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Sexta-feira | 25 Junho 2021 | publico.pt/culturaipsilon
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de um poeta
A morte
dias de um homem elevado
dá pistas sobre os últimos
A antologia The Collected
a mito apressadamente
Works of Jim Morrison
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Um livro
para
tentar
humanizar
o mito
2 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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Jim T
oda a gente gosta de romantizar os começos das que estes detalhes se sobreponham à sua obra. Ao bri-
coisas e não é com os Doors que esta ideia será lhante repertório que os Doors compuseram em apenas
contrariada. Venice Beach, Califórnia, Julho de cinco anos. Às ocasionalmente interventivas e políticas
1965. Ray Manzarek, 26 anos, está sentado na letras de um homem que não era um “rebel without a
areia quando por ele passa Jim Morrison, cinco cause”. Às suas aspirações literárias.
anos mais novo. Os dois colegas de faculdade The Collected Works of Jim Morrison: Poetry, Journals,
terminaram recencentemente os estudos em Cinema Transcripts and Lyrics, livro lançado no início deste mês
na prestigiada UCLA. Manzarek, hábil pianista e amante pela HarperCollins, tenta recentrar a discussão. A anto-
de jazz que está sem saber o que fazer da vida, pergunta logia de quase 600 páginas inclui muito material não
a Morrison como tem passado o tempo. A resposta: inédito, como as letras de todas as canções que Morrison
“Tenho escrito as canções de um concerto de rock ex- assinou com os Doors e os dois livros de poesia que pu-
celente que ando a ouvir na minha cabeça.” Ray pede blicou de forma independente em 1969 — The Lords e
a Jim que lhe cante uma dessas músicas. Tímido, este New Creatures —, mas também traz à luz do dia grande
começa por hesitar, mas lá atende à vontade do amigo. parte dos poemas que, durante anos, o autor escreveu
Daniel Dias
Na história da música popular o vocalista dos Doors
ESTATE OF EDMUND TESKE/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES
e nand Céline), livros de Franz Kafka e de William musical da altura espelhava a transformação social com
quase 50 anos e o legado ele pediu aos meus pais foi a obra completa de Niet-
zsche”, recordou recentemente ao Financial Times Anne
Morrison Chewning, irmã mais nova do músico.
O quarteto deu os primeiros passos no estabeleci-
mento de diversão nocturna London Fog. O vocalista
demorou a habituar-se à ideia de estar em palco (nos
dos Doors não vem sendo A herança da Geração Beat e a reverência com que o
jovem Morrison olhava para On the Road (Pela Estrada
Fora, na tradução portuguesa), obra fundamental de Jack
primeiros concertos, cantava com as costas voltadas para
o público), mas, em pouco tempo, a timidez daria lugar
a uma confiança invulgar. As actuações dos Doors tor-
O vocalista
demorou a
habituar-se
à ideia de
estar em palco
(nos primeiros
concertos dos
Doors,
cantava com
as costas
voltadas para
o público),
mas, em
pouco tempo,
a timidez daria
lugar a uma
confiança
invulgar.
As actuações
do quarteto
tornaram-se
imprevisíveis
e enérgicas.
Até mesmo
teatrais
ESTATE OF EDMUND TESKE/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES
Crónica
Mário Lopes
A história do jovem James Works (e isto não é necessariamente uma maneira subtil
de falar mal da sua veia poética). “Impressões” será
mesmo a melhor palavra, dado que o vocalista raramente
Douglas Morrison é a história termina frases ou ideias; em vez disso, vai registando
apressadamente os seus pensamentos e aquilo que está
a ver. São notas curtas, que ainda assim oferecem um
achou mais poeta do que desconfiança no sistema judicial (há um comentário par-
ticularmente interessante sobre os procuradores e os seus
“piscares de olho loucos”) e escreve frases que mostram
com um caderno nas mãos e, a morte me sobreviesse”). Mas também revela o seu sen-
tido de humor, oferecendo irónicos argumentos de defesa
(“Grandes figuras da nossa história e religião tiveram ca-
por acaso, possuía voz belo comprido e barba”) ou recordando alguns dos pon-
tos altos do interrogatório — “‘É um especialista em co-
pulação oral?’ ‘Não tenho um mestrado.’”
carismática e sensualidade livre”. Um espírito livre que, durante meses, viveu com
medo de ir parar à cadeia. A 30 de Outubro de 1970, um
ano e meio depois do polémico concerto, foi condenado
para dar e vender a seis meses de prisão. Jim pôde manter-se em liberdade
enquanto recorria da sentença. “Desperdicei muito
tempo e muita energia com este julgamento”, viria a di-
zer ao jornal L.A. Free Press. “Para aí um ano e meio. Mas
suponho que tenha sido uma experiência valiosa, porque
eu costumava ter uma visão muito infantil do sistema
e Mas ele não estava a ler a lista telefónica. Estava judicial americano. Os meus olhos abriram-se um pouco.
a cantar sobre a guerra (ouvir: The Unknown Soldier, Havia lá gajos, homens negros, que entravam no tribunal
tema do disco Waiting for the Sun), sobre a revolução antes de mim todos os dias. Demorava para aí cinco mi-
sociocultural que estava a acontecer à sua volta (Five to nutos e eles apanhavam 20, 25 anos de prisão. Se eu não
One, também de Waiting for the Sun) sobre alienação tivesse tido fundos ilimitados para continuar a lutar, es-
(People are Strange, de Strange Days). Morrison, que, taria a cumprir três anos neste momento. Mas se tiveres
como os Beats, escrevia sobre sexualidade sem particu- dinheiro, geralmente não vais preso.”
lar conservadorismo (a sua linguaem é sugestiva e até “Polícia deixou cair a acusação porque fui bem-com-
provocadora em determinados poemas de The Collected portado e cooperativo. Demasiado cansado para ser
Works), começou por gostar de ser visto como um sex outra coisa qualquer.” Esta é uma das últimas notas que
symbol, mas cansou-se dessa sua reputação quando se encontramos nos cadernos relativos ao julgamento. Este
apercebeu de que a sua aparência era mais discutida do cansaço acompanharia Morrison em França, para onde
que o seu trabalho (e ofuscava os importantes contribu- foi no início de 1971, após completar as gravações de L.A.
tos de Manzarek, Densmore e Krieger). Woman (disco que fez 50 anos em Abril). O seu plano era
O fosso entre artista e público agravar-se-ia depois de simples: comprar uma passagem para Paris, fugir do
New Haven. Perante a rápida ascensão dos Doors, Jim glamour da Califórnia e dos seus “drinking buddies”,
voltou-se para o álcool. E este deu asas à sua imprevisi- reparar os laços com a sua “companheira cósmica” Pa-
bilidade. A maneira como se apresentou em New Haven, mela Courson — Jim e Pam sempre tiveram uma relação
em Dezembro de 1967, é prova disso. Após se desenten- de extremos, marcada por um amor intenso e por muitas
der com um polícia nos bastidores, improvisou uma discussões acesas —, recuperar emocionalmente. Um
canção sobre “os homenzinhos de azul”. Descreveu a plano que o resto da banda achou sensato e que, no iní-
altercação à plateia, dirigindo insultos e provocações às cio, pareceu surtir efeito: o artista perdeu algum do peso
autoridades, que interromperam a actuação e detiveram que havia ganho em 1969, desfez a barba e pôde voltar a
o músico. “Este incidente dá à luz a reputação dos Doors concentrar-se na sua escrita, num país em que parecia
como uma banda perigosa e marca uma mudança na poder caminhar anonimamente com outro conforto. Mas
relação entre a banda e o público. As pessoas começam os poemas do diário de Paris e de outros cadernos “res-
a vir aos espectáculos para verem Morrison a endoidecer. suscitados” por The Collected Works contam uma história
Há uma sensação crescente de que não estão lá para ligeiramente diferente.
ouvirem a música, mas para assistirem a uma exibição”, “You know more than you let on, much more than you
narra Johnny Depp em When You’re Strange (2009), do- betray/ great slimy angel-whore, you’ve been good to me/
cumentário sobre os Doors. you really have been swell to me.” Estes versos integram o
Morrison queria ser levado a sério enquanto poeta e poema mais revelador do diário de Paris, quase certa-
fez o que pôde para se distanciar da sua imagem. No mente um comentário autobiográfico sobre o relaciona-
início de 1969, após largar as calças de couro, engordou mento do autor com uma mulher que também tinha os
e deixou crescer uma barba robusta, numa tentativa de seus vícios (Pamela morreu a 25 de Abril de 1974, tam-
se tornar menos atraente (não resultou). Os concertos bém aos 27 anos, vítima de overdose). O uso da palavra
perderam fulgor. Excepto, claro, o de Miami, onde terá “betray” é interessante: Morrison não foi a única pessoa
mostrado os genitais à plateia e onde a trajectória do com quem Courson teve intimidade sexual depois de os
quarteto sofreu um desvio de proporções colossais. dois se envolverem romanticamente e vice-versa. Os
relatos de quem era mais próximo do casal são contra-
Prisões de um “espírito livre” ditórios, pelo que é difícil perceber se a sua relação era
“Miami a great deal more interesting than my life in L.A. — uma relação sem exclusividade ou se os dois praticaram
except for dread and squalor of trial appearances.” infidelidades recorrentes. De qualquer forma, o poema
O caderno com as impressões de Morrison sobre o seu mostra um Morrison desconfiado e cínico, aparente-
Jim Morrison queria ser levado a sério enquanto poeta e fez o que pôde para se distanciar da sua imagem. No início de 1969, após largar as calças de couro,
engordou e deixou crescer uma barba robusta, numa tentativa de se tornar menos atraente (não resultou)
mente incapaz de se entregar totalmente à pessoa por Kitchen, The Crystal Ship, Back Door Man, a grandiosa —, começava a ver na sua reclusão auto-imposta uma
quem mudou de continente. Não é o único em que a sua The End...), o austero George Stephen Morrison, que na prisão antecipada (importa recordar que só pôde ir para
escrita assume contornos confessionais. verdade viveu até aos 89 anos, escreveria uma carta ao Paris porque o tribunal ainda não se tinha pronunciado
Também há nos seus cadernos pontuais lamentos so- filho, urgindo-o a mudar de carreira devido ao que ele sobre o seu recurso).
