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Alfabetização e/ou letramento jurídico.


Exercício de cidadania e uma concepção de formação acadêmico-
profissional

Alfabetização e/ou letramento jurídico. Exercício de cidadania e uma


concepção de formação acadêmico-profissional

Kalina Silva Gonçalves Cabral| Pedro de Oliveira Júnior

Publicado em 07/2011. Elaborado em 04/2011.

Afinal, o que é ser alfabetizado e/ou letrado jurídico? Buscando


responder a essa indagação este artigo foi elaborado,
enfatizando que o letramento é condição essencial para
exercício pleno da cidadania.

SUMÁRIO: Resumo. Abstract. Introdução. 1


Alfabetização e/ou letramento
jurídico exercício de cidadania. 2 O jurista
letrado e o operador do Direito
alfabetizado: uma nova concepção
acadêmico-profissional. 3 Considerações finais.
Referências.

RESUMO

Alfabetização e/ou letramento jurídico abrangem


concepções diferentes
decorrentes de suas especificidades e do olhar dos
estudiosos em suas análises e
discussões. Primeiramente, consiste no
exercício de cidadania, sob a ótica da
formação do indivíduo para viver em
sociedade de modo crítico, participativo e
reflexivo, por meio da apreensão da
leitura e da escrita – letramento, e não apenas
da aquisição
do ato de ler e escrever – alfabetização. A outra análise conceitual
enfoca
a construção acadêmico-profissional dos bacharéis em Direito,
evidenciando
que o operador do direito é o indivíduo que se apropria do
tecnicismo laboral,
que envolve o manuseio de leis, códigos e afins,
consubstanciando-se no
alfabetizado jurídico. Enquanto isso, no exercício de sua
ação cotidiana
laboral, o jurista pauta-se na análise e repercussão dos fatos sociais,
em
consonância com as regras de condutas, normatizadas na sociedade.
Palavras-chave: alfabetização, letramento jurídico,
cidadania, formação
acadêmico-profissional.

ABSTRACT

Literacy and/or juridical literacy cover different concepts


arising from its
specificities and the look of the scholars in their analyses
and discussions. First,
consists in the exercise of citizenship from the
perspective of development the
individual to live in society so critical,
participatory and reflective through the
seizure of reading and writing -
literacy, and not just the acquisition of the act of
reading and writing -
literacy. The other conceptual analysis focuses on the
academic and profissional
construction of graduates in lawyer, seeing that the
lawer is a individual who
appropriates on the work technicality, which involves the
handling of laws,
codes and related services, consolidating itself in juridical
literacy.
Meanwhile, in the exercise of their action, labour lawyer tariff analysis
and
impact of the social facts in accordance with the rules of conduct, normalized
in society.

Keywords: literacy, legal literacy, citizenship,


development, academic-
professional.

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, é preciso que sejam feitas breves


conceituações acerca dos termos
alfabetização e letramento, buscando
construir previamente um entendimento
semântico sobre estes vocábulos. Quando
se fala em alfabetização surge a ideia de
descoberta da palavra, frase e, por
fim, texto. Ao se dizer que um indivíduo é
alfabetizado significa afirmar que
o mesmo atingiu as competências e habilidades
requeridas para ler e escrever.
À luz dos ensinamentos de Soares (2010, p. 15):
"alfabetização em
seu sentido próprio, específico [significa]: processo de
aquisição do
código escrito, das habilidades de leitura e escrita". De acordo com
Ferreira (2008, p. 109) a palavra alfabetizar expressa: "Ensinar ou
aprender a ler e
escrever (com a devida compreensão do significado das palavras
e do contexto)".
Por sua vez, letramento é uma expressão atual
utilizada no âmbito educacional
que indica que a pessoa além de ter adquirido
as habilidades e as competências
para a leitura e a escrita (alfabetização)
já atingiu um nível de compreensão e
interpretação do conteúdo de um
determinado texto. Assim ele estará apto a
consolidar em sociedade sua
cidadania de forma ativa, crítica, reflexiva e
participativa. Ferreira (2008,
p. 513) ao descrever a expressão letramento afirma
ser este "1. ato
ou efeito de letrar(-se). 2. Bras. Educ. Ling. Estado ou
condição de
indivíduo ou grupo capaz de utilizar-se da leitura e da escrita,
ou de exercê-las
como instrumentos de sua realização e de seu desenvolvimento
social e cultural".
E complementa, ao conceituar letrar: "2. Capacitar
ao uso social e cultural da
leitura e da escrita". Por fim, Soares (2004,
[s.p.]) assevera:
[...] a pessoa que aprende a ler e a escrever - que se torna
alfabetizada - e
que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se
nas práticas
sociais de leitura e de escrita - que se tornam letradas - é
diferente de uma
pessoa que ou não sabe ler e escrever - é analfabeta - ou,
sabendo ler e
escrever, não faz uso da leitura e da escrita - é alfabetizada,
mas não é
letrada, não vive no estado ou condição de quem sabe ler e
escrever e
pratica a leitura e a escrita.

