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O filho querido.

Sou o irmão mais velho da minha família. Éramos em quatro pessoas, minha mãe e
meus irmãos, Rafael e Gabriel. Eu e meus irmãos nunca chegamos a conhecer nosso
verdadeiro pai e hoje faz dez anos que nossa mãe nos deixou após uma doença fatal a atingir,
a tristeza. Eu tinha sete anos quando ela partiu, lembro de vê-la pela fresta da porta tossindo
e chorando, quando se dava conta de minha presença ela forçava um grande sorriso para
mim, era pouco, mas aquilo me alegrava, ela conseguia me enganar direitinho me fazendo
pensar que iria melhorar. Lembro-me que nunca tive tempo de ficar de luto por ela, rafael e
gabriel precisavam de mim, então o peso de colocar comida na mesa caiu sobre meus
ombros. Por um inverno inteiro sobrevivemos com comidas que eu colhia ou caçava no
bosque, mesmo que o frio me fizesse pensar que meus ossos se partiriam, meu coração se
aquecia ao lembrar que meus irmãos me receberiam com um sorriso caso eu chegasse com
uma lebre gorda ou uma cesta com algumas maçãs bem vermelhas. Apesar disso, nem todos
os dias tínhamos o nosso conceito de fartura, priorizavamos Gabriel, o caçula, para ele não
adoecer, mas perto do equinócio todos nós podíamos
Recordo-me que na minha primeira caçada na primavera quando eu passei pela porta
me senti tão fraco que temi não poder olhar nos olhos de meus irmãos novamente. Ao meio
no bosque eu ouço latidos, um fazendeiro que vivia ali próximo havia me encontrado, e
vendo meu estado logo seu coração derreteu e se dispôs a me ajudar. Lembro-me de suas
palavras.
— Pobre rapaz, o que aconteceu? Onde estão seus pais? Você parece não comer a dias.
— me disse enquanto tirava seu velho rifle dos ombros.
Quando ele mencionara meus pais, meus olhos se encheram de água e me lancei ao
seu peito, o agarrando eu o implorava ajuda. Suas mãos ásperas passaram a alisar meu
cabelo e o ouço dizer “Ó deus. está tudo bem, criança. Irá ficar tudo bem.” Foi uma mentira
dolorosa.
Eu mostrei ao velho fazendeiro o chalé que eu e meus irmãos vivíamos, ele se
prontificou a levar a todos nós para seu sítio e nos cuidar. Quando chegamos, a mulher do
fazendeiro nos esperava à porta, eu e meus irmãos estamos na parte de trás da velha carroça
e logo após cumprimentar seu marido, ela nos vê e pergunta “Céus, querido. quem são essas
pobres crianças?” e o benevolente fazendeiro responde “Querida, eu encontrei uma delas
sozinha no bosque. Elas não comem a dias, precisamos ajudá-las “. a senhora se aproximou
da carroça em minha direção e perguntou meu nome, e eu respondo “Me chamo Miguel
Arken, senhora.” Havia sido a primeira vez que alguém havia me olhado com tamanha pena,
“traga-os para dentro logo.” a senhora diz, e assim foi feito. A casa principal ficava no centro
do grande sítio, ela era em grande parte de madeira, apenas com uma grande chaminé feita
de pedras cinzas. Ao entrar, logo nos deparamos com uma escada que nos levava até o
segundo andar, e a direita uma porta que levava a cozinha e sala de estar. Gabriel segurava a
mão de Rafael e ele segurava a minha, digo a eles para se acalmarem, mas eles estavam
assustados demais para me dar ouvidos. A gentil senhora nos mandou sentar pois logo sairia
um guisado para podermos comer. Ao entardecer o guisado estava servido, meus irmãos não
paravam de bocejar então o fazendeiro e sua esposa se prontificaram em mostrar nosso
quarto e nossas camas, quando eles se deitaram não demoraram mais do que alguns
segundos para dormirem, havia sido nossa primeira grande refeição há meses, porém comigo
havia sido diferente, o senhor e a senhora dona da fazenda me levaram para a sala de estar
mais uma vez. Sentei na ponta da mesa, enquanto o fazendeiro sentou à minha esquerda e a
mulher à minha direita, naquele momento descobri que seus nomes eram Simon e Madeline
Singer, eu contei a eles tudo o que eu podia e se compadeceram conosco, nos disseram que
cuidariam de nós, desde que ajudassemos com algumas tarefas do campo, eu concordei sem
pensar duas vezes na época. Logo após terminarmos de conversarmos eu subi para o quarto e
me deitei, foi a melhor noite de sono em muito tempo.
Por três anos seguimos em uma rotina no campo. O senhor Simon me ensinava tudo
o que podia sobre caçar, ele também ensinava sobre o plantio para Rafael e a senhora
Madeline cuidava do Gabriel dentro da casa e passou os ensinamentos de como cuidar das
coisas simples da casa. O sentimento do sol em minha pele era recorrente na fazenda, era
libertador, me sentia livre, e apesar da memória da morte de minha mãe eu achava que
estava superando, éramos uma linda família. Tudo que é lindo chega ao fim. Um certo dia
um homem alerta o senhor Simon sobre uma guerrilha em uma cidade próxima dali, lembro
do olhar de preocupação nos olhos dele quando entrou na casa e nos contou sobre o que
estava acontecendo, ele nos disse que era apenas questão de tempo até chegar até nós. Cerca
de dois dias depois, já era possível ouvir os gritos no horizonte. Eu não via mais os raios de
sol, os dias ficaram cinzas. Por volta de quatro homens montados em cavalos passaram pelo
portão da fazenda carregando grandes espadas e cruzes em seus pescoços e entalhadas em
suas vestes, a senhora Madeline nos levou para o porão para tentar nos proteger, o senhor
Simon estava na porta da casa e logo saiu para parar os invasores, eu podia ver por uma
fresta nas madeiras e podia ouvi-los dizer.
— Ora ora, temos um fazendeiro aqui, rapazes. — eles riam e zombavam como
animais grunhindo.
— Por favor senhores, se retirem de minhas terras, não queremos conflitos, levem o
que precisarem, mas poupem eu e minha mulher. — Senhor Simon estava tentando ser
racional com eles.
— Acho que o senhor não entendeu direito o que viemos fazer aqui. — o que parecia
ser o líder deles desce do cavalo neste momento — nós vamos levar o que quisermos,
independente da sua graça ou não.
— Não há necessidade de usarmos a força, senhor, eu imploro.
— Onde está a sua esposa, velho?
A senhora Madeline aparece na porta.
— Olha ela aí. — diz um dos homens sentados nos cavalos.
O líder deles saca sua espada e grita “VAMOS, RAPAZES. PEGUEM TUDO O QUE
DEUS NOS PROVEM ”
— Madeline! Corra! — diz o senhor Simon com desespero em sua voz.
Naquele instante, o senhor Simon havia sido derrubado e a ponta de uma espada
cravada em suas costas várias e várias vezes, ele gritava de dor. O resto dos homens entraram
na casa atrás da senhora Madeline, eu também podia ouvir seus gritos, panelas e pratas
sendo jogadas e quebradas, as últimas palavras que eu ouvi da senhora que me acolheu como
mãe foram “Me solte, seu nojento”. Eu e meus irmãos estavamos horrorizados, todos nós
queríamos chorar, mas sabíamos que se fizéssemos barulho seria a nossa vez de
conhecermos o brilho das espadas dos vermes que destruíram nossa família. Podíamos ouvir
os passos pesados dos homens sobre nossas cabeças, o sentimento de que a qualquer
momento um deles poderia descobrir o alçapão embaixo do tapete e nos matar era
aterrorizante.
O sol havia desaparecido e a noite tomado conta, eu me lembro muito bem de passar
a noite inteira olhando para o alçapão, na minha cabeça eu desejava que tudo aquilo fosse
apenas um pesadelo terrível, que eu acordaria no dia seguinte com pássaros cantando na
janela do meu quarto, onde eu desceria as escadas e encontraria um prato fundo com
legumes e carne para comer junto com meus familiares e em logo seguida sair para caçar
com o homem que salvou minha vida para pegar algumas lebres junto aos cachorros.
Ao amanhecer ouvimos os passos passando pela porta principal, havíamos
sobrevivido e eles foram embora, mas esperei por horas até poder reunir coragem de subir as
escadas e abrir o alçapão. Ao subir, vejo a senhora Madeline no chão da cozinha, eu não
poderia ver aquilo, aquela cena me atormenta até hoje. A casa estava completamente
revirada, todos os móveis, armários e tudo que podia representar qualquer tipo de valor. Eu
reuni forças e me dirigi até a entrada da casa, e lá vejo o homem que tanto havia me ensinado
largado no chão da mesma forma que se trata um animal morto na estrada. Eu me pus a
sentar na varanda, minhas mão foram para a cabeça, era como tentar respirar a fumaça e
meus olhos queriam saltar para fora. Eu precisei ser forte mais uma vez, porque teria que
enterrar mais pessoas que eu amava. Levantei e subi até o cômodo onde ficavam os lençóis
de cama e desci para cobrir os corpos deles, primeiro cobri o corpo do senhor Simon e depois
tive que ver mais uma vez o estado do corpo da senhora Madeline, mantive meus olhos
fechados o máximo que pude mas mesmo assim era inevitável não olha-lá. Voltei ao porão e
avisei aos meninos que iria cavar duas covas e pedi a ajuda de Rafael para carregá-los até lá,
ele aceitou e nenhum deles disse uma sequer palavra. Passei a tarde cavando, despejei toda a
minha frustração a cada vez que eu empurrava com força a pá contra a terra, o sol estava
quase se pondo quando eu havia terminado, e como dito, Rafael me ajudou a levar os corpos,
gabriel veio junto para poder se despedir. Logo após o sol se pôr a chuva caiu sobre nossas
cabeças, eu não liguei, continuei a despejar a terra sobre seus corpos, pelo menos, as gotas da
chuva disfarçavam as lágrimas em meu rosto, eu não queria que meus irmãos me vissem
chorando, um de nós precisava ser o porto seguro dos outros e esse era o meu papel.
Quando terminei de enterrá-los fui até meus irmãos e os disse que passaríamos nossa
última noite no sítio e que iríamos retornar para o nosso antigo lar. Mesmo exausto, eu não
conseguia dormir, a imagem deles mortos preenchia meus pensamentos. Olho ao meu redor
e sinto falta de Rafael no quarto e ao ver através da janela eu o encontro, ajoelhado ao lado
dos túmulos com as mãos no rosto. Ouço um barulho ao meu lado, era Gabriel se levantando
e vindo até, com um semblante triste ele me pergunta“por que, irmão? Por que isso
aconteceu conosco novamente? O que nós fizemos para merecer isso, irmão?” e como eu
poderia explicar para uma criança de seis anos sobre a maldade imparável e derradeira desse
mundo que nem mesmo eu entendia na época. Faço tudo o que eu poderia fazer naquele
momento, abracei meu irmão com toda a força que eu tinha e o disse “eu não sei, maninho.
Eu gostaria de ter uma explicação mas não tenho”. Sinto suas lágrimas penetrando minha
roupa e um soluçar baixinho, como se estivesse tentando se controlar. Depois de acalmar
Gabriel, eu me levanto e vou em busca de Rafael, ao sair pela porta o vejo na mesma posição
de antes, caminho em sua direção e pelo barulho dos meus passos tocando a terra e as pedras
no chão Rafael toma consciência da minha presença, ele dirige sua palavra a mim sem se
mexer.
— Irmão, o que aconteceu com a senhora Madeline? — Suas palavras causaram um
nó em minha garganta. A voz de Rafael estava sem vida, mas era notável que ele chorava por
horas a fio.
— Irmão — eu tento dizê-lo, mas ele interrompe minha fala.
— Não! Eu ouvi os mesmo gritos que você, duraram por horas. E eu não pude nem
olhá-la nos olhos para me despedir. — Neste momento ele se levanta com violência e se vira
para mim. Seu rosto era coberto de dor e fúria.
“Rafael!” Eu digo de forma autoritária como se tentasse iniciar uma disputa de poder
contra ele, mas sua resposta foi dar um passo firme em minha direção. Me dou conta do que
estava acontecendo, então respiro fundo tentando manter minha calma, e falo.
— Irmão — nesse instante meus olhos se enchem de água mais uma vez. — Eu te
imploro, por favor não me faça dizer o que vi.
Neste momento, Rafael investe em minha direção e me abraça, o sinto escorregando
pelo meu tronco como se não tivesse força nos joelhos para mantê-lo de pé, então eu me
ajoelho junto a ele e ponho minha mão sobre sua nuca. Rafael volta a chorar e me diz.
— Eu te juro, irmão, sobre o túmulo dos pais que nos acolheram, eu não permitirei
que mais ninguém desta família seja enterrado. Essa será minha promessa.
Eu passo a mão sobre seus cabelos e digo.
— Está bem irmãozinho. Você sempre foi o mais corajoso de nós mesmo.
Vejo um singelo sorriso surgir em seu rosto, e com isso, o meu decide deixar de se
esconder também. Eu o ajudo a levantar e voltamos para a casa nos dirigindo para nosso
quarto. Virando meu rosto vejo que alguém está na porta, era Gabriel, ele segurava um dos
lampiões velhos de latão que ficavam no porão da casa, Rafael nota a presença de nosso
irmão caçula em seguida, faço com a mão um sinal para que ele se aproxime de nós, Gabriel
corre em nossa direção e se lança ao chão para se juntar ao nosso abraço. Após alguns
segundos com um predominante silêncio e poucos gemidos de angústia, eu digo.
— Tudo ficará bem, rapazes. — uma das mentiras mais difíceis que tive de dizer, mas
seguida de uma verdade absoluta — Eu os amo, até o fim os amarei e serei o mais forte para
que ninguém os machuque. Essa é minha promessa.
Gabriel então diz:
— maninhos, nós seremos felizes um dia?
Pude sentir meu coração se partir em mil pedaços como vidro jogado ao chão. A
inocência de Gabriel ao perguntar demonstrava sua ingenuidade, mas além disso, mostrava
uma criança que buscava encontrar felicidade no mundo. Com o amor que me restava no
coração, eu o respondi.
— Claro que seremos, mano — percebo que os lábios de Rafael se apertam, como se
soubesse que era uma mentira calorosa, mas continuo. — Eu farei outra promessa, quando
chegarmos a nossa antiga casa, irei buscar os ingredientes para podermos fazer os pães doces
que você gosta, Gabriel.
Percebo a infelicidade no olhar de Rafael mais uma vez, então coloco minha mão
sobre seu ombro esquerdo e digo.
— Quando eu comprar o trigo para os pães, darei uma olhada nas batatas também, sei
que gosta delas bem cozidas, irmãozinho. — Seu sorriso retorna a aparecer e sinto que minha
tarefa de tranquilizá-los com minhas palavras, mesmo que um pouco, foi feita com sucesso.
então termino. — Nós precisamos descansar, meninos. Amanhã cedo eu sairei para caçar e
retornarei com algumas carnes e peles que poderemos trocar por moedas quando chegarmos
a cidade, se dermos sorte, o cavalo do senhor Simon pode ter corrido para o bosque mais a
oeste, se eu encontrá-lo, será apenas um dia de viagem. Agora vamos para nossas camas.
E assim foi feito, poucos instantes antes dos primeiros raios de sol mancharem a terra
com o amarelo que já havia chego ao bosque. No meio do caos uma das cercas de madeira se
rompera e alguns animais da fazenda conseguiram escapar, um deles, Sansão, o alazão puro
sangue de Simon, ele era usado apenas quando o senhor Simon precisava percorrer grandes
distâncias, como na primeira vez que nos encontramos. Sansão já era familiarizado com a
minha presença, então deixou-me aproximar sem grandes problemas, utilizando uma corda
que eu carregava em minha mochila de couro, eu lacei seu pescoço e o trouxe comigo até a
casa. Quando chego o sol se encontrava acima de minha cabeça e vejo fumaça saindo pelas
chaminés, meus irmãos haviam preparado um almoço simples com o que não havia sido
roubado, pisoteado ou amassado. Tomamos um delicioso caldo de sopa de legumes, a
quantidade que eles fizeram foi o suficiente para que cada um de nós pudesse repetir
(incompleto)