bre os seus demónios de infância, que o autor nunca terá considerava ser “uma completa falta de talento” para
conseguido superar por completo. Jim cortou comuni- ser músico. Pequenos fragmentos da obra de Jim revelam Mais que um mito
cações com a família após fazer as malas e rumar a Los os possíveis efeitos desta falta de apoio na sua capacidade Jim Morrison morreu há quase 50 anos e o legado dos
Angeles (“Em 1967, a Light My Fire tocava em todo o lado de auto-valorização e estabilidade emocional. Doors não vem sendo devidamente protegido e/ou res-
e eu demorei meses a perceber que quem estava a cantar Os muitos poemas “soltos” — ou seja, sem data — da peitado desde então. Um público que não vivenciara
era o meu irmão”, lembrou Anne Morrison Chewning antologia convidam os leitores a juntarem as peças. os anos 1960 interessou-se pela banda graças a Apo-
no já citado artigo do Financial Times), de tal forma que, “Funny, I keep expecting a knock on the door/ well, that’s calypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Até aqui,
em entrevistas, falaria enganosamente sobre os pais e what you get for living around people.” É perfeitamente tudo certo. Um ano após a estreia desse filme, saía No
irmãos como se já tivessem morrido. Após o lançamento provável que estes versos tenham sido escritos em Paris, One Here Gets Out Alive — o título vem da letra de Five to
do clássico álbum homónimo dos Doors, disco de Light quando um Jim Morrison consumido por uma tosse per- One —, biografia de Jim Morrison com um background
My Fire e não só (Break On Through to the Other Side, Soul sistente e dificuldades respiratórias — efeitos da bebida polémico (a intenção do jornalista Jerry Hopkins e
The Collected Works não nos faz pensar que Morrison deveria ter largado o microfone para perseguir uma carreira literária mas a fragmentada, sugestiva,
esporadicamente macabra e ocasionalmente confessional poesia que compila desendeusa a figura, mostra as inseguranças de um génio que também era
uma pessoa como as outras. Atirada para este mundo como um cão sem um osso
e era escrever o livro sozinho, mas só encontrou uma dos músicos à razão, ou seja, colocá-los em tribunal para The Collected Works não nos faz pensar que Morrison
editora interessada em comercializar a obra depois de deixarem de utilizar esse nome. deveria ter largado o microfone para perseguir uma car-
Danny Sugerman, segundo manager dos Doors, “api- Não faz sentido uma banda destas ser canonizada as- reira literária ou cinematográfica (a antologia contém
mentar” a história). sim. Assim como não faz sentido reduzir-se a sua maior parte do guião de HWY: An American Pastoral, filme ex-
No início dos anos 1990, nova onda de entusiasmo em figura a uma caricatura. Em 2010, o The Irish Times per- perimental de 50 minutos em que Jim, realizador, argu-
torno do grupo, desta feita com um biopic caricatural, guntava a Manzarek o que achara do biopic e da forma mentista e actor principal, caminha pelo deserto do Mo-
em que o vocalista é intepretado por Val Kilmer, quatro como o realizador Oliver Stone retratara o seu amigo, o jave como um hitchhiker assassino, talvez não muito
anos antes de vestir a capa do morcego em Batman Fo- poeta tímido com uma licenciatura em Cinema que, no diferente do “killer on the run” sobre o qual canta na por-
rever. Chegados ao novo milénio, Ray Manzarek e Robby Verão de 1965, cantara pela primeira vez o poema Moon- tentosa Riders on the Storm, última faixa de L.A. Woman),
Krieger chamam Ian Astbury, líder dos Cult e fã assumido light Drive na areia californiana. “Não gostei muito, não. mas, aqui e ali, a fragmentada, sugestiva, esporadicamente
de Morrison (assistir a Apocalypse Now e ouvir The End O Jim era um homem inteligente e encantador. Também macabra e ocasionalmente confessional poesia que com-
pela primeira vez foi uma “experiência religiosa”, diria), era um bêbedo temperamental, é verdade. Mas no ecrã pila desendeusa a figura, mostra as inseguranças de um
e começam a dar concertos enquanto The Doors of the só vimos o bêbedo temperamental. Não vimos o Jim ca- génio que também era uma pessoa como as outras. Ati-
21st Century. Caberia a Densmore chamar os conceitua- loroso e engraçado.” rada para este mundo como um cão sem um osso.
O oásis L. A. Woman
na vertiginosa tempestade final
declarado culpado em Setembro de 1970 e quando se
Álbum em que o agitador dionisíaco, iniciaram as gravações de L.A. Woman aguardava o resultado
do recurso interposto pelos seus advogados. Ganhara peso,
o xamã libertário, desceu à sua muito, e uma barba densa cobria-lhe o rosto. Pamela Des
Barres, provavelmente a mais famosa groupie de Los Angeles,
cidade para cantar a realidade que se tornaria mais tarde actriz e escritora, recordava à Mojo,
em 2001, que nessa altura a aura de Morrison há muito se
terrena que pulsava à sua volta, mais desvanecera. “Era como que uma personagem acabada antes
de partir para França. Toda a gente achava que ele se tornara
próxima da verdade crua do blues, patético. Era realmente um bêbado debochado antes de se
mudar, e tornara-se uma triste peça de mobília de Hollywood”.
L. A. Woman foi gravado de um jorro Contudo, a última vez que o viu, decorriam então as gravações
do álbum e estava próxima a mudança para Paris, encontrou-o
antes da partida para o destino Änal, “doce e cheio de vida, como não estava há muito tempo”. LA
Woman foi um oásis na vertiginosa decadência final.
Paris. Por Mário Lopes Separaram-se daquele que fora, até então, o produtor de
todos os seus discos, Paul Rothchild, perfeccionista e
autoritário o suficiente para a banda lhe ter dado a alcunha
E
stava pálido e parecia sereno, imerso na água de “pequeno Hitler”. Rothchild não gostava das novas
ensanguentada, recordou Agnès Varda. Além da polícia canções — desancou Love her madly como “música de
francesa e da namorada Pamela Courson, a realizadora cocktail” — e bateu com a porta. O engenheiro de som Bruce
terá sido a única pessoa a ver o corpo de Jim Morrison, Botnick tomou as rédeas da situação, a banda libertou-se.
amigo desde as digressões americanas de Varda, na Transformou a sua velha sala de ensaios, The Doors’
banheira do apartamento francês onde, dia 3 de Julho Workshop, na Santa Monica Boulevard, em estúdio, forma de
de 1971, morreu o vocalista dos Doors. L. A. Woman, o álbum poder ensaiar, gravar e experimentar sem restrições.
dedicado à cidade da luz incessante, sempre em movimento, Chamou até si, para compor a formação, um guitarrista
morte e depravação lado a lado com uma intensa sede de vida, ritmo, Marc Benno, e o então baixista de Elvis Presley, Jerry
fora editado três meses antes, em Abril. Scheff, o que deixou particularmente entusiasmado Jim
Morrison vasculhou no caderno que levava para todo o lado Morrison, grande admirador do Rei do Rock’n’roll. Como
os poemas que seriam transformados em letras de canção, descreveu Ray Manzarek, os Doors dedicaram-se então a
improvisou outras letras no momento, recuou ao adorado blues “um som muito mais cru — aquele momento Zen
de Muddy Waters e John Lee Hooker. Deixou registada a carta espontâneo”. L.A. Woman nasceu em duas curtas semanas,
que dedicou à cidade que o fez e partiu para essa Paris onde entre Dezembro de 1970 e Janeiro de 1971.
desejava viver tão anónimo como o actor, o cão, o assassino e a Com a banda a gravar ao vivo no estúdio — os overdubs
família assassinada que povoam Riders on the storm. Três meses ter-se-ão limitado a algumas faixas de teclados e a vozes
depois, heroína, álcool e um coração que não aguentou mais. O secundárias, como a sussurrada voz “fantasma” que dobra a
corpo de um poeta americano alcoólico que morrera de causas principal em Riders on the storm —, com Jim Morrison, dada a
naturais, um perfeito desconhecido chamado Douglas ausência de cabine para gravar vozes, a utilizar a casa de
Morrison — isso o que foi dito, na altura, aos polícias franceses. banho, espaço com melhor eco no estúdio, os Doors
Dias depois, assim que a notícia da morte foi divulgada, construíram um álbum onde a ferocidade rock’n’roll (o
começaram os relatos de aparições: num banco em São arranque com a trepidante The changeling, a dinâmica
Francisco, em bares gay de Los Angeles, tornado monge no estonteante de L.A. Woman) dialoga directamente com
Tibete, em África, seguindo a rota do seu adorado Rimbaud, imersões na electricidade crua do blues (batido pela vida,
em rádios perdidas em lugarejos do Midwest, DJ a oferecer mas ainda feroz, em Been down so long; panorâmico na
música na madrugada aos condutores que atravessavam a dolência sonâmbula de Cars hiss by my window; directo à
longa noite das intermináveis auto estradas americanas. Jim fonte na versão de Crawling king snake, original de John Lee
Morrison morrera mesmo, aos 27 anos, em Paris. Não estava Hooker que os Doors tocavam desde o início). Em L.A.
em São Francisco, nem em Los Angeles, no Tibete ou em Woman, a luz retemperadora de Love her madly e de
África. Poucos dias depois da sua morte, porém, e 50 anos Hyacinth house surge como fugaz ponto de fuga num álbum
depois dela, continua a atravessar a longa noite escura na auto assombrado, um álbum em viagem constante na sufocante
estrada interminável. Continua a ver os flashes de néon a L’America que Antonioni recusou para a banda-sonora de
encandear o olhar quando a cidade, frenética, surge perante Zabriskie Point (tê-la-ão tocado alto demais no estúdio, o que
si, continua a encontrar placidez e doçura no idílio da assustou o realizador), na The WASP (Texas Radio and the Big
perfumada casa dos jacintos, continua esmagado por essa Beat) que confere dimensão mitológica às ondas rádio que
trituradora Los Angeles, “so broke that I couldn’t leave town”. outrora haviam levado o blues e o jazz país fora (“Some call it
L.A. Woman, o álbum que se tornou o da despedida, foi o heavenly in its brilliance/ Others, mean and rueful of the
regresso ao lugar onde tudo começara para os Doors, os blues Western dream”), nessa Riders on the storm que encerra o
que ouviam na rádio no início da adolescência, e foi também álbum de forma magistral, balanço jazz envolvente,
aquele em que Jim Morrison, o Rei Lagarto, o agitador iluminado a piano Rhodes, imagens a sucederem-se em
dionisíaco, o xamã libertário, desceu à cidade para cantar, flashes, trovões a ressoarem à distância, um assassino na
como nunca antes, a realidade terrena da vida que pulsava à beira da estrada, uma família ignorante do perigo, dois
sua volta, mais próxima da verdade crua do blues, ou como amantes, almas solitárias lançadas ao mundo, perdidas no
apontava Ray Manzarek, dos planos do film noir e dos meio da tempestade.
policiais de Raymond Chandler. Algumas semanas depois do lançamento, Morrison ligou
Naquela altura Morrison vivia assombrado pelo julgamento para Los Angeles desde Paris. Contou a John Densmore, o
do caso de Miami, resultado do infame concerto que ameaçou baterista que era também seu confidente, como estava feliz
transformar-se em motim, ocorrido a 1 de Março de 1969, e que pelo sucesso de L.A. Woman. Estava entusiasmado com a sua
o levara a responder à justiça, acusado de atentado ao pudor, nova vida. “Se gostam deste [álbum], espera até saberem o
exposição sexual, profanidade e embriaguez pública. Fora que tenho em mente para o próximo”.
Rita Vian: “Cantar e escrever d Nos últimos anos o fado tem-se afirmado como referência inspiradora p
EVA FISAHN
Raül Refree) e certamente que Rita Vian também irá ser enquadrada n
A
sua voz já chamara a aten- João Pedro Moreira, que a convidou
ção em alguns lançamentos a juntar-se à banda a que pertence,
avulsos, mas esta sexta- os Beautify Junkyards. “Tinha 18
feira, de surpresa, aí está anos, havia coisas que me interessa-
ela com o seu primeiro vam, principalmente o lado tradicio-
disco a sério. Chama-se nal-português, mas era um projecto
Caos’a. São cinco canções, com pro- já bem desenhado e com objectivos
dução de João Barbosa, ou seja definidos e nunca foi um espaço
Branko, suficientes para se entender onde encontrasse o meu lugar. Fazia
que Rita Vian não é estrela cadente. melodias de voz e escrevi uma das
O balanço insinuante electrónico letras, mas o facto de trabalhar ao
aloja-se na perfeição numa voz que mesmo tempo também não ajudava.
consegue ser tão profunda quanto Trago amizades para a vida dos
libertar leveza, fazendo-o com a Beautify, mas percebi cedo que não
maior das naturalidades, sem trejei- seria por ali, embora tenha sido im-
tos inúteis. portante estar ali.”
