Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ou
Como começar uma guerra mundial
Do particular ao geral
As relações internacionais
Conclusão
Neste ponto da nossa análise, talvez, uma conclusão já fosse
desnecessária. Contudo, a título de ilustração, aproveitaremos para
enfatizar o ponto de vista defendido até aqui.
O já mencionado caráter populista que se projeta sobre o
pretenso julgamento de Guilherme II, além do óbvio oportunismo dos
políticos em relação à opinião pública doméstica, no caso específico das
eleições britânicas de 1918, coloca à frente de Lloyd George, Sir Barthes,
candidato pelo partido trabalhista, que inflamava o eleitorado propondo o
enforcamento do ex-Kaiser. Aparentemente, de forma reativa e mais
ponderada, em resposta ao seu adversário Lloyd George48, pouco
entusiasmado, passou a defender a ideia do julgamento do ex-soberano
alemão.
Também é observação de Keynes, o fato de que o presidente
Wilson, na troca de notas com a Alemanha, que antecedeu a Conferência,
apenas insinua a possibilidade de abdicação do Kaiser. Evidenciando a
distância existente até chegar-se num efetivo julgamento. O foco das
questões centrava-se nas reparações de guerra e no respeito à liberdade
dos mares49, pela ótica norte-americana. Além do conteúdo explícito
dessa observação, uma vez que os Estados Unidos se envolveram num
conflito com características e protagonistas tipicamente europeus, deve-
se lembrar de que na sua relação com a Europa, desde 1822, a Doutrina
Monroe é a referência suprema. Um maior envolvimento na política
europeia, além de pouco proveitoso, poderia representar a flexibilização
de um limite diligentemente estabelecido pela diplomacia norte-
americana. A observância de tal diretriz acabaria por ser imposta com o
recrudescimento do isolacionismo dos Estados Unidos pós-1918. Nesse
sentido e de forma a fechar esse parêntese com referência aos Estados
Unidos, é essencial explicitar que esse país acabou por alegar que os
crimes imputados ao ex-Kaiser não estavam tipificados na ordem
internacional, o que, por fim, impedia que o julgamento fosse realizado.
Para além dessas questões pontuais exercitadas no diálogo entre
política interna e externa, dimensão indispensável ao entendimento das
relações internacionais, retomaremos a abordagem mais ampla das
dimensões sócio-históricas da tese que se defende nessa analise.
O ex-Kaiser50 Guilherme II, da Alemanha, não foi julgado,
conforme a prescrição da Resolução 237 do Tratado de Versalhes,
porque o idealismo do tratado e sua justiça subordinaram-se à politica
internacional e seu pragmatismo. Mas, além disso, julgar o ex-Kaiser não
seria o julgamento de um indivíduo, seria o julgamento de uma geração
inteira de homens que haviam marchado imprudentemente para a
tragédia. Alguns venceram, outros perderam. Mas o ex-Kaiser estava
longe de ser o único culpado. Na verdade ninguém queria seu julgamento.
É importante observar que nos eventos finais da Grande Guerra,
o Kaiser foi praticamente mantido como figura coadjuvante, enquanto
Hindenburg e Ludendorff efetivamente comandavam as forças alemãs.
Como mencionamos anteriormente, Hindenburg acabaria assumindo a
presidência da Alemanha e, em 1932, acabou nomeando Hitler como
chanceler. Da mesma forma que ele, Ludendorff permaneceu atuante na
vida política nacional, até sua aposentadoria voluntária em 1937.
Reiterar essa observação é fundamental para efeito de demonstração da
continuidade da lógica militarista e nobiliárquica prussiano-alemã, num
contexto em que se buscava evitar um arriscado vazio de poder e manter
um modelo de investimentos e negócios já comprovadamente de
sucesso. Na dimensão da operação ideológica, a personalização do mal
na figura do Kaiser, cria também a impressão de mudança, enquanto na
verdade mantem-se a mesma lógica, o mesmo espírito e as mesmas
possibilidades de jogo político e econômico.
O conservadorismo político e a necessidade de conservarem-se
os poderes estabelecidos eram ditados por um momento em que os
governos europeus estavam ameaçados à esquerda e à direita. A partir
dos anos 1920 o fascismo já emergido tenta e consegue tomar o poder na
Itália, em 1922; e frustra-se momentaneamente na Alemanha, em 1923.
De outro lado, o avanço de revolução comunista, entre o final dos anos
1910 e meados dos anos 1920 é concreta em diversos países.
Novamente sendo a Alemanha o exemplo mais concreto.
Também, por conveniência, manter o poder estabelecido na sociedade
europeia, se fazia necessário enquanto promovia-se o combate à
consolidação da Revolução Bolchevique e seu risco de contaminação
ideológica e internacionalização revolucionária.