Tendo como ponto de partida as referidas concepções acerca


de alfabetização e
letramento, apreende-se que elas servem de base para a
busca da resposta para
tamanha curiosidade e para efeito deste estudo se exprime
sob forma do seguinte
questionamento: afinal, o que é ser alfabetizado e/ou
letrado jurídico?

Buscando responder a essa indagação este artigo foi


elaborado, enfatizando que o
letramento é condição essencial para exercício
pleno da cidadania. O sujeito só
está verdadeiramente inserido na sociedade
quando consegue participar
ativamente de todas as ações ali realizadas, seja
de caráter cultural, educacional,
econômico, de lazer, de saúde, entre
outras, isto implica, nas interações que o
indivíduo vivencia social e
cotidianamente.

2.ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO JURÍDICO EXERCÍCIO DE


CIDADANIA

Na tentativa de analisar os conceitos de alfabetização e/ou


letramento jurídico,
conforme já foi anunciado anteriormente, deparamo-nos com
a visão do cidadão
alfabetizado e/ou letrado, que "busca" ou não
seus direitos, e do bacharel em
Direito, enquanto operador do Direito ou
jurista. A priori será dada ênfase a visão
do cidadão. Então, o que
consiste em dizer que uma pessoa exerce a cidadania
plena? Ferreira (2008, p.
234) descreve como cidadão o "indivíduo no gozo dos
direitos civis e
políticos de um Estado". É notório que aqueles que não se
apropriaram
das habilidades de leitura e escrita e que atuam na sociedade de
forma parcial e
aqueles que aprenderam, superficialmente, a escrita e a leitura,
que são os
considerados analfabetos funcionais, também não exercem a cidadania
plena.

Lincoln (apud SILVA, 2003, p. 134) afirma que "democracia


é o governo do povo,
pelo povo e para o povo", entenda-se aqui que
governo indica "regime, forma de
vida e processo" (Op. cit., p.
135). O povo é fonte e titular do poder, uma vez que
todo poder emana do povo,
seja por meio de democracia direta, indireta
(democracia representativa) ou
semidireta (democracia participativa). Para que a
democracia na íntegra se
consubstancie é preciso que o povo seja conhecedor de
seus direitos e deveres
com autonomia para assumir seu papel de forma global na
sociedade, o que é
propiciado, sobretudo, pelo desenvolvimento das habilidades
de leitura e de
escrita (alfabetização) e consolidado por intermédio da formação da
consciência crítica, reflexiva, participativa e pró-ativa do mundo (letramento).
Na democracia representativa adotada no Brasil o direito de
cidadania se edifica
com a concretização dos direitos políticos. Cabe,
então, ao cidadão eleger os
políticos que lhe representarão, consolidando a
soberania popular. Os direitos
políticos aqui apregoados estão descritos na
Constituição Federal de 1988 e no
Código Eleitoral. Ressalta-se que para
realizar uma escolha realmente democrática
dos seus representantes é preciso
que o indivíduo tenha certo grau de
conhecimento, seja ele baseado no
conhecimento de mundo freireano (que se
constrói com a própria experiência de
vida) ou nos saberes sistematizados,
intencionalmente e formalmente ministrados
na instituição escolar. A
alfabetização é o primeiro estágio para a
construção formal do conhecimento e é
complementada pelo letramento. É
importante chamar atenção que não importa a
ordem em que ocorre a
alfabetização ou o letramento, mas é fundamental que
ambos se efetivem
integradamente.