“Cresci no meio de música, por A procura era outra, embora não
causa da minha família, que sempre a soubesse nomear com exactidão.
que se reúne acaba tudo a cantar e a De um lado havia o fado, mas não
tocar”, diz-nos Rita Vian, 29 anos. “A chegava. A ideia foi sempre adicio-
maioria das músicas que se canta- nar-lhe outras camadas. “Andei sem-
vam em casa dos meus avós eram-no pre pelo fado, cantando Amália,
a capella e num registo que só muito Maria Teresa de Noronha, e os fados
mais tarde vim a perceber que se da casa da minha avós, mas faltava
enquadrava na ideia de fado-can- uma qualquer outra coisa que não
ção.” O tio, o terapeuta vocal e can- sabia exactamente o que era. Os fa-
tor lírico Luís Madureira, ajudou-a dos que se cantavam em casa dos
circunstancialmente, mas todo o seu meus avós não tinham som por trás.
percurso foi feito de intuição. “As Não havia guitarra portuguesa. A
músicas da minha avó, como chamo maior parte das vezes eram a ca-
a esses fados, foram fundamentais pella. Depois cantava fado com os
nesse meu início. Depois, já na ado- meus amigos, ao final da noite. Até
lescência, era difícil ouvir essa mú- conheci o [guitarrista] Gaspar Varela
sica. Nenhum dos meus amigos tinha nessas circunstâncias, a cantar, de
qualquer relação com fado. Era o madrugada, para os amigos que me
deserto. Os meus amigos da música pediam. Mas nunca fui a casa de fa-
eram do rap.” dos. Nunca foi esse o meu percurso.
Até aos dez anos viveu em Mas- Não conheço quase ninguém desse
EBRUYILDIZ
country/pop/rock Brandi Carlile
para cantar no Newport Folk Festi-
val, o mesmo onde Dylan ligou a
guitarra eléctrica pela primeira vez.
Integraria um grupo de mulheres,
incluindo Sheryl Crow, para canta-
rem 9 to 5, de Dolly Parton, com a
própria em palco, um mito vivo que
tem em Dollywood, Tennessee, o
seu próprio parque de diversões.
“Ela tem tanta segurança quanto um
presidente. Chegou numa parada de
Escalades [modelo de veículo utili-
tário desportivo da Cadillac] e tu
sabes que ela está num deles, mas
há uns que são para despistar. De-
pois foi para um atrelado para o qual
ninguém podia entrar, dois tipos
com óculos de sol, auriculares e fa-
tos estavam à porta, levaram-na até
ao palco e trouxeram-na de volta
para o Escalade. É inacreditável
olhar para ela. Vi-a em fotografias e
em filmes e é tão estranho ver
mesmo o corpo dela. Não faz sen-
tido, com tantas cirurgias que fez
como é que se mantém em
pé?”. Não falaram: “Mas ela pegou
nas minhas mãos e olhou-me nos
olhos em frente a muita gente”.
O
ano de 2018 mudou a vida camente fazem música com mais “Queria tentar exprimir o antes e Dolly Parton não é bem o tipo de
de Lucy Dacus. Lançou His- piada do que ela e cantam em alguns o depois de começar fazer música, artista que Lucy quer ser. Dacus foi
torian, o seu segundo ál- temas deste disco, ajudaram nessa quando as pessoas começaram a apoiante de Bernie Sanders e, nos
bum, e fundou com Phoebe abertura. “Só a amizade delas aju- observar-me e eu tornei-me uma últimos tempos, tem sido bastante
Bridgers e Julien Baker o dou. Há canções muito hilariantes entidade para algumas delas. Até activa em termos de lutas laborais
trio boygenius, que lançou de boygenius, não necessariamente então estava só a viver a minha vida, na indústria musical.
o EP homónimo nesse ano. Quando em termos de letras, mas de produ- só a ser vista e filmada pela minha “Tenho uma plataforma e sinto
regressou a Richmond, Virginia, a ção”, afirma. Há disso aqui, por família. Vejo o meu envelhecimento que tenho responsabilidade de mos-
terra que a viu crescer, já não era a exemplo quando em VBS se fala de e depois a próxima versão de mim trar às pessoas que estou grata por
mesma pessoa. Fazia música, era alguém pôr a tocar Slayer “no má- aparece no ecrã: é diferente de me ter sido mostrado muito por ou-
nome firmado no indie-rock ameri- ximo” e uma guitarra explode bre- quem eu sou. Penso na versão pré- tras pessoas. São coisas básicas: os
cano. Nem ela nem a cidade, capital vemente, ou no auto-tune na voz em música como uma proto-Lucy, é direitos de trabalhadores não estão
do estado, eram os mesmos. Parter in Crime. É um disco com uma pessoa complet amente garantidos. Sente-se isso no dia-a-
Meses antes da quarentena, Da- mais guitarras acústicas, algo que distinta”. dia, as ramificações da exploração
cus, 26 anos, mudou-se para Filadél- antes Lucy tinha pudor em usar para O ecrã do Byrd não é o único do afectam a nossa saúde física, as nos-
fia. Foi a partir dessa cidade que, via não parecer tão folk. disco. Brando, canção sobre um sas relações, como somos como
Zoom, falou com o Ípsilon sobre Está recheado de histórias da sua amigo que imitava o Marlon que progenitores e amigos. As leis po-
Home Video, o terceiro disco, que sai infância e adolescência, sobre ami- lhe dá o nome, fala de Lucy e ele diam mesmo só tornar a vida melhor
esta sexta-feira. São canções escritas gos e ex-paixões, alguns das quais faltarem às aulas para irem a outra para toda a gente. Se as pessoas ricas
há dois anos, gravadas pouco antes ainda não sabem que são visados: sala de cinema que passava filmes estivessem dispostas a abrir um
de começar a quarentena e mistura- paixões queer complicadas pela re- antigos para os mais velhos à tarde: pouco de algum do seu dinheiro,
das ao longo de 2021. Quando lançou ligião, como em Triple Dog Dare, Fred Astaire e Ginger Rogers, Do Céu seria muito fácil”, afirma.
Historian, disse que era o seu disco relações pouco saudáveis entre ami- Caiu uma Estrela, de Frank Capra e “É muito fácil chegar a um ponto
definitivo e tudo o que viesse depois gas (Christine). Lucy tem medo dos Um Eléctrico Chamado Desejo, de em que já nem sequer conhecemos
seria um bónus. Mantém: “Parecia confrontos que virão com o disco Elia Kazan. “Vimos também O Pa- pessoas com empregos normais.
um disco tão sério, senti que tinha lançado. drinho, O Apartamento, talvez o Tenho amigos na indústria do entre-
de exprimir tanta coisa de essencial Não é só dos outros que vive o ál- Casablanca, ou se calhar foi no tenimento e toda a gente que eles
sobre as minhas crenças para que bum, contudo. Hot & Heavy, canção Byrd, O Mundo a Seus Pés, Uma Noite conhecem é famosa. Estão comple-
pudesse ser mais bem compreen- de abertura, foi o primeiro single: é Aconteceu. Poderia facilmente ter tamente fora da realidade. Não
dida. Agora que sabem como me Dacus a falar para si própria sobre escrito a canção e dito Clark Gable, quero ser assim. Quero manter pes-
sinto e o que penso, posso contar Richmond. No teledisco, rodado em mas não era tão fácil de encaixar na soas na minha vida que me reco-
histórias da minha vida. Sou capaz Richmond, no Byrd Theatre, cinema letra”. mendam os livros certos e me man-
de me abrir de forma mais divertida local que ela frequentava, Lucy olha têm actualizada em termos de ques-
e brincalhona do que antes”. para vídeos da sua infância projec- Das 9 às 5 tões sociais, que me continuam a
As colegas de boygenius, que tipi- tados no ecrã. Em 2019, foi convidada pela artista afectar pessoalmente”.
Rodrigo Nogueira
12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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Marco Martins A
o fundo de um longo corre- rentes que os próprios não identifi-
dor, na Garagem Sul do cavam, como se fossem pistas para
Centro Cultural de Belém, histórias amputadas ou convites
em Lisboa, é projectado o abertos à ficção.
filme que toma o lugar cen- Sendo certo que Marco Martins
tral na instalação Natureza queria trabalhar sobre as imagens,
presente
rua, de excertos de canções, vemos Ribeiro, Maria Helena Falé, Michel e
avançar pela penumbra um conjunto Paula Bárcia, não tendo Manuela de
de corpos. Transportam e arrumam Sousa Rama podido participar) lhe
caixas, gavetas que guardam cartas, trariam incidiria de forma tão clara
fotografias, objectos de toda a espé- sobre a infância. “As imagens que
cie que remetem de forma imediata eles tinham eram muito mais sobre
para as memórias de cada um. A câ- os avós, sobre os bisavós e sobre eles
mara segue o movimento destes cor- em pequenos, e comecei a condicio-
MIGUEL MANSO
pos, mas não se fixa em nenhum, nar o discurso mais nessa direcção”,
antes documenta um vai-vém cons- conta. “Era também um tema que
tante naquele arquivo de memórias eles nunca tinham trabalhado. Já ti-
que ajuda a explicar tudo aquilo por nham trabalhado sobre memórias
que passámos antes. profissionais, sobre a relação com a
No derradeiro capítulo da ligação velhice, mas numa altura de pande-
da Companhia Maior ao CCB, a com- mia, fechados em casa há muito
panhia de actores séniores criada tempo, achei que era óptimo falar-
por Luísa Taveira colocou-se nas mos sobre a infância. E a infância é
mãos do realizador e encenador um espaço mais de ficção.”
Marco Martins — que levou consigo “A infância é evidentemente um
a artista plástica Fernanda Fragateiro sítio onde o nosso corpo estava como
e o escritor Gonçalo M. Tavares. quem está no estrangeiro”, escreve
Desde 2010, o gatilho é o mesmo: Gonçalo M. Tavares no texto Luz e
artistas como Tiago Rodrigues, Clara Fogo, colocado à entrada da instala-
Andermatt, Mónica Calle, Pedro Pe- ção. E acrescenta: “Pode ser um feliz
nim, Joana Craveiro, Tim Ecthells e país estrangeiro ou um infeliz país
Jorge Andrade, ou Sofia Dias & Vítor estrangeiro, mas sim, nenhuma
Roriz são convidados a conceber um criança conhece as palavras dessa
espectáculo para a companhia, re- língua — e um adulto ainda menos.”
flectindo com frequência sobre o A infância é, por isso, um território
lugar do envelhecimento em palco e distante nas vidas destes 14 intérpre-
servindo-se, amiúde, de um trabalho tes, desconhecedores já dessa língua.
sobre a memória. Daí, precisamente, falar-se de ficção,
Desta vez, e após um ano de inter- de uma construção sobre ideias e
regno forçado devido à omnipre- factos já com maior ou menor rela-
sente e omnipotente pandemia, ção com a realidade — sendo que a
Marco Martins quis apontar também realidade será também inútil e irre-
na direcção da memória. “O que levante quando aquilo que fica são
muda bastante aqui é que o ponto de apenas as memórias. Daí falar-se
partida da exposição são as ima- igualmente de estrangeiro, como se
gens”, conta o realizador. “Ou seja, a infância pertencesse, afinal, a pes-
a forma como as imagens, e aquilo soas distintas daquelas em que os
que sabemos dessas imagens ou nos adultos se tornaram.