Não bastassem as perturbações de ordem politica, no plano social
as reivindicações da classe trabalhadora, das mulheres e de movimentos
nacionalistas, igualmente impunham cautela.
Ainda outra transformação em curso nesse momento, também
decorrente da desorganização do sistema europeu, diz respeito à
mudança efetiva do poder gravitacional no sistema das relações
internacionais. Se a Grande Guerra marca a derrocada da hegemonia
europeia na política internacional, interessa aos europeus minimizarem
seu prejuízo evitando uma maior desorganização de seu sistema e uma
menor predominância da potência emergente. Da mesma forma, ao novo
centro hegemônico, os Estados Unidos, não interessa envolver-se numa
questão que pouco proveito prático lhe traria, sendo-lhe a conservação do
status quo mais vantajosa.
Como nota final dessa analise reitera-se a pergunta: por que o ex-
Kaiser não foi julgado?
Nessa resposta convém resgatar na perspectiva da racional deste
texto a convicção de que não era o indivíduo que deveria ser julgado e
sim a coletividade. Os mesmos homens que fizeram a guerra, a
continuaram, através da violência praticada pelo suposto tratado de paz.
Plantaram as sementes da miséria, do sofrimento e da violência praticada
contra a Alemanha. Novamente ecoando Keynes, julgar o ex-Kaiser seria
julgar a eles mesmos!
Porém, também é valioso observar ao encerrar essa analise
mencionando que Nuremberg não teria existido sem Leipzig. A novidade
ensejada pelo conflito mundial e suas consequências legais lançaram as
ideias que seriam aperfeiçoadas vinte anos depois. O tribunal de guerra, a
sociedade das nações e a necessidade de uma mais efetiva concertação
internacional testadas depois de 1918, adquiriram substância pós-1945
produzindo resultados mais efetivos e duradouros.
Bibliografia
AROSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP:
Edusc, 2006.
BYERS, Michael. International Law In: REUS-SMIT, Christian e SNIDAL,
Duncan. The Oxford handbook of International Relations. Oxford
University Press, 2008.
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919 – 1939. Uma Introdução
ao Estudo das Relações Internacionais. Brasília, Editora Universidade de
Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo. 2001.
CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra
Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
KEYNES, John Maynard. As consequências econômicas da paz.
Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2002. (Clássicos IPRI; v.3).
MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial...que acabaria com
as guerras. São Paulo: Globo Livros, 2014.
OLIVEIRA, Cristiano José Martins de. A criação de um tribunal penal
internacional.
Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc". Disponível em
https://jus.com.br/artigos/14525/a-criacao-de-um-tribunal-penal-
internacional (em 28/06/2018 às 10h25min).
REMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2015.
RENOUVIN, Pierre. Historia de las relaciones internacionales – siglos XIX
y XX. Ediciones Akal: Móstoles (Madrid), 1998.
REUS-SMIT, Christian e SNIDAL, Duncan. The Oxford handbook of
International Relations. Oxford University Press, 2008.
Tratado de Versalhes. Artigos 227 a 230
http://net.lib.byu.edu/~rdh7/wwi/versa/versa6.html (em 31/05/2018 às
19h06min).
TUCHMAN, Barbara Wertheim. Canhões de agosto. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1998.
1
Doutor em história. Professor de história das relações internacionais, política externa brasileira e
internacionalização de empresas.
2
Nery & Beck – encordoando histórias do tênis. Porto Alegre, 2016.
3
Denominação original da guerra de 1914 antes da eclosão de guerra de 1939. Convém lembrar que
para vários historiadores não se tratam de duas guerras distintas, mas uma só com vinte anos de
intervalo. A expressão Grande Guerra pode, então, ter dupla conotação.
4
AROSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006. pg. 330.
5
Aróstegui, op. cit. pg. 329. A prosopografia, numa definição simplificada, é uma biografia coletiva.
6
REMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. Rio de Janeiro: Apicuri, 2015. Pg. 18.
7
RENOUVIN, Pierre. Historia de las relaciones internacionales – siglos XIX y XX. Ediciones Akal: Móstoles
(Madrid), 1998.
8
BYERS, Michael. International Law In: REUS-SMIT, Christian e SNIDAL, Duncan. The Oxford handbook of
International Relations. Oxford University Press, 2008.
9
Byers, op. cit. pg. 617.
10
Byers, op. cit. pg. 626.
11
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919 – 1939. Uma Introdução ao Estudo das Relações
Internacionais. Brasília, Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2001. Pg. 231.
12
Carr, op. cit. pg. 237.
13
A discussão entre os princípios do pacta sunt servanda e do rebus sic stantibus e desenvolvida de
forma bastante didática na obra de Carr.
