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Sexta-feira | 25 Junho 2021 | publico.pt/culturaipsilon
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de um poeta
A morte
dias de um homem elevado
dá pistas sobre os últimos
A antologia The Collected

a mito apressadamente
Works of Jim Morrison

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Um livro
para
tentar
humanizar
o mito
2 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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Jim T
oda a gente gosta de romantizar os começos das que estes detalhes se sobreponham à sua obra. Ao bri-
coisas e não é com os Doors que esta ideia será lhante repertório que os Doors compuseram em apenas
contrariada. Venice Beach, Califórnia, Julho de cinco anos. Às ocasionalmente interventivas e políticas
1965. Ray Manzarek, 26 anos, está sentado na letras de um homem que não era um “rebel without a
areia quando por ele passa Jim Morrison, cinco cause”. Às suas aspirações literárias.
anos mais novo. Os dois colegas de faculdade The Collected Works of Jim Morrison: Poetry, Journals,
terminaram recencentemente os estudos em Cinema Transcripts and Lyrics, livro lançado no início deste mês
na prestigiada UCLA. Manzarek, hábil pianista e amante pela HarperCollins, tenta recentrar a discussão. A anto-
de jazz que está sem saber o que fazer da vida, pergunta logia de quase 600 páginas inclui muito material não
a Morrison como tem passado o tempo. A resposta: inédito, como as letras de todas as canções que Morrison
“Tenho escrito as canções de um concerto de rock ex- assinou com os Doors e os dois livros de poesia que pu-
celente que ando a ouvir na minha cabeça.” Ray pede blicou de forma independente em 1969 — The Lords e
a Jim que lhe cante uma dessas músicas. Tímido, este New Creatures —, mas também traz à luz do dia grande
começa por hesitar, mas lá atende à vontade do amigo. parte dos poemas que, durante anos, o autor escreveu

Morrison O tema que escolhe chama-se Moonlight Drive; “Let’s


swim to the moon” é o primeiro verso.
Manzarek gosta da melodia e fica impressionado com
a qualidade do poema. O resto, como se diz, é história:
aos dois colegas juntam-se John Densmore (baterista) e
Robby Krieger (guitarrista) e, voilà, eis os Doors, banda
imprescindível do movimento contracultura dos anos
1960, capitaneada por uma das figuras mais célebres e
mitificadas da história do rock.
Só que nesta “origin story” não há espaço para o
“mito”. A história do jovem James Douglas Morrison
sentado na praia a cantar uma versão rudimentar de
Moonlight Drive — faixa que faria parte de Strange Days
(1967), segundo álbum dos Doors — é a história de um
miúdo que sempre se achou mais poeta do que músico.
Um miúdo que caminhava sempre com um caderno nas
mãos e que, por acaso, possuía uma voz extraordinaria-
mente carismática e sensualidade para dar e vender.
As pessoas tendem a simplificar as histórias quando
os anos começam a amontoar-se. É normal, a memória
nos seus cadernos e diários.
A colecção destaca-se por incluir o célebre “diário de
Paris”, onde Jim passou os últimos meses da sua vida,
na companhia da namorada Pamela Courson, e por des-
vendar os apontamentos que foi tirando durante o seu
famoso julgamento. Breve contextualização: o dia 1 de
Março de 1969 foi o dia em que o que deveria ter sido
um concerto rotineiro em Miami acabou por se trans-
formar na actuação mais controversa dos Doors. Morri-
son pouco cantou numa noite em que, embriagado,
chegou atrasadíssimo ao espectáculo e, quando apare-
ceu, passou boa parte do tempo a provocar verbalmente
os fãs (“You’re all a bunch of fucking idiots! What are you
gonna do about it?”, repetiria incessantemente). Depois
de levar um banho de champanhe, terá tirado a camisola
e mostrado os genitais à plateia (isto nunca foi corrobo-
rado pelos restantes membros do grupo). Seria levado
a tribunal pelas autoridades locais, que o acusaram de
importunação sexual, intoxicação pública e uso de lin-
guagem imprópria.
não é infalível e nem sempre consegue guardar os por- As notas sobre a sua experiência no lugar do réu (e
menores todos. Mas, regra geral, há demasiados atalhos sobre o medo de ser condenado a prisão efectiva) reve-
quando se fala de Jim Morrison. Todos sabemos que os lam outra sobriedade e constituem o elemento mais
seus cabelos encaracolados e o seu olhar magnético o interessante de The Collected Works, que tenta dar a co-
tornaram um dos sex symbols do seu tempo. Sabemos nhecer o “outro” Jim Morrison — o poeta existencialista
da sua personalidade imprevisível e dos vários episó- para quem o rock era apenas um veículo para levar a sua
dios, digamos, insólitos que protagonizaria ao longo da obra a um público mais amplo — e que, por outro lado,
sua breve carreira — foi o primeiro músico de uma pode também ser o retrato dos confusos e cinzentos úl-
banda de rock a ser detido a meio de uma performance; timos dias de um dos enigmas da sua geração.
aconteceu na cidade de New Haven e havemos de re-
gressar a esse incidente. Sabemos que viveu uma vida Pela estrada fora
de excessos e que esses excessos tiveram o seu preço Por causa do pai, George Stephen Morrison, que serviu
— a sua relação com o álcool e outras substâncias aditi- a Marinha dos EUA durante décadas — e que, em 1964,
vas teria um impacto tanto na sua vida criativa como viria a ser um dos protagonistas do incidente do Golfo
na sua saúde. Sabemos que entrou para o “Clube dos de Tonquim, que ditou a entrada das tropas norte-ame-
27” quando, a 3 de Julho de 1971, morreu numa banheira ricanas na Guerra do Vietname —, Jim teve uma infância
em Paris, vítima de insuficiência cardíaca (é a versão nomádica (em poucos anos, a família mudar-se-ia para
mais consensual dos acontecimentos; o facto de não se San Diego, Albuquerque, o Texas e a Virgínia). Esta falta
ter feito uma autópsia e de pouquíssimas pessoas terem de estabilidade, aliada à educação militar que recebeu
estado presentes na cerimónia fúnebre — que terá sido em casa, fragilizou psicologicamente o jovem, que se
realizada com o caixão fechado — vem alimentando refugiou nos livros. Imensos livros. Livros da Geração
teorias diversas há meio século). Beat (Burroughs, Ferlinghetti, Ginsberg, Kerouac) e de
Sabemos tudo isto — e, por vezes, parecemos permitir autores franceses (Charles Baudelaire, Louis-Ferdi- e