foi contado sobre elas, condicionam E é também daí que vem esta Na-
as memórias.” Porque tratando-se tureza Fantasma, patente de 24 de
do seu campo privilegiado de actua- Junho a 16 de Julho. A fantasmagoria
ção, do trabalho sobre as imagens, “de uma coisa que está lá, em espí-
ao pedir aos 14 elementos da Com- rito, mas já não está lá fisicamente”,
panhia Maior que partilhassem con- descreve Marco Martins. “Uma coisa
sigo álbuns de família, fotografias e da qual sentimos ainda a presença,
vídeos que fizessem parte do seu mas que já não existe. E há outras
rasto e património emocionais, declinações que aquelas imagens nos
Marco foi percebendo que “a maior trazem — pessoas que desaparece-
parte nem sequer era uma memória ram, lugares que se foram e passa-
directa”. As fotografias documenta- ram a existir só na memória. E que
vam muitas vezes situações ou pa- aquela imagem está sempre a e
Convidado a comandar a décima criação para a Companhia Maior, Marco Martins contornou
as restrições da pandemia ao trabalhar com o elenco em vídeo e num formato de instalação
Numa área expositiva em L, a Garagem Sul do CCB implica, desde logo, uma descida
a uma zona subterrânea. Como se a primeira imagem, antes sequer de estarmos diante
de filmes ou esculturas, fosse a de que as memórias são algo a desenterrar, guardadas
longe de olhares indiscretos, matéria íntima e de difícil acesso
oficinal, de constante transforma- bram de nada. Perante algumas ima- diferentes — fotografias arrancadas redores vamo-nos cruzando com
ção e readaptação, carpinteirada gens têm um vazio total — não sabem porque eram demasiado preciosas várias projecções de filmes e com 14
para melhor se encaixar no pre- a origem, não reconhecem aquelas para quem ali as encontrou ou por- pomos construídos por Fernanda
sente. Não é, portanto, algo escul- pessoas. E depois há aqueles que que se tornaram excessivamente Fragateiro. Em cada um destes po-
pido em pedra, imutável e indife- não têm imagens — ou têm apenas dolorosas. Não sabemos — nem é su- mos — varas cilíndricas brancas — vi- A base de partida para
rente à passagem dos anos. E há, duas ou três — da sua infância, o que posto que saibamos. Porque Natu- vem vozes, faladas ou cantadas, que a instalação esteve na recolha
pouco surpreendemente, uma é muito forte por si.” reza Fantasma não vampiriza as escutamos através de pequenos ori- de imagens de álbuns
enorme diferença naquilo que cada Se há buracos na memória, há-os memórias destes 14 homens e mu- fícios. Tanto podem ser excertos das de fotografias e de filmes
um conserva das suas biografias — e também nos álbuns de família. Marco lheres. Mais do que as memórias longas entrevistas que Marco Martins familiares, a partir da qual
das outras ocorridas ao seu redor. Martins confessa o seu encanto por concretas em si, aquilo de que se ali- conduziu com cada um dos intérpre- se construíram possibilidades
“Existem essas narrativas que se vai se cruzar com álbuns dos quais fo- menta é da relação que os intérpre- tes, conversas que partem das ima- de discurso sobre a memória
construindo sobre o passado”, diz ram arrancadas algumas fotografias, tes criam — e nós criamos também gens que levaram para o processo e
Marco Martins, “e há pessoas que deixando “um vácuo na história”. — com esses fragmentos soltos de que esgravatam as histórias e as re-
têm memórias complexas e detalha- Foi um dos elementos em que Fer- passado. lações impressas nessas fotografias,
das, constituidas por uma acumula- nanda Fragateiro quis também pe- Somos recebidos pelo texto de quanto pedaços de canções.
ção de informação daqui e dali; gar, neste súbito confronto com in- Gonçalo M. Tavares e, a partir daí, à Às canções, Gonçalo M. Tavares
enquanto há outras que não se lem- dícios de vidas que seguiram cursos medida que atravessamos dois cor- chama “a definitiva resistência”. “As
canções, que os elementos da Com-
panhia Maior cantam”, escreve o
autor, “ficarão na nossa memória e
não sairão tão cedo (...) A música é
talvez o que fica, mesmo em bailari-
nos: como num incêndio onde tudo
o que é material é destruído, mas das
cinzas vem um som, uma canção.
(...) E muitas vezes esse som é uma
canção de infância. E assim defini-
mos rapidamente aqui uma regra:
são as canções de infância que me-
lhor resistem aos incêndios. O fogo
não destrói o som.”
Através dos filmes, Marco Martins çalo entrou mais tarde, mas foi um
leva-nos depois para uma outra re- diálogo a três.”
lação, mediada, com as memórias. Durante algum tempo, Marco ali-
Trabalhando a partir de arquivos de mentou ainda a ideia de que “podia
imagens — reveladores de “pessoas ter os intérpretes e alguma presença
que viveram quase todas em circuns- física deles dentro da instalação”,
tâncias muito privilegiadas” —, per- mas as dificuldades óbvias e a insta-
tencentes a um tempo em que as bilidade permanente levantadas
câmaras fotográficas amadoras não pela pandemia trataram de boico-
estavam vugarizadas e as fotografias tar-lhe os planos. Os planos, no en-
significavam, muitas vezes, uma ida tanto, foram sendo moldados não
a um fotógrafo profissional, vemos apenas pelas restrições circunstan-
agora os actores e as actrizes da ciais, mas também pelas portas que
Companhia Maior recriarem as si- a continuação do trabalho com a
tuações em que os seus antepassa- Companhia Maior ia abrindo. Não
dos foram imortalizados: vestidos havendo uma presença física dos 14
de soldados, de minhotas, de artis- no espaço da instalação, os seus cor-
tas de cabaret, de empregadas, de pos estão presentes de outras ma-
dama antiga, etc. São momentos de neiras, muito para lá daquilo que
fricção entre passado e presente: poderíamos imaginar.
momentos de tentativa de ligação a Assim acontece num dos filmes
um tempo longínquo, impossível de projectados ao longo do percurso,
ser revivido, numa encenação to- durante o qual se diria Marco Mar-
mada pela emoção mas em cons- tins enveredar por um fragmento de
tante sentimento de perda. cinema de género, valendo-se dos
Não é o único momento em que códigos do terror: filmado num pa-
Marco escolhe filmar uma recriação. lácio nos arredores de Lisboa, co-
Mas na segunda dessas situações o meça por mostrar-nos actores e
movimento é bastante distinto: não actrizes nus, cobertos por lençóis e
são imagens do passado transpostas deitados sobre mesas, como se
para o presente, são antes memórias aguardassem a autópsia, para pouco
de infância do elenco passadas para depois vermos rostos escondidos
vozes de crianças de hoje (sem qual- por longos cabelos e intérpretes que
quer parentesco). E que exploram se passeiam sobre um chão esbura-
sobretudo medos e experiências de cado, esfumando-se em seguida. A
alguma dureza, como descrições de atravessar estas imagens, fragmen-
castigos — “Se tínhamos sido castiga- tos de arquivo de um filme etnográ-
dos na escola, éramos castigados em fico evocador do ritual da taranta,
casa também, para reforçar”, na região italiana de Salento, em
ouve-se às tantas —, das expectativas que uma dança frenética e em
dos pais ou do medo da lua cheia, transe é usada para espantar a
causadora de uma perturbação que morte por envenenamento da ta-
se estenderia vida fora. rântula da zona. Um outro filme
sobre taxidermia vinca esta leitura
Uma sugestão de morte da preservação de uma imagem de
Avança-se por Natureza Fantasma vida quando a morte já desabou so-
abrindo caminho por entre memó- bre o presente.
rias e fragmentos de passados — Se até então era sobretudo com o
umas vezes dos próprios intérpre- passado que estávamos ocupados,
tes, outras dos seus familiares. Va- num fluxo de memórias a sugerir a
mos recolhendo pedaços de vidas revisitação da infância, a partir
alheias a partir de uma narrativa es- desse momento a morte passa a in-
boçada por Marco Martins com Fer- sinuar-se na instalação, a prosseguir
nanda Fragateiro e Gonçalo M. Ta- na sombra de cada momento de
vares, a partir sobretudo dos mate- tudo quanto se seguirá. Ao contrário
riais recolhidos nas entrevistas, dos filmes de zombies, corpos des-
desenvolvidos de forma autónoma tituídos de alma, Marco Martins joga
mas com imediatas repercussões no aqui com a noção dos fantasmas,
trabalho dos outros dois. “A Fernan- almas destituídas de corpo. Mas, na
das, às tantas, dizia que parecia que verdade, é aos corpos que cabe uma
estávamos a jogar xadrez a três”, diz das mais belas sequências do filme,
Marco Martins. “Porque um mexia quando todos deitados, uns sobre
uma peça e os outros colocavam-se os outros, estes 14 se tocam numa
em relação a isso. Eu ia recolhendo fisicalidade belíssima, imagens de
os materiais e lançando umas ideias vida táctil e sensual, como se o to-
e a uma dada altura as esculturas que — e até mesmo o desejo — se
impuseram-se como trajecto. O Gon- recusasse a morrer.
Nas
imagens
de João
Maria
Gusmão
U
ma coincidência. Quando Terçolho — o nome da exposição, com a curadoria de Marta Moreira de Almeida e Phillipe Vergne
instalações, João Maria Gusmão (Lisboa, — estende-se pelas galerias até à garagem, num caleidoscópio de exposições dentro de exposições.
Filme, fotografia, escultura e instalação em trabalhos realizados entre 2004 e 2021
esculturas 1979) + Pedro Paiva (Lisboa,
1979) começam a apresen-
e desenhos, tar, no Museu de Serralves,
a mais completa exposição sensorial nos proporciona? Como suspenso no ar, a queda congelada questão conceptual muito impor-
mapeiam um da obra que fizeram juntos, a notícia noutras exposições, a dupla encena e enquadrada pela moldura da ja- tante que se prende ao limite da in-
já circulava. Enquanto dupla, ha- um teatro, o da experiência do nela do atelier dos artistas. Parece dexação cinematográfica”.
universo viam chegado ao fim. Definitivo, ir- tempo, da ilusão e dos sentidos das um desenho, mas não é. Trata-se de Ao fundo do corredor, espera-nos
artístico em reversível? Isso só ao futuro dirá.
Enquanto isso, Terçolho — o nome
imagens. Experiência que, por sua
vez, explica o sentido metafórico ao
uma imagem feita com recurso a um
flash de alta velocidade (já agora: o
o filme Pato em Pequim. Lda (2015-
2019). O som dos projectores, leve-
busca de uma da exposição, com a curadoria de
Marta Moreira de Almeida e Phillipe
título. Ninguém sairá da exposição
com a vista inflamada, é certo, mas
gato era um animal de estimação
dos artistas e não sofreu qualquer
mente ensurdecedor, conduz-nos às
imagens que parecem homenagear
primeira visão Vergne — estende-se pelas galerias não faltarão corpos estranhos no ferimento) e revela um dos elemen- o cariz experimental do cinema,
de uma imagem. dos museus até à garagem, num ca-
leidoscópio de exposições dentro de
olho, efeitos inesperados sobre a
perceção da realidade. Dito de outro
tos característico da obra da dupla.
“O nosso trabalho tem forte ele-
quando esta arte ainda não se tinha
apropriado da poética da narrativa.