A menina com lábios de rubi.


Eu acordava todos os dias antes do sol raiar, comia alguma fruta e saia de casa.
Morávamos sozinhos no alto de um morro e costumávamos pegar uma longa trilha de
cascalho que dava acesso à cidade. O clima frio e úmido é uma grande característica da nossa
cidade, o lugar parecia sempre estar morto, assim como as pessoas que moram lá.
Eu ganhei um emprego algumas semanas após voltar para a cidade em uma catedral,
onde havia muito vandalismo nas paredes da igreja e roubo de dízimos nas noites. O padre
deu a ordem para contratarem alguém que pusesse os malfeitores em seus devidos lugares, e
é claro que eu fui o grande felizardo de ter esta oportunidade, mas meu trabalho não poderia
ser do conhecimento do povo, pois as fiéis ovelhas enlouqueceriam em saber que o nome de
seu benevolente deus estava sendo usado com violência, Sem dúvidas seria um escândalo na
comunidade.
Mantive o emprego por alguns anos, apesar do grande contato com as pessoas de fé,
era notável que eu não era bem-vindo, viradas de olhos e um andar mais apressado quando
passam por mim eram comuns. Por muito tempo foi assim, mas o que importava era que eu
sempre recebia meu dinheiro no primeiro sábado do mês, sem ele, eu e meus irmãos
passariamos fome e frio novamente.
Em certo dia algo havia mudado, em uma das minhas idas à capela para ter meu
pagamento, eu vi alguém novo. Como de costume a velha senhora Fridge, a freira que
comandava a igreja ao lado do padre Andrew e a responsável por cuidar convento, estava me
esperando no altar para entregar a minhas moedas de prata em um saquinho de couro, ela
fazia questão de contar moeda por moeda para ter certeza que eu não estava levando nada
além do que eles estipularam como necessário. Enquanto ela fazia sua contagem em cima da
mesa do altar, uma pessoa nova apareceu, ela veio a passos curtos e mal podia se ouvir seus
pés tocarem o chão, apesar de utilizar o habito de freira que cobrem quase todo seu corpo,
pude ver seu rosto, ela era tão pálida como a lua mas seus cabelos eram negros como a
propria noite, lembrava um pouco minha mãe, mas seus lábios eram avermelhados como as
maças que eu colhia no bosque e seus olhos se assemelhavam as rubis entalhadas na cruz
divina que era extosta na páscoa. A menina vai até o encontro da senhora Fridge e entoa
algumas palavras em seu ouvido, Fridge franze a testa e suas tenebrosas rugas parecem
maiores do que já são, ao final ela balança a cabeça em sinal de concordância com o que
havia sido dito, a garota se despede em reverência para demonstrar seu respeito.
Enquanto se virava para se retirar, os olhar da senhorita se juntam aos meus, ela
pareceu se espantar , como se não tivesse notado minha presença no recinto, e tive a
impressão de que ela estava preocupada. A garota se retira e então a senhora Fridge me
avisa com sua voz esganiçada e histérica.
— Moleque, você deve realizar mais um trabalho. Me foi informado que próximo ao
nosso convento um sem teto perambula sozinho e está assustando minhas irmãs. Tire-o de lá
e receberá seu pagamento como o prometido.
Fechando a bolsa de moedas, ela me dá as costas sem qualquer chance de eu poder
protestar. Me retiro da capela e vou em direção ao norte para o convento, ao passar pela
porta tenho uma surpresa, a garota que a pouco eu havia visto conversando com a velha
freira.
- Com licença, você é o rapaz de quem eu ouvi falar não é? O garoto que ajuda a nossa
comunidade.
— Sou sim, você e sua igreja me contrataram para fazer o trabalho sujo de vocês. E
você, garota, quem é?
— Meu nome é Layla Disty, prazer. Eu frequento a igreja regularmente, estudo por
aqui. — A garota fez uma pausa, como se estivesse pensando no que dizer, enquanto me
analisava de cima a baixo. — Não tenho intenção de assustá-lo, mas estava me sentindo na
obrigação de falar com você sobre uma interação que teve recentemente. Você se lembra de
um homem que a Senhora Fridge te deu ordens para expulsar do convento?
— Me assustar? Precisaria de muito mais para me assustar, menina. E sobre o tal
homem, eu não preciso saber nada além de que ele está importunando as pobres ovelhinhas
da igreja.
— Está errado. Deveria saber mais sobre ele, porém eu não serei a pessoa que irá te
contar. Só posso te avisar que não é um bom homem, é perigoso, e garotos como você não
deveriam estar perto dele, mesmo que não se assuste facilmente. Preciso que tome cuidado.

