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Um ponto de partida
Assim, em 2011, iniciei uma nova etapa em minha trajetória, como professora da
Educação Infantil da Rede Municipal de Campinas. Logo percebi que esta estrada era muito
diferente e que havia perdido algo fundamental: minha equipe de apoio, aquela que ajudava a
trocar os pneus quando furavam, que ajudava a consertar o limpador de parabrisas nos
momentos de tempestade, que ajudava a compreender as incoerências da paisagem… Foi
necessário diminuir a velocidade para seguir neste caminho. Carregava minha bagagem
pessoal, todas as paisagens e caminhos das estradas anteriores; também fiz questão de
continuar carregando aquela bagagem fundamental, que agora saia da mala e sentava ao meu
lado como co-piloto: a pedagogia Freinet.
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das
dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas
alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus
olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar! (GALEANO, 2002)
Esse exercício de escrita proposto por mim no blog também me mantinha mais
próxima da Pedagogia Freinet e da ideia de Movimento proposta por ele. Na ausência de
parcerias próximas, me reafirmando uma “professora Freinet”, me mantinha próxima deste
grupo de professores que praticam esta pedagogia. E essa proximidade era uma necessidade, a
necessidade de não se sentir só. Como bem ressalta Munhoz, em sua dissertação de mestrado,
o próprio Freinet, ao iniciar sua experiência docente, procurou divulgá-la e compartilhá-la
com demais professores, registrando suas práticas e publicando artigos em revistas e livros.
Desse compartilhar, surgiram interessados em conhecê-la, novos “praticantes”, trocas de
ideias. Desde o início, a Pedagogia Freinet é elaborada e reelaborada cooperativamente. A
ideia de compartilhar as descobertas e as reações que suscitam está na origem do surgimento
do movimento (MUNHOZ, 2010)
Ao assumir esta nova estrada, tendo como parceiro e co-piloto a Pedagogia Freinet,
alguns princípios foram assumidos mais seriamente no caminhar cotidiano. Se as crianças
passaram a assumir um papel de maior destaque, era preciso organizar nosso caminhar de
modo que elas pudessem efetivamente ser ouvidas. Deste modo, destaco com um foco
importante do caminhar cotidiano um dos momentos privilegiados na rotina em que isso
acontece: a roda de conversa.
Freinet, como professor, a partir da sua relação direta com seu trabalho, reflete e
propõe uma nova organização escolar em que a criança é o centro de todo o processo
pedagógico, enfatizando a importância da livre expressão e da palavra que é ouvida e levada
em consideração na organização do trabalho pedagógico. Nas palavras de Joffily,
[...] na classe Freinet, a criança tem a palavra, não para que seja preservada
em sua espontaneidade, mas porque ela é cidadã. Não há cidadania sem o
direito à palavra, através da qual se expressa e se interroga o mundo e a
Ouvir efetivamente o que tem as crianças têm a nos dizer, repensar e replanejar o
cotidiano a partir desse ouvido é possível porque a pedagogia Freinet é uma pedagogia
construída na prática, ou seja, teoria e prática se retroalimentam constantemente num processo
dialético (OLIVEIRA, 1995). Ao partir de princípios que norteiam as práticas e trabalhos
cotidianos com as crianças, a pedagogia Freinet é dinâmica, uma vez que a organização da
sala e o uso dos instrumentos são diretamente afetados e modificados pelas condições físicas e
a histórias de vida daqueles que ali estão. Por isso, as classes Freinet são muito semelhantes e
ao mesmo tempo muito diferentes entre si, pois são profundamente marcadas pelo grupo –
professor e crianças – que a compõe. Isso significa que cada roda de conversa acaba se
organizando de acordo com as características de cada turma de crianças e pela professora que
a compõe.
Assim, na roda de conversa se torna o espaço para traçar nossa rota diária; retomar
vivências individuais e coletivas, compartilhar experiências, causos, acontecimentos do dia a
dia de cada um, novidades; elaborar e rever regras de convivência, retomar situações de
conflito; avaliar e retomar acontecimentos cotidianos; encaminhar trabalhos de pesquisa a
partir dos interesses do grupo; fazer leituras, brincadeiras, cantar músicas, adivinhas, piadas...
Como motorista, um dos meus papéis é de organizar e mediar o caminhar, mas, do
banco traseiro, as crianças participam ativamente e são também responsáveis pelo que
acontece ali. Ajudam a pensar e reelaborar a dinâmica da roda sempre que necessário. Nem
sempre espontaneamente. Em certos momentos também são convidadas a repensarem este
momento, conforme a necessidade.
Companheira de viagem, as pequenas narrativas escritas no blog revelam o olhar e a
percepção do muito que ali acontecia. Como nos dois exemplos abaixo em que convido as
crianças a repensarem a organização da roda de conversa.
[...]
Ontem, eu virei e falei:
– A gente já está se organizando bem legal pra roda, mas eu tenho que
ficar um tempão aqui falando que vai começar e tem gente que demora pra
perceber… A gente tá perdendo tempo… Vamos combinar uma coisa pra
todos saberem que a roda está começando?
Todos concordaram.
– Pode ser uma música? A gente combina uma música. Aí quando a
gente cantar, já sabe que logo depois vai começar a roda. Alguém tem
alguma ideia de música?