No Museu de exposições. Filme, fotografia, escul-
tura e instalação em trabalhos rea-
modo, no fim de cada visita, formar-
se-ão abcessos, mas serão menos
mento técnico e teórico”, diz João
Maria Gusmão “Toda a nossa pes-
No ecrã, os objectos representados
animam-se numa vertigem descon-
Serralves, até lizados entre 2004 e 2021 (os mais físicos, do que mentais, metafísicos quisa em relação ao cinema e à ima- certante, mas, sob o efeito, esconde-
recentes da autoria de João Maria ou até existenciais. gem tenta encontrar uma certa teo- se uma técnica apurada, uma expe-
7 de Novembro. Gusmão), que deixam os visitantes ria do fantasma articulado com o rimentação conceptual. O artista
num estado de espanto, e perpétua Uma técnica escondida que acontece no cinema em que a menciona uma referência autobio-
indagação. O que estamos a ver? Convidadas pela dupla a entrarem, imagem em movimento é uma su- gráfica, mas enfatiza a criação téc-
Que imagens são estas? O que lhes os jornalistas fazem-no, pé ante pé, cessão de imagens estáticas e não a nica das imagens.
Conceito e estética,
técnica e imaginação
O que nos deixa esta obra de forte erudição, de insaciável apetite
intelectual pela ÄlosoÄa, literatura, arte, estética, e uma mestria
técnica?
J
oão Maria Gusmão e Pedro Paiva trabalharam Natxo Checa faz parte do percurso de João Maria
com curadores diferentes e cruzaram-se com Gusmão e Pedro Paiva. “Quando os conheci, estavam
diversos artistas, construindo com uns e com no quarto ano da universidade”, recorda o director
outros afinidades artísticas, estéticas e da Galeria Zé dos Bois. “Vi o trabalho com que
pessoais. Desse conjunto extenso e rico (que participavam numa exposição colectiva, gostei
este texto não esgota, basta recordar, por muito. E convidei-os para uma residência do qual
exemplo, os nomes de Alexandre Estrela, de Nuno resultaram obras para a série exposições
Faria ou dos colecionadores Maria e Armando DeParamnésia, em 2002”. Estava inciada uma
Cabral), o Ípsilon conversou com o professor e relação, sustentada na amizade e em afinidades
curador Sérgio Mah, que convidou a dupla para o estéticas, que manteria um ritmo intenso, com
PHotoESPAÑA, 2018, com o director e curador da Zé viagens, projectos e exposições, até 2009, ano em
dos Bois Natxo Checa, que trabalha com eles desde que a dupla representou Portugal na Bienal de
os anos 2000, e, finalmente, Gonçalo Pena, artista Veneza. O curador e os dois artistas permanecem
com o qual João Maria Gusmão e Pedro Paiva já amigos próximos e a história da Zé dos Bois, nos
colaboraram e com quem Gusmão continua a últimos vinte anos, tornou-se indissociável da
colaborar (a exposição de Gonçalo Pena no Museu de história de João Maria Gusmão + Pedro Paiva. “A ZDB
Serralves tem a sua curadoria). associou-se aos seus projectos”, conta Natxo,
Embora a separação não signifique outro fim a não “trabalhámos e fizemos viagens juntos no âmbito de
ser o da dupla, o que nos deixa a sua obra, como investigações que, por sua vez, deram origem a
podemos, passadas duas décadas, caracterizá-la? exposições importantes. São artistas autónomos que
“Criaram um mundo peculiar, idiossincrático, um se associaram a uma entidade autónoma e
imaginário que ocuparam de forma muito séria e independente como é a ZDB”.
eficaz. Sem estagnarem numa fórmula ou numa Foi na ZDB que Gonçalo Pena viu pela primeira um
retórica”, diz Sérgio Mah. Para este comissário, João trabalho da dupla. “Havia ali um absurdo, com um
Maria Gusmão e Pedro Paiva conceberam um feixe lado poético, algo de invulgar. Não era uma piada ou
que vai da percepção à pesquisa em torno dos uma anedota. Comecei a acompanhar o que faziam”.
imaginários. “Nunca deixaram de desierarquizar Ao fim de alguns anos, os três artistas — que
domínios, da filosofia à literatura, das ciências à chegaram a trabalhar na mesma galeria —
ficção científica ou à magia, entrelaçando-os com começaram a participar juntos em residências.
fertilidade e rigor. Por outro lado, fizeram uma Seguiu-se um contacto quotidiano entre trabalhos e
reflexão sobre a percepção a partir da genealogia da uma curiosidade mútua. “Começaram a
imagem, da imagem analógica à imagem técnica”. interessar-me pelo [meu] desenho e fiquei
Pensaram, acrescenta, “o arco da obsolescência [da impressionado com a exposição Abissologia na
imagem], explorando, com inteligência, o jogo da Cordoaria. Mais tarde, apercebi-me que antes de ser
BRUNO LOPES
mance A Viagem Invertida (apresen- no centro de Lisboa, numa zona de
mmmmn tada sala Garrett do D. Maria II, 2019) troca, de comércio, de passagem de
É só uma ferida a reflexão que nos deixou sobre a turistas. A porta dá directamente
De Pedro Barateiro predação da Terra pelo homem, o para a rua e acabei por reflectir sobre
LISBOA. Fundação Carmona e Costa, R. Soeiro
consumo humano do mundo natural a multiplicidade que marcava aquele
Pereira Gomes, 1 e VILA NOVA DA BARQUINHA. e a influência da tecnologia digital na lugar.”
Fundação Carmona e Costa. R. do Tejo, 32, subjectividade humana. Para É só
2260-433. Até 17 de Julho.
uma ferida, leu Frankentsein de Mary Onde está o espectador?
Shelley, A Hora do Diabo de Fernando Na exposição, estão também as es-
Pessoa e The Transformation of Si- culturas Living Alone e Living To-
mmmmn lence into Language and Action da gether. Feitas de materiais e objectos
Eixo-próprio activista e escritora afro-americana industriais, reflectem a curiosidade
De Pedro Barateiro Audre Lorde. Destas leituras e textos, do artista pelas relações que estabe-
LISBOA. Rialto 6. Rua do Conde de Redondo
há ecos que se diluem no monólogo lecemos com as coisas (no espaço) e
N6, 1. Até 30 de Julho. do monstro, sugerindo afinidades, acentuam um imperturbável humor.
posições. Pedro Barateiro interroga Têm ambas quatro pernas, mas ape-
a relação com o digital, os efeitos do nas uma evoca uma noção de convi-
capitalismo tardio, a cultura do em- vialidade. Quase que passam desper-
preendedorismo ou, as nas palavras cebidas e dialogam, em termos for-
dos curadores da exposição, João mais, com outra peça, noutra
Mourão e Luís Silva, “os mecanismos exposição de Barateiro. Trata-se de
binários e opressivos do ocidente”. Eixo Próprio, que pode ser vista na
“Isso fez sempre parte do meu traba- mostra homónima patente, até 30 de
U
m monstro, um ser que só tual representação humana. “É cu- lho”, diz. “Essa tentativa de descons- Julho, no espaço Rialto6 dos colec-
tem cabeça e pernas. E que rioso como no meu trabalho nunca truir o pensamento binário ocidental cionadores Maria e Armando Cabral,
fala, fala num tom lento e representei visualmente [a figura hu- que está enraizado numa cultura que em Lisboa. Replica um fio-de-prumo
instrospectivo. Chama-se mana]. Sempre a evitei ou, quando é muito subserviente do capitalismo, [instrumento constituído por um fio
Data Monster, a criatura, e é aparece, está ausente, por exemplo, de uma certa ideia de ciência, dos no qual é suspensa uma peça de me-
a protagonista de um filme nos trabalhos que fiz à volta do espec- desenvolvimentos técnicos. Trata-se tal e que serve para verificar a verti-
de animação de Pedro Barateiro que tador”, considera. “Mas neste não de perceber que as imagens nos es- calidade de objecto] cuja presença
o espectador pode ver em É só uma posso evitar falar dela, se a quiser truturam, nos condicionam, nos in- pode desestabilizar ou não a expe-
ferida, até 17 de Julho na Fundação desconstruir”. fluenciam com as suas mitologias que riência e a percepção. Que verticali-
Carmona e Costa, em Lisboa. No ecrã, De volta ao vídeo, ou ao filme de escondem relações de violência e dade pretende verificar aquela peça?
Data Monster divaga, num tom con- animação, Data Monster é agora um poder. Nesse sentido, o meu trabalho A do nosso corpo, do nosso olhar? A
fessional, sobre o processo de trans- conjunto de pestanas que, depois de participa na desconstrução dessas Barateiro sempre interessou reflectir
formação que está a viver ou a sofrer. transformadas em curvas, linhas e mitologias”. De um modo oblíquo, sobre o lugar do espectador. É uma
Apresenta em Assume-se não binário, diz não ter
nome e fala de um ecrã que aparece
dobras, acabarão destiladas por um
alambique. “Já não fazia animação
diga-se, ou não reconhecesse Bara-
teiro os limites da arte. “A única coisa
disposição que aparece noutros tra-
balhos de Eixo Próprio, sobretudo na
Lisboa duas sempre que deles necessita. Os seus
dedos, revela, são os seus órgãos se-
desde a faculdade, mas a vontade de
retomar essa linguagem não desapa-
que posso fazer, citando a Clarice
Lispector, é dar ferramentas que po-
instalação 82 poemas — que pode ser
vista no interior e no exterior do Rial-
exposições xuais e não tem olhos, só pestanas recera. Nunca tive um medium espe- dem ajudar a desmantelar essas es- to6 — e numa série de esculturas
(quase) que se despegarão do seu estranho
corpo. A dada altura, alude a questões
cífico, sempre gostei de trabalhar com
vários e a animação permitiu-me tra-
truturas. O campo do artista é limi-
tado, específico”.
constituídas por cadeiras ocupadas.
São trabalhos que também preten-
em simultâneo, e tópicos hoje muito debatidos no
espaço público: os discursos de ódio,
balhar uma ideia presente no meu
trabalho. A de uma condição ou es-
De volta aos desenhos, grande
parte faz referência aos tempos que
dem olhar, de modo abstracto, para
as questões levantadas por É só uma
É só ferida, a circulação incessante de informa- tado potencial de mudança, de algo vamos vivendo, mas sem qualquer ferida: dos efeitos do capitalismo aos
ção, a depredação do planeta, a visão passível de ser transformado”. orientação unívoca. Uns são mais discursos que definem o humano e o
e Eixo-próprio. eurocêntrica do mundo. Há nela, con- abstractos, outros mais figurativos. não humano, à produção material e
Oportunidade tudo, algo de ambíguo. Parece fazer Desenhos na Rua Há-os mais tomados pelo gesto breve a produção imaterial, passando pela
uma crítica, mas a sua forma parece da Madalena da mão, outros mais detalhados. Al- condição do fabricador no campo da
para um determinada pela tecnologia. Por ou-
tras palavras: como se estivesse ligada
Sendo rara no trabalho de Barateiro,
a narrativa, quase linear, estrutura o
gumas cores e soluções cromáticas
repetem-se, sem tédio.
arte contemporânea. Mas a ligar to-
dos estes “tópicos” persiste a condi-
reencontro à máquina, como se fosse uma má- filme. “Quis explorar um universo “A figuração no meu desenho de- ção do espectador, manifesta na re-
com um trabalho quina. Onde se posiciona este mons-
tro? O que quer?