— Garotos como eu? É claro, os nobres fiéis que se preocupam com todos à sua
volta. Sinceramente senhorita, não tenho motivos para dar ouvidos a alguém que nem sequer
se preocupa em saber meu nome. — Minha respiração começara a ficar ofegante de raiva,
então volto a caminhar para meu destino, mas para o meu infortúnio, vejo a garota ao meu
encalço.
— Seu nome pouco importará perto do risco que correrá se eu não lhe avisar.
Gostaria que você desse ouvidos à minha preocupação, porém, se fará você confiar mais em
mim, eu lhe pergunto. Como se chama, garoto teimoso?
— O homem velho e sua preocupação não me importam de nada. — digo apertando
ainda mais o passo — e meu nome é Miguel Arkhen, senhorita ovelhinha.
— Não aprecio o modo a qual me trata, Miguel. — Ela me agarra pelo pulso e força a
minha parada, pois eu a estava deixando para trás. — Tento te avisar que algumas pessoas
por aqui não são flor que se cheire, e não acho que você mereça lidar com aquele senhor,
embora esteja começando a mudar de ideia.
— Solte-me. — digo a ela me aproximando de seu rosto no intuito de intimidá-la,
porém ela não recua.
— Não me assustas, Miguel. Nem me enganas com seu jeito e palavras agressivas,
acho que você precisa de ajuda tanto quanto qualquer um, e posso me importar com você. Se
não queres minha ajuda, não terá, mas não deixe de se cuidar em relação ao homem.
— Sinto muito, mas as pessoas que se preocupam comigo tem um final trágico. —
balanço meu braço com força e enfim ela me solta — Mas se é o que deseja, me acompanhe,
veremos se este homem é tão perigoso quanto tu diz ser, senhorita ovelhinha.
— É uma maneira muito amarga de se pensar, garoto. — Ela diz, e consigo ver algo
quase como pena em suas feições, isso me dá um nó na garganta, o que ela quer ganhar em
troca me ajudando? Por quê parece se importar comigo?— Mesmo assim, não deveria ter que
me arriscar para provar a minha palavra a você. É tão teimoso que apenas vendo com seus
próprios olhos e chegando perto do perigo que acredita que ele existe?
— Guarde sua pena para si, menina benevolente, eu não preciso dela. E quem achas
que és para supor um perigo tão grande. Aposto que foi criada dentro daquele convento com,
pão, carnes, camas quentes e todas as regalias que se possa ter. Você sabe o que realmente é
perigoso? Por que para mim você não passa de uma freirinha que não tem ideia do mundo
em que vive e que está tentando conseguir alguma coisa de mim, eu apenas só não descobri o
que é.
— Deixe de ser imbecil! Não importa o que achas de mim, não há razão para me
tratar dessa maneira. Guarde sua arrogância para si, estou aqui apenas porque não quero te
ver sofrer, mas estou começando a desejar que se machuque muito. Já estou farta! Se quer
ser assim, fique com seu orgulho. — ela diz, enquanto me dá as costas e volta em direção a
capela. O que mais me confunde é que ela não parecia somente irritada. Pude ver traços de
tristeza em seu rosto, quase como se estivesse decepcionada.
— Espere! — Grito para ela e logo em seguida abaixo a cabeça me dando conta do que
eu fiz. Corro em sua direção para poder alcançá-la e seguro em seu braço, mas revoltada logo
se solta. — Me perdoe.
Após respirar fundo, ela me olha nos olhos e coloca sua mão direita em meu rosto e
diz:
— Eu não o culpo, não há necessidade de pedir perdão. Falo a verdade quando digo
que me importo com você, e acho que você está machucado. Não fisicamente, mas vejo que
sua alma sangra. Peço apenas que acredite em mim, Miguel.
Eu ponho minha mão sobre a dela e pergunto:
— Por que? Por que você se importa? O que quer de mim?
— Hoje não foi a primeira vez que te vi, e sei que nossa comunidade não te trata com
todo o amor, então entendo sua raiva. Mas não pense que não merece cuidado, ou que não há
uma pessoa no mundo que se importe, pois eu verdadeiramente me importo.
Ficamos em silêncio por segundos que pareciam horas, em que eu olhava seu rosto e
decorava cada marca, cada cicatriz, cada pintinha espalhada em suas bochechas. Ao mesmo
tempo, seus olhos cheios de cores olhavam tanto nos meus que pensei que ela enxergava
minha alma.
— Miguel, que tal eu te acompanhar até o convento e você me contar um pouco da
sua história? Aceitaria isso?
Eu concordei, e partimos. No caminho, apesar do combinado, ela quem começou me
contando sua história, acho que decidiu falar antes para que eu me sentisse confortável.
Contou sobre o seu passado, ela havia vindo além das serras que rodeiam a cidade, perto dos
campos verdes, desde pequena ela amava os livros que sua mãe mantinha em uma estante
alta na sala de visitas. Até onde entendi, ela cuidava de si desde pequena, pois seus pais
desempenhavam papéis relevantes na igreja de sua cidade. Contou-me que por volta dos
doze anos passou a questionar mais seus pais e muitas vezes não obtinham as respostas que
desejava, então eles a enviaram ao convento para ser cuidada pelas irmãs. Senti que ela havia
me revelado apenas parte da verdade, mas além disso ela me contara sobre coisas bobas de
seus dias em minhas terras, como na vez em que foi até os campos do oeste e ao perseguir
uma borboleta alaranjada acabou tropeçando e se sujando com a grama esmeralda. Eu não
havia tirado meus olhos nem por um instante de seus lábios vermelhos enquanto contava
suas histórias, notei que ela se envergonhava quando voltava sua atenção para mim e
percebia meu olhar de admiração, fazendo suas bochechas rosarem.
— Eu falei demais, não é?! — Ela me diz com um leve soar de vergonha em sua voz, e
mesmo que fosse verdade, eu ainda poderia ouvir sua voz calma e entusiasmada por horas —
Fale um pouco de si, Miguel. Tudo o que puder me contar.
Eu não sabia o que dize-la. Eu não queria contar sobre minha mãe ou a família
Singer, era trágico demais. Ao retomar essas lembranças, minhas feições acabaram mudando
e Layla tomou consciência do que ocorrera em meus pensamentos.
— Você presenciou muita dor, certo? — ela parou bruscamente nossa caminhada —
Não precisa me contar se não quiser, Miguel. Me fale sobre os felizes, o que põe um sorriso
nesse seu rosto?
Ela me pegou de forma desprevenida e a respondi um pouco sem jeito.
— Os meus irmãos, eles são o mundo para mim.
Suas sobrancelhas levantaram e seus olhos pareciam ter se alegrado ainda mais.
— Isso é incrível! Me conte sobre eles.
— Eu sou o mais velho.
Ela me interrompe e diz em tom de zombaria.
— Pelo seu jeito ranzinza eu já imaginava. — Apesar de me ofender um pouco, deixei
um sorriso no canto da minha boca escapar. — Quantos irmãos você tem?
Eu a respondi.
— Somos três. Eu, Rafael e Gabriel. Rafael é o irmão do meio, ele é o rapaz mais
astuto que já conheci. Gabriel é o caçula, ele tem um coração de ouro e trata todas as coisas
com um carinho que não consigo compreender.
— Vocês parecem completos opostos uns aos outros.
De repente notamos que havíamos chegado no nosso objetivo, o convento. Eu teria
que deixar minha nova amiga e cumprir minha missão.
— Layla, eu devo ir atrás do homem que vim buscar, entre e fique com suas irmãs, eu
não irei demorar.
Digo a ela, mas pela forma que seu rosto tomou parece que de alguma forma eu a
ofendi.
— Achei que eu tivesse vindo até aqui para conhecer o que realmente é o perigo não
é? Até porque sou apenas uma freirinha criada a regalias, certo, Miguel?
Suas palavras foram como farpas.
— Eu já pedi perdão pelo que foi dito antes e minha visão mudou agora, acredito na
sua palavra e se ele é perigoso pode acabar ferindo você. — Olho nos seus olhos por um
segundo em silêncio e assumo. — Eu não me perdoaria se isso acontecesse. Por favor, entre
Layla.
Seu semblante havia mudado agora, ela inclinou levemente sua cabeça para a
esquerda, uma das mechas de sua franja havia se desprendido e alguns fios cobriram um de
seus olhos, ela os fecha, e mostra seu lindo sorriso para mim. Meu coração se aqueceu de
uma forma que a muito tempo não ocorria. Layla era uma pessoa incrível.
— Miguel — ela me chama e vem em minha direção beijando a minha bochecha com
seus lábios que fizeram os pelos da minha nuca se arrepiarem e eu ficar pasmo e sem reação.
— não se machuque, okay? Quero conversar mais com você, gostei de sua companhia.
Foi a primeira vez que alguém me disse algo do gênero.