Silêncio. Em seguida, o Cagab diz:
– Roda, roda, roda, pé, pé, pé…
Taí, combinamos! Treinamos uma vez para ver se daria certo! Deu!
(OLIVEIRA, 2012b)
Para que isso se efetive, a garantia do uso democrático deste espaço é fundamental e
ele é construído coletivamente desde o primeiro dia. Todos têm o direito à palavra, mas para
isso, precisam respeitar a vez do outro, ouvir o que o outro fala, esperar sua vez. Este
momento em roda ajuda a criar uma consciência de grupo, de pertencimento. Ajuda a deixar
[…] alguns falam de mais, outros de menos, mas todos têm pedido para
falar. Até os mais tímidos, como o Ga, que chega todo dia, desde o primeiro
dia do ano, chorando de vergonha de entrar na sala. E é vergonha mesmo,
não é outra coisa. Ele não consegue entrar sozinho. Fica todos os dias na
porta me esperando, às vezes, chorando, outras prendendo o choro, mas não
consegue entrar sozinho… Até hoje!
O Jogá é o contrário: fala, fala, fala e quer contar tudo o que consegue
lembrar e inventar quando chega a sua vez. E nessa roda, ele começou
contando o que aconteceu quando ele acordou, foi fazer isso, fazer aquilo…
Tive que ajudá-lo. Falei:
– Jogá, agora é o momento de contar UMA novidade para a turma, não
dá pra contar tudo o que aconteceu com você. Olha quanta gente ainda quer
falar… – e mostrei a fila de inscrição no livro da vida. – De tudo o que
aconteceu, o que você mais quer contar para a turma?
Aí ele contou o que queria e a roda seguiu-se até todos contarem o que
desejava.
No outro dia, vamos começando a roda e o Jogá levanta a mão. O Jopê,
ao seu lado, diz:
– Ai, ai, ai, lembra, né? Não é pra ficar contando tudo que demora
muito, é pra contar só UMA coisa!
(OLIVEIRA, 2012c)
Hoje, estas pequenas narrativas permitem uma retomada de parte desse caminhar.
Naquele momento permitia, mesmo que numa instância completamente diferente, um outro
olhar para o desenvolvimento do nosso caminhar. Trazia um pouco daquele olhar “de fora”
que a equipe de apoio permitia. Escrever, ler, reler, trazia a possibilidade de visualizar uma
linha de desenvolvimento dos caminhos trilhados. Essa linha, que antes era construída em
parcerias físicas, agora era construída virtualmente: primeiramente vinha de mim mesma, ao
re-olhar os escritos; depois, de outros poucos olhares que acompanhavam as narrativas.
Esta escrita também funcionava como um instrumento que trazia a memória daquele
grupo, de nossas vivências. Também trazia a possibilidade de olhar novamente algumas
situações ocorridas e me ver de outra maneira, repensar as intervenções que poderia (ou não)
ter feito, as palavras que poderia (ou não) ter dito, os olhares que poderia (ou não) ter feito. Se
constituíam como a história desse caminhar juntos.
Inicio 2018 buscando os sentidos da escrita destas pequenas narrativas ao longo desta
viagem que se iniciou ainda no curso de pedagogia ao descobrir a escola como possibilidade.
Busco o diálogo com pesquisa narrativa pedagógica autobiográfica, entendendo-a partir da
perspectiva trabalhada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada
(GEPEC/UNICAMP), como mobilizadora do necessário diálogo entre os conhecimentos, os
saberes e as experiências de formação e da profissão, funcionando também como plataforma
de lançamento à reflexão sobre si mesmo e sua atuação pedagógica. Assim, iniciei neste ano
na primeira turma de Mestrado Profissional da Unicamp.
A partir da pesquisa trilho agora um caminho de reencontro comigo mesma. Descubro
e aprendo no início do trilhar desta pesquisa narrativa autobiográfica seu caráter formativo, ou
seja, enquanto pesquiso também me formo, me transformo; caráter também percebido por
Proença (2014) no caminhar de sua pesquisa.
Referências
BOLIVAR, Antonio. O esforço reflexivo de fazer da vida uma história. In Revista Pátio.
Porto Alegre, n. 43, agosto/outubro 2011.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 9a ed. Porto Alegre: L&PM, 2002.
JOFFILY, Ruth. Por que Freinet?. Palestra proferida no I Encontro Campinas de Educadores
Freinet. Campinas, 2012. (transcrição original fornecida pela autora)
OLIVEIRA, Anne Marie M. Celestin Freinet: raízes sociais e políticas de uma proposta
pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e cópias de Botafogo e Escola de professores, 1995.
Citada por JOFFILY, Ruth. Por que Freinet?. Palestra proferida no I Encontro Campinas de
Educadores Freinet. Campinas, 2012. (transcrição original fornecida pela autora)
OLIVEIRA, Liliam Ricarte de. Iniciando a roda. Campinas, 28/04/2012b. Disponível em:
https://meajudaaolhar.wordpress.com/2012/04/28/iniciando-a-roda/ Acesso em: 15/6/2018.
OLIVEIRA, Liliam Ricarte de. Um dia após o outro. Campinas, 09/05/2012c. Disponível
em: https://meajudaaolhar.wordpress.com/2012/05/09/um-dia-apos-o-outro-8/ Acesso em:
15/6/2018.