Por fim, as habilidades de leitura e escrita são de suma


importância para que o
cidadão participe juridicamente da sociedade de modo
abrangente. O brocado
jurídico é bastante rebuscado, dificultando a
compreensão dos indivíduos mais
simples. Entretanto, é preciso que apesar de
sua simplicidade, é um dever do
sujeito conhecer seus direitos e buscar a
garantia dos mesmos, bem como,
conhecer e cumprir os seus deveres na sociedade,
para que possa participar
plenamente, exercendo sua cidadania. Além disso, é
essencial que nas diversas
áreas jurídicas a fala seja adequada à realidade
do ouvinte, especialmente, em sede
da justiça que a população tem acesso,
mesmo sem o amparo do advogado
(Juizados Especiais e Justiça do Trabalho). A
esse respeito Bagno (2009, p. 30)
assevera:

[...] os falantes das variedades lingüísticas


estigmatizadas têm sérias
dificuldades em compreender mensagens enviadas para
eles pelo poder
público, que se serve exclusivamente da norma padrão. Como diz
Maurizzio Gnerre em seu livro Linguagem, escrita e poder, a
Constituição afirma que todos os indivíduos são iguais perante a lei, mas
essa mesma lei é redigida numa linguagem que só uma parcela reduzida
de
brasileiros consegue entender. A discriminação social começa,
portanto, já
no texto constitucional.

Na busca da apreensão de um conhecimento mínimo acerca dos


direitos e deveres
do cidadão, mostra-se necessário incluir no currículo da
educação formal
conteúdos que tratem de modo lato de direito, em
especial, constitucional e civil e,
de modo particular, abordem temas como
direito dos idosos, crianças e
adolescentes, pessoas que pela sua condição de
classe social e econômica precisam
ser protegidas.

Alkimim (2005, p. 22) relembra que: "linguagem e


sociedade estão ligadas entre si
de modo inquestionável. Mais do que isso,
podemos afirmar que essa relação é
base da constituição do ser
humano". Logo, a linguagem pode e deve ser acessível
a todo cidadão, pois
a própria formação humana, especialmente, para a atuação
social de modo
pleno, requer que esta linguagem aproxime o universo jurídico à
sociedade,
promovendo a participação efetivo dos indivíduos neste universo.

Fala-se aqui de acessibilidade ao código lingüístico


jurídico, no entanto, não se
abstém da ideia de que a homogeneidade do
código lingüístico, segundo Jakobson
(apud ALKIMIM, 2005, p. 25),
"não passa de uma ficção desconcertante", uma vez
que o sujeito
interage com comunidades lingüísticas distintas e todo o código
lingüístico
é "multiforme e compreende uma hierarquia de subcódigos diversos,
livremente escolhidos pelo sujeito falante". Corroborando este conceito
Lucchesi
(2004, p. 63) afirma: "à heterogeneidade real do comportamento
lingüístico dos
indivíduos contrapões-se a homogeneidade artificial do
padrão normativo ideal".
Nesse enfoque, cabe ao ideário jurídico tentar
direcionar a sua linguagem para a
inclusão e o entendimento de um número cada
vez maior de ouvintes e falantes,
desvinculada por vezes do padrão normativo
ideal.

Outro aspecto deve ser lembrado e diz respeito ao fato de


que: por meio dos
processos de leitura e escrita é que o indivíduo entra em
contato com os mais
variados temas e assuntos, a alfabetização, inicialmente,
abre as portas do mundo
das descobertas. Por sua vez, o letramento promove a
utilização prática destas
descobertas, pois propicia ao ser humano questionar
os seus aprendizados e
buscar novas soluções e entendimentos às dúvidas e
anseios que rodeiam a
formação humana.

Nesse contexto, ao abordar as temáticas sugeridas que se


faça sob a mediação de
uma linguagem clara e precisa para que promova a
compreensão dos receptores
da mensagem, isto é, todos os brasileiros. Bobbio
(2006, p. 46) declara que:
"Numa Constituição [...] há normas que
atribuem diretamente direitos e deveres
aos cidadãos, como as que dizem
respeito aos direitos de liberdade", logo, o
cidadão não pode estar à
margem do saber jurídico, isto é, desconhecer os seus
próprios direitos e
deveres.

