Você está na página 1de 32

A necessidade de ser levado a sério

ou
Como começar uma guerra mundial

Dr. Silvio Romero Martins Machado1

A guerra é a única forma de depurar o mundo!


Marinetti
O coração humano é o início e o fim
de todas as questões relativas à guerra.
Marechal de Saxe.

Ao receber o convite da Dra. Tatiana Squeff para escrever sobre


este tema reagi com satisfação e aceitei prontamente. Afinal, o historiador
sempre é chamado para contar eventos que aconteceram. Pela primeira
vez vou contar a história de um evento que não aconteceu. Obviamente, é
mais difícil. O que aconteceu está dado. Apesar das eventuais
interpretações divergentes, há um evento concreto a ser analisado,
descrito e explicado. A explicação do que não aconteceu é indiciária, nos
obriga a procurar evidências, formular uma tese e correr os riscos de
comprová-la. Nosso tema aqui é o julgamento do Kaiser Guilherme II, da
Alemanha. Prescrito pelo artigo 227 do Tratado de Versalhes, tal
julgamento nunca aconteceu.
Com o tempo percebi o desafio colocado ao comprometer-me em
escrever um capítulo que irá integrar uma obra que trata de matéria tão
sofisticada. O fato de não ser um especialista em direito internacional me
desafia a compreender em maior profundidade o que se pretende discutir
nessa obra e ao mesmo tempo cria a oportunidade de introduzir na obra
uma abordagem distinta. Espero ter êxito em ambas as pretensões.
Como diversas vezes acontece na vida acadêmica, a
sincronicidade faz com que assuntos e temáticas diretamente, ou
correlacionados, aos nossos interesses acadêmicos acabem se
oferecendo a uma analise mais profunda. A questão do complexo de
inferioridade alemão e da sua necessidade de projetar hard e soft power
nas relações internacionais já havia surgido para mim quando escrevi um
livro sobre a história do tênis2. A utilização do esporte como elemento
catalizador do nacionalismo germânico se intensifica no final do século
XIX em diante num processo vinculado à afirmação da nação alemã
recentemente unificada e tardiamente integrante das práticas coloniais.
Além disso, à medida que amadurece minha percepção de
historiador e se acumula o conhecimento, sempre aquém do necessário e
do desejado, cada vez mais a Grande Guerra3 surge como evento síntese
e matriz de uma nova perspectiva. Mas confesso que, sobretudo, são as
semelhanças daquela transição entre os séculos XIX e XX e os tempos
atuais que tem me fascinado. Naqueles dias como nos atuais o mundo
era assombrado pelo terrorismo. Políticos, militares e nobres eram suas
vítimas. A sociedade burguesa também sofreu em atentados nos quais
granadas foram jogadas dentro de teatros ou em festas de casamento.
Em geral, atentados praticados por anarquistas ou nacionalistas.
Também, por volta de 1900, observamos o surgimento de uma
religiosidade fervorosa vinculada a concepções espiritualistas e esotéricas
que tomou conta da Europa. Surgem as sessões espíritas, a Teosofia, da
madame Helena Blavatsky, e muitos místicos, enganadores e charlatães.
As mulheres lutavam pelo voto e ainda lutam hoje por um maior
protagonismo na sociedade. Os operários organizavam-se em sindicatos
liderados pelos anarquistas em oposição às imposições do capital em
franca internacionalização.
Naquela época, como hoje, a contestação dos valores tradicionais era
corrente. Alfred Kerr, intelectual alemão em entrevista ao Le Figaro, em
1907, disse sobre a civilização francesa: Um povo cujos homens se
recusam a ser soldados e cujas mulheres não querem ter filhos entorpece
sua vitalidade.
Observamos também um momento de aguda tensão entre o
avanço do capitalismo internacionalizado contra as formas mais
tradicionais de organização econômica e social. Tensão essa que
ameaçava tanto a tradicional nobreza rural, quanto os trabalhadores
urbanos.
Foi um período de governos elitistas, conservadores e nacionalistas que
buscavam catalisar suas populações em torno de projetos políticos
identificando inimigos da nação dentro e fora de seus respectivos países.
Dentre tantas mudanças e contestações, a tensão resultante
ativou a ideia fatalista do milenarismo. A ideia de fim do mundo, de
inevitabilidade da destruição e da morte, num misto de justiça divina,
purgação e insanidade humana. A purificação da terra pelo sangue.
Tradição recorrente na mentalidade europeia, que aqui no Brasil também
se manifestou intensamente na mesma época, o início do período
republicano.
Tais semelhanças, obviamente sem similitude absoluta por uma
questão histórica, fazem-nos pensar nas lições do passado e ao mesmo
tempo identificar manobras e expedientes reincidentes, colocados em
prática, num cenário politico cada vez mais desprovido de criatividade e
energia construtiva, como naquela época.

Dois desafios metodológicos

O primeiro desafio metodológico que precisa ser abordado nesse


estudo se refere à questão do indivíduo como sujeito histórico.
Em virtude da evolução historiográfica, progressivamente
abandonou-se a abordagem da biografia e dos feitos dos “grandes
homens”, passando a privilegiarem-se abordagens mais amplas
considerando-se contextos, processos e mentalidades, entre outras
possibilidades analítico-explicativas, que englobavam e atribuíam maior
significado e compreensão ao desenvolvimento da história.
Porém, definir-se quem são os sujeitos históricos e qual a medida
da projeção da individualidade sobre os eventos determinantes da
narrativa histórica sempre é um problema complexo.
Neste estudo nosso problema investigativo é nomeado. Trata-se
da pessoa do Kaiser Guilherme II, da Alemanha, o que inevitavelmente
nos levará a tecer considerações sobre esse indivíduo e suas
peculiaridades. Isso, entretanto, não representa um retorno a uma
valorização unívoca do individualismo metodológico. A volta do sujeito
não quer dizer a volta do individualismo.
Ao mesmo tempo, falar do Kaiser é falar dos homens de seu tempo, é
falar da nobreza europeia, que nessa época se confunde com boa parte
de sua família, e analisar as ideias e as relações existentes no contexto e
nas dinâmicas das relações sócio-históricas do período.
Ao referir-se ao problema do indivíduo com ator histórico,
Aróstegui (2006) destacou que:

“o problema do sujeito está inserido em qualquer tentativa de


explicação histórica relevante: a origem da Grande Guerra de
1914, a transição espanhola para a democracia, a difusão da
máquina a vapor ou a conquista da América.” 4