Daniel Dias
Na história da música popular o vocalista dos Doors
ESTATE OF EDMUND TESKE/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES

surge como um “espírito livre”, um hitchhiker misterioso


e hedonista. A antologia The Collected Works of Jim
Morrison completa o retrato. Além de compilar a obra
literária de um vocalista que sempre quis ser visto como
poeta, divulga materiais interessantíssimos,
apontamentos e os versos do diário que escreveu em
Paris, onde viria a morrer, que dão pistas sobre os últimos
dias de um homem elevado a mito apressadamente.

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e nand Céline), livros de Franz Kafka e de William musical da altura espelhava a transformação social com

Jim Morrison morreu há Blake. “Enquanto os seus amigos na escola se divertiam


com brinquedos, o Jim ficava a ler Rimbaud, Camus e
Genet. Quando terminou a licenciatura, a prenda que
que aquela geração se preparava para dar início a um
novo ciclo na história dos Estados Unidos — e os Doors
ver-se-iam no centro da acção.

quase 50 anos e o legado ele pediu aos meus pais foi a obra completa de Niet-
zsche”, recordou recentemente ao Financial Times Anne
Morrison Chewning, irmã mais nova do músico.
O quarteto deu os primeiros passos no estabeleci-
mento de diversão nocturna London Fog. O vocalista
demorou a habituar-se à ideia de estar em palco (nos

dos Doors não vem sendo A herança da Geração Beat e a reverência com que o
jovem Morrison olhava para On the Road (Pela Estrada
Fora, na tradução portuguesa), obra fundamental de Jack
primeiros concertos, cantava com as costas voltadas para
o público), mas, em pouco tempo, a timidez daria lugar
a uma confiança invulgar. As actuações dos Doors tor-

devidamente protegido e/ou Kerouac, revelam-se em vários poemas de The Collected


Works, que têm como ponto de partida o tema da espi-
ritualidade e enaltecem as possibilidades de redefinição
naram-se imprevisíveis e enérgicas. Até mesmo teatrais.
O grupo passou a tocar com regularidade no Whisky a
Go Go e Morrison tornou-se amigo de Arthur Lee, líder