O velho.
Passei a procurar meu alvo, eu caminhava com pressa pelas trilhas de cascalho que
contornavam o convento, aproveitei para admirá-lo. Eu não tinha o costume de vagar por
aquele lugar, mesmo que eu tivesse o conhecimento de como era, tudo estava sendo
novidade. O convento era maior do que eu imaginava, ele ficava no alto, permitindo ver
praticamente a cidade inteira, o convento foi construído com paralelepipedos de pedra que
davam a tonalidade cinza a construção e o contraste com as telhas amarronzadas que
cobriam o topo das torres e o edifício principal. Continuei minha caminhada por cerca de
quinze minutos até uma chuva fraca descer das nuvens e gelar minha pele. Fui obrigado a
cobrir minha nuca com a gola do casaco de couro que eu carregava e retornar em busca de
abrigo. No caminho de volta me deparo com uma trilha que não havia visto na primeira vez
que passei pelo local. Ela adentrava dentro de um pequeno matagal denso. De uma forma
anormal, meus instintos me induziram a investigar a trilha, parecia que eu estava sendo
magicamente encantado para a trilha.
O caminho era feito de folhas e gravetos secos. O caminho era irregular e eu mal
podia ver o céu por conta das copas das árvores que me cobriam a cabeça, meu problema
com a chuva acabou. Eu podia ouvir o som das gotas de chuva acertarem as folhas, as árvores
eram distintas e irregulares. A mata era densa, quase como paredes de um corredor, eu não
podia ver nada muito além de quatro metros de onde eu estava. No caminho, me deparei
com um pequeno riacho com pedras grandes na margem, ele estava completamente repleto
de peixes de todos os tipos, até mesmo alguns que eu tinha certeza que não eram de nossa
região. Cada vez que adentro a trilha, estranho tudo à minha volta, a fauna e flora estavam
desreguladas, algumas árvores pareciam estar em plena primavera com folhas nascendo e o
contraste com outras como se estivessem em pleno outono quase que totalmente sem folhas.
Mais ao longe eu pude ver um grupo de cervos andando ao lado de um urso como se não se
importassem, aquilo estava fora do normal.
O cheiro fresco do orvalho foi trocado pelo amargo de fumaça, a trilha se abriu em
uma grande clareira, onde não se via mais o sinal da chuva ou qualquer nuvem escura e
também revela uma casa de tábuas de madeira de uma andar, janelas quadradas e uma
chaminé feita por blocos de pedra que exalava a fumaça que invadia meu pulmão. No lado
esquerdo estava uma pequena cascata que se transformava em um lago, provavelmente o
riacho que eu encontrei era um córrego deste lago. Havia tambem um grande carvalho negro
de galhos espaçados que ficava logo atras da casa, quase como se fizesse parte dela.
É chamada a minha atenção por uma voz que parecia vir por todos os cantos da
floresta.
— Você foi enviado para me buscar, certo?
Eu olhava para todos os cantos procurando o emissor daquela voz.
— Me ordenaram buscar um sem teto que está irritando as irmãs do convento —
tentei parecer o mais confiante possível, mas essa tarefa era difícil quando não se sabe com
quem ou onde está a pessoa com quem se fala.
— Temo que eu seja quem procuras, mas como pode ver, não sou um sem teto. —
Naquele instante o localizei, ele estava sentado nas escadas que levavam à porta da frente.
Seu rosto não estava focado em mim, ele parecia concentrado em nas folhas de um arbusto
ao lado dele. — O que pretende fazer agora?
Eu estava confuso. Layla me disse que ele era perigoso, mas não parecia representar o
menor desafio e não demonstrava resistência.
— Estou pedindo para que você se afaste do convento, você está intimidando as
moradoras do local. — Digo a ele enquanto tento prever todos os possíveis cenários.
— Assustando, né? — seu rosto passou a encarar a grama e seus pés subiram um
degrau trazendo seus joelhos para perto do peito, e por consequência, se curvando. — Minha
presença as assusta… Isso é mal.
Ele parecia ainda mais confuso e perdido e eu também. Queria sair logo dali.
— Bom… apenas evite se aproximar demais das freiras e ficará tudo bem. Eu já vou
embora e você poderá — tive uma confusão no meu cérebro naquela hora. — Você poderá
voltar a fazer seja lá o que estava fazendo antes de eu chegar aqui. Adeus.
— O que dirá a senhora Fridge se eu deixá-lo ir, Miguel? — Fui surpreendido. Como
ele poderia saber o nome da senhora Fridge e o meu? Viro para trás e me assusto novamente,
o velho estava a poucos passos de mim agora. — Eu assusto você, Miguel?
— Você precisará de muito mais do que isso para me assustar, velho. — digo a ele com
um ar confiante enquanto dou um passo em sua direção. — E como sabe o nome da senhora
Fridge e o meu?
Ele me deu as costas e caminha poucos passos para longe de mim em direção ao lago,
ignorando meu questionamento.
— Me responda, Miguel. O que você achou do meu jardim? — ele me diz enquanto
aparenta contemplar suas terras.
— Não é isso que eu quero saber. — Digo enquanto forço meus passos em sua direção
e tento segurá-lo pelo ombro, mas assim que tentei tocá-lo meu quadril involuntariamente
fez com que eu sentasse na grama aos pés do velho.
— Agradeço por sentar. Você quem não respondeu uma de minhas perguntas
primeiro, Miguel. Sabe, quando as pessoas são tratadas da mesma forma com que tratam os
outros ao seu redor, elas tendem a se irritar, você já foi capaz de notar isso? — ele me disse
enquanto olhava para os peixes dentro do lago.
— Eu não falarei nada a ela, apenas que não terão mais problemas com você. —
respondo a ele imaginando que era isso que ele queria.
— Isso é… interessante. — ele diz enquanto alisa os pelos em seu queixo ainda com
seus olhos fitando os peixes. — Mas caso torne a ter problemas comigo, você seria visto como
um mentiroso, certo?
Eu me cansara daquele joguinho sem sentido que ele estava fazendo comigo.
— Já estou farto de você, velho. — Digo enquanto me levanto da grama a qual fui
jogado. — Espero que não nos encontremos novamente, para o bem de ambos.
— Fridge nasceu e foi criada nessa cidade, desde pequena tinha o desejo de se tornar
uma madre superiora. Miguel arkhen é o rapaz que foi contratado para tomar conta de
alguns assuntos que podem acabar em violência para a igreja. — Ele me disse enquanto eu
me retirava.
Eu havia retornado a trilha, mas ao fundo pude ouvir a voz do velho mais uma vez.
— De minhas saudações a seus irmãos, Miguel!
Como era possível que ele soubesse disso também? Eu deveria retornar e perguntá-lo
como pode saber sobre minha família. Não! De nada adiantará, ele apenas fará seu jogo pífio.
Retorno pelo mesmo caminho de que vim, chegando ao local por onde entrei tive
uma surpresa, o sol já havia se posto. Como era possível? Quando eu saí de casa antes que o
sol manchasse a terra com sua luz dourada e eu não deveria ter ficado mais de trinta minutos
conversando com o velho. As confusões não param. Corri em direção a capela para poder
receber meu pagamento, dessa vez solitário, sem a companhia de Layla ao meu lado, me
perguto se verei ela novamente. Chego à capela e peço uma audiência com a madre
superiora, apesar da demora, fui atendido por ela.
— Quem você pensa que é para me fazer esperar por tanto tempo, moleque? — Fridge
me diz levantando sua sobrancelha da maneira mais arrogante possível. — Eu lhe dei uma
tarefa simples, não existem desculpas para sua demora.
Pouco me importavam suas palavras, eu apenas precisava de meu pagamento.
— Está bem, isso não se repetirá. Por favor, meu pagamento. — digo a ela estendo
minha mão para que ela pudesse jogar do alto do altar em minha direção, mas ela não estava
nem um pouco contente.
— Para que você aprenda a não demorar, irei reduzir em um terço seu pagamento.
De novo seria um mês difícil. Eu já sabia que não teria chance de protestar. Ela
começou a contagem novamente e retirou algumas das moedas de bronze que eu receberia e
assim que terminou ela jogou o saquinho com força em minha direção, fazendo ele acertar
meu peito e se abrindo, jogando as moedas caírem pelo chão.
— Moleque desastrado, recolha tudo e de um fora da minha frente. — Fridge me diz
enquanto vira as costas para mim e retorna para a toca que deve ter saído.
Me ajoelho para recolher todas minhas moedas e devolvê-las ao saquinho. Saio da
capela e parto em direção a padaria. Eu tinha um trato com o dono, todo sábado que eu
recebesse meu salário eu iria até sua banca para pegar uma saca que ele preparava com
mantimentos para o resto do mês. Chegando lá, o padeiro logo me vê e diz.
— Você se atrasou. Os pães estão frios.
Digo a ele que não teria problema. Eu estava com pressa, meus irmãos deveriam estar
preocupados. Retomo a apertar o passo na direção de casa, seria complicado subir a trilha de
cascalho a noite, mas fiz da mesma forma.
Pude ver o jardim de lírios amarelos, eu estava em casa. Vi através das janelas a
bruxulear das velas acesas, os meninos ainda estavam acordados. Entrei pela porta da frente
e logo fui recebido por um abraço de Gabriel.
— Eu falei, Rafael. Eu falei. Nada machuca o irmãozão. — Disse Gabriel enquanto me
esmagava com seu abraço apertado.
— Está tudo bem, irmão? Você se atrasou hoje, estávamos preocupados contigo. —
Rafael me disse aparecendo na porta segurando um toco de vela que iluminava nossa
pequena sala.
— Me perdoem, não quis preocupar vocês. Fridge me passou um trabalho de última
hora e levou mais tempo do que pensei. — Digo de forma calma, era um conforto poder
voltar para meu lar. Gabriel ainda não havia me soltado, acho que ele ainda estava
preocupado comigo, então faço um cafuné no cabelo ondulado dele e digo — E você sabe que
o maninho sempre vai voltar para casa, Gabi.
Sinto Gabriel me apertando mais forte. Rafael ainda parecia um preocupado também,
então ele me diz:
— Trabalho de última hora? Precisa que nos remendemos você outra vez?
Gabriel enfim me solta. Ouvir aquelas palavras de Rafael machucavam meu coração,
mas eu não deveria demonstrar aquilo. Eu não faço meu trabalho por gostar, mas porque é
necessário, seria o único que eu poderia arrumar nessa cidade.
— Dessa vez não, Rafa. Não precisa se preocupar — Digo enquanto vou em sua
direção e passo a mão sobre seu ombro esquerdo. — Mas enfim, aqui está a saca, vamos
preparar algo rápido e dormir um pouquinho rapazes.
Gabriel ficou super animado, agarrou a saca e correu para a cozinha para comer logo.
Pude ouvir Rafael murmurar um "está bem” e enquanto nos dirigiamos para a cozinha ele
me diz:
— Ah, irmão, antes que nós nos esquecemos novamente, pode me entregar o troco?
Irei colocar com o resto.
Sempre guardávamos o troco da saca em caso de emergências, mas dessa vez eu não
poderia entregar.
— Não posso, irmão. Fridge me penalizou por fazê-la esperar, felizmente ainda pude
comprar a saca, mas nada além disso. — Digo a Rafael com tristeza e noto sua cara de
espanto e preocupação.
— Como ela pode fazer uma coisa dessas? Se isso continuar, não teremos o dinheiro
extra para comprar comida no inverno. — Rafael me disse, o futuro parecia correr por sua
voz. O dinheiro extra era necessário para nós, não tínhamos condições de preservar a comida
e os valores sempre aumentavam por conta da escassez. — Miguel, temos uma opção, o
trabalho que eu consegui.
A um mês e meio um casal interceptou Rafael enquanto ele andava na rua. A família é
conhecida dentro da igreja, lá eu tive conhecimento deles, mesmo oferecendo uma fortuna a
Rafael por simples trabalhos domésticos, eu não via com bons olhos. O casal não era
conhecido por serem bons samaritanos, olhava com desconfiança para a situação e no dia em
que meu irmão me contara sobre a proposta eu barrei na mesma hora.
— Você sabe muito bem o que eu penso sobre isso, irmão — Digo a Rafael implorando
para que ele entendesse meu lado.
— Miguel, você sabe bem que o inverno será rigoroso se não conseguirmos esse
dinheiro. Não conseguimos caçar perto de casa, todos os animais parecem ter desistido dessa
montanha e você começou a trabalhar muito mais novo do que eu, por que não deixa eu e o
Gabi te ajudar? Moramos nessa casa, assim como você, dividimos a mesma mesa, temos o
mesmo direito de ajudar, Miguel.
— Sabe o quanto aquela cidade é traiçoeira, se algo acontecer alguma coisa com
vocês… Eu nunca conseguirei me perdoar.
Nossa conversa havia ficado tensa, eu compreendia a preocupação de Rafael,
compartilho com ele essa mesma preocupação, já estávamos fartos de invernos rigorosos.
nos olhamos por alguns segundos em silêncio até que a fala de Gabriel cessou nossa quietude
— Eu vou comer tudo sozinho. — Gabi disse ao longe na cozinha e ele não parecia
estar blefando.
— Vamos, Rafa. Não vamos deixar o Gabi sozinho. — Chego mais perto e junto minha
testa à dele. — Encontraremos um jeito de resolver isso, mas vamos aproveitar o que temos
agora.
Vejo Rafael acenando com a cabeça concordando. Nos sentamos à mesa junto com
Gabriel, ele estava super alegre, apesar do pão estar frio. Eu comi apenas um pão e me
levantei para preparar ovos e bacon para nós. O tempo passou rápido e calado, a comida
estava pronta, me juntei à mesa novamente e quando fui levar minha primeira garfada à
boca, Rafael me fez uma pergunta.
— Então, Miguel, qual foi o trabalho que a Fridge te passou dessa vez?
Senti um leve nó na minha garganta, eu não gostava de contar sobre meu trabalho, às
vezes as coisas saiam de controle e eu não queria trazer aquilo para casa, mas dessa vez nada
grave aconteceu então pude contar. Gabriel estava concentrado em seu prato comendo como
um filhote de cachorro devorando uma tigela de ração, mas seus olhos levantaram para ver o
que eu iria responder.
— Bem, a Fridge me pediu para cuidar de um cara que fica perto da casa das freiras,
ele estava importunando alguma delas. Pensei que seria fácil, mas eu perdi a noção do
tempo.
— Perdeu? Se você não tivesse me contado eu sequer teria notado. — Rafael me disse
com seu humor sarcástico de sempre. Queria saber com quem ele aprendeu a ser desse jeito.
— Eu já pedi desculpas, Rafa. — Digo a Rafael, eu estava começando a me irritar com
o seu comportamento rebelde.
— Como ele era? O homem que mandaram você buscar. — Gabriel me perguntou de
boca cheia.
— Cuidado para não se engasgar, Gabi. Respondendo sua pergunta, ele era velho,
tinha cabelos longos, grisalhos e escorridos jogados para trás que quase alcançava os ombros,
tinha uma barba rala que alternava de pelos brancos e cinzas, sua pele era bem enrugada e
seus olhos fundos e pareciam estar perdidos…
— Quer que eu faça uma pintura dele com todas essas informações — Rafael diz me
cortando.
— Rafael, você sabe que o Gabriel gosta dos detalhes das minhas histórias. — Digo
tentando repreender ele.
— Sei, mas esta tarde, tente não se alongar tanto, precisamos dormir. — Rafael estava
certo, mas eu gostava da forma que Gabriel me olhava quando eu contava minhas histórias
com o seu olhar admirado como se fosse um mundo mágico para ele.
— Não liga para ele, mano. Continua, continua. — Gabriel me fala quase não se
aguentando na cadeira de tanto ânimo.
— Está bem, se acalme, maninho. O velho também usava botas de couro pesadas e
roupas mais largas que cobriam quase todo o corpo, só deixando as mãos e cabeça de fora, e
um cinto com uma fivela enferrujada.
— Mais algum detalhe, irmão? — Rafael cortou novamente meu barato.
— Eu acho que não, podemos ir para cama. — Digo me levantando da cadeira — Eu só
iria contar que conheci uma garota na minha empreitada.
— O que? Uma garota? Trate de sentar e nos contar essa história direito — Rafael
mudou de postura rapidamente em relação às minhas histórias detalhadas.
— Ela estuda para ser freira, foi ela quem comunicou Fridge sobre meu trabalho e me
aguardou na porta para me alertar sobre um perigo que eu não cheguei a conhecer.
— Ata, agora você poupa os detalhes e é breve? Me poupe. Nenhuma garota chama
sua atenção o suficiente para nos contar, conte como ela é de uma vez. — Achei quase cômico
a indignação de Rafael.
— Ela tem uma pele branca e os cabelos pretos, me lembraram os da mamãe, mas os
seus lábios com toda a certeza era o que mais chamavam a atenção, a cor era de um vermelho
vivo que parecia até uma pedra preciosa, e seu cheiro, nossa, ela era muito cheirosa.
— Agora sim, estou satisfeito com os detalhes. — Disse Rafael se levantando, pude ver
o sorriso malicioso surgindo em seu rosto.
— Maninho está namorando, maninho está namorando. — Gabriel cantarola com a
intenção de me tirar do sério e sai em direção ao quarto.
— Ei, está achando que a louça vai se lavar sozinha? Trate de voltar agora mesmo
aqui mocinho. — Digo em alto e bom tom.
Mas ao fundo escuto Gabriel dizer “Não escuto nada. Meu maninho está namorando”
Aquilo me fez bufar de irritado e murmuro baixinho:
— Eu deveria ter mantido minha boca fechada.
Sinto o pano de prato acertar meu braço, era Rafael nas minhas costas na frente da
pia.
— Vamos, eu ajudo você nessa. — Rafael me diz enquanto vira para o monte de pratos
sujos e panelas sujos — Mas só se você me contar o nome dela.
— É Layla. — Digo me juntando ao meu irmão no nosso desafio de lavar tudo aquilo.
— E eu sequer sei se poderei vê-la novamente.
— Espero que possam se ver. Não sei o que essa garota fez, mas eu nunca vi você falar
daquela forma, parece que ela te tem na palma da mão, irmãozinho.
— Cala boca. — Digo para ele dando risada. — E a única coisa que ela fez foi gritar e
tentar mandar em mim.
— Você lembra o que Simon nos dizia sobre amor? Que era perigoso, porque você só
se dá conta de que ama alguém quando coloca algo a perder por ela — Rafael me disse com
certa melancolia. Aquilo me trazia diversas lembranças, Simon nos dizia essas coisas ao lado
de Madeline nos jantares, era um tempo bom que havia passado.
— Simon sempre foi muito sábio. — Digo a Rafael tentando reconforta-lo mas as
palavras pareciam pesar na minha boca.
— Sim, ele era. — Escuto Rafael me responder, seus olhos pareciam vagar pelas
memorias. — Mas enfim, essa Layla ai, por acaso ela teria uma irmã mais nova?
Aquilo me fez rir por um tempo, eu não podia acreditar na cara de pau do meu irmão.
— Eu estou falando sério, ué, acha que só você tem direito a se apaixonar nessa casa?!
— Rafael tenta se explicar, mas minha risada não queria cessar.
— Bom, agora que você mencionou… Mas acho que o Gabi não está interessado. —
Digo tirando com a cara de Rafael.
— Miguel. — Rafael me responde com cara de irritado e chateado ao mesmo tempo,
mas ainda assim, entendeu que era apenas uma piada e decidiu entrar nela. — Depois dessa
eu nem me importo se ela realmente tiver.
Ele começou a rir junto a mim. O clima entre nós estava ótimo, tanto que, nem
notamos o tempo passar e já havíamos terminado a louça.
Recolhemos nossas coisas e partimos para o quarto, nós três dividiamos o mesmo
cômodo da casa para dormir, apesar de termos mais um quarto livre, ele pertencia a nossa
mãe e nós três nos recusamos a usá-lo. As camas eram coladas nas três paredes do quarto,
Gabriel já estava dormindo na do meio que ficava embaixo de uma das janelas quadradas da
casa. Eu fui para a cama da esquerda e Rafael para a da direita, quando deito uma paz me
toma, era bom estar de volta ao meu lar, meus irmãos. Escuto um cochicho baixinho do
outro lado do quarto.
— Ei, miguel. — Era Rafael tentando falar comigo sem acordar Gabriel — Boa noite,
irmão.
— Boa noite, mano — Digo a ele com um sorriso gentil

(incompleto)

O treinamento.