Nessa análise, certamente, o sujeito é identificável como


indivíduo, porém, sua dimensão histórica transcende o individualismo ao
analisarmos suas características em termos de poder, motivação, cultura
e mentalidade. Essa interação do indivíduo com seu meio determina, e é
determinada, pela relação entre o individual e o coletivo, que
consequentemente produzem os eventos históricos que acontecem
naquele momento, porque não poderiam acontecer nem antes, nem
depois.
Considerando-se outra perspectiva aberta pelos atores
individuais, Aróstegui também recomenda que: precisamos falar dos
indivíduos eram tão importantes, pois de outra forma não se poderia
distinguir entre “os João-ninguém e os poderosos”.
E assim, o interesse pelos sujeitos fez revigorar a escrita e o uso das
biografias, mas também das biografias coletivas, dos sujeitos colocados
em seu plano coletivo identificável por sua ação na sociedade, tal como
nos apresentam as prosopografias.5
Essa tensão entre individual e coletivo, também é reiterada em
debate específico da historiografia sobre a Grand Guerra, quando
Rémond6 ao discordar da analise feita por Renouvin7, por considera-la
excessivamente esquemática, conclui: não é verdade que a economia
alemã estivesse acuada e só lhe restasse como alternativa a guerra. É
forçoso, portanto tomar em consideração um conjunto de diversos fatores:
políticos, militares e psicológicos.
O segundo desafio metodológico que enfrento nesse estudo se
refere às questões relacionadas à justiça e ao direito internacional. É
mandatória tal abordagem uma vez que nosso objeto de estudo é posto
por uma resolução de um tratado internacional.
Ao longo da história das relações internacionais, sob a
imperatividade das relações de poder e da moral, constitui-se um
ambiente no qual as relações entre seus diferentes atores se estabelecem
a partir de acordos, consensos e, também, da impositividade. Convém
destacar, que mesmo nos casos em que acordos sejam celebrados entre
as partes, ainda assim, podemos verificar situações de natureza mais ou
menos impositiva derivada da diferença de poder relativo entre as partes
celebrantes do referido acordo.
A própria natureza das relações internacionais, em sua dicotomia
intercambiante, entre realismo e idealismo, nos leva a refletir sobre a
natureza dos acordos e tratados no âmbito internacional. Tomando como
referência Byers (2008)8 podemos estabelecer que as relações
internacionais são determinações das próprias relações em si. Ou seja,
sua determinação é o resultado das interações das características
presentes em seus atores materializadas através de suas ações.
Entre os extremos da competição e da cooperação, pode ser
estabelecido um termo médio oferecido pela prescrição de caráter
contratual. E esse termo médio, uma vez estabelecido, passa também a
ser expressão da prática realista na medida em que competir ou cooperar
se baseiam em decisões de caráter realista. Ainda assim esse termo não
deve ter aqui o significado restritivo da doutrina Realista das Relações
Internacionais. Nesse contexto, o realismo referido deriva mais de um
paradigma eclético de interpretação do que exclusivamente de uma única
orientação teórica. O que move e determina os diferentes atores, longe de
ser exclusivamente a anarquia e a violência, é todo um conjunto de
capacidades, valores, oportunidades e circunstâncias que virão a
desaguar naquilo que podemos definir com o poder específico de cada
ator nas relações internacionais. Poder, nesse caso, mais próximo da
ideia de capacidade de fazer, do que da capacidade de impor.
Assim, a celebração de tratados internacionais acaba se
estabelecendo numa perspectiva que convém ser pontuada. Segundo
Stear9 (1996; apud Byers, 2008), os tratados são baseados no cálculo dos
Estados de que seus interesses serão mais bem atendidos no longo
prazo através da criação cooperativa de estruturas normativas.
Ao mesmo tempo essas estruturas normativas acabam apresentando
características derivadas de condições pré-existentes. Conforme
Wippman10 (2004; apud Byers, 2008),

“estabelecimento de novas leis e princípios jurídicos não acontece


no vácuo onde tudo pode ser barganhado e no qual os resultados
são controlados pela distribuição de poder entre os protagonistas.
De fato, o processo de criação legal se dá contra um arcabouço
de normas legais e de instituições que limitam e modelam a
amplitude de opções dos participantes e por fim modelam o
processo propriamente dito”.

Ou seja, mesmo na perspectiva da lógica do poder, não fica facultado ao


poderoso impor o que lhe convier unilateralmente. Os ensinamentos de
Tucídides e do Diálogo Meliano repousam, por ora, apenas como lições
fundantes das relações internacionais.
Essa observação adequa-se bem ao caso em estudo. Além de ser
um tratado internacional, o Tratado de Versalhes representou um tipo
especial de tratado. Foi um tratado imposto pelos vencedores da Grande
Guerra aos derrotados, em especial à Alemanha. Um diktat, conforme a
opinião dos alemães. Ainda assim, a Alemanha, a partir do tratado que
lhe foi imposto, soube operar uma estratégia realista adequada ao seu
quantum de poder vis a vis ao poder das demais partes do contrato. E
essa dimensão política da paz de Versalhes é que revela a parcela de
poder de cada um dos principais atores envolvidos.
Se a imposição do tratado à Alemanha se inicia na lógica
configurada na afirmação de Rousseau, de que “o espírito das leis é de
favorecer o forte contra o fraco”, também devemos colar aqui a
observação de Carr11, de que o direito internacional é uma função da
comunidade política das nações. Seus defeitos se devem, não a qualquer
falha técnica, mas ao caráter embrionário da comunidade em que
funciona. Ou ainda, por extensão, seu funcionamento, de forma mais
restrita ou mais flexível, irá refletir as relações e as características
específicas daquela comunidade sob contrato.
Também é importante destacar sobre a contratualidade dos
acordos internacionais sua peculiaridade no que diz respeito à autonomia
dos Estados partes em descumprir ou abandonar acordos e tratados.
Talvez, outra das semelhanças daquela época com a atual. O poder dos
Estados, também é o poder de descumprir um acordo ou tratado. Ou
como no caso da Alemanha, resistir a ele.
Essa parcela de poder soberano, enunciada por Bismarck12
manifestava que “todo tratado tem apenas o significado de uma
constatação de uma posição definida nos assuntos europeus. A reserva
sic rebus stantibus13 está sempre subentendida”.
Ao lado de Chanceler alemão, Carr lembra que, Theodore Roosevelt e
Woodrow Wilson partilhavam dessa mesma reserva soberana em relação
aos tratados e acordos celebrados pelos Estados soberanos. Além disso,
convém mencionar que tanto na tradição diplomática norte-americana,
quanto na britânica, alinhamentos e compromissos permanentes eram-
lhes estranhos. O cálculo político, a conveniência e a oportunidade
sempre foram os elementos norteadores da ação diplomática.
Consequentemente, a expectativa e, até mesmo, certa flexibilidade na
imposição do Tratado de Versalhes à Alemanha continha em si esses
pressupostos.
E, sim, ainda há o problema da aplicação da lei internacional.
Que só se aplica mediante o consentimento do estado que adere ou como
no caso em tela, ao qual se dita a lei. Ainda assim, como vemos a
Alemanha pôde resistir e gradualmente melhorou sua situação e, de fato,
no limite, transformou-a em crise europeia.
Na perspectiva do diktat o Tratado de Versalhes pode ser visto
como um “garrote” jurídico que poderia ser utilizado para estrangular a
Alemanha (posição francesa) ou ser flexibilizado para facilitar-lhe a
recuperação (Grã-Bretanha e Estados Unidos).
De certa forma essa circunstância do Tratado de Versalhes permite refletir
sobre a estratégia alemã, que sempre apostou nas divergências entre os
vencedores, especialmente entre a França e a Grã-Bretanha, para resistir
à ocupação de seu território e construir sua estratégia em direção ao
Tratado de Locarno, de 1924, e a entrada na Sociedade das Nações, em
1926.
Nesse sentido, Guzman14 (2002; apud Byers, 2008) afirma que os
estados celebram acordos com vistas a firmar sua reputação e assim
alavancam sua capacidade de perseguir seus objetivos. E que “não
podemos nos satisfazer com a simples conclusão de que os tratados são
celebrados para serem obedecidos”.

Do particular ao geral

O Kaiser, a família e a mentalidade dos homens

Tendo estabelecido as considerações sobre o sujeito histórico e


as questões relativas ao direito internacional, o desenvolvimento desse
estudo segue agora um caráter explicativo em relação ao julgamento do
Kaiser. Espero que ao longo do desenvolvimento do texto fique clara a
concorrência de múltiplos fatores que explicam porque Guilherme II nunca
foi levado a julgamento. Não creio que possamos chegar ao final desse
estudo atribuindo destaque a qualquer dos fatores envolvidos, uma vez
que, a complexidade dos fatos históricos, assim como da realidade vivida,
somente pode ser compreendida tomando-se o todo e suas partes
constituintes. Diante da perspectiva caleidoscópica da História, alterando-
se uma parte, altera-se o todo.
Iniciarei essa analise pelo elemento já mencionado acima como
problemático para efeitos de análise histórica: o homem. E a partir dele,
prosseguirei abordando dimensões progressivamente mais amplas e
coletivas. Espero chegar ao final com uma descrição suficiente e válida
que responda por que não ocorreu o julgamento do Kaiser Guilherme II,
da Alemanha, uma vez que tal previsão encontrava-se formalizada nas
cláusulas do Tratado de Versalhes.
A primeira circunstância que se pode destacar em relação ao
Kaiser Guilherme II é sua situação familiar. No início do século XX,
Eduardo VII, Rei da Inglaterra era considerado o tio da Europa15
(Tuchman, 1998). Era tio do Kaiser Guilherme II e do Czar Nicolau II. Sua
sobrinha Alix era Czarina, sua filha Maud era Rainha da Noruega; outra
sobrinha, Ena, era Rainha da Espanha e uma terceira sobrinha, Marie,
logo seria Rainha da Romênia. A família dinamarquesa de sua esposa,
além de ocupar o trono da Dinamarca, produzira o Czar da Rússia e os
reis da Grécia e da Noruega.
Nesse contexto familiar, pode-se supor que essa congestão de cabeças
coroadas por vezes confunda as relações pessoais com as relações
diplomáticas, muitas vezes transferindo rivalidades pessoais e disputas
familiares para o campo da política.
Ainda segundo Tuchman16, Guilherme II, considerava Eduardo, irmão de
sua mãe, a quem ele não conseguia amedrontar ou impressionar, uma
cuja figura obesa que lançava uma sombra entre a Alemanha e o sol, o
arquiconspirador do isolamento da Alemanha.
- Ele é o satã! – teria afirmado Guilherme em 1907.
A essa circunstância da diplomacia familiar complexa, somam-se
algumas características pessoais do Kaiser. Guilherme II, nascido e
educado nas artes marciais da Prússia, seria portador de uma sequela do
parto que lhe havia deixado como braço esquerdo mais curto. Fato que
ele, permanente, buscava disfarçar segurando objetos ou apresentando-
se numa posição mais favorável. Alguns historiadores sugerem que esta
pequena deficiência afetou o desenvolvimento emocional de Guilherme.
Além disso, Guilherme II se sentia excluído da grande politica
europeia. Reclamava não ser levado por seus pares. Segundo Tuchman17