respeitado desde então oferecidas pela estrada. A espaços, o autor descreve-se


como um “hitchhiker”, sempre a pensar na próxima bo-
leia, na próxima viagem sem rumo durante a qual en-
dos Love, que estavam ligados à Elektra Records. Foi Lee
quem convenceu Jac Holzman, chefe dessa editora, a
assistir a um espectáculo dos Doors. O responsável
contrará novos caminhos. “The grand highway is covered achou-os “inconsistentes”, mas ficou impressionado com
with lovers and searchers and leavers/ so eager to please a entrega do frontman. “Eles precisavam de limar arestas
and forget”, pode ler-se num dos seus muitos poemas antes que pudessem pensar em gravar, mas esta não era
sem título. uma banda de rock comum”, viria a assinalar na sua
Morrison percorreu muitos quilómetros com os Doors, autobiografia, intitulada Follow the Music.
mas tudo começou na Califórnia, onde estudou Cinema A Elektra não demorou a identificar o potencial eco-
e acabou por criar raízes. Em 1966 e 1967, passear por nómico de Morrison. “Olhei bem para ele e pensei: ‘Se
Los Angeles e passar uma noite na famosa Sunset Strip este miúdo conseguir ler a lista telefónica sem desafinar,
implicava ir a clubes como o Ciro’s, o Troubadour, o Ga- vamos todos fazer muito, muito dinheiro’”, brincaria
laxy, o Unicorn ou o Whisky a Go Go ver os Love, os Steve Harris, antigo vice-presidente da editora, num do-
Byrds, os Mothers of Invention de Frank Zappa, os Ma- cumentário televisivo sobre as últimas 24 horas da vida
mas & the Papas, os Buffalo Springfield… A revolução do vocalista. e

O vocalista
demorou a
habituar-se
à ideia de
estar em palco
(nos primeiros
concertos dos
Doors,
cantava com
as costas
voltadas para
o público),
mas, em
pouco tempo,
a timidez daria
lugar a uma
confiança
invulgar.
As actuações
do quarteto
tornaram-se
imprevisíveis
e enérgicas.
Até mesmo
teatrais
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Crónica
Mário Lopes