mais infantil e directo, que me per-
mitisse chegar a um espectro maior
sapareceu anos depois da sair da
ESAD [Escola Superior De Artes E
cepção de 82 poemas, composta de
82 filmes de poucos minutos que Pe-
que, heterógeno Diante da animação, que conta
com a voz de Conan Osiris, a música
e mais diverso de espectadores. Com
uma linguagem muito simples. O de-
Design Caldas Da Rainha], mas nunca
deixei de desenhar”, atalha, “[Os de-
dro Barateiro foi realizando entre
viagens e residências. Não nos pro-
nos seus meios, de BLEID e a produção do estúdio senho ofereceu-me um espaço de li- senhos] não têm uma lógica directa. põe este trabalho um compromisso
Sardinha em Lata, Pedro Barateiro berdade, e o filme permitiu-me de- À partida não sei o que vão ser, acon- específico? Ver ou não ver? Ver o
permanece revela a origem do vídeo. “Parte de purar mais o trabalho e, com ele, tecem pontualmente. Há uma ideia quê? Em que condições?
crítico um conjunto de desenhos que fiz em
2015 e que podemos ver na exposi-
uma série de questões”. Sobre a cria-
tura, diz-nos que há algo próximo do
de série, mas não é linear. Cada [de-
senho] corresponde a uma obra au-
Na Fundação Carmona e Costa, a
relação é mais imediata, a experiên-
e poético, ção. Num deles, há uma personagem
intitulada Data Monster que tem dois
auto-retrato, que, em parte, também
representa uma monstruosidade que
tónoma, é um filho único”. Nota-se
um virtuosismo no traço, embora
cia mais linear. Sentamo-nos para ver
e ouvir o monólogo do Data Monster,
imbricado no braços, duas pernas e uma cabeça. É todos podemos reproduzir. Para lá rápido, e aqui e ali referências à pin- sentimos (ou não) as suas dores ou
quotidiano e na muito dependente do computador e
muito parecida com outra que se
do bem e do mal? Este ser não biná-
rio, aparentemente assexuado, que
tura, à manga, à animação, ao mo-
dernismo artístico, à esfera mais
alegrias, percorremos os desenhos,
com as suas figuras e cores, alguns tão
vida com chama O Empreendedor”.
Uma breve incursão pelos dese-
acumula informação antes de se des-
integrar em pestanas (e se liquefa-
privada do artista. Alguns têm a com-
panhia das palavras, nomes, expres-
distintos que parecem feito por artis-
tas diferentes; veja-se por exemplo
os objectos. nhos expostos — feitos com guache e zer), tem semelhanças com os “em- sões que correspondem, afinal, aos The Night em contraponto a Coreogra-
tinta-da-china — permite descobrir preendedores” que se vêem nos de- títulos. “Gosto muito de usar a pala- fia. E, no entanto, o repto do artista
outros seres: Mr. System, Code, Them senhos. Como noutros trabalhos e vra escrita, de introduzir a sua pre- permanece o mesmo. Mais ou menos
Alexandra
Prado Coelho
N
o início desta história esta-
mos na Lisboa de 1597 e se-
Com Arrancados
guimos, “na penumbra, an-
tes dos primeiros raios da
da Terra, o
manhã”, os passos de um jornalista e
homem, Gaspar Rodrigues
Nunes, de 39 anos, comerciante de historiador
pregos. Segue numa fila de 90 ho-
mens, “pés descalços e velas amarelas
brasileiro recua
nas mãos”, vestidos com o “sambe- no tempo para
nito”, o “traje da infâmia”, uma túnica
de linho amarela imposta aos hereges, seguir os judeus
apóstatas, bígamos, devassos, sodo-
mitas e os praticantes do judaísmo.
expulsos de
Quase conseguimos ouvir, como
terá ouvido Gaspar nesse dia, “o vo-
Portugal
zerio da turba […] entrecortado pelo pela Inquisição
repicar dos sinos das igrejas, pelo
estrépito das matracas e pelo entoar até Amesterdão,
contínuo de cânticos religiosos”. Os
autos-de-fé eram um espectáculo
Brasil e, por Äm,
público, com as multidões que apu- Nova Iorque.
pavam e insultavam o grupo de pe-
nitentes à passagem pelas ruas a A imersão nos
aguardar depois o momento alto do
acender as fogueiras, já no Terreiro
arquivos
do Paço.
Em Arrancados da Terra, que
e a “visão do
acaba de ser lançado em Portugal outro como
pela Objectiva, com prefácio de
Esther Mucznik, Lira Neto, jornalista ameaça”,
e historiador brasileiro a viver no
Porto, autor de várias biografias, en-
trouxe-lhe “a
tre as quais a do antigo ditador do todo o instante
Brasil Getúlio Vargas, convida-nos a
seguir a personagem de Gaspar, con- ecos da realidade
duzindo-nos até aos cárceres da In-
quisição em Portugal, incluindo a
que vivemos
tenebrosa Casa do Tormento, e faz-
nos assistir às torturas infligidas a
hoje”.
Gaspar e à sua mulher Filipa, para
que confessem a sua fé judaica.
Gaspar irá conseguir escapar à fo-
gueira, mas Filipa, forçada sob tor-
tura a denunciar o marido, acaba por
enlouquecer. O médico do Santo Ofí-
cio irá declará-la “mentecapta” e
vítima de “melancolia mórbida”. Já
ela, sobre o estado em que se encon-
tra, consegue apenas repetir uma
coisa: “Tenho um fogo e um bicho
dentro do coração.”
Mas este é só o início de uma epo-
peia que dará a volta ao mundo. Um
relato de intolerância, centrado na
saga dos judeus sefarditas que, ex-
Sambenito
O “sambenito” (acredita-se que o nome fosse uma corruptela de saccus benedictus, “saco
pulsos de Portugal pela Inquisição, bendito”) era “o sinal imposto pela Inquisição para identificar os hereges, os blasfemos,
encontram refúgio primeiro na Ho- os apóstatas, os bígamos, os devassos, os sodomitas e, sobretudo, os que haviam ‘atentado
landa, mais tarde no Brasil e por fim contra a fé em Cristo’ ao professar o judaísmo”. Os infiéis ostentavam assim publicamente as suas
em Nova Iorque, quando esta era “culpas”. Se esta túnica de linho, este “traje da infâmia” que os judeus eram obrigados a usar, tinha
ainda Nova Amesterdão. Uma histó- pintadas chamas viradas para cima, significava que aquele que o envergava iria morrer na fogueira
ria que Lira Neto vê como mais do
que isso — como um olhar, à luz da
A saga
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dos judeus Lira Neto, jornalista e historiador brasileiro a viver no Porto,
do século
convida-nos a seguir a saga dos judeus sefarditas que, expulsos de
Portugal pela Inquisição, encontram refúgio primeiro na Holanda,
mais tarde no Brasil e por fim em Nova Iorque
XVII
NELSON GARRIDO
fala-nos das
intolerâncias
do século
XXI
realidade actual, sobre a persistência
não apenas do antissemitismo, mas
Apesar de aparecer só na metade do
livro, ele é o fio condutor”, explica o
Terra não inclui as notas e referên-
cias bibliográficas mas todas elas Para Lira Neto
de muitas outras intolerâncias.
É precisamente porque esta saga
autor. “Não se conta uma boa histó-
ria sem bons personagens. Não há
podem ser consultadas no endereço
http://bit.ly/notasarrancadosda- é muito claro que
particular de um grupo humano num
período específico da História tem
narrativa sedutora sem um persona-
gem igualmente sedutor.”
terra. Sendo os judeus sefarditas da
Península Ibérica o foco do seu tra- “a História não é feita
ressonâncias universais que o autor
dedica a obra “a todos os desterrados,
Quis perceber quais as origens da-
quele homem que, num tempo de
balho tinha, logo à partida, uma di-
ficuldade dado tratar-se de pessoas de verdades
retirantes, refugiados, apátridas,
proscritos, exilados, imigrantes, de-
grandes polémicas religiosas e de
divisões profundas, que atingiam a
que, por razões de pura sobrevivên-
cia, apagavam tanto quanto possível estabelecidas”,
gredados, foragidos, expatriados,
fugitivos e desenraizados do mundo”.
própria comunidade, tentava conci-
liar pontos de vista aparentemente
todos os registos da sua existência.
Os que fugiram para Amesterdão ela nasce
A todos os que, ontem e hoje, foram
— ou são — “arrancados da terra”.
inconciliáveis, e construir pontes
onde elas pareciam impossíveis.
adoptaram outros nomes, pelo que
é necessário estabelecer essas liga- “das perguntas do
O livro começa com Gaspar Nunes,
mas o fascínio de Lira Neto com este
“Faço uma busca e chego a Gaspar
Nunes, o pai de Menasseh, que se
ções para perceber quem é quem no
meio dessas duplas identidades. presente lançadas
grupo de homens e de mulheres par-
tiu inicialmente de uma outra figura:
revela um personagem igualmente
maravilhoso, não só pelo facto de ter
Por outro lado, há arquivos muito
ricos. “O principal foi o da cidade de ao passado” e
o filho de Gaspar, Manuel Dias
Soeiro, aliás, Menasseh ben Israel,
escapado da fogueira nas condições
em que escapou, mas por o inquérito
Amsterdão, que está digitalizado e
totalmente disponível. A partir da- “o nosso olhar de
“um erudito, um impressor, um livre
pensador”, que nas primeiras déca-
de que foi alvo por parte da Inquisi-
ção ser tão minucioso, detalhado,
queles papéis consegui reconstituir o
quotidiano da comunidade sefardita cidadãos do século
das do século XVII não está em Lis- eloquente.” na Holanda — as actas das reuniões,
XXI condiciona essas
Judeus
deus
boa mas sim em Amesterdão, inte- Para poder contar esta história, ttodos os contratos comerciais, os re-
grado na importante comunidade
sefardita da cidade. “Ele foi o pri-
meiro personagem que identifiquei.
Lira Neto mergulhou nos arquivos
— por uma questão de dimensão, a
edição portuguesa de Arrancados da
ggistos religiosos, tudo está muito bem
organizado. Da mesma forma, no ar-
o
quivo da cidade de Nova Iorque,
Io e
perguntas”
Auto-de-fé
“Todo o herege ou cismático há-de ser lançado ao fogo eterno, na companhia do Diabo e dos seus
anjos, a não ser que, antes da morte, seja incorporado ou reintegrado na Igreja”. Assim dispunha o
Directorium inquisitorum. A Inquisição perseguia impiedosamente todos os que, mesmo tendo
sido baptizados na fé de Cristo, eram suspeitos de praticar o judaísmo em segredo. Se não
confessassem e se não renegassem para sempre a Lei de Moisés, eram condenados a morrer na
fogueira, nos autos-de-fé que se realizavam periodicamente em Lisboa
e disponível para os pesquisado- dos relatos que existem desse pe- seh ben Israel, o editor e construtor Pernambuco em 1641, tornando-se que era fazer com que os judeus re-
res pela Internet, foi possível estabe- ríodo e das lutas entre luso-brasilei- de pontes que “teve vários embates o primeiro rabino das Américas. tornassem ao império britânico.
lecer uma ideia do que era a Nova ros e neerlandeses. “Você percebe e muitos deles estão descritos nos “É quase impossível não nos iden- Deixo entender no final que a aceita-
Amesterdão naquele período.” E, em ali o mesmo episódio contado de seus papéis pessoais e não nessa do- tificarmos com Menasseh”, diz. “Não ção dos judeus no que viria a ser
Portugal, “os arquivos da Torre do forma absolutamente diversa, cumentação oficial”. só pelo facto de ele ser um editor, um Nova Iorque decorre muito dessa
Tombo são impressionantes, em nú- oposta, antagónica, e eu ofereço ao O entusiasmo de Lira Neto ao en- homem que trabalha com a palavra, embaixada de Menasseh a Londres,
mero e em qualidade”. leitor a oportunidade de mergulhar contrar a personagem de Menasseh com os livros, mas pelo facto de ele, o que faz dele um personagem ainda
É, contudo, preciso um cuidado nessas duas versões, nesses dois uni- sofreu um abalo quando percebeu em vez de construir muros, tentar mais significativo.”
especial quando se trabalha os arqui- versos mentais, e como os dois gru- que, ao contrário de muitos outros construir pontes e pagar um alto Atravessam o livro outras perso-
vos. “Não existe um documento des- pos se viam um ao outro. Tem passa- judeus da comunidade sefardita de preço por isso. E ainda o ter morrido nagens, menos centrais mas não
interessado. Todo o documento é gens curiosíssimas, como aquela em Amesterdão, este não tinha ido para imerso numa última grande utopia menos fascinantes, como o padre
produzido com uma intenção. A mais que os holandeses, ao olhar para a o Brasil. Mas depois entendeu que jesuíta e capitão de uma força de
prosaica certidão tem um interesse casa dos colonos portugueses, se mesmo essa não-ida era relevante índios tabajaras e potiguaras, Ma-
específico. É preciso ir para além da perguntam: ‘mas eles não têm qua- para a história. Foi precisamente por nuel de Morais, que várias vezes
letra do que está escrito, tentar pene-
trar na entrelinha. No caso dos da
dros nas paredes?’”.