“Quando a entente tornou-se fato, a raiva de Guilherme foi


enorme. Por trás daquela aliança, e ainda mais exasperante para
ele, estava o triunfo de Eduardo em Paris [.... ] em suas
frequentes viagens ao exterior encontrava certo consolo nas
cerimonias de entrada nas capitais estrangeiras, e aquela que ele
desejava visitar mais que todas era Paris, a inatingível; Paris, o
centro de tudo que era belo, tudo que era desejável, tudo que
Berlim não era, permanecia fechada para ele. Queria a
aclamação dos parisienses e ganhar o Grand Cordon da Legião
de Honra, e por duas vezes fez com que os franceses
soubessem desse desejo imperial; jamais recebeu um convite.
Viveu até os 82 anos e morreu sem ter visto Paris”.

Além disso, prossegue a autora,

“a inveja das nações mais antigas o torturava; sentia-se


desprestigiado. Reclamou com Theodore Roosevelt que a
nobreza inglesa, em suas viagens pelo continente europeu,
nunca visitava Berlim, mas sempre ia a Paris.
Ao rei da Itália ele declarou: - Durante todos os longos anos do
meu reinado, os meus colegas, monarcas da Europa, não
prestaram atenção ao que eu tenho a dizer. Breve, com meu
grande poder naval para endossar minhas palavras, eles terão
mais respeito”.

Aos traços pessoais de Guilherme II, Rémond18 pareia a


circunstância nacional da Alemanha:

“[...] como o seu imperador, a Alemanha sofria de uma terrível


necessidade de reconhecimento. Cheios de energia e
ambição, desejoso de poder, nutridos por Nietzsche e
Treitschke, os alemães viam-se com o direito de reinar, e se
sentiam prejudicados pelo mundo que não lhes reconhecia esse
direito.
Depois da demissão de Bismarck e da ascensão de Guilherme II,
passa de uma política de equilíbrio de poder europeu à
Weltpolitik, ou seja, a uma política de expansão aventurosa, de
hegemonia portadora dos germes da guerra”.

Em termos sócio-históricos, homem e sociedade são


indissociáveis. Se a pessoa do Kaiser era portadora de determinadas
características e, se por criação e convívio familiar determinados valores e
situações eram-lhe caras e, além disso, combinavam-se com as
circunstâncias politicas de seu país e seu governo, torna-se imperativo
mapear no plano das ideias em que pensavam os homens que
caminhavam para a tragédia que foi a Grande Guerra. Como sonâmbulos,
parafraseando a obra de Clark19 (2014), essa geração de homens
marchou resolutamente para a guerra.
Nessa abordagem, o excelente trabalho de MacMillan20 (2014)
oferece notáveis reflexões. A primeira observação feita a partir desta obra
diz respeito à complexidade de explicações necessárias para o
entendimento da Grande Guerra. Isso nos leva a analisar uma variedade
de fatores. A autora destaca21: a corrida armamentista, a rigidez dos
planos militares, a rivalidade econômica, guerras comerciais, o
imperialismo em busca de novas colônias e os sistemas de alianças
dividindo a Europa em campos antagônicos. Porém, essas dimensões
técnicas e políticas operaram, e foram operadas, por ideias, sentimentos
e expectativas que foram os catalizadores da tragédia.
MacMillan nomeia o nacionalismo, o medo das revoluções, dos terroristas
e anarquistas e as exigências de honra e virilidade. Em particular, sua
referência ao darwinismo social equivale a um epitáfio22:

“Filho bastardo do pensamento evolucionista e primo do


militarismo, alimentou a crença em uma competição entre as
nações como parte das leis da natureza, segundo as quais, no
fim, sobreviveriam as mais aptas. Que classificava sociedades
como se fossem espécies e promovia uma crença não só na
evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da
luta.”
Ainda no plano das subjetividades, pode-se destacar que os cem
anos de paz conquistados pelo Congresso de Viena (1814/1815), não só
afastaram os europeus de conflitos de grande magnitude, como
produziram gerações de homens imprudentemente descrentes de uma
grande ameaça, incapazes de avaliar riscos e consequências. O savoir
vivre da Belle Époque parecia transformar todas as atividades em jogos
de salão sob o efeito do elitismo e da afetação das relações burguesas e
nobiliárquicas.
Aliás, essa é uma das dificuldades de compreender a Grande Guerra. Ela
não pode ser pensada como um evento do século XX. É necessário
lembrar a advertência de vários historiadores de que a guerra iniciada em
1914 foi, de fato, o evento que encerrou o século XIX. Por isso, dito, o
longo século XIX.
MacMillan, ainda dialoga com, o ainda não desencantado, Stefan
Zweig, ao remarcar manifestação da mentalidade da época:

“O mundo inteiro estava dominado por um clima de alegre


despreocupação, pois, afinal, o que poderia interromper esse
crescimento, o que poderia se interpor no caminho do dinamismo
que, de sua própria impulsão, extraía mais força? A Europa nunca
fora tão forte, rica e bela, jamais acreditara com tanto fervor em
um futuro ainda melhor.” 23

Toda essa inconsciência europeia, incapaz de enxergar os passos


dados no sentido da autodestruição, também levava a falta de
sensibilidade e desatenção em relação a violência praticada pelos
europeus nas relações coloniais. Possivelmente justificadas e atenuadas
por serem impostas a sociedades e populações inferiores, que no final
das contas deveriam agradecer por serem destinatárias do poder
civilizatório do homem branco24.
Não por acaso, essa virada dos 1900 foi também a época da
emergência dos trabalhos e estudos de Sigmund Freud e da psicanálise.
Ainda no plano do zeitgeist, convém destacar, que além dos
problemas familiares entre os descendentes da Rainha Vitória, a maioria
dos governantes europeus – Guilherme II, Nicolau II, Franz Ferdinand25
eram homens de mentalidade militarista, equestre e nobiliárquica. Sua
posição de classe os impedia de considerar e reconhecer a posição do
outro e das classes sociais inferiores.
Convém destacar que nos países governados por cabeças
coroadas, mesmo havendo governos constitucionais com o tradicional
compartilhamento de poderes entre os três poderes, ainda assim as
classes governantes apresentavam um forte viés de confirmação de
opiniões e lógicas de pensamento. Mesmo setores da classe média
deixavam-se contaminar pelos valores e opiniões dessas classes
superiores. E, diante do clamor da guerra, as classes baixas acabaram
sendo cooptadas por um nacionalista de caráter populista. A título de
exemplo, a figura de Conrad Von Hötzendorf, novo Chefe do Estado-
Maior e um dos homens mais influentes da Monarquia Dual, expunha sua
opinião sobre política externa.