3.O JURISTA LETRADO E O OPERADOR DO DIREITO ALFABETIZADO:


UMA
NOVA CONCEPÇÃO ACADÊMICO-PROFISSIONAL

Como fora anteriormente tratado, sob o nosso ponto de vista


há uma dupla visão
acerca da alfabetização e/ou letramento jurídico.
Identificamos, também, que não
há referências que analisem a formação
acadêmica e profissional do bacharel em
Direito, notadamente, se levarmos em
consideração a ótica que a seguir será
descrita, uma vez que a partir dos
conceitos de alfabetização e letramento abriu-se
uma nova concepção sobre o
jurista e o operador do Direito.

A priori, é preciso fazer uma breve retrospectiva


histórica. Sendo assim, a
separação entre Direito e Justiça nascida no
Direito Romano, fez com que
progressivamente houvesse a aproximação daquele
com o Poder. Esta fusão entre
Direito e Poder, ao passo que aquele se tornou
função de outros interesses
(políticos, econômicos, etc.), à luz dos
ensinamentos de Silva (2008, p. 10) é uma
conseqüência que se configura como:
"um braço do individualismo pragmático
que constitui a essência
da ideologia moderna, que de um modo ou de outro, nos
governa".

Entre um elenco de competências, habilidades e atitudes que


doravante possam
ser exigidas para compor um perfil de qualquer profissional,
para atuar de forma
digna em seu labor, sem dúvida, os princípios e valores
éticos e morais estarão
incluídos. Portanto, o bacharel em Direito entre
outras normas tem como
norteadoras de sua prática propriamente dita o Código
de Ética, Regulamento e
Estatuto da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil. Cabe
aqui ressaltar que os
preceitos éticos e morais devem existir na formação
humana do indivíduo
independente da legalização das ações tidas como "corretas".
Significa que, direta
ou indiretamente o jurista terá em suas mãos uma gama da
essência do poder, seja
como: juiz – julgador, membro do Ministério Público
– fiscal da lei e defensor dos
direitos coletivos e
individuais indisponíveis; defensor público – advogado público
que atua na
defesa dos interesses particulares; advogado – atuando em defesa dos
interesses de seus clientes; entre outros.

Com o passar dos anos o que se observa é que o próprio


currículo da faculdade de
Direito tende a uma mecanização e tecnicidade na
forma de propiciar aos seus
estudantes a apropriação dos saberes jurídicos,
pois as áreas de conhecimento
mais específicas centram-se nos Códigos e
Legislações nacionais vigentes, em
detrimento dos conceitos e princípios de
natureza sociológica, filosófica e
dogmática. A prática jurídica requer
também um aprofundamento na legislação
vigente sem, contudo, haver uma
análise mais profunda dos conhecimentos
elaborados para a formação do
próprio entendimento jurídico em relação a cada
fato, isoladamente.

O bacharel em Direito, dentre os requisitos obrigatórios


para se tornar um
advogado, precisa ser aprovado no Exame da OAB, sendo que este
exame também
segue a tendência atual de mecanização do conhecimento, uma vez
que o certame
avalia o bacharel através do conhecimento em torno da
legislação nacional em
vigor, em detrimento dos saberes filosóficos,
históricos, sociológicos e dogmáticos
que cercam o conhecimento jurídico.
Igualmente, os concursos públicos tendem a
avaliar os concorrentes pelos
saberes acumulados sobre a "letra da lei", isto é, a
legislação
vigente.

Este tecnicismo visivelmente presente na formação


acadêmico-profissional do
bacharel em Direito resulta no que hoje se conhece
como operador do Direito, um
profissional que desenvolveu um conjunto de
habilidades e competências para a
leitura e a escrita, principalmente à luz da
legislação pertinente e que pauta o seu
trabalho na formulação de peças,
despachos, decisões, sentenças, consultas, ou
seja, que analisa o fato, objeto
da lide, pela ótica apenas das leis e do resultado
que, se for advogado, o seu
cliente almeja. Eis a figura do alfabetizado jurídico.
Nesse contexto, o pensamento dos juristas modernos
direciona-se para o fato de
que o Direito utiliza para a consecução de seus
fins a racionalidade da norma. Com
a separação dos poderes o que se vê é
que, segundo Kaufmann (1976, p. 19 apud
SILVA, 2008, p. 10): "a
atividade do juiz assemelha-se [...] ao trabalho realizado
por um computador
moderno, alimentado de fórmulas que, combinadas
conceitualmente, resolvem
diversos problemas concretos". Complementando:
"assemelha-se a uma
heresia afirmar que os juízes realizam, a respeito da norma
geral, um ato mais
complexo que a mera subsunção lógica do particular (caso) no
geral
(norma)".