Chegada a hora.
A Pestilência.
Entrando no estábulo a primeira coisa que vejo é o cavaleiro em pé acariciando a
crina de seu cavalo. ele era belo, carregava um arco longo em suas costas e com a mão direita
segurava uma coroa enferrujada. Seu cavalo era o maior que eu já havia visto em minha vida,
completamente branco como a neve fofa, com apenas seus olhos se destacando como botões
negros em meio a um painel branco e alem de sua crina longa, suas patas tinham longos
pelos brancos. O cavaleiro demorara a notar minha presença, mas quando o fez pouco deu
importância. Seus olhos me fitaram por alguns segundos e logo voltaram a se concentrar nos
pelos de seu cavalo.
— Você é a criança de quem me alertaram, a criança que pretende derrotar a mim e a
meus irmãos. Me perdoe, mas o que você esperava? entrar no meu santuário, me golpear
algumas vezes com essa sucata que chama de espada e me derrotar para que eu seja levado
de volta aquela cela que deus criou? Achou que eu aceitaria de bom grado, menino idiota?
por sua audácia eu farei de sua pele o couro para a sela deste cavalo, seus ossos serão usados
para minhas novas flechas e o que sobrar darei de ração para meu corcel. Espero que pelo
menos você possa me entreter por alguns segundos.
Um frio correu pela minha espinha, todo meu orgulho se esvaiu junto com o ar dos
meus pulmões. minha boca ficou seca e passei a sentir frio mas meu corpo parecia estar
ardendo em chamas. tudo aquilo apenas pela presença do primeiro cavaleiro? Em meus
pensamentos eu só podia pensar que meu destino seria selado ali mesmo. cai de joelhos, não
suportei o meu próprio peso, era como se a pior das doenças tivesse me tomado, era o feitiço
do cavaleiro que estava sendo empregado a mim. Ao se aproximar de mim, Peste passa os
dedos sobre meus cabelos e os agarra com força puxando para cima para que eu pudesse
olhar em seus olhos.
— Gostaria que pudesse olhar para si neste instante, um garotinho insignificante,
fraco, assustado que está longe de casa e sem as asas da sua preciosa mãe para te defender. —
Me diz enquanto solta meus cabelos e desliza sua mão direto para minha garganta a
agarrando com ainda mais força, quase me deixando sem chance de respirar. — Sabe de uma
coisa, garoto? Apesar de eu ser o cavaleiro da pestilência, eu nunca estive perto de causar
uma doença tão imunda quanto a sua raça medíocre. Mesmo que eu tenha vivido em meio
aos ratos do esgoto, não existe comparação, vocês destroem tudo o que tocam, matam,
roubam, traem uns aos outros e por quê? Acham que terão um final diferente? O destino de
todos vocês serão selados por meu irmão. Vocês me enojam. Seu esforço não lhe servirá de
nada, apenas se entregue a mim e se poupe da humilhação.
Eu tinha noção de que minha missão seria complicada, mas aquilo era impossível. Eu
estava perto de aceitar minha morte, minha vida terminaria ali. Inesperadamente algo muda
dentro de mim, um calor, um fogo ardente, um pouco de esperança me toma e me dá forças.
Passei a raciocinar novamente, toda aquela fraqueza era apenas uma doença, eu sabia que
isso aconteceria, estou enfrentando o cavaleiro da peste e tenho que estar pronto para selar
sua vida. eu precisava cortar os efeitos daquele feitiço que me assolava. O cavaleiro desferiu
palavras sobre mim, mas eu não podia dá-las importância. seu rosto mostrava superioridade
e principalmente a diferença de poder com ele me olhando de cima como se eu não fosse
nada além de um mero inseto, e eu faria com que seu orgulho fosse a chave de sua derrota.
Um novo sentimento me toma naquele mesmo instante, uma chama floresce no meu coração
e se espalha por todo meu corpo, meus olhos se franziram e se fixaram aos olhos do
cavaleiro, eu havia voltado para a batalha e estava pronto para lutar, agarrei com a minha
mão esquerda o braço que me segurava e apertei com toda a minha força, pela primeira vez
vi a feição do cavaleiro mudar, um olhar esnobe se passou para um de surpresa e espanto.
Com o resto da minha força me pus de pé. Agora eu e o cavaleiro estávamos apenas a
alguns poucos centímetros um do outro, enquanto os dois tentavam empurrar seu adversário
para trás. Com a mão que estava livre o golpeei com força no estômago até sentir meus ossos
se encontrarem com os dele e fazê-lo soltar um grunhido de dor, ao retornar minha mão para
perto do corpo saquei minha arma em um piscar de olhos e a ergui em minha frente
cortando a proximidade entre nós e o obrigando a soltar meus cabelos. Trago o fio da lâmina
entre meus olhos, meu olhar estava fixo em meu adversário, eu não sentia mais a diferença
de poder que havia antes Ao encará lo podia sentir sua onda de fúria em minha pele, mas não
se comparava a minha.
Me preparei para investir em sua direção, mas em uma fração de segundos algo havia
mudado, sofri um ataque que mal pude enxergar e outro estava vindo em minha direção, ele
toca em minha espada e a desloca para a direita, me salvo por puro reflexo. Pensei que eu
havia levado sorte até sentir algo quente escorrendo da minha sobrancelha até meus olhos,
passei meu pulso nos olhos e vejo que estou sangrando muito, mesmo com medo não me
rendo e volto a focar no cavaleiro e para minha surpresa, ela estava posturado como um
arqueiro. Me dei conta de que o projétil que havia me acertado era uma das flechas. Não vi
um músculo sequer dele se mexer, Como alguém poderia se mover de forma tão rápida?
Ignoro minhas dúvidas e parto para o avanço mais uma vez.
A melhor estratégia seria diminuir a distância entre nós para anular o uso do arco e
flecha. Quando eu estava pronto para dar uma estocada em direção ao peito do cavaleiro eu
sinto uma forte onda de impacto em minha têmpora direita, eu fui golpeado com a ponta do
arco. Caí de joelhos mais uma vez, minha respiração foi cortada e minha visão foi sendo
dominada pela escuridão. não é possível, outra vez eu me encontrava no chão, minha jornada
só estava começando. o que minha mãe diria? Meus irmãos, se eu morresse ali ninguém os
defenderia. Não! gritei para mim mesmo, minha visão retorna a tempo de ver um golpe
vindo em minha direção de cima para baixo, bloqueei e desloquei seu arco para a minha
direita, sua guarda estava aberta, balancei minha espada da esquerda para direita com toda a
raiva e força que eu tinha no corpo, e consegui, fiz um corte que atravessou por cima de seu
olho. Me coloquei de pé outra vez, notei o sangue escorrendo por sua testa, não era comum,
era dourado e brilhava como ouro. No momento em que retomo a postura sou jogado com
força para trás rolando duas vezes até poder parar.
— Inseto petulante! — me diz enquanto limpa seu olho com as costas das mãos — eu
persisto a milênios, sou o responsável pelo pavor em sua raça desde o princípio, acha que um
golpe de sorte mudará isso? Acredita que você, simplório e insignificante humano, seria
capaz de encerrar minha existência nessa terra? EU SOU A PESTE ENCARNADA.

Mesmo sentindo dor e cansaço arranjei forças para retrucar suas palavras, enchi meu
peito de ar e coragem e disse.
— Eu não dou a mínima. Não me importa se você é um ser eterno, você causa o caos
e traz tristeza por onde passa. Voce nos faz sentir a dor e o sofrimento, tortura com suas
pragas aqueles de quem nos importamos. Prolonga nosso sofrimento antes de termos o
descanso da morte. — minhas palavras me encorajam e fazem segurar com mais firmeza o
cabo da espada. — pelas pessoas que eu amo e por todos aqueles que você ceifou, todas as
famílias que você dissipou, todos os amigos que você arrancou, eu o expurgarei dessa terra! E
seus irmãos serão os próximos a conhecer o fio de minha espada.
Fraco e ferido eu precisava continuar, meu corpo só aguentaria mais uma investida.
Com uma arrancada em direção ao cavaleiro vejo ele se preparando tres flechas pontiagudas
em minha direção, mas algo havia mudado, tudo ao meu redor estava lento e meu corpo
estava leve, tive tempo de reagir, bloqueei cada flecha com a lateral da minha espada, feito
isso eu estava perto o suficiente para ataque frontal, mas cavaleiro bloqueou minha tentativa
de causar um dano crítico com o arco de madeira que me obrigou a girar, eu vi a abertura, ele
não teria como defender aquele ataque, soltei um grito alto que ecoou pelo estábulo e logo
em seguida o cavaleiro também grita. Abro uma ferida profunda em diagonal no seu tronco
vindo da clavícula até perto da cintura, mas algo estava errado, eu sentia muita dor. Abaixo
minha cabeça para ver meu corpo, uma das flechas me acertou em cheio. No momento em
que rotacionei o cavaleiro tirou com suas mãos uma de suas flechas da aljava e a usou para
ficar na região do meu estômago. Os dois caem de joelhos ao mesmo tempo, nenhum solta
sua respectiva arma, eu podia sentir dentro de mim que o cavaleiro estava tentando afundar
ainda mais a flecha, a dor era insuportável, minha visão estava escurecendo, mesmo fazendo
força o ar não queria entrar em meus pulmões, mas meus ouvidos ainda funcionavam e pude
ouvir o cavaleiro me desferir suas palavras ácidas.
— Miserável. Você não se dá conta de que foi derrotado no momento em que aceitou
seguir essa jornada. O ferimento que você abriu em meu peito não representa nada. Logo
você morrerá e eu irei me recuperar, não ficará nem sequer uma cicatriz para me lembrar do
que fizeste — o cavaleiro dizia enquanto ofegava muito e tentava controlar a respiração ,
tinha certeza de que cada palavra não passava de um blefe. — Mas você me despertou algo
novo, eu admito, faço meu trabalho sem sentir nada, rapaz, não passa de uma uma
obrigação, mas agora, ter tido a chance de torturar sua mãe com tamanha violência, está se
tornando uma memória muito prazerosa. Uma pena ela ser tão fraca, eu teria adorado poder
prolongar meu trabalho ainda mais.
Eu desabei. Um tornado de memórias toma meus pensamentos. lembro de ver minha
mãe grávida de Gabriel cozinhando nosso jantar, e ficava de olho em Rafael e em mim, hoje
me pergunto como ela conseguia ser tão forte a ponto de aturar nós três. Ela suportava tudo
aquilo, cuidava de duas crianças enquanto estava grávida de uma terceira e tudo sozinha. Ela
era tão boa conosco. Por que teve que merecer aquilo? Nunca havia feito nada de mal a
ninguém e teve que partir de uma forma tão dolorida. quem eu poderia culpar? Passei noites
em claro pensando no que eu poderia ter feito. Se eu tivesse sido um filho melhor para ela, se
eu tivesse cuidado melhor dela, ou se eu tivesse a feito sorrir mais.
Não. Eu não podia me culpar, desde o nascimento eu fui abandonado, ninguém ligava
para minha família, nenhuma delas, todos sempre nos desprezaram e agora eu estou aqui.
Irei morrer pela mesma pessoa que fez minha mãe adoecer. A mão responsável por eu e
meus irmãos conhecermos o inferno.
Porém também lembrei do que minha mãe me ensinou, eu seria muito pior do que as
pessoas que nos exilaram se eu manchasse a imagem dela esquecendo de seus valores. Se
uma pessoa nasce forte é o dever dela proteger os mais fracos. Tive minha mãe por pouco
tempo, mas o tempo que tive com ela foi repleto de amor, mesmo que ela estivesse sofrendo,
ela sempre sorria para mim, mesmo que sua madrugada tivesse sido repleta de dor, ela
levantava e me preparava um delicioso café da manhã e depois tricotava um lindo cachecol
azul marinho para que o frio não me atingisse. Aquelas memórias me lembraram de quem eu
sou, sou Miguel Arken, e é meu dever proteger os outros para que minha mãe não tenha
morrido em vão, e eu irei vingar-lá trazendo o fim ao seu carrasco.
Com a mão esquerda solto o cabo da espada e seguro por cima da mão do cavaleiro a
flecha que foi cravada no meu abdômen. Um duelo de forças contra o cavaleiro se inicia.
Faço esforço para arrancar a flecha enquanto ele tenta perfurar meu tórax ainda mais. Eu
sentia a ponta da flecha indo e voltando dentro de mim. Me viro para o cavaleiro e percebo
mais uma brecha, aquela era minha chance de encerrar a luta, eu precisava de mais força, o
algoz de minha mãe estava em minha frente e eu precisava matá-lo. Cerrei minhas
sobrancelhas e olhei fixamente por alguns segundos os olhos da Peste, o espanto o tomou,
minha determinação o assustou, ali me dei conta de que venci essa batalha. Agarro com força
a minha espada com a mão direita e a faço atravessar o peito do cavaleiro, foi um ataque
violento, a lâmina cravou até o peito dele tocar na guarda da minha espada, uma cascata de
sangue dourado passou a escorrer pela ferida, assim como nos cantos da boca, ele se inclinou
um pouco para frente ainda de joelhos até cair a minha direita com o rosto em minha
direção. Levei meu corpo à exaustão, me senti obrigado a soltar a espada e a flecha. Por um
instante pensei que meus braços iriam cair do corpo.
Levantei minha cabeça para olhar o teto e tentar respirar melhor, minha respiração
estava desesperada, minha visão se apagava e acendia em sintonia a minha respiração, o
sangue havia coberto grande parte do meu corpo. Uma forte tontura me dominou, caindo de
costas no chão ao lado do cavaleiro, olhando para seus olhos já sem vida uma onda de
dúvidas me toma novamente, minha mãe se sentiria orgulhosa de mim mesmo me tornando
um assassino? O que estou sentindo é remorso? Remorso por um ser tão repugnante? por
quê eu sentia aquilo?
Meus olhos se pesaram, eu estava sendo vencido, não aceitaria minha morte, não
poderia acabar desse jeito, preciso levantar, preciso continuar lutando, mas como eu
conseguiria naquele estado? Vejo todo o ar do meu pulmão se esvaindo em um sopro, eu não
sentia mais nada, tudo estava acabado, eu apenas queria descansar, fechei meus olhos.
Acabou, era o fim.

