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Visita

Tio Samir era meu tio favorito. Ele não era um homem de destaque, não possuía
grandes talentos, nem era dotado de grande beleza ou aptidão física, mas era um
sonhador, por isso sempre foi visto como problemático pelo resto da família.

Desde jovem ele manifestava seu apoio a convivência pacífica entre humanos e
dragões, o que para os parentes era um grande insulto, já que a generosa riqueza
da família veio através do combate às criaturas. Isso fazia com que familiares e
amigos próximos o considerassem um hipócrita, um rebelde sem causa, e ser
rotulado dessa maneira o irritava profundamente. Então, durante o jantar do meu
aniversário de oito anos, tio Samir levantou-se da mesa e gritou:

— Eu abdico de minhas riquezas! A partir desta noite viverei como um camponês.

Ele abraçou a mim e a minha avó, saiu pela porta da sala de jantar e nunca mais
foi visto.

***

Estava na sala de estar com minha mãe e minha tia Sarah, elas conversavam sobre
um assunto que não me soava importante, então não fiz questão de prestar
atenção. Era uma tarde chuvosa, eu estava sentada ao lado da janela, observando
as gotas escorrerem pelo vidro, a monotonia fez com eu quase adormecesse, mas
fui surpreendida pela visão de duas figuras encapuzadas vindo em direção a nossa
casa.

— Mamãe, vem ver isso. — gritei.

Mamãe e tia Sarah se aproximaram da janela.

— Quem seria louco de sair de casa com essa chuva? — mamãe perguntou.

— Estão carregando bagagens, talvez sejam vendedores ou viajantes procurando


um abrigo. — disse tia Sarah em um tom pensativo. — Vou pedir que um criado
investigue a situação.
Tia Sarah se retirou da sala imediatamente, minha mãe saiu logo em seguida,
dizendo que avisaria o restante da família. Cinco minutos depois, estávamos todos
reunidos na sala, todos com certo grau de impaciência.

Alguns minutos depois, o criado que tia Sarah enviou para averiguar a situação
adentrou o cômodo sorrindo e com o ar ofegante.

— Ele está de volta!

— Ele quem? — perguntou meu pai.

— Samir, senhor. Seu irmão está de volta.

— Não me venha com brincadeiras!

—Não estou brincando, senhor. Tudo que falo é a verdade.

— E onde ele está? — perguntou minha avó.

— Lá embaixo, no saguão. Ele e a menina estavam encharcados, então providenciei


toalhas para que se secassem.

Todos se entreolharam confusos, por um instante havíamos esquecido que vimos


duas pessoas.

— Mande-os subir quando estiverem secos. — ordenou vovó.

O criado concordou com um aceno de cabeça. A sala permaneceu silenciosa até ele
se retirar, batendo a porta. Então, minha tia começou uma agitação:

— Menina? Que menina é essa?

— Talvez seja apenas uma companheira de viagem, nada a mais. — respondeu


mamãe.

— Acha certo um homem e uma mulher sem relação viajarem sozinhos pelo
mundo? — questionou meu pai.

— E você acha que nosso irmão se importa com isso? — rebateu tia Sarah. — Mas,
o criado se referiu a ela como menina, não donzela, dama ou mulher, uma jovem…
Talvez seja uma filha!
Todos da sala olharam para a tia Sarah como se ela tivesse dito algo absurdo.

— O que foi? Ele sumiu por dez anos, não é impossível que tenha se casado e tido
filhos.

— Quietos! — gritou vovó. — Especulações não nos levarão a lugar algum, tudo
podemos fazer, por hora, é ficar felizes com a volta de Samir.

Após o sermão de minha avó, escutamos batidas vindas do outro lado da porta.

— Entrem! — ordenou a senhora.

O abrir da porta revelou a figura de tio Samir. Seus fios de cabelo alternavam entre
pretos e brancos, seu rosto estava cheio de rugas, estava magro e suas mãos cheias
de calos, uma delas carregando uma bolsa. Ao seu lado estava a menina, ainda
utilizando o capuz molhado. A única coisa visível debaixo do capuz eram a parte
inferior de seu rosto e suas luvas que aparentavam cobrir boa parte dos braços,
que também seguravam uma bolsa.

Vovó e tia Sarah, emocionadas, correram para abraçá-lo.

— Sentimos a sua falta. — disse tia Sarah.

— Também estava morrendo de saudades. — disse o tio.

Depois de cumprimentar meus pais, ele caminhou em minha direção e me


cumprimentou.

— Sophia, como você cresceu! — ele me deu um abraço tão forte que mal pude
respirar. — Tenho algo pra você. — ele puxou da bolsa um colar com uma pequena
pedra em formato de coração. — Sei que não é muito, mas é o que eu posso te dar
no momento.

— Muito obrigada, tio.

A menina ficou imóvel na entrada da sala durante todo o tempo em que meu tio
nos cumprimentou, até que minha avó a chamou.

— E você, quem é?

A menina permaneceu calada.


— Não seja tímida, você está entre família. — disse tio Samir colocando a mão
sobre o seu ombro.

— Me chamo Aramis, sou filha do senhor Samir. Perdoem-me pela minha grosseria.

— Filha? — questionou vovó.— Quantos anos você tem, menina?

— Tenho quinze, mas não se preocupe, não sou uma bastarda de seu filho.
Trabalhávamos para o mesmo senhor e ele me adotou como filha.

— Certo, certo. E em relação a esse capuz molhado, não irá tirá-lo? — perguntou
vovó.

— Desculpa, mas creio que seria melhor para todos se eu o mantivesse.

Tio Samir pareceu insatisfeito com a resposta da filha, mas balançou a cabeça em
sinal de apoio.