Entre a caricatura e o mito,


há-de haver uma grande banda
E
le estava lá em cima enquanto, cá em baixo, o Os Doors, portanto. Não eram segredo partilhado a impossíveis de imitar, a não ser enquanto patética
olhava com espanto, admiração e, quem dele julgássemos merecedor, como eram os figura de deambulação intoxicada, tiradas
naturalmente, com algum temor, porque lá em Velvet Underground, Nick Drake ou Captain Beefheart, pseudo-póeticas e barítono razoavelmente afinado,
cima era, afinal, as vigas de uma torre de não eram sequer, necessariamente, banda desses os Doors existiam, estou ainda no início dos anos 1990
electricidade que se erguia entre o verde. Lá em míticos anos 1960 e 1970 que se iam expandindo cada e no início da adolescência, enquanto símbolo de
cima, ele, olhos semicerrados pelo haxixe, vez mais enquanto aumentava o conhecimento das qualquer coisa, enquanto avatar totalitário de um
cabelos ao vento, pés presos na estrutura metálica, bandas, suas biografias, discografias, genealogias e tempo, os anos 1960, olhado com curiosidade e vaga
uma mão agarrada a ela, a outra livre para melhor circunstâncias. Estavam estranhamente, admiração. E, então, era certo que se ouviria
exprimir as palavras com gestos, declamava palavra misteriosamente, fora de tempo. Não eram daquela Roadhouse Blues, a versão ao vivo, e, vá-se lá saber
por palavra os versos e solilóquios desse épico década que foram os anos 1990, mas também não porquê, Whiskey Bar em todo e qualquer bar
psicadélico-xamânico-edipiano chamado The End. Ele pareciam perfeitamente enquadrados no tempo que e discoteca, em qualquer dia da semana, como era
lá em cima, colega um par de anos mais velho, quando fora o seu. Será essa a razão da sua persistência na certo que a maioria do pessoal que proferia
um par de anos significava uma insuperável distância memória colectiva, geração após geração, e, ao a palavra “Jim” com entoação mística admirava os
de vida e conhecimentos dos segredos da vida (e dos mesmo tempo, a sua maldição. Existem como se nada pormenores anedóticos do mito e não tanto
discos), gostava dos Doors, gostava muito dos Doors, mais existisse à sua volta além deles, ninguém mais a música, como era certo que não demoraríamos a
como gostava muito do David Bowie glam, do Nick que o Jim Morrison dos excessos, da poesia, da vida encontrar a velha guarda que falava dos Doors,
Cave, do Tom Waits, dos Velvet Underground, enfim, nos limites, da morte em Paris na banheira, gordo e daquela forma irritante com que fala a velha guarda
de coisas que ainda estavam por descobrir naquele bêbado, acabado aos 27 anos, os médicos legistas a saudosista, como símbolos do tempo em que
período em que a música se começa a abrir perante julgarem que tinham perante si um quase sexagenário. “a música era música e não esta porcaria
nós, primeiro pouco a pouco, depois num jorro Naquele início dos anos 1990, à boleia do filme, os que se ouve agora” — os Rolling Stones, os Doors
interminável. Ele era um caso raro. Doors regressavam mais uma vez. E regressavam e os Pink Floyd, por vezes acrescidos dos AC/DC,
Os Doors, culpa de um certo filme de Oliver Stone, como sempre parecem regressar. Nos anos 1970 pela pareciam ser os representantes máximos dessa
tinham deixado de ser um caso raro. Num momento, poética rock de Patti Smith, nos anos 1980 alinhados grandeza e pureza perdidas.
nem sabia se os Doors tinham realmente existido ou se com as labaredas do gótico dado aos românticos do Omnipresentes, estrelas populares duas décadas
eram banda inventada para o tal filme, mas aquela linha século XIX, Morrison como guia para chegar ao outro depois do seu fim, os Doors eram, ainda assim, longe
de teclado do Light my fire que anunciava o filme na lado, nos anos 1990, símbolo de vertigem e de excesso, de consensuais. Completamente imerso nos
rádio era mesmo irresistível, no momento seguinte, não Jim Morrison como ícone de uma muito apelativa vida psicadelismos de Country Joe & The Fish, Jefferson
só os Doors eram mesmo uma banda real, como se no limite, pin up que morrera para nos deixar o belo Airplane, Grateful Dead, Pink Floyd (com Syd Barrett:
tornou a coisa mais fácil do mundo encontrar alguém exemplo que não teríamos que viver porque ele, livro o primeiro álbum é o melhor e depois foi sempre a
com cassetes com o Strange Days, com o LA Woman, de Rimbaud numa mão, microfone na outra, rei descer, assim era o meu mantra) ou dos Love,
com compilações ao vivo ou tudo misturado (a primeira lagarto em corpo e na ponta da língua, já o tinha feito. curiosamente responsáveis pelo contrato discográfico
que me chegou às mãos tinha parte do Waiting for the Uma vez após outra, porém, parece haver sempre dos Doors, fascinado pelo som californiano dos Byrds
Sun e do póstumo An American Prayer no lado A, e, no algo de estranho e desconfortável na forma como os e dos Buffalo Springfield ou pelas fantasias da
lado B, uma selecção de faixas do Out of Time dos R.E. Doors regressam e na forma como Jim Morrison Incredible String Band, fazia questão de os alinhar
M). Não demoraria a chegar um leitor de CDs lá a casa e subsiste. Mal o seu corpo tinha sido enterrado em nesse tempo e contexto, só me referindo a eles depois
pouco demoraria também até que os seis álbuns da Paris e já vozes se levantavam contra a palhaçada de, inevitavelmente, o nome da banda ser proferido
discografia de originais se alinhassem nas prateleiras, a grotesca da devoção ao poeta rocker tombado, com quando se falava da década de 1960. Nesse tempo
par do VHS do filme de Stone, só para arquivo, estava magotes de maltrapilhos armados em refugiados da pré-adolescente a exclusividade é importante, é
visto e não valia a pena rever, que a verdade dos discos e transcendência a emborcarem whiskey e a fumarem importante termos coisas só nossas, ou só nossas e
dos livros era mais interessante, e, mais importante, e charros na campa do homem no Cemitério de Père dos poucos que sentimos em sintonia connosco. Ora,
de um outro VHS com o concerto/documentário inglês Lachaise. os Doors pareciam ser de toda a gente, tantas vezes da
The Doors are Open, de 1968. Diz-se que a importância e relevância de uma banda forma “errada”, e havia gente que muito prezava que
Krieger a simular disparar a guitarra sobre Morrison, pode ser medida pela descendência que deixa, pela desdenhava aquele dramatismo todo, aquelas
ele de mãos nas costas, fumo de cigarro expelido em influência que gera. Os Doors, nesse aspecto, são uma ambições poéticas, gente que os reduzia a uma
contraluz, corpo tombado no chão no final de banda curiosa. Não encontramos bandas posteriores patetice pegada enquanto punha a rodar os Velvet ou
Unknown Soldier. Antes disso, Morrison a chegar à em que os vejamos claramente. Claro que o poder da a parte ao vivo do Still dos Joy Division.
Europa e a encarar com aquele sorriso sardónico que sua carga dramática, da tal força dionisíaca que Entretanto, lá no alto, o colega mais velho e que
parecia colado ao rosto os oficiais alfandegários, antes canalizavam, como Morrison tanto gostava de referir, sabia mais da vida e que tinha os gostos certos
de regressarmos ao concerto filmado, a John encontrou caminho em músicos que deixaram, e continuava a recitar o The end, na minha cabeça
Densmore a tocar tão livre e tão certeiro, a Ray ainda deixam, marca duradoura no presente, como formava-se o som dos doze minutos dessa magnífica,
Manzarek tão perfeitamente curvado sobre o teclado, Ian Curtis, Nick Cave, Patti Smith ou Iggy Pop, mas estonteante e libertadora canção, e os Doors eram
a Krieger lá nos dedilhados dele, e a Morrison esses nomes como que ficam soterrados perante todos uma grande banda, e são uma caricatura, e são uma
novamente, ou “Jim” simplesmente, como lhe os outros que retiveram apenas da banda a imagem e a grande banda outra vez. Estamos em 2021 e eles
chamava o pessoal na altura, nome proferido com caricatura: os góticos hard-rockers Mission, os Cult, parecem esquecidos, reservados às cerimónias
entoação mística, ou lasciva, ou ambas, a guiar a cujo vocalista chegou até a encarnar Morrison na protocolares de celebração de datas redondas, mas é
banda com aquele gozo e aquela fúria característica, desnecessária versão século XX da banda, os INXS de certo que regressarão. Quando tal acontecer,
como se julgasse patética toda a adulação pop vinda da Michael Hutchence e suas poses para a foto, triste continuarão como até aqui, grande banda e
plateia e, ao mesmo, a quisesse agitar daquele torpor e fotocópia do Rei Lagarto. caricatura, uma coisa e a outra, sempre isolados em si
a transportar consigo para o outro lado, que sabemos Demasiado famosos para serem figura de culto mesmos e no seu mito, sempre vindos de uma Venice
lá onde era, mas, de qualquer modo, seria certamente passada reverencialmente a novos iniciados, Beach que, é na verdade, lugar nenhum, eternamente
melhor que qualquer coisa que tivéssemos aqui. demasiado singulares e, na figura de Jim Morrison, presos nessa estranha condição.