Mas se os arquivos da Inquisição
causa dos seus escritos — entre eles
uma obra que foi um sucesso edito- “Como é que muda de vida, e de lado, largando a
batina e tornando-se, a certa altura,
Torre do Tombo, por exemplo, sabe-
mos que são produzidos com um
têm um viés evidente, é preciso tam-
bém cuidado ao analisar os da cidade
rial, mas que lhe trouxe grandes dis-
sabores, O conciliador ou Da adequa- Portugal ainda funcionário da Companhia das Ín-
dias Ocidentais, instalado em Lei-
determinado viés, nitidamente re-
pressivo. Um pesquisador da História
de Amesterdão, que “eram os arqui-
vos oficiais das comunidades e nos
ção dos trechos da Santa Escritura
que parecem contraditórios entre si permite uma den, onde escreve vários livros, en-
tre os quais um glossário do idioma
tem que seguir a lição de Walter Ben-
jamin e ler os documentos a contra-
quais as desavenças internas, as dis-
putas, nem sempre estão explicita-
— que Menasseh acabou por ser pre-
terido em favor do seu rival, Isaac nostalgia saudosista tupi em latim.
Ou Dierick Ruiters, “o Mãozinha,
pelo, contra a intenção com a qual
foram produzidos. A tarefa aqui é
das”. É o que acontece com Menas- Aboab da Fonseca, que viajou para
do Estado Novo? autor de um manual de navegação
importantíssimo na época, que
juntar esse voo de pássaro que a bi-
Mas Portugal tem perde a mão numa rusga no Brasil,
SPENCER PLATT/GETTY IMAGES
e se preferiu
SPENCER PLATT/GETTY IMAGES
Jud
que trocaram Amesterdão pelo Bra-
Cemitério
No prólogo de Arrancados da Terra, Lira Neto descreve a sua visita ao discretíssimo “primeiro
cemitério da sinagoga espanhola e portuguesa Shearith Israel da cidade de Nova Iorque”, fundado
em 1656. “Hoje, as sepulturas de St. James Place são uma relíquia histórica quase ignorada”,
escreve. A cova mais antiga tem uma lápide de 1683 identificando Benjamin Bueno de Mesquita
que aqui “espera por seu Deus, que ressuscita os mortos do seu povo com piedade para viver o
sem-fim da eternidade”
sustentava no trabalho dos escravos Curiosamente, o mesmo vai acon- çou uma campanha contra o politi- “é muito doloroso perceber que tan-
vindos de África. tecer no final do livro, quando (num camente correcto” que “foi abrindo tos séculos depois ainda estamos
Judeus que, a cada novo momento episódio ainda aberto a investigação uma caixa de Pandora” e levando à debatendo as mesmas questões.”
de crise, são uma e outra vez escolhi- por não ter sido ainda possível che- aceitação de coisas que pareciam Sem planos para regressar ao Bra-
dos como bode expiatório. Um gar a conclusões definitivas sobre inaceitáveis. sil por agora, Lira Neto viu-se forçado
exemplo, entre muitos: a 2 de Julho ele), os judeus fugidos do Brasil che- “Bolsonaro”, prossegue, “fala as a congelar o projecto da sua triologia
de 1641, 66 mercadores calvinistas gam a Nova Amesterdão, futura Nova piores bombagens e nós vamo-nos sobre a história do samba, mas aper-
residentes no Recife enviam ao go- Iorque. A partir dos documentos da acostumando a isso da mesma forma cebeu-se de que viver em Portugal
vernador Maurício de Nassau um cidade, elaborados na época pelos que nos vamos acostumando com a lhe abriu os olhos para outros assun-
documento pedindo a restrição da colonizadores holandeses, Lira Neto morte nesta pandemia. Chegou um tos. “Por mais que Arrancados da
liberdade de comércio dos judeus, percebe que “a forma como tratavam ponto em que os números já não nos Terra seja uma biografia colectiva,
descritos como “uma verdadeira os judeus que chegavam ali em situa- diziam mais nada. No Brasil morrem tenho uma certa saudade de agarrar-
peste neste país” porque “detêm o ção de vulnerabilidade, de precarie- 2000 pessoas por dia e isso não está me à vida de um indivíduo e passar
comércio do Brasil todo, e não se vê dade, é uma visão de quem tratava o na capa do jornal todos os dias. E, três, quatro, cinco anos convivendo
movimento senão nas lojas dos ju- outro como um incómodo”. mesmo assim, o homem que comanda com ele”, confessa.
deus, e não se vê açúcar senão nas Um grande problema, segundo o este extermínio em massa tem a ade- Está, por isso, a tentar perceber
mãos dos judeus”. autor, é que hoje estamos longe deste são de 30% da população brasileira. quais seriam “os personagens que
Mas a própria comunidade judaica esforço de compreender contradi- Eu fico me perguntando como é que poderiam ter um pé no Brasil e outro
tem uma capacidade muito signifi- ções e ambivalências. “As discussões naturalizamos uma pessoa como Bol- em Portugal e de que modo poderia
cativa de se dividir: “Há momentos dão-se de uma forma muito epidér- sonaro e esse tipo de discurso.” aproveitar a minha experiência de
em que se estabelece um poder e em mica, superficial, não temos a capa- Também em Portugal, onde esco- viver aqui e produzir outro livro que
que há judeus de primeira e segunda cidade para a escuta, para ouvir o lheu viver por agora, há coisas que o tivesse esse diálogo entre os dois
categoria. É interessante notar que argumento do outro, preferimos des- perturbam. “Como é que Portugal mundos, a Europa e a América”.
quando a comunidade sefardita de qualificar o adversário”. ainda permite uma certa nostalgia Para já, não quer revelar muito mais
Amesterdão começa a ascender so- Daí que veja tanta actualidade na saudosista do Estado Novo? Como é sobre os seus projectos futuros. “São
cialmente, os asquenazes que chega- história que conta. “Há muitos que que esse tipo de discurso ainda é con- coisas que estão no meu arco de pos-
vam do Leste Europeu eram vistos fazem do seu credo político uma es- siderado absolutamente normal por sibilidades. Não quero explicitá-las
de forma ameaçadora. Tinham me- pécie de religião, com uma fé inaba- vezes? Mas Portugal tem uma grande porque ainda não estão devidamente
nos posses, chegavam em condições lável na sua convicção.” Vê isso no diferença em relação ao Brasil, vocês maturadas. Mas esta imersão no uni-
mais precárias.” Brasil onde “há uns dez anos come- tiveram o 25 de Abril, enquanto no verso português talvez renda ainda
Brasil a transição para a democracia outros e bons frutos.”
foi feita de forma negociada até de-
mais e se preferiu o esquecimento à
memória. Institucionalizou-se o es-
Sinagoga quecimento quando devíamos ter
institucionalizado a memória.”
A sinagoga portuguesa de Amesterdão (na imagem em Ao mesmo tempo, para Lira Neto
baixo num óleo sobre tela de Emanuel de Witte, de 1680) era é muito claro que “a História não é
o centro da vida da importante comunidade judaica feita de verdades estabelecidas”, ela
sefardita daquela cidade no século XVI. Fugidos de nasce “das perguntas do presente
Portugal, os sefarditas encontraram em Amesterdão — que lançadas ao passado” e “o nosso
chegou a ser conhecida como a “Jerusalém do Norte” — um olhar de cidadãos do século XXI con-
ambiente favorável para poderem instalar os seus negócios diciona essas perguntas”. Inespera-
e viver abertamente a sua fé. A partir desta cidade damente, Arrancados da Terra, sendo
cosmopolita, os cristãos-novos dedicavam-se ao comércio o livro em que o historiador mais re-
marítimo transatlântico num clima de “opulência económica cua no tempo, tornou-se, de entre
[que] transformou a Holanda naquela que pode ser todos os que já escreveu, “o mais ac-
considerada a primeira economia moderna do mundo” tual, o mais contemporâneo”.
O mergulhar nos arquivos, trouxe-
lhe uma realidade tristemente fami-
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udeus
ideológica crescente do mundo, em
que os antagonismos se explicitam
de uma forma cada vez mais ruidosa,
mais agressiva”. Olhando para trás
da literatura portuguesa escritores mais marcantes e desali- ção conflituosa com o mundo rural. foi para proteger nenhuma imagem,
do século XX nhados da literatura portuguesa do Ele é o neto do “Zé dos bois”, filho porque se alguém se quiser armar em
seculo XX. de José António, que por não te ape- juiz e julgar o homem ou o escritor do
“A vida dos bares, beber e andar à lido recebeu o dos padrinhos, Neves. ponto de vista moral, pode fazê-lo
pancada não é a escrita dele. Ele não O pai saiu novo de São João do Peso, com a informação que está no livro.