“A Áustria-Hungria precisava ser mais enérgica e positiva para


mostrar ao mundo que devia ser levada a sério e, igualmente
importante, instilar orgulho em seus próprios cidadãos e superar
as preocupantes divergências domésticas. Êxitos no exterior, aí
incluído o sucesso no campo militar, resultariam em maior apoio
interno ao governo, que, por sua vez, geraria maior apoio geral a
uma política externa mais agressiva. Devemos sempre ter em
mente que o destino das nações e das dinastias é decidido nos
campos de batalha e não na mesa de conferência.”26

Digna de ênfase é a observação de MacMillan, de que

“As decisões que levaram a Europa à guerra foram tomadas por


um número surpreendentemente pequeno de homens – poucas
mulheres tiveram participação – oriundos em grande parte,
embora não totalmente, da alta classe, seja da aristocracia rural,
seja da plutocracia urbana. Mesmo os de origem na classe média
[...] tendiam a absorver seus valores e partilhar suas opiniões.”27
Nesse plano das ideias e valores, ainda duas outras dimensões
devem ser abordadas. Ambas se referem ao processo geral de
modernização econômica, urbanização e industrialização, embora com
efeitos distintos.
A transição econômica e social promovida pela segunda
revolução industrial, com sua ênfase na mecanização agrícola e na
industrialização urbana, afetou em cheio o meio de vida e a cultura das
classes superiores, em sua maioria, ainda vinculadas à terra, seus frutos
e seu valor patrimonial. Diante, não só da perda do valor de suas terras,
mas do ataque aos valores fundamentais de uma sociedade que até
então tivera seus valores e seu ritmo de vida ditados pela atividade rural e
pelo poder dela derivado, compreende-se a atitude destrutiva e
conservadora dessa elite para preservar seus valores e tentar controlar a
mudança. MacMillan, saliente que

“... a aristocracia e a pequena nobreza em toda a Europa,


ameaçadas pela queda dos preços da terra e dos produtos
agrícolas, viam seus valores contestados por um novo mundo
urbanizado [...] Durante as derradeiras décadas de paz na
Europa, as altas classes travaram, com determinação, uma
guerra de contenção.”28

Optando pelo conservadorismo e pela resistência, não surpreende


que a classe dirigente dessa época desenvolvesse grande admiração
pela Idade Média e conceitos derivados daquele universo, mais
imaginário do que histórico. Assim, a honra, intangível, mas de valor
inestimável, era, assim pensavam os membros da classe alta, algo que
vem de berço. Os cavalheiros tinham sua própria honra, que as classes
inferiores não possuíam. Essa admiração pela Idade Média, sentida no
fim do século XIX, foi outra forma de se esquivar do mundo moderno. E,
como no âmbito das relações internacionais, muitos dos homens,
protagonistas da diplomacia internacional, vinham da classe alta ou
tinham as mesmas origens (muitas vezes inter-relacionadas), não
surpreende o fato de também usarem a linguagem de honra e vergonha.
Também relacionado ao plano do desenvolvimento econômico e
da industrialização, faz-se necessário abordar a questão do militarismo.
Aliás, a dimensão da tragédia somente pode ser explicada ao alinharem-
se a disponibilidade de capitais, providos pelas altas finanças
internacionais, a modernização industrial e a mentalidade marcial.
No plano social o militarismo tinha duas faces: a preservação do
meio militar, imune a críticas, no topo da sociedade, e, em sentido mais
geral, a projeção dos valores militares, como disciplina, ordem, sacrifício
da própria vida e obediência, que se infiltrava e influía na sociedade civil.
Se na Alemanha, tanto o Kaiser Guilherme II, quanto o exército prussiano
sempre insistiram que os militares obedecessem ao Kaiser e estivessem
acima da crítica de meros civis, ainda assim, o militarismo era um
fenômeno em toda a Europa e atingia todas as sociedades29.
A outra dimensão do militarismo que exige atenção é resultante
da modernização das forças armadas nos diferentes países. Tal iniciativa
de modernização, como a história ensina reiteradamente, é uma
excelente maneira de satisfazer e garantir o apoio das classes militares,
embora, em muitos casos, o próprio governante acabe por tornar-se
refém dessa lógica. Na situação em análise, a modernização das forças
armadas dava-se sob o influxo de forças poderosas. As modernas
indústrias de armamentos, convertidas progressivamente em empresas
transnacionais30, mesmo quando não operavam diretamente em
diferentes países, mantinham entre si operações conjuntas com o
fornecimento de componentes e licenciamento de fabricação. Podemos
citar as emblemáticas indústrias bélicas Krupp e Vickers, com suas sedes
na Alemanha e na Inglaterra, respectivamente, que abasteciam diferentes
países e compartilhavam a produção de determinados componentes para
seus armamentos.
A nota final desse arranjo produtivo internacional fica por conta
dos capitais transnacionais. Grandes banqueiros norte-americanos,
ingleses e holandeses sempre estiveram prontos a investir na pujante
indústria alemã. Dado o caráter de eficiência e crescimento da indústria
germânica, e ao apetite do Kaiser pelo aparelhamento bélico, sem dúvida,
a Alemanha era o paraíso dos investimentos no período pré-1914.
Sob a ironia cruel do paradoxo podemos ver a mortandade
produzida pela Grande Guerra também pela associação entre uma
mentalidade medieval de honra e sacrifício, de uma época em que os
combates se realizavam com lanças e espadas, num campo de batalha
em que os inimigos eram dizimados com metralhadoras, lança-chamas e
armas químicas.
Girando um pouco o caleidoscópio da análise sócio-histórica,
podemos indagar em relação a que ideias e comportamentos a cultura
conservadora da elite europeia fazia sua guerra de contenção. É certo,
que no plano econômico e produtivo, já compreendemos o desafio
colocado à aristocracia rural.
A arte e a cultura, no seu papel de arautos de uma nova era, é
que radicalizaram a polarização cultural. O início do século XX é um
momento de grande modernidade. Picasso, Braque e Klimt, na pintura,
propunham inovações estéticas e doutrinárias que rompiam com aquela
proposta de representação literal e retratista.
Na dança, Isadora Duncan e Nijinski traziam para os palcos a
sensualidade, a liberdade de movimentos e a libertação do corpo em
sentido mais amplo.
Na música, a atonalidade e o dodecafonismo, de Schöenberg,
romperam com as métricas musicais convencionais.
Nesse contexto, os já mencionados estudos de Sigmund Freud,
ao lado das inovações mencionadas, e de muitas outras, criam, revelam e
produzem uma nova realidade. Uma nova percepção do homem, das
suas relações e possibilidades.
As inovações no campo político, com a busca do voto feminino, a
organização dos trabalhadores e suas demandas apoiadas pela
organização sindical e articuladas pelos anarquistas, criavam uma nova
realidade social com a qual a nobreza reinante na Europa não tinha
recursos, disposição ou humildade. Nunca a realidade das classes
governantes se descolou tanto da população.
Também, como novidade, que se apresentava sob a ameaça de
paradoxo ao poder indisputado das classes governantes, a chamada
opinião pública em muitos casos constitui-se empecilho e levou
governantes à retratação, impondo-lhes limites inconvenientes. Apesar
dessa novidade não realizar-se plenamente, como muitos sonharam,
dentre eles Norman Angell31, a opinião pública entrou definitivamente na
ordem política dos regimes democráticos.
Assim, quando olhamos para trás e focalizamos os anos
anteriores a 1914, podemos ver o nascimento do mundo moderno que
hoje conhecemos, mas também podemos identificar a persistência e a
força de velhas formas de pensar e viver.32