O Pós-vida.
Tudo era calmo e tranquilo. Era como boiar em um oceano infinito e escuro. Uma
sensação de paz completa havia me tomado, todas as dores desapareceram. O silêncio era
ensurdecedor. O peso da preocupação de cuidar de meus irmãos , a falta da minha mãe ou o
ódio por meu pai, a imagem dos meus pais adotivos no chão, eu nunca havia me sentido
dessa forma, o peso do mundo não me esmagava mais.
Uma correnteza forte e intensa de lembranças se alastra pelos meus pensamentos, me
afastando cada vez mais da realidade. Memórias boas vêm à tona. As noites frias que passei
abraçado com meus irmãos próximos a lareira para nos aquecermos, o velho sítio dos Singer
onde, apesar do final trágico, fomos felizes por muito tempo, os cafunés que minha mãe fazia
as noites antes de dormir e ter conhecido a irritante senhorita ovelhinha. Apesar da dor que
as memórias continham agora, eu me sentia genuinamente feliz e agraciado por ter vivido
aquilo. Eu não podia deixar de pensar, meus irmãos ficariam bem sem mim? O que seriam
deles sem o maninho mais velho para cuidá-los?
Repentinamente, uma voz distante passa a ressoar por todos os cantos da imensa
escuridão.
— Miguel! Acorde, Miguel! Vamos, você precisa acordar.
Eu conheço essa voz. Eu nunca poderia negar um chamado dela. Mesmo que eu
tivesse que nadar contra a correnteza, eu tinha que voltar, preciso encontrar a voz, mas eu
não estava preparado para o que iria ocorrer em seguida. Vejo minha mãe. Ela estava ali, na
minha frente, seus cabelos negros como o carvão, assim como seus olhos, sua pele era tão
branca quanto a neve ou o marmore das pilastras da capela, ela estava vestida exatamente
como eu me lembrava dela, um avental branco e um pedaço de pano que deixava seu cabelo
preso para trás. Aquela imagem era forte demais para mim, eu apenas corri em sua direção e
me lancei de joelhos a seu colo, ela começou a alisar meu cabelo, como fazia, para me
acalmar.
— Acalme-se, pequeno, está tudo bem agora. Sua mãe está aqui.
Meus olhos eram como cataratas, mesmo que eu me esforçasse, minhas lágrimas não
cessavam e meu peito se apertava com o pouco ar que me restava. Eu a apertava com toda a
minha força, com medo de que ela sumisse tão rápido quanto surgiu em minha frente. Eu
gritava e chorava como um recém nascido, não conseguia sequer pronunciar uma palavra,
queria tanto dizê-la o quanto eu sentia sua falta, o número de vezes que chorei por ela, queria
poder mostrá-la o homem que sou para se sentir orgulhosa, contar a ela sobre como seus
filhos haviam crescido. Aquele momento foi tão mágico e melancólico. A cada escorrer de
lágrimas dos meus olhos e a cada grito de angústia, eu retornava a raciocinar e me dava
conta do que estava ocorrendo. Tudo não passava de uma mera ilusão, uma alucinação, com
o intuito de me fazer desistir de voltar à vida.
Meu coração apertava dentro do peito enquanto minha garganta doía ao tentar
dizê-la tudo o que eu podia. Apesar de me dar conta de que ela não era a mãe que havia me
deixado a tanto tempo, ter que dizer adeus não era uma tarefa fácil. Me recomponho e
levanto minha cabeça para poder olhá-la nos olhos.
— Você parece inquieto filho, o que aconteceu?
Sua voz era idêntica a de minha mãe, a voz doce e gentil, mas que agora era como
despejar ácido em minha alma. Me rendo a minha vontade e digo tudo o que eu gostaria de
dizer se tivesse a chance de ver minha mãe verdadeira mais uma vez.
— Eu sinto sua falta mãe, todo dia. — a água retoma meus olhos, mas me ponho de
pé — eu daria tudo para te ter de volta.
— Mas você me tem aqui, querido. — me disse enquanto colocava suas mãos em
minhas bochechas e tornando tudo aquilo ainda mais difícil.
Eu tiro alguns segundos para respirar mantendo minha cabeça baixa, eu sabia o que
eu deveria dizer a ela, mas o sofrimento era maior que minha força.
— Mãe, você sabe o que eu preciso fazer? — digo a ela com uma voz baixa.
— Eu sei, querido — pela primeira vez vejo que ela se entristeceu — mas fique aqui,
comigo, filho. Eu sou tão sozinha. Esqueça essa missão sem propósito e fique ao lado de sua
mãe, eu imploro.
Eu a lacei com meus braços, era possível sentir suas lágrimas escorrendo em meu
peito.
— Eu não posso, mãe. Não posso deixá-los.
— Por favor, filho.
Eu a aperto um pouco mais forte e sinto seu perfume doce uma última vez.
— Eu te amo, mãe. Espero que se orgulhe de mim um dia.
Como se eu tivesse me jogado de uma montanha, eu podia sentir o vento na minha
pele. Estou caindo em queda livre sem ter onde aterrissar. Enfim um clarão de uma luz
branca e ardente começa a ferver minha pele e eu desperto.

O Reencontro.
Abro meus olhos, e encontro a voz a quem vim buscar. Minha cabeça estava
apoiada em um amontoado de folhas, e Rafael me chacoalhava pelos ombros.
— Irmão! Irmão! Ele acordou. Como se sente Miguel? — me olhando como se visse
um fantasma.
— Eu estou bem irmão. Pensei que tivesse sido claro, não deveriam me seguir.
Gabriel se aproxima de nós correndo, com suas mãos carregava alguns gravetos para
a fogueira. Ele olha em meus olhos e solta os gravetos no chão, se lançando em minha
direção, me abraça com e coloca sua cabeça em meu ombro. Eu podia sentir suas lágrimas na
minha pele.
— Pensamos que tivéssemos te perdido irmão. — falando com a típica voz doce que
herdou de nossa mãe.
O sol já se pusera. Mesmo machucado eu insisti em acender a fogo, não gostaria de
pensar que sou um inútil com essas feridas pelo meu corpo, Rafael se dispôs a

anotação do criador: discussão entre miguel e rafael


(incompleto)