Centrando a análise na figura do magistrado o que se percebe


é que a jurisdição de
primeira instância decorrente da concepção de juiz
instituído pelo sistema exerce
apenas a função de declarar o direito posto
pelo legislador, devendo só declará-lo
ao final da causa, se abstendo de
possíveis decisões incidentais, uma vez que o
próprio sistema exige que o seu
julgamento seja embasado em juízos de certeza. O
risco de comprometimento com a
causa, na jurisdição de primeira instância é
reflexo da vigilância
impositiva do sistema recursal, que visa à manutenção da
passividade natural
do magistrado.

Em outras palavras, no normativismo burocrático, tão


enfatizado no decurso dos
anos acadêmicos, cumpre o papel de contaminação da
prática forense, uma vez
que decorrente desta normatização racional os
julgadores se vêem dispensados de
fundamentar adequadamente suas sentenças,
declarando e não justificando o que
fora decidido. Então, faz-se mister que
o sistema jurídico reconheça aos
magistrados algum nível de
discricionariedade, para que eles possam, assim,
declarar uma autêntica
decisão jurisdicional, parafraseando Carnelutti (1965 apud
SILVA, 2008):
antes mesmo de decidir, o magistrado deve decidir-se, pois os
juízes tendem a
não decidir e sim julgar, pois "decidir é ato volitivo [de
vontade],
julgar é ato intelectivo [racional]" (SILVA, 2008,
p. 14).

Sob esse enfoque, a sistemática processual brasileira se


consubstancia como
instrumento que protege e condiciona a passividade e
neutralidade do juiz no
decurso da relação processual. No entanto, ainda numa
atitude utópica, mas de
luta, os juristas devem encarar o direito processual
como ele fora concebido,
enquanto "ciência", embora se tenha a
convicção que há um distanciamento real
entre a "ciência
processual" e a prática jurídica realizada cotidianamente, pois não

os magistrados estão submetidos ao sistema, os próprios advogados no decorrer
de sua atuação profissional vão se adequando a ele, atuando de acordo com as
suas regras e princípios.

Além disso, faz-se necessário que ocorra gradual e


progressivamente uma
desvinculação entre o racionalismo e as ações dos
juristas (sejam advogados,
promotores públicos, juízes, defensores públicos,
entre outros), preservando-se a
idéia absolutamente inabalável dos juízos de
certeza, que em regra são os
pressupostos dos procedimentos recursais, visando,
por exemplo, a construção das
tutelas preventivas, já previstas no
ordenamento jurídico pátrio. Esta ruptura com
o racionalismo tenderá a
desmistificar a idéia de proteção da neutralidade do juiz
resultando do
procedimento ordinário que se tem hoje, lembrando-se que o que se
configura é
uma suposta neutralidade, pois "não existe neutralidade possível em
ciência social" (SILVA, p. 18). Por fim, prima-se por uma mudança
acadêmica em
que a graduação universitária volte-se para a formação de
juristas e não de meros
operadores dos direito.

O sistema processual brasileiro vive um dilema entre o seu


funcionamento
precário, em relação aos anseios da sociedade moderna que prima
pela celeridade
na resolução de seus problemas, isto implica efetividade do
direito e condições
estruturais para o seu próprio funcionamento.