As relações internacionais

Tendo abordado a sociedade dos homens, agora é necessário


falar da sociedade das nações. A complexidade da política europeia,
antes e depois da Grande Guerra, exige considerações sobre a política
“jogada” pelos principais protagonistas. É importante observar que na
escalada dos eventos que precederam ao conflito todos os intervenientes
tem sua participação e importância. Contudo seria falta de sensibilidade
ou, como o caso de alguns analistas, excesso de ufanismo, querer
colocar atores secundários no mesmo plano dos grandes players. Ainda
se justifica essa seletividade, na medida em que nos termos do Tratado
de Versalhes e sua execução, de fato, ficamos restritos a um menor
número de países.
A primeira constatação, que se faz necessária ao concerto
europeu pré-guerra, diz respeito à centralidade da posição alemã e de
toda a interdependência derivada dessa posição. Nesse emaranhado de
relações interdependentes, a Alemanha era o elemento central. Suas
relações com a Inglaterra, com a França, com a Áustria-Hungria, com a
Rússia e com a Holanda, fazem dela a aduela de topo, aquele ponto de
fecho no arco gótico das relações internacionais europeias, sem o qual o
arco não se sustenta e rui33. Talvez, ainda na época do tratado, Keynes34
(2002) tenha sido a voz mais eloquente, demonstrando com clareza e de
forma enfática, eventualmente excessiva, essa percepção.
Iniciando essa seção pela análise da diplomacia britânica,
colocando-se a mesma em perspectiva, se destaca a política externa da
insularidade. Ou seja, sua condição geográfica em mais de uma ocasião
colocou a Inglaterra a salvo das circunstâncias da política continental.
Tendo sua resistência, nas Guerras Napoleônicas, representado um
trunfo para o Império britânico e sua poderosa armada. Sob essa lógica
do distanciamento relativo, a Inglaterra sempre buscou movimentar sua
diplomacia no sentido de evitar a emergência de hegemonias
continentais. Ou, de eventualmente combatê-las. Haja visto, que tal
situação se produziu ao menos em três diferentes episódios: nas Guerras
Napoleônicas, 1914 e 1939.
A política externa britânica era marcada pela ausência de
compromissos e de alinhamentos automáticos. Sua demora em engajar
na Grande Guerra é também reflexo dessa característica diplomática.
No período do Tratado de Versalhes observamos que a Inglaterra
enfrenta no plano da sua política doméstica desafios pontuais e
expressivos. Inicia-se de forma mais militante a luta pelo nacionalismo
irlandês, liderado pelo Exército Republicano Irlandês (IRA), que além de
oferecer substancial desafio de ordem interna, em termos bélicos
mantinha mobilizados e indisponíveis tropas do exército inglês.
Outro fator, de expressiva urgência interna, era organização dos
trabalhadores, suas greves e, agora, a organização oferecida pelos
comunistas a partir da matriz soviética.
Também deve ser considerado, que mesmo derrotada, a
Alemanha era o parceiro preferencial para investimento e negócios da city
londrina. Se no período pré-guerra, a Rússia ainda oferecia boa
oportunidade para os investimentos ingleses, agora, sob o governo
bolchevique, a Alemanha reafirmava sua preferência.
Outra circunstância da diplomacia europeia, é a de que na
Sociedade das Nações35 (SDN), com a ausência dos Estados Unidos, as
potencias europeias passaram a disputar o poder, fazendo ressurgir a
tradicional rivalidade entre Inglaterra e França. Sob essa lógica, aos
ingleses a Alemanha acabava por representar um aliado diante do rival
tradicional. Convém enfatizar, que boas partes das divergências entre
Inglaterra e França ocorriam justamente por seus interesses distintos em
relação ao futuro da Alemanha, e pelo risco, aos olhos ingleses, de uma
eventual hegemonia francesa no continente.
A diplomacia norte-americana, de matriz anglo-saxônica, também
era orientada para o isolacionismo. Especialmente em relação aos
assuntos europeus, convém destacar a implementação da Doutrina
Monroe (1822) e seu reforço com o Corolário Roosevelt (1904). Duas
oportunidades distintas nas quais os EUA reforçavam sua hegemonia
regional e sua reduzida disposição para intervir nos assuntos europeus.
A participação norte-americana na Grande Guerra representou um grande
esforço diplomático e “cultural” e, por isso mesmo, gerou uma grande
ressaca no pós-guerra. Não só a imigração foi bloqueada, como a
desconfiança contra os estrangeiros era generalizada. Tudo o que vinha
do estrangeiro, da Alemanha, em particular, – produtos, homens e ideias
– era visto com desconfiança.
Após a guerra, no retorno aos EUA, o presidente Wilson se
depara com um congresso de maioria republicana que rejeita o Tratado
de Versalhes. Além disso, após o mandato de Wilson, os republicanos
retomam a presidência do país. Harding foi o presidente que prometeu
aos norte-americanos a volta a normalidade; Coolidge, o presidente que
incentivou o consumo e a prosperidade da classe média; e, com Hoover,
o país entrou na Grande Depressão. Em comum nesses três mandatos
republicanos são unificados por um período de exaltado liberalismo 36, em
termos de política interna, e de isolacionismo, em termos de política
externa.
Assim, com a ausência dos Estados Unidos e da Rússia,
desconectada do concerto europeu em virtude do regime bolchevique, a
SDN configura-se como um clube dos países vencedores da guerra, pelo
menos até 1926, operando a partir das vicissitudes de sua política
regional.
A França irá desempenhar um papel singular no pós-guerra.
Assume a chamada diplomacia da execução, especialmente sob o
governo de Poincaré. Uma vez estabelecida pela cláusula de culpa, a
responsabilidade da Alemanha, as indenizações apuradas trazem
embutidas a intenção de debilitar e impedir ao máximo a recuperação da
Alemanha. O orgulho francês, ferido desde a Guerra franco-prussiana, de
1871, acredita oportuno exercer sua vingança e garrotear o inimigo para
evitar futuras ameaças.
A diplomacia da execução, praticada pela França é levada ao
extremo durante a ocupação do vale do Ruhr, entre 1923 e 1924,
pretendendo impor a presença militar francesa até que a Alemanha
honrasse seus compromissos financeiros. Dessa postura francesa
decorreram três consequências importantes: ampliou-se a distancia entre
a França e a Inglaterra, aprofundou-se a crise econômica e financeira da
República de Weimar e criaram-se condições para uma melhor inserção
da Alemanha na SDN. O ganho francês foi reduzido.
No plano da política interna, a França também se deparava com o
avanço das forças de esquerda. Contra as greves operárias o governo
não hesitava em usar a violência. Organizaram-se ligas voluntárias tanto
para reprimir os grevistas, quanto para manter os serviços essenciais em
funcionamento.
Contudo, foi na Alemanha onde as peculiaridades do momento
histórico se avultaram, também por conta da derrota na guerra.
Rémond37 destaca que, na Alemanha se constituíram, no
momento da derrota, sovietes de soldados, marinheiros e operários. Em
Berlim e na Baviera, onde se desmantelaram os quadros políticos e
sociais criou-se um ponto fraco visado pela arremetida revolucionária. A
Liga Espartaquista, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht,
dentro desse quadro de convulsão nacional, representavam a presença
do comunismo libertário e revolucionário. A pressão comunista irradiada
pelo sucesso da Revolução Russa, de 1917, continuaria a pressionar a
Europa até Stalin suprimir o espírito de internacionalização da revolução
capitaneado por Trotsky.
Por conta da revolução e da perda de apoio politico, o Kaiser
Guilherme II renunciou ao poder. A República de Weimar foi fundada,
tendo como seu primeiro presidente Frederick Ebert.
Na jovem república, em 1925, Paul von Hindenburg foi eleito
presidente em 1925. Assim como o Kaiser, era membro da nobreza
prussiana. E nos meses finais da guerra, ao lado de Erich Ludendorff, fora
o comandante supremo do exército alemão, permanecendo o Kaiser num
papel figurativo. A própria abdicação do Kaiser somente pode ser
compreendida nessa situação de perda de apoio político e de sua
liderança frente ao exército alemão.
Hindenburg, em 1932, acabou nomeando Hitler como chanceler
da Alemanha. Da mesma forma que ele, Ludendorff permaneceu atuante
na vida política nacional, até sua aposentadoria voluntária em 1937.
Essa observação é fundamental para efeito de demonstração da
continuidade da lógica militarista e nobiliárquica prussiano-alemã, num
contexto em que se buscava evitar um arriscado vazio de poder.
Já nesse período republicano, observamos que a Alemanha lidou
com extrema habilidade com as cláusulas do Tratado de Versalhes.
Manobrando através da resistência e da contestação, explorando as
divergências entre Inglaterra e a França, a Alemanha chega a uma
conciliação.

