de sobreviver,
começaram a ver um pontinho de luz, muito fraco, parecendo quase uma miragem. Então,
aquele ponto começou a aumentar, e aumentou a tal ponto que o caminho ficou iluminado
para eles.

Ao ver a luz chegaram a pensar que tinham morrido ou que fosse uma alucinação e
continuaram, sentados entregues ao cansaço em meio ao frio e a neve, querendo apenas
dormir. Nesse momento, os sinos começaram a tocar sem parar e eles perceberam que
não estavam distantes de casa.

Reunindo suas últimas forças, seguiram o caminho da luz como fizera os três reis ao
seguirem a estrela no dia do nascimento do menino Jesus. Desde então, como
comemoração ao retorno seguro deles, graças ao bom Deus e as velas do Sr. Maier, a
comunidade decidiu seguir com a tradição de acender velas na véspera de Natal.

Bismarck alcançou o seu objetivo, e o seu triunfo aconteceu no dia 18 de janeiro de 1871,
quando Guilherme I da Prússia foi proclamado imperador da Alemanha em Versalhes,
conseguindo a unificação alemã que tanto almejava.

O nosso triunfo aconteceu três dias antes, pois em 15 de janeiro aquele que antes era
apenas um amigo passou a ser, além disso, o meu esposo.

Autora: Cinthia Wüstenhagen


Instagram: @cinthiawustenhagen
Livros: “Se eu apenas O tocar” e “Se eu apenas acreditar”

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