é um Bukowski. A escrita dele é de concelho de Vila de Rei, para Lisboa, Eu não o quis fazer enquanto bió-
outra ordem. Até podia haver ali uma foi marçano numa leitaria, andou na grafo. Ponho um ou outro episódio
confluência. Não é o caso. Ele era escola comercial e inscreveu-se na que podem ser reveladores da perso-
muito cerebral. Não era boémio na Escola dos Alunos Marinheiros e fez nalidade, e algumas curiosidades,
escrita. Pelo contrário. Era quase carreira na Marinha. Casou em segun- mas quis evitar abastardar a biografia,
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monástico na escrita. Não bebia das núpcias com Maria Sofia Cardoso tornando-a mera sucessão de episó-
quando estava a escrever, isolava-se. Pires, também de Peso da Régua, filha dios bizarros. O essencial está lá, per-
São dimensões separadas dentro da de um agricultor abastado. E “às 16 mite uma visão completa de quem foi
mesma pessoa. A certa altura, teve horas do dia 2 de Outubro de 1925, na este homem, nunca me desviando do
dificuldade em fugir dessa imagem aldeia de São João do Peso, nascia o importante: a obra, que foi o que fez
que se lhe colou. Mas a obra não é primogénito do casal, um rapaz a de Cardoso Pires, Cardoso Pires. Quis
isso. Há coisas sobre os bares, sobre quem puseram o nome de José Au- não só perceber este homem e as cir-
a vida nocturna, no Delfim e na Ale- gusto Neves Cardoso Pires.” O rapaz cunstâncias em que trabalhou e foi
xandra Alpha, mas a forma como da cidade foi nascer ao campo. escritor, mas também o que era ser
descreve esses ambientes é outra O trabalho de Vieira Amaral passou escritor em Portugal na segunda me-
coisa”, diz Bruno Vieira Amaral, o por dividir o livro em unidades pe- tade do século XX, com os condicio-
escritor que passou três anos a traba- quenas, e em cada uma ia “entrela- namentos políticos, de censura, com
lhar na biografia agora publicada çando toda as dimensões” de uma os grupos e correntes ideológicas e
com o título Integrado Marginal, ex- vida, explica. “Tive que ir ali arran- estéticas que existiam. Quis perceber
pressão retirada do livro Cardoso jando truques, artifícios que não fos- esse ecossistema, usando como linha
Pires por Cardoso Pires a partir de sem escandalosamente artificiais. narrativa a história de um dos maio-
uma entrevista a Artur Portela, em Espero que os leitores tenham a sen- res escritores dessa época.”
1991. “Quando muito, talvez nunca sação de facilidade, de que as coisas Nesse trabalho escolheu apagar-se
tenha passado em toda a minha vida estão ali de forma natural, harmo- como biógrafo. “No capítulo do Del-
de um integrado marginal ou coisa niosa”. Como estímulo, havia algumas fim há uma intervenção do biógrafo
que se pareça... para aí, sim: inte- biografias de que gosta muito. “Uma quase para defender o romance. As
grado e marginal.” das minhas preferidas é uma do fun- críticas que lhe fizeram falharam
Integrado Marginal tem a estrutura dador da igreja Mormon, Joseph completamente o alvo. Era olhar para
de uma biografia clássica, contruída Smith, por uma historiadora, Fawne a pulga e não ver o cão. Enquanto
cronologicamente e tendo como M. Brodie [No Man knows My History, biógrafo senti-me na obrigação de me
eixo a obra bissexta de Cardoso Pi- The Life of Joseph Smith]. Foi em bio- chegar à frente e defender o meu bio-
res. Divide-se em 53 capítulos, cada grafias como essa que apontei o meu grafado. No resto procurei o apaga-
um como unidade semi-autónoma alvo, olhei para essas. Eu não quis mento. O meu olhar já está na cons-
num puzzle cuidadosamente cons- fazer uma biografiazinha. Quis fazer trução. Quis evitar especulações. Em
truído onde nunca perdemos o pé uma grande biografia. O Ruy Castro, relação aos ambientes que ele fre-
do homem, mas com o subli- para mim, é a maior referência. Mas quentava nunca tentei o exercício
nhado no autor. Um autor que se atenção: é muito difícil. Gosto muito mediúnico de tentar ver pelos olhos
indaga a si mesmo, à sua escrita, enquanto leitor, há ali coisas, da mi- dele.” Isso, apesar de ter feito o péri-
ao país e à cidade onde vive, núcia, do rigor, que tentei que a bio- plo pelos lugares de Cardoso Pires.
crítico inclemente da classe grafia tivesse, mas em relação ao es- “Usei essas coisas, mas não quis que
social a que pertence — a da tilo, aquele é o dele, depende de va- isso se visse; não quis mostrar as cos-
burguesia conformada —, que turas, quis dissimulá-las.”
se rebela contra o provincia- Nesse processo, sentiu-se um
nismo, luta pela democracia aprendiz, também, da obra de Car-
sem obedecer aos dogmas do doso Pires, de uma certa maneira de
partido onde militou — o PCP escrever que aprecia. “Ter uma espé-
—, amigo do grupo de católi- cie de ouvido musical para a escrita,
cos progressistas, ele que para o que os outros dizem, mas tam-
sempre foi ateu apesar — ou bém para o próprio funcionamento
em reacção — do catoli- “É muito difícil passar da frase, a sua organização, a sua mu-
cismo obsessivo em que a sicalidade. Quando li declarações
mão educou; um homem três anos com uma dele sobre essas questões estilísticas,
da rua, o marialva que, estava a receber isso não enquanto
apesar das muitas mu- pessoa e não ficar biógrafo, mas enquanto escritor.”
lheres, amava a sua, a Sorri. Fala agora da relação com
de sempre, Edite, o “Es- a sentir que ela faz Cardoso Pires, que nunca conheceu.
quilo”. Ele era o “Zé Car- Sente que ele continua a espreitar-lhe
doso Uísque”, como sa- parte do nosso por cima do ombro quando escreve.
bia que o alcunhavam, “Parece que há uma nuvem de Car-
“com uma paixão não círculo. Tenho a doso Pires à minha volta. É uma pre-
correspondida pelo ci- sença quase gasosa aqui em cima. É
nema”, alguém nde- sensação que fiz um como se estivesse disseminado pelo
pendente, que prezava ar. Tento perceber o que acharia do
a liberdade e cujo prin- amigo que já morreu. que estou a escrever. Será que estou
cipal desígnio, escreve o a ser um bocadinho sentimentalóide?
biógrafo, “sempre fora a Não sei que relação Será que estou a puxar à lágrima?”
seriedade.” Em Integrado Ao fim de três anos, feito o livro,
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Marginal temo um escri- teríamos se nos uma pergunta: gosta dele? “Gosto!
tor incómodo, como Gosto dele com os defeitos dele, com
achava que todos os tivéssemos cruzado as muitas qualidades que tinha. É
escritores deveriam muito difícil passar três anos com
ser. ou se fôssemos uma pessoa e não ficar a sentir que
“Fiz aquilo que gosto ela faz parte do nosso círculo. Tenho
de ler numa biografia”, contemporâneos. a sensação que fiz um amigo que já
explica Bruno Vieira Ama- morreu. Não sei que relação teríamos
ral. “Era fundamental que Não sei se ele se nos tivéssemos cruzado ou se fôs-
a obra servisse de eixo, e semos contemporâneos. Não sei se
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29 JUNHO 19:30
nenhuma música por mais linda ouvi-lo entre esse delicioso delírio
que seja esmorece. Sucede-se a do (primeiro) confinamento que foi
enunciação de múltiplos cacos Cuca Vida, o álbum colectivo criado
reparáveis (o pombal de loiça que à distância pelo pessoal ligado à
estava partido mas que ficou Cuca Monga, a editora/colectivo
impecavelmente colado com associada aos Capitão Fausto (onde
UHU). Os nomes próprios são encontramos também Luís Severo,
sempre usados. Seguem-se os Zarco, os Reis da República ou os
histórias de outros tempos. A Ganso), e bastava testemunhar
criança Adília viveu sempre entre como, depois de ver a sua estreia
velhos sem outras crianças, velhos
que recordava as suas histórias de
em longa duração, enquanto Rapaz
Ego, adiada pela pandemia, criou
CARTA BRANCA AO REMIX
crianças de há 30 a nos atrás. E que no seu lugar um EP de latinidades PETER RUNDEL direcção musical
morreram. Com mais ou menos intitulado Rapaz Ego Canta durante
humor, contrariado aliás muitas La Siesta. Quando nos chega Vida obras de LUCIANO BERIO,
vezes nas últimas linhas do poema, Dupla, o referido longa-duração de GIUSEPPE VERDI, FRANCO DONATONI,
o que instala uma cesura estreia, sucessor de Gente a Mais, SALVATORE SCIARRINO e outros
inabsorvível que a alguns leitores, editado no já distante ano de 2016,
ou admiradores, desconforta. já estamos, portanto, preparados.
Como resgatar tamanha Mas, ainda assim…
infelicidade ou divertido Ainda assim, somos
desajuste? surpreendidos com esta colecção
Este último livro dá exemplos de cuidadosamente construídos,
com histórias de outros tempos, primorosamente produzidos
figuras pictoricamente delírios pop de um homem à solta
convocadas: “aos 18 anos fiz o pelo lado B da vida que fervilha em
Propedêutico (para poder entrar si (com o apoio, enquanto
na Universidade), nas férias fui a instrumentistas, de Guilherme
Paris com uma amiga”. Terá ido no Tomé Ribeiro ou de vários dos
sud-express, iniciaram-na no Capitão Fausto). Há estripadores no
xadrez durante a viagem, tarefa corredor de casa, bolsos vazios em
levada, como quase sempre por AL noite de sedução no Bairro Alto, um
muito a sério, até anotou a posição super-herói em Tânger (“quero que
das peças para continuar, contou a fique bem claro, Rapaz Ego me
um pequeno a estória do patinho salvou a vida”, versos mantra
feio umas cinco vezes, “depois já ouvidos algures), Cartola e Milton
todos tínhamos sono. Estas Nascimento citados em canção de
recordações são boas. Mas os meus balanço tropical a condizer, análise WWW.CASADAMUSICA.COM / 220 120 220 APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA
18 anos não foram bons”. poética onde Miguel Torga a queijo Seja um dos primeiros a apresentar hoje este jornal completo na Casa da Música e ganhe um convite duplo para este
concerto. Condicionada à disponibilidade da sala, a oferta é limitada aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um
convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.
É quase sempre assim. “Tenho brie são elementos postos lado a
sessenta anos adolescentes”. lado. Fantasia e biografia,
ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 27
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mnnnn
Encontro entre a crise dos
Colectiv- Um Caso de Corrupção mmmnn mmmnn — refugiados sírios e a arte
Entre a Morte mmmnn — mmmnn contemporânea (ou, enfim, uma
O Homem que Vendeu a sua Pele mnnnn mnnnn — ideia mais ou menos incipiente de
“arte contemporânea”), O Homem
Luca mmnnn — — que Vendeu a sua Pele é uma
O Mauritano mmnnn mnnnn mnnnn co-produção internacional que tem
Miss Marx mmmmn mmnnn mmmnn ao leme uma realizadora tunisina —
e apesar das suas características de
O Movimento das Coisas mmmnn mmmmn mmmmn “euro-pudim” (ou “pudim
Missão Inesperada — mmnnn — euro-árabe”), foi como filme
Nocturno mmmnn mmnnn mmmnn tunisino que se impôs, merecendo
estar entre os nomeados para o
Pecado — mmnnn mmnnn
ultimo oscar de “melhor filme
Playlist mmnnn mmnnn mnnnn internacional”. A chave do filme,
Ao Ritmo de Washington Heights mmmnn — — que vale o que vale (e na sua
legibilidade imediata não vale
Supernova mmmmn — mmnnn
Uma aspirante a desenhadora à procura do sentido da vida muito), é a constatação, dita num
a Mau mnnnn Medíocre mmnnn Razoável mmmnn Bom mmmmn Muito Bom mmmmm Excelente
diálogo, de que actualmente a
28 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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CLOWN
TEATRO MUNICIPAL
23 JUN A 4 JUL
CINETEATRO
UMA CRIAÇÃ O DE LOULETANO
RICA RDO NEVE S-NE VES
16, 17, 18 JUL
E RUI PAIX ÃO
© fotografia: Estelle Valente / Teatro São Luiz · art designer: José Pinheiro 2021
CENTRO DE ARTE
DE OVAR
30 JUL
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Periodicidade mensal no primeiro sábado de cada mês, entre 1 de Maio de 2021 e 2 de Abril de 2022. Stock limitado. COM O PÚBLICO 2210 111 020
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