“Gustav Stresemann, chanceler e ministro das Relações


Exteriores, anunciou a intenção de cumprir as cláusulas do
Tratado de Versalhes. Em troca esperava conseguir a revisão
progressiva das referidas cláusulas e um lugar no conselho da
SDN, que daria a Alemanha a oportunidade de desenvolver com
maior eficácia o jogo de sua diplomacia [...] Além disso, obteve
uma vantagem imediata: a concessão de créditos estrangeiros
para sua recuperação econômica. Adiante, com a
implementação do Plano Dawes houve uma afluência
considerável de capitais estrangeiros para a Alemanha. Norte-
americanos, ingleses e holandeses consideravam que em
virtude de não haver sofrido nenhuma devastação territorial a
Alemanha estava em condições de rapidamente retomar seu
poderoso desenvolvimento econômico” 38.
Ou seja, observamos como a Alemanha transita do status de um
“diktat” para o status de um contrato. Neste, ela concorda com as
cláusulas, negocia e progressivamente vai melhorando sua posição.
Renouvin destaca que:

“Era a França que desejava estabelecer no Tratado de Versalhes


certas limitações à soberania alemã. A Grã-Bretanha desejava
que a Alemanha recobrasse seu posto na produção e no comércio
da Europa. Os meios políticos alemães, desde 1919, davam por
certo que essas divergências entre os interesses dos vencedores
lhes permitiriam obter uma revisão progressiva nas cláusulas do
tratado. Desde 1920, a política inglesa fortaleceu neles essa
esperança”.39

Sobre o Tratado de Versalhes

No Tratado de Versalhes, entre os artigos 227 e 230, há o


reconhecimento de culpa por parte da Alemanha e a previsão das
penalidades que lhe serão impostas. Há também, a condenação do ex-
Kaiser Guilherme II pelos crimes de guerra e pela violação da moralidade
do direito internacional e da santidade dos tratados, inclusive, já
formulando, ao governo holandês, o pedido de extradição do ex-Kaiser,
que se encontrava naquele país. E, por fim, no escopo que interessa a
esse trabalho, encontramos a previsão de punibilidade dos demais
acusados que serviram dentro dos quadros do exército alemão.
Conforme ressalva feita anteriormente, não se pretende o risco de
analisar o Tratado de Versalhes sob a ótica do direito internacional.
Dando continuidade ao viés já definido nos segmentos anteriores desse
estudo, prosseguiremos analisando as circunstâncias de caráter sócio-
históricas, com ênfase nas dimensões políticas, diplomáticas e
econômicas.
Tendo abordado até este ponto diversas características sócio-
históricas intervenientes sobre o tema deste estudo, agora pretendemos
abordar diretamente o próprio Tratado de Versalhes. Porém, antes de
iniciar tal análise é importante destacar que em perspectiva crítica o
referido documento é fruto de sua circunstância, reflexo e produto natural
das características que até aqui analisamos.
Como criação humana, o Tratado acabou por refletir diversas das
características de seus artífices. Especialmente aquelas que destacamos
no plano das mentalidades, da cultura e dos interesses políticos. Como
em diversas situações, observadas na prática, em situações de forte
oposição entre as partes, ao invés da cooperação, ao fim nas
negociações, o que resta sobre a mesa é um resultado, em geral,
insatisfatório para todas as partes ou irrealizável.
Na análise a seguir serão utilizados alguns recortes do tratado, a
partir dos quais poderemos estruturar a análise pretendida, contrastando
o explícito proposto e o resultado obtido. Ou ainda, a partir de quais
circunstâncias é que se chegou àquela letra.
Adicionalmente, recorremos, talvez, aquele que foi o crítico mais
perspicaz e incisivo do Tratado de Versalhes, John Maynard Keynes40.
As ideias de Keynes tem repercussão em três dimensões
relevantes nessa analise. Em sua ponderação sistêmica em termos
econômicos, destaca que:

“Ali, o futuro da Europa não constituía uma preocupação; seus


meios de subsistência não causavam ansiedade. As
preocupações da Conferência, boas e más, se relacionavam com
fronteiras e nacionalidades, com o equilíbrio de poder, a expansão
imperialista, o futuro enfraquecimento de um inimigo forte e
perigoso, com a vingança e a transferência pelos vitoriosos de
uma carga financeira insuportável para os ombros dos
41
vencidos.”

A partir dessa observação o economista britânico desenvolve


suas reflexões sobre o papel da Alemanha como um centro econômico da
Europa, bem como o papel deste país no desenvolvimento econômico da
Europa e a superação da crise produzida pela Grande Guerra. Também
ao analisar os fluxos econômicos e financeiros que se podem obter da
economia alemã, critica os vencedores que ditam o Tratado, por exigirem
muito mais do que a economia alemã pode suportar, num franco exercício
de humilhação e postergação da recuperação econômica desta. Alerta
tanto pelo retardamento em relação à recuperação econômica da Europa,
quanto pelo eventual acirramento da crise econômica.
Em 1920, no prefácio à edição francesa, Keynes pareceu
profético em sua crítica aos homens que impunham à Alemanha a paz
cartaginesa42 e a humilhação:

“Ao exigir o impossível, desprezaram a substância em favor de


uma sombra, e terminarão por perder tudo. Concentrando-se
excessivamente nos temas políticos, e na busca de uma
segurança ilusória, deixaram de levar em conta a unidade
econômica da Europa – segurança ilusória – porque o seu fator
menos importante é a ocupação territorial extensa, e também
porque a circunstâncias políticas do momento serão em grande
parte irrelevantes para os problemas de uma década mais
tarde” 43.

Sendo mais incisivo Keynes envereda pela crítica política, com


matizes de crítica direta aos representantes dos três grandes vencedores.
Destaca que: as discussões do tratado que começaram no campo das
virtudes e da harmonia sistêmica, rapidamente evoluem para o populismo
e a avareza44.
Essa observação, de forma peculiar, numa análise mais ampla articula a
crítica de Keynes com a estratégia alemã. Conforme observamos
anteriormente, a estratégia alemã de apostar nas divergências e
competição entre os aliados, com o tempo atuou a seu favor.
Mantendo ainda em foco o artigo 227, que acusa o ex-Imperador
alemão, Guilherme II de Hohenzollern, pela suprema ofensa contra a
moralidade internacional e a santidade dos tratados, já estabelece uma
qualificação delicada ao lançar mão de expressões como moralidade e a
santidade ao abordar questões de política internacional.
Ao elencarmos, dentre outros autores, E.H. Carr, fica explícita nesta
análise o quanto expressões dessa natureza encontram-se deslocadas
nesse contexto e, consequentemente, investidas de valor retórico e
carentes de substância prática. Talvez, já contendo aí o germe do seu
descumprimento. Em especial, sendo proferidas por dois países
tradicionalmente praticantes do unilateralismo diplomático. No caso dos
Estados Unidos, de caráter mais isolacionista, como a ressaca pós-
guerra viria a evidenciar. E no caso da Inglaterra, praticante de uma
política externa de caráter pragmático e seletivo em relação aos assuntos
internacionais e, da Europa continental em particular. O não
comprometimento permanente e a não alinhamento automático sempre
orientaram as práticas do Foreign Office.
Mais adiante, ainda no mesmo artigo, o texto do Tratado volta à
retórica da obrigação solene dos compromissos internacionais e da
moralidade internacional. E, ao referir que seu dever será definir a
punição a considerar devida, talvez, já dê pistas de sua não efetivação em
virtude de uma previsão frouxa e imprecisa, posta por um tratado que em
si mesmo já representava a punição, dado o seu caráter unilateral e
impositivo.
Complementa o artigo, a solicitação ao governo holandês para a
entrega do ex-Imperador Guilherme II, que, como sabemos, não foi
acatada pelo governo da Rainha Guilhermina.
Já o artigo 228, embora timidamente, produziu maiores efeitos. O
reconhecimento por parte do governo alemão em relação ao direito dos
aliados trazerem à justiça militar indivíduos acusados de terem violado a
lei e os costumes da guerra, impondo ao governo alemão a
responsabilidade de entregar tais indivíduos.
E, se complementa no artigo 230, que estabelece que a Alemanha é
responsável por fornecer toda a documentação necessária para a
instrução dos casos e para o conhecimento de todos os atos e fatos
incriminatórios e apreciação das responsabilidades.
Novamente a contradição aflora. Uma vez imposto o tratado se
espera do acusado uma cooperação burocrática e autoincriminatória.
Poder-se-ia imaginar que tal cooperação se efetivaria mediante coerção
de natureza física, da implementação do tribunal para a realização dos
julgamentos e da obtenção da base documental para a necessária
instrução dos processos45. Nada disso foi feito.
Adicionalmente, mesmo considerando a natureza diplomática
distinta das motivações, convém lembrar que o Tratado de Sèvres, de
1920, trazia a previsão de sanção às violações das leis e costumes da
guerra e, assim como no Tratado de Versalhes, trazia a previsão do
julgamento dos responsáveis pelos massacres cometidos durante a
guerra no território do Império Turco por um tribunal especial criado pela
Sociedade das Nações ou pelos próprios aliados. Este tratado nunca foi
ratificado, pelo contrário, foi sucedido pelo Tratado de Lausanne, de 1924,
que veio a substituí-lo, anistiando os responsáveis. Mais uma vez a
moralidade e a santidade dos tratados internacionais são colocadas em
cheque diante do genocídio armênio e de outros crimes.
Contra a tibieza dos aliados manifestou-se a postura formal do
governo holandês ao responder à petição enviada pelos Aliados, em 16
de janeiro de 1920, alegando entenderem que o ex-Kaiser do Império
alemão estava sendo acusado por um crime político. Ademais, alegava
que não havia de sua parte obrigação internacional de obedecer à política
dos aliados, invocando ainda, o Direito do Asilo, e, finalmente, que
somente participaria de um Tribunal quando esse fosse legalmente
constituído.
Essa manifestação da “férrea” determinação holandesa, somada à falta
de vontade política das potências vencedoras, fez com que o ex-Kaiser
jamais fosse entregue para julgamento.
Em relação a punição dos demais criminosos de guerra alemães,
sob os artigos 228 e 229, em termos práticos observou-se a lista inicial de
21.000 pessoas acusadas, apresentada pelos aliados, que diante de uma
onda de protestos na Alemanha, reduziu-se a 895 pessoas acusadas de
haver cometido crimes de guerra. Das quais o governo alemão somente
reconheceu 45, sob a alegação do Procurador-Geral alemão que concluiu
que era impossível julgar um número ainda tão grande de réus. Destas 45
pessoas, apenas foram julgados 21 oficiais alemães, sendo que 13 foram
condenadas pelo Tribunal de Leipzig à pena máxima de três anos46.
A esse resultado bastante modesto diante da pretensão inicial dos
aliados, convém esclarecer, que em virtude do não estabelecimento do
necessário tribunal internacional, conforme reclamado pela Holanda,
coube o governo alemão a promulgação de uma lei concedendo à Corte
Suprema Alemã, o Reichgericht de Leipzig, competência excepcional para
julgá-los47.
Assim, em relação aos julgamentos e a condenação dos
responsáveis pelos crimes de guerra, observamos que foram pífios os
resultados obtidos. O que, insistimos, só pode ser compreendido sob a
ótica da ausência da determinação de fazer-se justiça num franco trade-
off com dimensões de natureza política.