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julgamento é de longe o mais cativante de The Collected

A história do jovem James Works (e isto não é necessariamente uma maneira subtil
de falar mal da sua veia poética). “Impressões” será
mesmo a melhor palavra, dado que o vocalista raramente

Douglas Morrison é a história termina frases ou ideias; em vez disso, vai registando
apressadamente os seus pensamentos e aquilo que está
a ver. São notas curtas, que ainda assim oferecem um

de um miúdo que sempre se retrato poderoso da apatia e da intranquilidade que vi-


riam a marcar os últimos anos do seu percurso.
Nestes apontamentos, Morrison reflecte sobre a sua

achou mais poeta do que desconfiança no sistema judicial (há um comentário par-
ticularmente interessante sobre os procuradores e os seus
“piscares de olho loucos”) e escreve frases que mostram

músico. Caminhava sempre os efeitos do julgamento na sua saúde mental (“Estão a


confundir-me tanto que já não sei o que estou a dizer” ou
“Oxalá uma tempestade desse cabo desta merda, oxalá

com um caderno nas mãos e, a morte me sobreviesse”). Mas também revela o seu sen-
tido de humor, oferecendo irónicos argumentos de defesa
(“Grandes figuras da nossa história e religião tiveram ca-

por acaso, possuía voz belo comprido e barba”) ou recordando alguns dos pon-
tos altos do interrogatório — “‘É um especialista em co-
pulação oral?’ ‘Não tenho um mestrado.’”

extraordinariamente Prevalecem, no entanto, os reparos mais sombrios (“A


alegria de actuar acabou”, chega a desabafar). Morrison
era, se quisermos dar ouvidos ao “mito”, um “espírito

carismática e sensualidade livre”. Um espírito livre que, durante meses, viveu com
medo de ir parar à cadeia. A 30 de Outubro de 1970, um
ano e meio depois do polémico concerto, foi condenado