Entre os aspectos insatisfatórios podemos citar a título de


exemplos:

- a falta de condições estruturais para o funcionamento


adequado, eficiente e
eficaz;

- o exacerbado racionalismo jurisdicional na composição dos


conflitos;

- a normatização fortemente enraizada na formação


acadêmico-universitária dos
juristas, que deriva deste mesmo racionalismo,
tornando-os muitas vezes apenas
operadores do direito;

- a limitação e neutralidade do magistrado – que se


apresenta apenas como
julgador e não exerce o poder discricionário dos que tem
em mãos o poder de
decidir, resguardada pela racional utilização das normas,
visando a preservação da
segurança jurídica, fortemente imposta pelo sistema
recursal vigente;

- o normativismo burocrático que cumpre o papel de


contaminação do sistema
processual, isto implica em contaminação da prática
forense;

- o julgamento transferido da seara do magistrado para o


âmbito de seus
assessores que elaboram "projetos de julgamentos" –
eis o que Silva (2008, p. 15)
chama de "justiça de gabinete";

- a elevação da importância da jurisprudência e da norma,


em detrimento da
doutrina e da lei – ressaltando-se que "o Estado
contemporâneo administra, não
legisla" (SILVA, 2008, p. 16), lembrando-se
que a lei deve apresentar uma
construção normativa embasada na realidade
sociocultural, econômica e afins
vigente, a partir da formulação de um
hábito simples: o de pensar;

- a politização do Poder Judiciário que assume um papel de


promoção do bem-
estar social (provimento de medicamentos aos carentes de
recursos, internação de
enfermos em hospitais, interferência em obras
públicas, etc.).

Destarte, percebemos que estas questões navegam entre o mal


funcionamento e as
questões estruturais, pois se os profissionais que irão
trabalhar com o "Direito"
não foram formados para serem verdadeiros
juristas, não desempenharão seu
ofício a contento, refletindo na própria
estrutura do sistema processual, bem
como, se há um enaltecimento do
normativismo racional em detrimento da
construção do pensamento
crítico-jurídico os magistrados se valerão da segurança
jurídica para não
exercerem de modo discricionário sua função. A legislação pátria
promove
também problemas estruturais, pois condiciona as ações dos juristas lato
sensu, sejam eles advogados, juízes, promotores, defensores públicos e
afins.

Parafraseando Silva (2008): de nada vale substituir o


motorista, neste caso os
juristas, se o veículo que se irá guiar está com
problemas no motor que não lhe
permitirão chegar ao lugar desejado na
velocidade esperada, isto é, ao fim do
processo, com a devida decisão, em
tempo hábil e célere que faça cumprir o
ideário de justiça do
jurisdicionado.

É notório que o direito a tutela jurisdicional é


assegurado a todos, mas não se pode
mais pensar na busca à jurisdição apenas
como "garantia de ação [...] outorgada
pela Constituição e pela lei aos
titulares de pretensões insatisfeitas,
independentemente de terem ou não terem
razão – desde que presentes os
requisitos para que o juiz possa dispor a
respeito" (DINAMARCO [01], 2001, p. 89).
Sendo assim, o enfoque
destinado ao direito de ação pela doutrina tradicional
apresenta-se como
reflexo de "uma postura introspectiva em que o sistema
processual parecia
ser um objetivo em si mesmo, sem preocupações com os
objetivos a realizar, ou
seja, sem se preocupar com os resultados que dele esperam
a sociedade, o Estado
e os indivíduos" [02]. Deste modo, socialmente se espera
mais
do Direito, enquanto pacificador social, e promotor da justiça, para tanto,
requer-se profissionais cada vez mais qualificados que percebam o seu papel na
esfera jurídica.

No entanto, é preciso ressaltar que há profissionais que


firmam o seu labor sobre a
solidez de conhecimentos, visões críticas,
analíticas e reflexivas sobre cada fato
objeto do conflito de forma isolada,
analisando todos os aspectos necessários para
a edificação de uma conclusão
que vise à pacificação social, grande fim do Direito
na sociedade. Além
disso, entendem que o conhecimento jurídico está acima do
conhecimento da
legislação e que o profissional, bacharel em Direito, deve buscar
sempre a
construção de saberes para que possa atuar de forma crítica, reflexiva,
participativa e pró-ativa no seio social. Este profissional e estudioso do
Direito se
consubstancia na figura do jurista, que utiliza a leitura e escrita
da legislação e
demais textos jurídicos (não necessariamente normativos) em
prol da "sua
realização e do seu desenvolvimento social e cultural"
(FERREIRA, 2008, p. 513)
e, por que não, humano.