14
Byers, op. cit. pg. 618.
15
TUCHMAN, Barbara Wertheim. Canhões de agosto. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998.
16
Tuchman, op. cit. pg. 2.
17
Tuchman, op. cit. pg. 6/7.
18
Rémond, op. cit. pg.20.
19
CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014.
20
MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial...que acabaria com as guerras. São Paulo: Globo
Livros, 2014.
21
MacMillan, op. cit. pg. XXI.
22
MacMillan, op. cit. pg. XXV.
23
MacMillan, op. cit. pg.22.
24
Pode-se recordar o dito “fardo do homem branco” como portador da civilização, obrigado a
disseminar os valores do mundo desenvolvido entre povos atrasados e inferiores. Espanta, atualmente,
que neoliberais apressados e com interpretações a la carte da história insistam que o colonialismo foi o
promotor do desenvolvimento para diversos países asiáticos e africanos.
25
Nome mantido na versão original dada sua peculiaridade e ao significado vinculados a ele.
26
MacMillan, op. cit. pg.233.
27
MacMillan, op. cit. pg.249.
28
MacMillan, op. cit. pg.252.
29
MacMillan, op. cit. pg.274.
30
Convém destacar que a pioneira na tipologia das modernas empresas transnacionais foi a norte-
americana Colt, fabricante de armas, que em 1852 estabeleceu uma subsidiária na Inglaterra.
31
ANGELL, Norman. A grande ilusão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
32
MacMillan, op. cit. pg.247.
33
Em perspectiva histórica, os eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial e o contexto atual
das relações internacionais pós-unificação da Alemanha e pós-União Europeia (UE), somente
comprovam a importância e a centralidade desse país. A ponto de alguns analistas afirmarem que o
acordo da UE é um acordo alemão em seu sentido produtivo, financeiro e comercial.
34
KEYNES, John Maynard. As consequências econômicas da paz. Imprensa Oficial do Estado, Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v.3).
35
Sociedade das Nações ou Liga das Nações, criada a partir do Trado de Versalhes, por influência do
presidente norte-americano Woodrow Wilson, foi uma tentativa de criar uma assembleia de países, de
caráter permanente e institucional, na qual os assuntos diplomáticos pudessem ser debatidos e
encaminhados de forma negociada e pacífica. Ironicamente, o congresso norte-americano, dominado
pelos republicanos no pós-guerra, não autorizou a participação dos Estados Unidos na Sociedade das
Nações. Assim, essa instituição, praticamente passou a ser um colegiado de países europeus,
especialmente depois da saída do Brasil, em 1926, reproduzindo no seu interior as tradicionais
rivalidades da política europeia.
36
Liberalismo que será rompido com algumas medidas de políticas públicas de Hoover e com a Lei
tarifária Smoot-Hawley, já antecipando algumas medidas que caracterizariam o New Deal.
37
Rémond, op. cit. pg. 69.
38
Renouvin, op. cit. pg. 849.
39
Renouvin, op. cit. pg. 842.
40
Embora destacando a oposição de natureza ideológica de Keynes, realçada tanto por sua militância
junto ao Bloomsbury Group e sua rejeição parcial aos valores burgueses, como pela sua proximidade
intelectual com as ideias comunistas que iriam levá-lo a forjar o keynesianismo em oposição ao
liberalismo tradicional e conservador.
41
Keynes, op. cit. pg. 37.
42
Nas palavras de Keynes.
43
Keynes, op. cit. XXXIII.
44
Keynes, op. cit. pg.4.
45
Dimensões que observamos efetivadas no pós- Segunda Guerra Mundial em preparação aos
Julgamentos de Nuremberg. Nesse contexto possibilitadas pela ocupação de Berlin e posse dos arquivos
e documentos da Alemanha.
46
OLIVEIRA, Cristiano José Martins de. A criação de um tribunal penal internacional.
Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc". Disponível em https://jus.com.br/artigos/14525/a-
criacao-de-um-tribunal-penal-internacional (em 28/06/2018 às 10h25min).
47
Cfe. Oliveira no referido artigo.
48
Neste ponto há divergência na bibliografia. Alguns autores atribuem a sugestão de enforcamento do
ex-Kaiser a Lloyd George. Optamos pelo relato de Keynes, crítico e contemporâneo dos fatos que faz
uma observação mais apurada da eleição britânica. Ver Keynes, op. cit. pg. 4.
49
Keynes, op. cit. pg.39.
50
E nesse contexto é fundamental considerar o peso do personagem histórico, não só como líder
político de uma poderosa nação europeia, mas também como membro de uma sociedade tradicional
inter-relacionada por laços de parentesco, de riqueza e fiadora de uma determinada ordem social,
politica e econômica.