Você está na página 1de 2

“O ÚLTIMO PAPIRO”

Mensagem de Suther Mistrenah, sacerdotisa de Amon, do século III a C,


durante o reinado de Ptolomeu Filomentor.

“Estou morrendo. Logo, o glorioso Anúbis virá levar minha Atmi à região
gloriosa de Amenti. Todavia, haverá caravanas de músicos acompanhando
meu corpo à sua última morada! Todavia a vida não abandonará o Egito
nos primeiros quinhentos anos. Até então, o glorioso Amon não se
refugiará com seus Divinos Irmãos na Casa do Pai. Hoje ao amanhecer, o
deus Mistah me contou sua Verdade no altar e eu a comuniquei a
Sorthmaro, o Grande Sacerdote, meu Pai. Nenhuma sacerdotisa do Templo
de Amon havia sentido a palavra do inefável Mistah, antes de mim.
Somente eu senti, para comunicá-la logo aos outros. Coisas muito graves
disse o Deus aos meus ouvidos! Aí, ao escutá-las, tremeu meu coração,
refugiando-se além desta túnica de linho!
Nesta Casa do Bem, nos foi ensinado que o homem acha a Verdade tão
somente quando em seu espírito se anula todo pensamento de divisão e é
vencido, para sempre, o demônio do egoísmo, que faz ver sempre melhores
as coisas que outro possui, anseia e busca. Ergui os olhos a Ti, Supremo
Deus Uno, clamando para que o povo compreenda a Sabedoria desta
Comarca do Céu; porém, tudo foi inútil. Vejo como, pouco a pouco, nossas
crenças são arrastadas e nossos deuses incompreendidos.
Hoje, coroaram um novo Rei. Este já não é como aqueles outros, os Santos
Pais do Nilo, sábios Sacerdotes. Mistah disse-me que aqueles celestiais
iniciados permanecerão ausentes do nosso mundo milhares de anos... Eu
chorei! Chorei pelos olhos de todos os homens do presente e do futuro, que
se debaterão na ignorância e na dor. Por um instante, fui a Humanidade
inteira que gemia ante o conhecimento de seu triste destino. Meu coração
chorava ainda, quando o Rei penetrou no Templo. Meu coração sofria ao
vê-lo fincado às divinas imagens, em cumprimento de um rito que estava
longe de sentir a sua alma. Impulsionada por Ti, Divino Amon, foi que
proferi, à viva voz, duras palavras contra o nascente Soberano. Eu sabia
que tudo isso era fingido. Havia morrido a Luz, e era somente uma comédia
o tratar de conquistá-la com falsas armas.
Coberta de correntes, me encerram nos labirintos do Templo; aqui
abandonarei meu corpo físico, porém a dor irá comigo para além deste
mundo de sombras. Os corpos humanos somente sentem dores menores,
porém as almas podem gerar dores cósmicas, como é esta agora que me
envolve.
Durante nosso noviciado no Templo, nos foi ensinado, a todas as aspirantes
a serviço dos Deuses, que o mundo era a mansão da humanidade e que esta
deveria viver em harmonia. Aprendemos a obedecer a Lei, a respeitar os
deuses estrangeiros, a praticar a virtude do Serviço. Vi, sem engano, que
tudo isso cairá inexoravelmente.
Oh, desconhecido mundo de Amanhã! Eu quisera gritar pelas bocas abertas
de minhas feridas, as sábias palavras que não querem ouvir os homens do
presente! Viva em perpétuo estado de Virtude, toma o nosso exemplo! O
Egito morre, o orgulhoso sábio e poderosíssimo Egito está morrendo! Não
se creiam jamais fortes. Ninguém poderá sê-lo tanto como nós fomos. Não
se sintais poderosos com a civilização a que pertenceis. Se teu mundo reluz
por fora, observa se as almas que o habitam fulgem interiormente.
Eu, Suther Mistrenah, assim falo e assim escrevo com meu sangue nesta
folha de papiro, porque Mistah disse-me que enquanto o mundo não se
ache sustentado pelos pilares do Espírito, cairão inexoravelmente as
civilizações. Esta pequena conversa que é a última, será meu testamento
para o mundo, que é minha Família. Abre teus ouvidos, irmão de minha
alma e aperta minhas palavras em teu coração. Busca a companhia dos
Sábios, ama teus estudos sagrados, concentra-te na Harmonia, educa-te a ti
mesmo para o serviço dos Deuses. Pode ser que se um contigente de
homens restaure a Sabedoria no Mundo, agonize o mal da ignorância e tudo
o que ela acarreta. O Egito te ensinou a ser Eterno. Não vivas para a
vanidade perniciosa do presente.
Eu morro. Porém, Tu vives. Faça com que, quando regresse tua Irmã da
Mansão de Ra, te possa agradecer o Mundo que para ela forjaste. Minha
morte de hoje, então, gritando contra o erro e a mentira, não terá sido em
vão...”

Você também pode gostar