O Guerra.
Havíamos entrado em um lugar que se assemelhava a um coliseu romano que Layla
me mostrara em um de seus livros. O chão era coberto com uma fina camada de areia, onde
eu podia sentir que se alojava entre a sola de minhas sandálias de couro e a sola de meus pés.
As colunas e os entalhes eram feitos de uma pedra amarelada e quebradiça, acho que Layla
havia dito que eram arenitos, quando passei minha mão por uma das pilastras, pequenas
pedrinhas se desprenderam. Podia ver rachaduras por quase todas as colunas, a estrutura me
alarmava, temia que caísse sobre nossas cabeças. A arena enchia minhas narinas com o
cheiro de sangue seco. Todos meus instintos me alertavam sobre o perigo.
Do outro lado da arena eu pude ouvir passos pesados, até que a terra sob meus pés
começou a tremer, das sombras, o cavaleiro surge, e consigo, o meu temor. Ele carregava
uma armadura pesada que cobria todo o seu tronco, manoplas grossas que tampavam os
antebraços e apenas deixavam os dedos de fora, na cintura, um cinturão dourado e uma
túnica de couro grosso com entalhes de cobre e nos pés ele utilizava uma sandália e uma
placa de metal que vinha um pouco acima dos tornozelos até a parte de cima dos joelhos,
mas sua era a parte que me amedrontava, ele disponha de um elmo coríntio, que cobria
quase todo seu rosto, por conta da luz não podia se ver seu rosto, mas o que deveriam ser
seus olhos, estavam dois pontos de luz vermelha. Seu corpo parecia ser corpulento, mas
através das poucas frestas que a armadura tinha eu podia ver seus grandes músculos, a cada
passo dado em nossa direção ele parecia crescer mais e mais. Depois de cinco passos ele
parou e eu tive minha conclusão, aquele cavaleiro seria capaz de esmagar o crânio de
urso-de-kodiak com as próprias mãos com facilidade.
— Deem um fora daqui, crianças. — Ele proferiu a nós. Pude sentir meus ossos
congelarem e meus pelos se horripilarem — Pelo menos, enquanto ainda podem.
Ao olhar para meus lados pude ver os olhos de Rafael arregalados e o corpo inteiro de
Gabriel tremer, era o primeiro cavaleiro que eles enfrentariam, não pude imaginar uma
reação diferente. Mesmo que eu tivesse lutado contra o cavaleiro da peste, a presença do
Guerra era muito mais imponente e amedrontadora.
— O que aconteceu, fedelhos? O medo os paralisou? — O cavaleiro nos dirigiu a
palavra uma segunda vez, e não fui capaz de negar sua pergunta — Achei que fossem os
guerreiros que me matariam.
Permanecemos em silêncio e estáticos.
— Ficaram em silêncio. Espero que possam me responder apenas uma coisa: qual de
vocês foi o responsável por ceifar meu irmão? Pois será esse a morrer por último, para que
veja seus irmãos sofrendo.
— FUI EU!
Eu me assusto e vejo que Rafael havia respondido em meu lugar. Ele parte em
direção ao cavaleiro com sua lança posta em posição de batalha, Rafael era um exímio mestre
com sua lança, alguém que até mesmo eu tinha dificuldade de acompanhar os movimentos,
mas quando tentou estocar sua lança contra o peito do cavaleiro, de nada se fez, guerra podia
se mexer a uma velocidade impressionante, principalmente para alguém com tal altura e
peso, ele se esquivou como se não fosse nada e deixou meu irmão com as costas viradas para
si, o cavaleiro desfere um golpe poderoso contra o dorso de Rafael que o leva a pressionar o
chão da arena com a mão que carregava a lança. Eu tive a impressão de ouvir a armadura de
meu irmão amassar com a potência do golpe. O cavaleiro poderia matá-lo ali mesmo, sem
que eu pudesse fazer nada, mas retomou sua postura e disse.
— Deixe as mentiras fora desta arena garoto. — ele ergue o braço e aponta com o dedo
indicador para mim. — Você! Você fede ao sangue de Cavaleiro, agora posso sentir. Posso ver
que tem a postura de guerreiro também.
O cavaleiro dá mais dois passos em minha direção e um deles ele utiliza para esmagar
meu irmão contra o chão pela segunda vez. Logo, Gabriel toma a minha frente e se posiciona
de forma que fizesse uma barreira com seu escudo entre nós e o cavaleiro.
— Você não tocará nele enquanto eu estiver de pé. — Gabriel diz, parecia ter firmeza
em sua voz.
— é o que pretendo, garoto. — responde o Guerra.
Gabriel avança devagar em direção ao adversário. Eu estava paralisado pelo medo,
podia sentir que meu sangue não era bombeado como deveria. fazendo assim, as
extremidades do meu corpo se assemelharem a pedras de gelo, minha boca estava seca e
minha cabeça parecia ser perfurada por milhares de alfinetes ao mesmo tempo. Minha
atenção retorna a Gabriel, ele estava a dois passos do cavaleiro, seus olhos estavam fixos e
esperando o ataque poderoso da lança que empunhava, mas mais uma vez a rapidez do
cavaleiro o subjuga. Ele investe com o seu escudo circular contra o escudo de meu irmão e o
arremessa para a esquerda, meu irmão cai no chão, não muito longe dos pés do cavaleiro, ele
tenta se levantar novamente, mas girando a lança guerra acerta com a base do cabo no
queixo de Gabriel o levando novamente para o chão. O cavaleiro gira sua cabeça para mim,
os olhos que brilhavam vermelho sangue me fitavam, eu ainda estava inerte diante o medo
que sentia. Agora em poucos passos o cavaleiro me alcançou, com a lança em mãos ele
posiciona a ponta da lâmina contra meu queixo me obrigando a levantá-lo e encará-lo nos
olhos, algo que eu tentara evitar até agora.
—Tiveste a valentia de ser o algoz de meu irmão e agora não tem a ousadia de me
olhar nos olhos! Pensei que fosse um guerreiro, mas não passa de um covarde — Sua voz
bravejava a pura fúria. Eu não conseguia esticar mais meu pescoço, então a ponta da lança
começa a afundar em minha pele de forma lenta. — Você não representa o menor desafio. me
pergunto como meu irmão pode ter sido tão inepto para ter perdido esta batalha contra um
verme feito você.
A lança é retirada do meu pescoço finalmente. O cavaleiro passa por meu lado me
dando as costas e sobe as escadas que havíamos visto ao entrar e diz.
— Você e seus irmãos me divertirão, nem que seja só por alguns instantes. — e com
um grito poderoso ele profere — levante-se!
Naquele instante meus joelhos perdem a força e começo a respirar desesperadamente
tentando buscar o máximo de ar que eu pudesse levar para meus pulmões. Me dei conta de
que a presença do cavaleiro era tanta que eu não pude respirar desde que ele havia acertado
o primeiro golpe em Rafael. Rafael e Gabriel! Eles ainda estavam no chão, então tento me
arrastar na direção de Gabriel que estava mais perto de mim para levantá-lo. Ao alcançá-lo,
vejo que ele ainda está consciente, ainda ajoelhado, o ponho sobre meus joelhos. Ele estava
desnorteado, mas se esforçou para me dizer.
— Me deixe, irmão. — ele faz uma pausa e respira fundo — vá ver Rafael.
Eu o coloco calmamente no chão novamente. Desembainhei minha espada para
utilizá-la como uma bengala e me auxiliar a me colocar de pé. Cambaleando, chego ao
encontro de Rafael. Ele já tentava se levantar por conta própria.
— Se esqueceu de como se usa a espada Miguel!? — Rafael me diz irritado e quando
tento levantá-lo ele se debate para que eu não o toque. — Por que ficou parado? Você não é
um covarde, Miguel!
Apesar de suas palavras serem ácidas, eram verdadeiras. Eu deveria ter reagido,
deveria ter lutado, mas não o fiz. Mesmo que não tivesse chance, eu teria de ter feito o que
meus irmãos fizeram e o que nos foi ensinado. Eu precisava recuperar minha coragem, devo
ser mais forte para proteger quem eu amo.
Rafael volta a ficar de pé e Gabriel se junta a nós. A arena voltou a tremer, mas dessa
vez foi diferente, não eram pisadas rítmicas e singulares, como as do cavaleiro, e sim, várias e
fora de ritmo, que me induziram a acreditar serem dezenas, ou até centenas, de passos
tocando o chão. Era um exército vindo em nossa direção. Em poucos minutos, os quatro
portais que davam acesso a arena estavam preenchidos por guerreiros de todos os tamanhos,
formas, armaduras e armas. Guerra retorna a aparecer, no segundo andar sentado em o que
se assemelhava a um trono ao lado de seu cavalo com pelos carmesim. Sua postura era
relaxada no trono que se encontrava e eu pude perceber que carregava em sua mão direita
uma grande caneca de madeira escura com entalhes em latão. Eu e meus irmãos tomamos a
posição de ataque, onde juntamos nossas costas e ficamos em uma forma similar a um
triângulo e nos dirigimos para o centro da arena. Os guerreiros voltaram a se mexer e
contornaram a arena circular.
“Em posição, Lanceiros!” Guerra ordena. Os guerreiros mais próximos a nós eram
lanceiros e se puseram a postos, apontando as pontas das lanças em nossa direção. Em
seguida, Guerra dá mais uma ordem: “Escudos!” No mesmo instante, por de trás dos
lanceiros, dezenas de escudos, de formas e tamanhos distintos, surgiram para defendê-los.
Percebi que todos os escudeiros também carregavam, consigo, espadas longas de uma mão.
Por fim, o cavaleiro deu sua última ordem: "Arqueiros!" Pude ouvir os sons das madeiras que
compunham o arco envergarem e as cordas sendo puxadas com força.
O cavaleiro proclama que a batalha deveria começar. Uma chuva de flechas foram
lançadas sobre nossas cabeças e tive a impressão que, mesmo por alguns segundos, elas
foram capazes de tapar o sol que pairava sobre nossas cabeças. Mesmo que a quantidade de
flechas fosse exorbitante, pouco risco nos proporcionou, graças ao árduo treinamento que
tivemos. Gabriel podia se defender com o escudo que carregava, Rafael podia se locomover
de forma tão fluida com sua lança pelos espaços entre as flechas que era como se elas o
atravessassem e eu era capaz de bloquear cada uma que eu tinha consciência que poderia me
acertar com a minha espada. Logo após a chuva de flechas cessar eu fui surpreendido com a
ponta de uma lança me acertando com força no peito, mas por sorte, minha armadura foi
capaz de evitar a perfuração. As flechas não passavam de mera distração, o objetivo real era
que elas nos mantivessem ocupados para que os lanceiros pudessem avançar, diminuindo o
espaço que podíamos nos mexer e se aproveitarem de um ataque surpresa.
Estavamos completamente cercados, os ataques de lanças eram contínuos e não
tínhamos oportunidades de contra-atacar por conta dos escudeiros que os defendiam.
Faziamos o máximo de esforço para bloquearmos todos os ataques, mas era indiscutível que
seria questão de tempo para que uma lança conseguisse passar e acertar um de nós. Tive que
pensar rápido, então ordenei aos meus irmãos enquanto mantinham o ritmo das defesas.
— Só sairemos daqui se investirmos contra um dos escudos!
— Então você se lembrou de como se luta?! — Rafael me retruca de forma ácida e
irritada.
— É arriscado demais! Se cairmos errado sobre eles, deixaremos nossa retaguarda
livre para um ataque. — Gabriel diz logo em seguida. Eu não podia dizer que ele estava
errado, mas era a única forma.
— Vamos, agora! — dou a ordem e meus irmãos me seguem, apesar da relutância.
Eu fui responsável por empurrar um escudeiro com meu ombro sendo jogado contra
seu escudo que o cobria até os joelhos, o que derrubou mais três soldados que estavam perto
de suas costas, aproveitei a janela de oportunidade e os apunhalei enquanto estavam
tentando se levantar. Gabriel ativou a lâmina retrátil de seu escudo e se lançou, assim como
eu, em direção aos adversários, mas não parou a investida até que disponibilizasse de um
espaço que achava suficiente para lutar com eficiência. Rafael preferiu utilizar de outro
método, com a ponta de sua lança fincada no chão e ele segurando sua outra extremidade,
ele foi capaz de realizar um salto muito maior, assim, ficando nas costas dos guerreiros como
nós.
O exército se dissípara. lutamos por horas, que não pareciam passar. vísceras, tripas,
órgãos e sangue tingiam a arena, e eu, de vermelho. O odor no ar era fétido e podre. Os
soldados foram reduzidos a poucas unidades de arqueiros que se reuniram em uma
extremidade com um intuito desesperado de disparar o máximo de flechas que fossem
possíveis na esperança de que alguma fosse capaz de me acertar, ou a um dos meus irmãos.
Pouco adiantou. Eu caminhei em direção a eles em uma marcha lenta, me defendendo de
tudo o que era lançado sobre mim. Eu bufava. Me encontrava cansado da batalha e queria
terminar aquilo com pressa e economizando o máximo de energia que eu pudesse, pois,
ainda havia um ser poderoso à minha espera para um duelo. Quando os alcancei, pude ver
seus olhares de desespero. Eu parecia com um monstro das histórias de dormir que as mães
contam para os filhos. Acredito que todo meu corpo estava coberto pelos restos dos
companheiros de batalha, principalmente meus olhos que ardiam com a irritação causada
pelo sangue dos meus adversários. Balançando minha espada de forma rápida, fui capaz de
cortar a garganta dos dois arqueiros mais próximos a mim, um terceiro desembainhou uma
das flechas de sua aljava e buscou finca-la em meu rosto, mas sem efetividade, assim que
chegou a uma posição razoável, atravessei minha espada de seu queixo até ver a ponta sair
pela cabeça. Arranquei minha espada do guerreiro, e olhei para alguns segundos o último
que restava, ele estava espantado. Sargon fazia questão de descrever com detalhes e repetir o
nível de brutalidade que uma batalha poderia tomar, mas aquilo… tudo o que eu acabara de
fazer, era desumano. Não poderia me dar o luxo de deixar que meus pensamentos me
desviem do meu objetivo, mesmo sendo cruel, era necessário. Me aproximo do guerreiro
restante, ele estava imovel, nem sequer tentou reagir, então cravei minha espada em sua
barriga, coloquei minha mão esquerda em sua nuca, cheguei ainda mais perto e sussurrei em
seu ouvido.
— Me perdoe.
Uma lágrima surgiu em um dos meus olhos… acho que o sangue me fez lacrimejar.
— Foi o último. — Gabriel me diz colocando a mão sobre meu ombro e me assustando
um pouco, Rafael estava logo atrás dele e olhava para o chão de areia vermelha que
pisavámos. Meus irmãos estavam no mesmo estado que eu me encontrava, física… e
possivelmente psicológica também.
— HAHA. Isso foi um verdadeiro espetáculo, rapazes. — Guerra disse rindo e
parecendo estar bêbado. Tudo aquilo não passava de diversão para ele? Ele me irritou e
tornou-se um prazer quando eu separar sua cabeça do pescoço para que não possa mais rir.
— Eu assumo, eu assumo. Vocês foram capazes de me entreter.
O cavaleiro se levantou do trono, empunhou suas armas e se lançou do andar
superior até a arena com um salto e disse:
— Agora chega de brincar. Levantem-se! — gritou batendo a base de sua lança no
chão o fazendo vibrar novamente.
Eu e meus irmãos tivemos uma surpresa, a ordem do cavaleiro não havia sido
dirigida a nós, e sim, aos guerreiros mortos que haviam sido derrotados. Era medonho. Dois
terços passaram a contorcer o corpo sem vida com esforço para voltarem a ficar de pé, mas
uma parcela deles sequer se mexeu. Minha suspeita era que aquele seria o feitiço do
cavaleiro, poder controlar guerreiros como bem entende, capaz até de fazê-los retornar a
vida. Eu tomei a frente de meus irmãos, encarei os olhos vermelhos mais uma vez. Não foi
preciso uma palavra, eu e Guerra entramos em um acordo, o duelo seria nosso agora. Me
encontrava mais confiante do que da ultima vez, senti que realmente seria capaz de me
equiparar a ele. avanço devagar em sua direção, os guerreiros mortos tentam travar minha
marcha, mas meus irmãos são capazes de defender meus flancos, deixando um corredor livre
para o cavaleiro.
O duelo estava prestes a começar. Avancei de forma rápida e objetiva, mas meus
instintos me alertavam sobre o perigo que eu estava enfrentando, a qualquer segundo que eu
fechasse meus olhos para piscar, poderia um ataque que eu não fosse capaz de defender ou
bloquear. Para minha surpresa, o cavaleiro mal havia se mexido. Chegando perto o suficiente
tento encontrar um ponto fraco em sua armadura, quase não existiam falhas, mas logo
embaixo de seu elmo havia um espaço de quatro centímetros, suficiente para que eu pudesse
passar o fio da minha lâmina. Parto para o ataque, balanço minha espada a levando da
direita para a esquerda, mas o cavaleiro bloqueia com a lâmina de sua lança. Suas feições não
mudaram, de forma como se meu ataque não representasse perigo. Eu retomo minha
postura na guarda. Podia ouvir o som alto e agudo do som dos metais em conflito atrás das
minhas costas, eu não poderia me preocupar com a minha retaguarda com um oponente
daquele nível em minhas costas, eu tinha plena confiança de que meus irmãos fossem
capazes de me proteger. Minha próxima estratégia seria aplicar golpes múltiplos, para que
tornasse as defesas do cavaleiro mais complicadas, mas pouco adiantou novamente. Nada
parecia funcionar. Ele era invencível. Preciso de mais força!
Decido ignorar meus instintos e realizar uma investida direta, com o peso do meu
corpo sendo projetado em sua direção, de alguma forma, ele poderia se desequilibra-lo,
assim como fiz anteriormente quando fui cercado pelos guerreiros de Guerra, e eu seria
capaz de acertar meu primeiro golpe. Contraio os músculos das minhas pernas, forço os pés,
eu até mesmo era capaz de sentir meu sangue percorrendo cada centímetro do meu corpo
levando apenas uma informação: É tudo ou nada. Me lanço com velocidade e força, em um
piscar de olhos eu reduzira a distância de cerca de três metros para alguns poucos
centímetros, mas ao chegar perto o suficiente fui surpreendido com seu grande escudo
circular, ele antecipara meu ataque. De todo jeito minha força foi tamanha para fazer seus
pés deslizarem sobre a areia. Meu ombro estava em total contato com o escudo, meus pés
nem mesmo tocaram o chão, pude sentir que estava sendo jogado para trás, com o braço que
segurava o escudo que defendeu minha investida, o cavaleiro me joga para longe, talvez
quinze metros de distância. minhas costas e Minha nuca acertaram o chão com força, me
desacordando por alguns segundos.
Abri meus olhos devagar, eu estava com dificuldade de mantê-los abertos, mas pude
notar que as nuvens haviam se escurecido. Gotas geladas começaram a pingar sobre meu
rosto, eu podia senti-las, mas elas não faziam barulho. Não, eu que não as ouvia. Um
zumbido agudo castigava meus ouvidos. Tento me levantar, mas apenas consigo tirar meu
tronco do chão. Minha visão estava embaralhada e não conseguia fixá-la a nada, mas pude
reconhecer os dois vultos que passam por mim. Rafael e Gabriel, tomaram minha frente e
avançaram contra o cavaleiro. Em um brandir da lança, Rafael foi lançado para longe, mas
Gabriel se manteve no combate, o cavaleiro o olha do alto e posso perceber a fúria e a
maldade em seu olhar. Golpes pesados foram lançados contra o escudo de meu irmão,
fazendo com que caísse no chão, mas mesmo assim, Guerra não cessou seus ataques, pelo
contrário, parecia bater ainda mais forte. Pude ouvir o grito de desespero de Gabriel, seu
esforço era sem igual, mas os golpes eram ainda mais fortes e acredito que os ossos de seu
braço estavam prestes a se partir. Guerra soltou seu escudo e com sua mão, agora livre,
segurou meu irmão pelo braço ainda no chão e com os punhos acertou repetidas vezes o
peito exposto de Gabriel. Soco por soco, golpe por golpe, eu podia ver a vida do meu irmão
desaparecendo. Eu fazia o máximo de esforço que podia, tentei me arrastar, mas minha
tentativa apenas fez com que eu caísse com o queixo na areia e me deixasse de bruço.
Passo minha atenção para Rafael, ele ainda se encontrava junto ao chão e com sua
lança em suas mãos. O tempo parecia ter parado, os olhos azulados do meu irmão se
encontraram com os meus, eu podia lê-los, entendi o que ele pretendia, nenhuma palavra foi
dita, mas eu pude compreender. Tentou respondê-lo, gritar em sinal de negação, mas era
tarde demais, Rafael se lançou em direção ao cavaleiro, ele pretendia realizar um ataque
suicida. Vejo meu irmão tentar uma sequência de golpes desesperados, um deles foi capaz de
fazer um pequeno corte no pescoço do cavaleiro. Guerra sentiu o golpe, e deu um passo para
trás, colocou a mão no corte e contemplou seu sangue dourado escorrendo pelos seus dedos e
questionou:
— Todo esse esforço — ele faz uma pausa enquanto olha para os dedos e retoma com
— Por apenas uma gota?
A base da lança acertou a têmpora de Rafael em seguida, mas Rafael não caiu. Então,
para meu terror e desespero, vejo a ponta da lança atravessando as costas de meu irmão.
Rafael havia sido empalado vivo em minha frente. Guerra para por alguns segundos com a
lança ainda cravada, e depois de arrancá-la, diz:
— Me cansei de você, moleque. — com uma voz calma, aposto que aquilo não
representava nada para ele.
O tempo pareceu ter congelado novamente. Eu me colocara de joelhos, comecei a
olhar minhas mãos e meu corpo, eu podia ver as gotas de chuva lavando o sangue que estava
impregnado na minha pele e nas minha armadura. Comecei a processar no meu cérebro tudo
o que havia ocorrido. Gabriel… Rafael… porquê? por que aquilo tinha que acontecer? ELES
NÃO DEVERIAM MORRER! Eu falhei de novo!, falhei com minha mãe, falhei com meus
pais e agora com meus irmãos… Eu sou imprestável. Eu não consegui proteger ninguém que
amo, nem mesmo layla, eu não poderei voltar para ela. Deveria ter sido eu. Eu quem deveria
ter morrido, desde o início. Eu não quero mais isso, não quero mais viver neste mundo
amaldiçoado.
— Você está muito machucado. — O cavaleiro me dirigiu a palavra, mas elas estavam
muito distantes de mim e não podiam chegar aos meus pensamentos. — Eu avisei que você
sofreria.
Ao final de suas palavras um novo pensamento me surgiu, apesar de minha vontade,
eu tinha um último desejo, eu mataria aquele desgraçado com minhas próprias mãos. Ele
retoma a fala.
— Sabe garoto, quando eu terminar com você, arrancarei as almas de seus irmãos e as
colocarei na minha sala de troféus. — Meu espírito retorna a arena, aquilo me afetou. —
ficarão perfeitos próximos ao senhor e senhora Singer. — Um trovão estrondoso pode ser
ouvido naquele instante. — É garoto, eu estava lá, meus servos fizeram um trabalho digno de
pôr um sorriso no meu rosto