Conclusão
Neste ponto da nossa análise, talvez, uma conclusão já fosse
desnecessária. Contudo, a título de ilustração, aproveitaremos para
enfatizar o ponto de vista defendido até aqui.
O já mencionado caráter populista que se projeta sobre o
pretenso julgamento de Guilherme II, além do óbvio oportunismo dos
políticos em relação à opinião pública doméstica, no caso específico das
eleições britânicas de 1918, coloca à frente de Lloyd George, Sir Barthes,
candidato pelo partido trabalhista, que inflamava o eleitorado propondo o
enforcamento do ex-Kaiser. Aparentemente, de forma reativa e mais
ponderada, em resposta ao seu adversário Lloyd George48, pouco
entusiasmado, passou a defender a ideia do julgamento do ex-soberano
alemão.
Também é observação de Keynes, o fato de que o presidente
Wilson, na troca de notas com a Alemanha, que antecedeu a Conferência,
apenas insinua a possibilidade de abdicação do Kaiser. Evidenciando a
distância existente até chegar-se num efetivo julgamento. O foco das
questões centrava-se nas reparações de guerra e no respeito à liberdade
dos mares49, pela ótica norte-americana. Além do conteúdo explícito
dessa observação, uma vez que os Estados Unidos se envolveram num
conflito com características e protagonistas tipicamente europeus, deve-
se lembrar de que na sua relação com a Europa, desde 1822, a Doutrina
Monroe é a referência suprema. Um maior envolvimento na política
europeia, além de pouco proveitoso, poderia representar a flexibilização
de um limite diligentemente estabelecido pela diplomacia norte-
americana. A observância de tal diretriz acabaria por ser imposta com o
recrudescimento do isolacionismo dos Estados Unidos pós-1918. Nesse
sentido e de forma a fechar esse parêntese com referência aos Estados
Unidos, é essencial explicitar que esse país acabou por alegar que os
crimes imputados ao ex-Kaiser não estavam tipificados na ordem
internacional, o que, por fim, impedia que o julgamento fosse realizado.
Para além dessas questões pontuais exercitadas no diálogo entre
política interna e externa, dimensão indispensável ao entendimento das
relações internacionais, retomaremos a abordagem mais ampla das
dimensões sócio-históricas da tese que se defende nessa analise.
O ex-Kaiser50 Guilherme II, da Alemanha, não foi julgado,
conforme a prescrição da Resolução 237 do Tratado de Versalhes,
porque o idealismo do tratado e sua justiça subordinaram-se à politica
internacional e seu pragmatismo. Mas, além disso, julgar o ex-Kaiser não
seria o julgamento de um indivíduo, seria o julgamento de uma geração
inteira de homens que haviam marchado imprudentemente para a
tragédia. Alguns venceram, outros perderam. Mas o ex-Kaiser estava
longe de ser o único culpado. Na verdade ninguém queria seu julgamento.
É importante observar que nos eventos finais da Grande Guerra,
o Kaiser foi praticamente mantido como figura coadjuvante, enquanto
Hindenburg e Ludendorff efetivamente comandavam as forças alemãs.
Como mencionamos anteriormente, Hindenburg acabaria assumindo a
presidência da Alemanha e, em 1932, acabou nomeando Hitler como
chanceler. Da mesma forma que ele, Ludendorff permaneceu atuante na
vida política nacional, até sua aposentadoria voluntária em 1937.
Reiterar essa observação é fundamental para efeito de demonstração da
continuidade da lógica militarista e nobiliárquica prussiano-alemã, num
contexto em que se buscava evitar um arriscado vazio de poder e manter
um modelo de investimentos e negócios já comprovadamente de
sucesso. Na dimensão da operação ideológica, a personalização do mal
na figura do Kaiser, cria também a impressão de mudança, enquanto na
verdade mantem-se a mesma lógica, o mesmo espírito e as mesmas
possibilidades de jogo político e econômico.
O conservadorismo político e a necessidade de conservarem-se
os poderes estabelecidos eram ditados por um momento em que os
governos europeus estavam ameaçados à esquerda e à direita. A partir
dos anos 1920 o fascismo já emergido tenta e consegue tomar o poder na
Itália, em 1922; e frustra-se momentaneamente na Alemanha, em 1923.
De outro lado, o avanço de revolução comunista, entre o final dos anos
1910 e meados dos anos 1920 é concreta em diversos países.
Novamente sendo a Alemanha o exemplo mais concreto.
Também, por conveniência, manter o poder estabelecido na sociedade
europeia, se fazia necessário enquanto promovia-se o combate à
consolidação da Revolução Bolchevique e seu risco de contaminação
ideológica e internacionalização revolucionária.
Não bastassem as perturbações de ordem politica, no plano social
as reivindicações da classe trabalhadora, das mulheres e de movimentos
nacionalistas, igualmente impunham cautela.
Ainda outra transformação em curso nesse momento, também
decorrente da desorganização do sistema europeu, diz respeito à
mudança efetiva do poder gravitacional no sistema das relações
internacionais. Se a Grande Guerra marca a derrocada da hegemonia
europeia na política internacional, interessa aos europeus minimizarem
seu prejuízo evitando uma maior desorganização de seu sistema e uma
menor predominância da potência emergente. Da mesma forma, ao novo
centro hegemônico, os Estados Unidos, não interessa envolver-se numa
questão que pouco proveito prático lhe traria, sendo-lhe a conservação do
status quo mais vantajosa.
Como nota final dessa analise reitera-se a pergunta: por que o ex-
Kaiser não foi julgado?
Nessa resposta convém resgatar na perspectiva da racional deste
texto a convicção de que não era o indivíduo que deveria ser julgado e
sim a coletividade. Os mesmos homens que fizeram a guerra, a
continuaram, através da violência praticada pelo suposto tratado de paz.
Plantaram as sementes da miséria, do sofrimento e da violência praticada
contra a Alemanha. Novamente ecoando Keynes, julgar o ex-Kaiser seria
julgar a eles mesmos!
Porém, também é valioso observar ao encerrar essa analise
mencionando que Nuremberg não teria existido sem Leipzig. A novidade
ensejada pelo conflito mundial e suas consequências legais lançaram as
ideias que seriam aperfeiçoadas vinte anos depois. O tribunal de guerra, a
sociedade das nações e a necessidade de uma mais efetiva concertação
internacional testadas depois de 1918, adquiriram substância pós-1945
produzindo resultados mais efetivos e duradouros.