para dar e vender a seis meses de prisão. Jim pôde manter-se em liberdade
enquanto recorria da sentença. “Desperdicei muito
tempo e muita energia com este julgamento”, viria a di-
zer ao jornal L.A. Free Press. “Para aí um ano e meio. Mas
suponho que tenha sido uma experiência valiosa, porque
eu costumava ter uma visão muito infantil do sistema
e Mas ele não estava a ler a lista telefónica. Estava judicial americano. Os meus olhos abriram-se um pouco.
a cantar sobre a guerra (ouvir: The Unknown Soldier, Havia lá gajos, homens negros, que entravam no tribunal
tema do disco Waiting for the Sun), sobre a revolução antes de mim todos os dias. Demorava para aí cinco mi-
sociocultural que estava a acontecer à sua volta (Five to nutos e eles apanhavam 20, 25 anos de prisão. Se eu não
One, também de Waiting for the Sun) sobre alienação tivesse tido fundos ilimitados para continuar a lutar, es-
(People are Strange, de Strange Days). Morrison, que, taria a cumprir três anos neste momento. Mas se tiveres
como os Beats, escrevia sobre sexualidade sem particu- dinheiro, geralmente não vais preso.”
lar conservadorismo (a sua linguaem é sugestiva e até “Polícia deixou cair a acusação porque fui bem-com-
provocadora em determinados poemas de The Collected portado e cooperativo. Demasiado cansado para ser
Works), começou por gostar de ser visto como um sex outra coisa qualquer.” Esta é uma das últimas notas que
symbol, mas cansou-se dessa sua reputação quando se encontramos nos cadernos relativos ao julgamento. Este
apercebeu de que a sua aparência era mais discutida do cansaço acompanharia Morrison em França, para onde
que o seu trabalho (e ofuscava os importantes contribu- foi no início de 1971, após completar as gravações de L.A.
tos de Manzarek, Densmore e Krieger). Woman (disco que fez 50 anos em Abril). O seu plano era
O fosso entre artista e público agravar-se-ia depois de simples: comprar uma passagem para Paris, fugir do
New Haven. Perante a rápida ascensão dos Doors, Jim glamour da Califórnia e dos seus “drinking buddies”,
voltou-se para o álcool. E este deu asas à sua imprevisi- reparar os laços com a sua “companheira cósmica” Pa-
bilidade. A maneira como se apresentou em New Haven, mela Courson — Jim e Pam sempre tiveram uma relação
em Dezembro de 1967, é prova disso. Após se desenten- de extremos, marcada por um amor intenso e por muitas
der com um polícia nos bastidores, improvisou uma discussões acesas —, recuperar emocionalmente. Um
canção sobre “os homenzinhos de azul”. Descreveu a plano que o resto da banda achou sensato e que, no iní-
altercação à plateia, dirigindo insultos e provocações às cio, pareceu surtir efeito: o artista perdeu algum do peso
autoridades, que interromperam a actuação e detiveram que havia ganho em 1969, desfez a barba e pôde voltar a
o músico. “Este incidente dá à luz a reputação dos Doors concentrar-se na sua escrita, num país em que parecia
como uma banda perigosa e marca uma mudança na poder caminhar anonimamente com outro conforto. Mas
relação entre a banda e o público. As pessoas começam os poemas do diário de Paris e de outros cadernos “res-
a vir aos espectáculos para verem Morrison a endoidecer. suscitados” por The Collected Works contam uma história
Há uma sensação crescente de que não estão lá para ligeiramente diferente.
ouvirem a música, mas para assistirem a uma exibição”, “You know more than you let on, much more than you
narra Johnny Depp em When You’re Strange (2009), do- betray/ great slimy angel-whore, you’ve been good to me/
cumentário sobre os Doors. you really have been swell to me.” Estes versos integram o
Morrison queria ser levado a sério enquanto poeta e poema mais revelador do diário de Paris, quase certa-
fez o que pôde para se distanciar da sua imagem. No mente um comentário autobiográfico sobre o relaciona-
início de 1969, após largar as calças de couro, engordou mento do autor com uma mulher que também tinha os
e deixou crescer uma barba robusta, numa tentativa de seus vícios (Pamela morreu a 25 de Abril de 1974, tam-
se tornar menos atraente (não resultou). Os concertos bém aos 27 anos, vítima de overdose). O uso da palavra
perderam fulgor. Excepto, claro, o de Miami, onde terá “betray” é interessante: Morrison não foi a única pessoa
mostrado os genitais à plateia e onde a trajectória do com quem Courson teve intimidade sexual depois de os
quarteto sofreu um desvio de proporções colossais. dois se envolverem romanticamente e vice-versa. Os
relatos de quem era mais próximo do casal são contra-
Prisões de um “espírito livre” ditórios, pelo que é difícil perceber se a sua relação era
“Miami a great deal more interesting than my life in L.A. — uma relação sem exclusividade ou se os dois praticaram
except for dread and squalor of trial appearances.” infidelidades recorrentes. De qualquer forma, o poema
O caderno com as impressões de Morrison sobre o seu mostra um Morrison desconfiado e cínico, aparente-

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ESTATE OF EDMUND TESKE/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES

Jim Morrison queria ser levado a sério enquanto poeta e fez o que pôde para se distanciar da sua imagem. No início de 1969, após largar as calças de couro,
engordou e deixou crescer uma barba robusta, numa tentativa de se tornar menos atraente (não resultou)

mente incapaz de se entregar totalmente à pessoa por Kitchen, The Crystal Ship, Back Door Man, a grandiosa —, começava a ver na sua reclusão auto-imposta uma
quem mudou de continente. Não é o único em que a sua The End...), o austero George Stephen Morrison, que na prisão antecipada (importa recordar que só pôde ir para
escrita assume contornos confessionais. verdade viveu até aos 89 anos, escreveria uma carta ao Paris porque o tribunal ainda não se tinha pronunciado
Também há nos seus cadernos pontuais lamentos so- filho, urgindo-o a mudar de carreira devido ao que ele sobre o seu recurso).
bre os seus demónios de infância, que o autor nunca terá considerava ser “uma completa falta de talento” para
conseguido superar por completo. Jim cortou comuni- ser músico. Pequenos fragmentos da obra de Jim revelam Mais que um mito
cações com a família após fazer as malas e rumar a Los os possíveis efeitos desta falta de apoio na sua capacidade Jim Morrison morreu há quase 50 anos e o legado dos
Angeles (“Em 1967, a Light My Fire tocava em todo o lado de auto-valorização e estabilidade emocional. Doors não vem sendo devidamente protegido e/ou res-
e eu demorei meses a perceber que quem estava a cantar Os muitos poemas “soltos” — ou seja, sem data — da peitado desde então. Um público que não vivenciara
era o meu irmão”, lembrou Anne Morrison Chewning antologia convidam os leitores a juntarem as peças. os anos 1960 interessou-se pela banda graças a Apo-
no já citado artigo do Financial Times), de tal forma que, “Funny, I keep expecting a knock on the door/ well, that’s calypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Até aqui,
em entrevistas, falaria enganosamente sobre os pais e what you get for living around people.” É perfeitamente tudo certo. Um ano após a estreia desse filme, saía No
irmãos como se já tivessem morrido. Após o lançamento provável que estes versos tenham sido escritos em Paris, One Here Gets Out Alive — o título vem da letra de Five to
do clássico álbum homónimo dos Doors, disco de Light quando um Jim Morrison consumido por uma tosse per- One —, biografia de Jim Morrison com um background
My Fire e não só (Break On Through to the Other Side, Soul sistente e dificuldades respiratórias — efeitos da bebida polémico (a intenção do jornalista Jerry Hopkins e

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 7


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MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES

The Collected Works não nos faz pensar que Morrison deveria ter largado o microfone para perseguir uma carreira literária mas a fragmentada, sugestiva,
esporadicamente macabra e ocasionalmente confessional poesia que compila desendeusa a figura, mostra as inseguranças de um génio que também era
uma pessoa como as outras. Atirada para este mundo como um cão sem um osso

e era escrever o livro sozinho, mas só encontrou uma dos músicos à razão, ou seja, colocá-los em tribunal para The Collected Works não nos faz pensar que Morrison
editora interessada em comercializar a obra depois de deixarem de utilizar esse nome. deveria ter largado o microfone para perseguir uma car-
Danny Sugerman, segundo manager dos Doors, “api- Não faz sentido uma banda destas ser canonizada as- reira literária ou cinematográfica (a antologia contém
mentar” a história). sim. Assim como não faz sentido reduzir-se a sua maior parte do guião de HWY: An American Pastoral, filme ex-
No início dos anos 1990, nova onda de entusiasmo em figura a uma caricatura. Em 2010, o The Irish Times per- perimental de 50 minutos em que Jim, realizador, argu-
torno do grupo, desta feita com um biopic caricatural, guntava a Manzarek o que achara do biopic e da forma mentista e actor principal, caminha pelo deserto do Mo-
em que o vocalista é intepretado por Val Kilmer, quatro como o realizador Oliver Stone retratara o seu amigo, o jave como um hitchhiker assassino, talvez não muito
anos antes de vestir a capa do morcego em Batman Fo- poeta tímido com uma licenciatura em Cinema que, no diferente do “killer on the run” sobre o qual canta na por-
rever. Chegados ao novo milénio, Ray Manzarek e Robby Verão de 1965, cantara pela primeira vez o poema Moon- tentosa Riders on the Storm, última faixa de L.A. Woman),
Krieger chamam Ian Astbury, líder dos Cult e fã assumido light Drive na areia californiana. “Não gostei muito, não. mas, aqui e ali, a fragmentada, sugestiva, esporadicamente
de Morrison (assistir a Apocalypse Now e ouvir The End O Jim era um homem inteligente e encantador. Também macabra e ocasionalmente confessional poesia que com-
pela primeira vez foi uma “experiência religiosa”, diria), era um bêbedo temperamental, é verdade. Mas no ecrã pila desendeusa a figura, mostra as inseguranças de um
e começam a dar concertos enquanto The Doors of the só vimos o bêbedo temperamental. Não vimos o Jim ca- génio que também era uma pessoa como as outras. Ati-
21st Century. Caberia a Densmore chamar os conceitua- loroso e engraçado.” rada para este mundo como um cão sem um osso.