A fúria me dominou.

Centenas de raios começaram a acertar a arena e a mim, mas eles não eram capazes
de me ferir. Meus olhos pareciam estar em chamas. Uma onda de poder incomensurável
tomou o meu ser, faixas de vermelho incandescente se alastraram sobre minha pele. Meu
corpo estava quente, ao ponto de que cada gota de chuva que me acertava virava vapor no
mesmo instante.
Os relâmpagos não haviam cessado e um deles fez com que a fivela que prendia a
armadura em meu peito se soltasse. Eu pude ver o olhar de espanto do cavaleiro, ele estava
incrédulo com o que via e questionou.
— O que diabos é isso?
Aquelas seriam suas últimas palavras.
— Isso, imbecil… É o seu fim. — digo de forma sussurrada e intimidadora.
Decidi avançar contra o cavaleiro e no mesmo instante eu estava na frente dele, agora
eu podia me mexer na velocidade dos meus pensamentos. Guerra se apavora com minha
velocidade e por instinto, tenta me acertar com sua lança, a brandindo, da direita para a
esquerda, mas assim que o cabo acerta a lateral de meu braço esquerdo, ela se partiu em
duas. Minha guarda estava baixa, eu não precisava dela. Meu rosto, sem expressão alguma.
O cavaleiro faz uma evasão, se lançando para trás e entrando em proteção defensiva,
mas pouco importou. Apareci nas costas de Guerra, seus olhos não podiam acompanhar, e
com apenas um soco, fiz com que o cavaleiro fosse arremessado para o outro lado da arena,
acertando com força um dos pilares de sustentação do coliseu. Novamente, surgi na frente
dele, eu não deixaria chances para que pudesse respirar. Pude notar que o calor de meu
corpo começara a derreter sua armadura, fazendo a cavaleiro agonizar de dor, como se
estivesse em uma panela jogada a lareira.
— Você está muito machucado. Eu avisei que você sofreria. — digo a ele enquanto
vejo seu sofrimento.
Minha voz havia mudado, estava completamente distorcida e era capaz de causar
medo a qualquer um, inclusive, ao cavaleiro, que era perceptível pelo seu olhar. Olho para o
escudo que Guerra ainda carregava consigo e penso, você não precisará mais dele. Segurei
seu escudo com minha mão direita, e tentei arrancá-lo, mas o escudo era preso com uma
série de três fivelas que o mantinha preso ao antebraço, então, faço mais força e vejo a pele
do ombro do cavaleiro ser dilacerada. Eu arrancara seu braço fora. Rapidamente ele solta sua
lança e leva sua mão direita ao grave ferimento e emite um grito de pavor e agonia.
O seguro pela parte de baixo de seu elmo e o arremesso novamente para a outra
extremidade da arena de batalha, fazendo isso, seu elmo permaneceu em minha mão, então o
amassei como uma folha de papel. O cavaleiro foi lançado ao segundo andar da arena, mas
caiu novamente ao chão, e consigo, pedregulhos que foram arrancados da parede com a força
do impacto o acertaram ao chegar no chão.
Apareço em sua frente, agora seria a última vez. Contemplo seu estado medíocre sem
um dos braços, queimado e assustado como um filhotinho. Pela última vez o cavaleiro
ouviria a minha voz em sua vida.
— Você não representa o menor desafio. me pergunto como meu irmão pode ter sido
tão inepto para ter perdido esta batalha contra um verme feito você.
Fecho meus punhos. chegada a hora que eu o mataria. começo um sequência de
golpes contra o peito do cavaleiro, eles eram tão rápido que mal podiam ser vistos e tão fortes
ao ponto de fazer buracos na armadura do cavaleiro. O sangue retorna a respingar pela
minha face. Passo a concentrar meus golpes na cabeça do cavaleiro e apenas uma coisa
passava pela minha cabeça, uma voz, e ela repetia apenas uma coisa “mate-o, mate-o”.
Eu não parava, não queria parar, quero fazer ele pagar, sim, pagar. Farei com que
pague por tudo o que fez a mim, pelas pessoas que me tirou, por me jogar ao mundo sozinho
outra vez. Sinto algo escorrendo pelo meu rosto, não parecia sangue. O que é? Lágrimas?
Agora? Não é possível. Quando a primeira gota de lágrima atingiu o chão minha força
desapareceu. Meus golpes não eram mais poderosos como antes e minha velocidade
retornou ao normal, eu voltei a ser imprestável?
Dou alguns passos para trás, minha consciência estava voltando ao corpo. Olho para
o céu por alguns segundos e noto que a chuva havia cessado, as gotas frias não limpavam
mais o meu corpo. Volto minha atenção para o Guerra, meu deus… o quê eu fiz? Ele estava
irreconhecível, seu peito estava aberto, órgãos saltados para fora do tronco, seu rosto estava
completamente desfigurado, podia-se ver seu cérebro escorrendo pelo lado esquerdo de seu
rosto e quase todos os ossos de sua face estavam expostos, ninguém seria capaz de dizer que
aquilo já havia sido um rosto comum.
(incompleto)

O Fome.

O morte.

O Pastor de ovelhas.

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