Bibliografia
AROSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP:
Edusc, 2006.
BYERS, Michael. International Law In: REUS-SMIT, Christian e SNIDAL,
Duncan. The Oxford handbook of International Relations. Oxford
University Press, 2008.
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919 – 1939. Uma Introdução
ao Estudo das Relações Internacionais. Brasília, Editora Universidade de
Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo. 2001.
CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra
Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
KEYNES, John Maynard. As consequências econômicas da paz.
Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2002. (Clássicos IPRI; v.3).
MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial...que acabaria com
as guerras. São Paulo: Globo Livros, 2014.
OLIVEIRA, Cristiano José Martins de. A criação de um tribunal penal
internacional.
Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc". Disponível em
https://jus.com.br/artigos/14525/a-criacao-de-um-tribunal-penal-
internacional (em 28/06/2018 às 10h25min).
REMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2015.
RENOUVIN, Pierre. Historia de las relaciones internacionales – siglos XIX
y XX. Ediciones Akal: Móstoles (Madrid), 1998.
REUS-SMIT, Christian e SNIDAL, Duncan. The Oxford handbook of
International Relations. Oxford University Press, 2008.
Tratado de Versalhes. Artigos 227 a 230
http://net.lib.byu.edu/~rdh7/wwi/versa/versa6.html (em 31/05/2018 às
19h06min).
TUCHMAN, Barbara Wertheim. Canhões de agosto. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1998.

1
Doutor em história. Professor de história das relações internacionais, política externa brasileira e
internacionalização de empresas.
2
Nery & Beck – encordoando histórias do tênis. Porto Alegre, 2016.
3
Denominação original da guerra de 1914 antes da eclosão de guerra de 1939. Convém lembrar que
para vários historiadores não se tratam de duas guerras distintas, mas uma só com vinte anos de
intervalo. A expressão Grande Guerra pode, então, ter dupla conotação.
4
AROSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006. pg. 330.
5
Aróstegui, op. cit. pg. 329. A prosopografia, numa definição simplificada, é uma biografia coletiva.
6
REMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. Rio de Janeiro: Apicuri, 2015. Pg. 18.
7
RENOUVIN, Pierre. Historia de las relaciones internacionales – siglos XIX y XX. Ediciones Akal: Móstoles
(Madrid), 1998.
8
BYERS, Michael. International Law In: REUS-SMIT, Christian e SNIDAL, Duncan. The Oxford handbook of
International Relations. Oxford University Press, 2008.
9
Byers, op. cit. pg. 617.
10
Byers, op. cit. pg. 626.
11
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919 – 1939. Uma Introdução ao Estudo das Relações
Internacionais. Brasília, Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações
Internacionais, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2001. Pg. 231.
12
Carr, op. cit. pg. 237.
13
A discussão entre os princípios do pacta sunt servanda e do rebus sic stantibus e desenvolvida de
forma bastante didática na obra de Carr.
14
Byers, op. cit. pg. 618.
15
TUCHMAN, Barbara Wertheim. Canhões de agosto. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998.
16
Tuchman, op. cit. pg. 2.
17
Tuchman, op. cit. pg. 6/7.
18
Rémond, op. cit. pg.20.
19
CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014.
20
MACMILLAN, Margaret. A Primeira Guerra Mundial...que acabaria com as guerras. São Paulo: Globo
Livros, 2014.
21
MacMillan, op. cit. pg. XXI.
22
MacMillan, op. cit. pg. XXV.
23
MacMillan, op. cit. pg.22.
24
Pode-se recordar o dito “fardo do homem branco” como portador da civilização, obrigado a
disseminar os valores do mundo desenvolvido entre povos atrasados e inferiores. Espanta, atualmente,
que neoliberais apressados e com interpretações a la carte da história insistam que o colonialismo foi o
promotor do desenvolvimento para diversos países asiáticos e africanos.
25
Nome mantido na versão original dada sua peculiaridade e ao significado vinculados a ele.
26
MacMillan, op. cit. pg.233.
27
MacMillan, op. cit. pg.249.
28
MacMillan, op. cit. pg.252.
29
MacMillan, op. cit. pg.274.
30
Convém destacar que a pioneira na tipologia das modernas empresas transnacionais foi a norte-
americana Colt, fabricante de armas, que em 1852 estabeleceu uma subsidiária na Inglaterra.
31
ANGELL, Norman. A grande ilusão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
32
MacMillan, op. cit. pg.247.
33
Em perspectiva histórica, os eventos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial e o contexto atual
das relações internacionais pós-unificação da Alemanha e pós-União Europeia (UE), somente
comprovam a importância e a centralidade desse país. A ponto de alguns analistas afirmarem que o
acordo da UE é um acordo alemão em seu sentido produtivo, financeiro e comercial.
34
KEYNES, John Maynard. As consequências econômicas da paz. Imprensa Oficial do Estado, Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v.3).
35
Sociedade das Nações ou Liga das Nações, criada a partir do Trado de Versalhes, por influência do
presidente norte-americano Woodrow Wilson, foi uma tentativa de criar uma assembleia de países, de
caráter permanente e institucional, na qual os assuntos diplomáticos pudessem ser debatidos e
encaminhados de forma negociada e pacífica. Ironicamente, o congresso norte-americano, dominado
pelos republicanos no pós-guerra, não autorizou a participação dos Estados Unidos na Sociedade das
Nações. Assim, essa instituição, praticamente passou a ser um colegiado de países europeus,
especialmente depois da saída do Brasil, em 1926, reproduzindo no seu interior as tradicionais
rivalidades da política europeia.
36
Liberalismo que será rompido com algumas medidas de políticas públicas de Hoover e com a Lei
tarifária Smoot-Hawley, já antecipando algumas medidas que caracterizariam o New Deal.
37
Rémond, op. cit. pg. 69.
38
Renouvin, op. cit. pg. 849.
39
Renouvin, op. cit. pg. 842.
40
Embora destacando a oposição de natureza ideológica de Keynes, realçada tanto por sua militância
junto ao Bloomsbury Group e sua rejeição parcial aos valores burgueses, como pela sua proximidade
intelectual com as ideias comunistas que iriam levá-lo a forjar o keynesianismo em oposição ao
liberalismo tradicional e conservador.
41
Keynes, op. cit. pg. 37.
42
Nas palavras de Keynes.
43
Keynes, op. cit. XXXIII.
44
Keynes, op. cit. pg.4.
45
Dimensões que observamos efetivadas no pós- Segunda Guerra Mundial em preparação aos
Julgamentos de Nuremberg. Nesse contexto possibilitadas pela ocupação de Berlin e posse dos arquivos
e documentos da Alemanha.
46
OLIVEIRA, Cristiano José Martins de. A criação de um tribunal penal internacional.
Dos tribunais militares aos tribunais "ad hoc". Disponível em https://jus.com.br/artigos/14525/a-
criacao-de-um-tribunal-penal-internacional (em 28/06/2018 às 10h25min).
47
Cfe. Oliveira no referido artigo.
48
Neste ponto há divergência na bibliografia. Alguns autores atribuem a sugestão de enforcamento do
ex-Kaiser a Lloyd George. Optamos pelo relato de Keynes, crítico e contemporâneo dos fatos que faz
uma observação mais apurada da eleição britânica. Ver Keynes, op. cit. pg. 4.
49
Keynes, op. cit. pg.39.
50
E nesse contexto é fundamental considerar o peso do personagem histórico, não só como líder
político de uma poderosa nação europeia, mas também como membro de uma sociedade tradicional
inter-relacionada por laços de parentesco, de riqueza e fiadora de uma determinada ordem social,
politica e econômica.

Você também pode gostar