Bobbio (2008, p. 44) afirma que "a experiência


jurídica nos coloca frente a um
mundo de relações entre sujeitos
humanos organizados estavelmente em
sociedade mediante o uso de regras
de conduta", o que implica dizer que o
bacharel em Direito não deve
dirigir sua formação acadêmico-profissional apenas
para a análise das leis
em sentido stricto, mas deve
observar que as relações
humanas ocorrem em uma sociedade organizada
com regras, e que estes aspectos
são complementares e essenciais para a
construção do entendimento jurídico
direcionado a cada fato isoladamente, que
incluem pessoas, a própria sociedade e
as normas.

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste estudo, urge clarificar os direcionamentos


teóricos e práticos que
ousamos sistematizar acerca de alfabetização e
letramento jurídico. O primeiro diz
respeito ao cidadão, tendo em vista que
para o indivíduo exercer sua cidadania
plena torna-se essencial não ser apenas
alfabetizado. Isto implica demonstrar
habilidades e competências próprias para
a leitura e a escrita. Todavia para atingir
o nível de letramento, o que se
traduz na formação de uma consciência crítica,
reflexiva e participativa do
sujeito na sociedade, a partir das competências
formadas relativas à leitura e
à escrita.

Nesse sentido, a alfabetização consiste, então, na


técnica responsável pela
aquisição da leitura e da escrita e o letramento na
construção crítica dos saberes a
serem apreendidos com as leituras e as
escritas que se realizarão em diversos
espaços e tempos, não somente
escolares formais. Convém ter presente que a
linguagem jurídica por si só,
muitas vezes, impede que o cidadão compreenda os
seus direitos e deveres na
sociedade, afastando-o da busca pela justiça e
pacificação social que é
peculiar ao direito. Portanto, é preciso levar a efeito uma
mudança de
paradigma no tocante aos textos jurídicos em geral para promover a
inserção
social de modo abrangente.

O segundo confere uma distinção ao bacharel em Direito, o


qual pode pautar a
formação de seu conhecimento jurídico
acadêmico-profissional apenas na leitura e
na escrita da legislação em vigor,
sendo um operador do Direito, isto é, um
alfabetizado jurídico. Ou, ainda,
pode ultrapassar a barreira legislativa e edificar
seus conhecimentos em textos
jurídicos variados que levem em conta os princípios
e as concepções
sociológicas, filosóficas e dogmáticas no estudo do direito,
fundando os
saberes adquiridos em princípios ético-valorativos, para utilizá-los no
meio
social de maneira participativa, ativa, reflexiva e crítica, sendo acima de
tudo
um jurista cidadão.

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In: MODERNA: fazendo
escola com você. Livros didáticos. Ensino Fundamental I. Artigos.
[s.l.]: Moderna, 2004.
Disponível em:
<http://www.moderna.com.br/moderna/didaticos/ef1/artigos/2004/0014.htm>.
Acesso em:
21 ago. 2010.

Notas
1. Op.
2. DINAMARCO,
Cit. p. 90. Cândido Rangel. Instituições
de direito processual.São Paulo: Malheiros, 2001.

Autores
Kalina Silva Gonçalves Cabral

Pós-graduada em Gestão Educacional, pela Universidade


Estadual Vale do Acaraú, e Pós-graduanda em Direito Civil e
Processo Civil, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bacharela
em Direito, pela Universidade Potiguar, e Licenciada em Pedagogia, pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú. Atua como Conciliadora do 6º
Juizado Especial Cível - Unidade Móvel do Trânsito - Natal/RN, e exerce o
cargo de Auxiliar de Secretaria do mesmo Juizado.

Pedro de Oliveira Júnior


Pós-graduado em Gestão Educacional, pela Universidade Estadual Vale do
Acaraú, e Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil, pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Bacharel em Direito, pela Universidade
Potiguar. Atua como Coordenador dos Agentes Judiciários de Proteção da 1ª
Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Natal/RN.

Informações sobre o texto


Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Kalina Silva Gonçalves; OLIVEIRA JÚNIOR, Pedro de. Alfabetização


e/ou letramento jurídico. Exercício de cidadania e uma concepção de formação
acadêmico-profissional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano
16, n. 2922, 2 jul. 2011.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19458. Acesso
em: 22 jan. 2022.

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