— Ela está um pouco cansada por causa da viagem. Sophia, poderia levá-la para o
quarto de hóspedes? — pediu tio Samir.

Concordei, estava intrigada com a figura de Aramis e acreditava que aquela era a
oportunidade para conhecê-la de fato. Assim que saímos da sala, eu comecei a
interrogá-la.

— Não vai mesmo tirar esse capuz?

— Já falei, é melhor para todos que eu fique com ele.

— Por quê?

Ela ficou em silêncio. Tentei repetir a pergunta, mas fui ignorada.

— Há quanto tempo conhece meu tio? — perguntei tentando retomar a conversa.

— Há oito anos, mas sou filha dele há cinco. Ele trabalhava como cuidador de uma
idosa, tia do meu antigo senhor. Eu ia visitá-la uma vez por semana para ouvir as
histórias que ela contava. Um dia, a tia do senhor tinha um compromisso e não
poderia me atender, eu chorei muito, não queria voltar pra casa. Então, Samir
botou a mão no meu ombro e me ofereceu um biscoito que, segundo ele, foi pego
escondido na cozinha. Depois desse dia, toda vez que eu ia visitar a senhora, ele
me dava doces, roupas ou brinquedos, sempre tinha algum presente. Depois de
dois anos, ele começou a me chamar de filha e a trabalhar na casa do meu senhor
para pagar pela minha liberdade.

— Liberdade? Então você…

— Era uma escrava, desde do dia do meu nascimento. Não tenho nenhuma
lembrança da minha mãe, só sei que se chamava Simara e meu senhor disse que
ela era uma mulher livre antes de eu nascer. Ainda assim, tenho mais informação
sobre ela do que sobre o meu pai, toda vez perguntava sobre ele, me mandavam
calar a boca.

— Eu sinto muito por isso.

— Não precisa se preocupar. Agora sou uma mulher livre, não preciso mais por
meus pés naquelas terras.

— Então vocês vão morar aqui?

— Não, só estamos de passagem, partiremos depois de amanhã. Vamos para Lídon,


Samir disse que eu poderia saber mais sobre meu pai se eu fosse pra lá, além de
ser mais seguro para pessoas como eu.

Queria continuar a nossa conversa, mas já tínhamos chegado na porta do quarto


de hóspedes, nos despedimos, então fui para os meus aposentos. Me joguei na
cama e fiquei observando o teto do meu quarto, pensando sobre a história de
Aramis e sua jornada com tio Samir. Lídon era o local perfeito para tio Samir, que
lugar melhor para um Simpatizante viver do que uma vila que abriga um dos
últimos ninhos de dragões? Além de ser um ótimo local para Aramis ter o seu
recomeço. Pensei tanto que acabei caindo no sono.

***

Acordei cedo, queria dar uma caminhada antes do café da manhã, mas a chuva do
dia anterior havia deixado o terreno cheio de lama. Fui chamada pelo meu pai para
ir ao seu escritório e perguntou se eu tinha descoberto algo sobre Aramis. Contei
sobre nossa conversa, omitindo a parte dela ser uma ex-escrava, acho que ela não
gostaria que eu contasse. Logo após, fui dispensada.
Fui até o quarto de hóspedes para chamar Aramis, queria que ela nos
acompanhasse no café da manhã. Dei três batidas na porta e perguntei:

— Aramis, posso entrar?

— Só um instante!

Ela abriu a porta e tive um espanto. Ainda estava com o capuz, mas com as mãos
nuas, revelando braços verdes e escamosos.

— Droga! — disse Aramis quando se deu conta do que acabara de acontecer.

Ela me puxou para dentro do quarto e começou a falar de maneira chorosa:

— Por favor, não conta pra ninguém, eu imploro!

Abracei-a tentando acalmá-la.

— Não vou contar, eu prometo.

— Jura mesmo?

—Sim.

— Obrigada. — ela disse tentando engolir o choro.

Ela disse que o tio Samir tinha contado sobre o passado da família para ela e que
não queria causar problemas para ele.

Reforcei novamente que seu segredo estava guardado comigo, ninguém saberia que
uma meio dragão pisou naquela propriedade. Então eu lhe fiz um pedido:

— Tudo bem se não quiser, mas posso vê-la sem o capuz?

Ela fez que sim e revelou o seu rosto. Metade era coberto por escamas com
diferentes tons de verde, a outra metade tinha pele humana, nem tão escura e nem
tão clara, tinha olhos dourados, tudo isso emoldurado por um volumoso cabelo
castanho escuro. Eu estava hipnotizada, olhar para o rosto dela era como olhar
para uma floresta densa e se perder.

— Não temos que descer pra tomar café? — disse Aramis colocando o capuz e as
luvas, me despertando do meu transe.
Notei que ela utilizava uma pulseira com uma pedra parecida com a do meu colar.
Ela disse que ganhou aquilo no dia em que tio Samir passou a tratá-la como filha,
disse que era o seu pequeno tesouro.

Descemos, não comemos na sala de jantar com o restante da família, mas na


varanda dos fundos, observando o jardim. Ela me contou que informou sobre o
ocorrido para tio Samir enquanto eu pegava minha comida e que ele havia decidido
adiantar a partida.

Com isso, no início daquela tarde dei um abracei tio Samir e Aramis. Sussurrei no
ouvido de Aramis que seu segredo estaria seguro e agradeci meu tio pelo colar,
dizendo que seria meu pequeno tesouro. Eles se despediram de todos e saíram pela
porta da frente.

Eu nunca mais vi tio Samir e Aramis, mas toda vez que olho para a pedra do meu
colar, me lembro dos dois e fico imaginando o dia em que os verei novamente.

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