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O oásis L. A. Woman
na vertiginosa tempestade final
declarado culpado em Setembro de 1970 e quando se
Álbum em que o agitador dionisíaco, iniciaram as gravações de L.A. Woman aguardava o resultado
do recurso interposto pelos seus advogados. Ganhara peso,
o xamã libertário, desceu à sua muito, e uma barba densa cobria-lhe o rosto. Pamela Des
Barres, provavelmente a mais famosa groupie de Los Angeles,
cidade para cantar a realidade que se tornaria mais tarde actriz e escritora, recordava à Mojo,
em 2001, que nessa altura a aura de Morrison há muito se
terrena que pulsava à sua volta, mais desvanecera. “Era como que uma personagem acabada antes
de partir para França. Toda a gente achava que ele se tornara
próxima da verdade crua do blues, patético. Era realmente um bêbado debochado antes de se
mudar, e tornara-se uma triste peça de mobília de Hollywood”.
L. A. Woman foi gravado de um jorro Contudo, a última vez que o viu, decorriam então as gravações
do álbum e estava próxima a mudança para Paris, encontrou-o
antes da partida para o destino Änal, “doce e cheio de vida, como não estava há muito tempo”. LA
Woman foi um oásis na vertiginosa decadência final.
Paris. Por Mário Lopes Separaram-se daquele que fora, até então, o produtor de
todos os seus discos, Paul Rothchild, perfeccionista e
autoritário o suficiente para a banda lhe ter dado a alcunha

E
stava pálido e parecia sereno, imerso na água de “pequeno Hitler”. Rothchild não gostava das novas
ensanguentada, recordou Agnès Varda. Além da polícia canções — desancou Love her madly como “música de
francesa e da namorada Pamela Courson, a realizadora cocktail” — e bateu com a porta. O engenheiro de som Bruce
terá sido a única pessoa a ver o corpo de Jim Morrison, Botnick tomou as rédeas da situação, a banda libertou-se.
amigo desde as digressões americanas de Varda, na Transformou a sua velha sala de ensaios, The Doors’
banheira do apartamento francês onde, dia 3 de Julho Workshop, na Santa Monica Boulevard, em estúdio, forma de
de 1971, morreu o vocalista dos Doors. L. A. Woman, o álbum poder ensaiar, gravar e experimentar sem restrições.
dedicado à cidade da luz incessante, sempre em movimento, Chamou até si, para compor a formação, um guitarrista
morte e depravação lado a lado com uma intensa sede de vida, ritmo, Marc Benno, e o então baixista de Elvis Presley, Jerry
fora editado três meses antes, em Abril. Scheff, o que deixou particularmente entusiasmado Jim
Morrison vasculhou no caderno que levava para todo o lado Morrison, grande admirador do Rei do Rock’n’roll. Como
os poemas que seriam transformados em letras de canção, descreveu Ray Manzarek, os Doors dedicaram-se então a
improvisou outras letras no momento, recuou ao adorado blues “um som muito mais cru — aquele momento Zen
de Muddy Waters e John Lee Hooker. Deixou registada a carta espontâneo”. L.A. Woman nasceu em duas curtas semanas,
que dedicou à cidade que o fez e partiu para essa Paris onde entre Dezembro de 1970 e Janeiro de 1971.
desejava viver tão anónimo como o actor, o cão, o assassino e a Com a banda a gravar ao vivo no estúdio — os overdubs
família assassinada que povoam Riders on the storm. Três meses ter-se-ão limitado a algumas faixas de teclados e a vozes
depois, heroína, álcool e um coração que não aguentou mais. O secundárias, como a sussurrada voz “fantasma” que dobra a
corpo de um poeta americano alcoólico que morrera de causas principal em Riders on the storm —, com Jim Morrison, dada a
naturais, um perfeito desconhecido chamado Douglas ausência de cabine para gravar vozes, a utilizar a casa de
Morrison — isso o que foi dito, na altura, aos polícias franceses. banho, espaço com melhor eco no estúdio, os Doors
Dias depois, assim que a notícia da morte foi divulgada, construíram um álbum onde a ferocidade rock’n’roll (o
começaram os relatos de aparições: num banco em São arranque com a trepidante The changeling, a dinâmica
Francisco, em bares gay de Los Angeles, tornado monge no estonteante de L.A. Woman) dialoga directamente com
Tibete, em África, seguindo a rota do seu adorado Rimbaud, imersões na electricidade crua do blues (batido pela vida,
em rádios perdidas em lugarejos do Midwest, DJ a oferecer mas ainda feroz, em Been down so long; panorâmico na
música na madrugada aos condutores que atravessavam a dolência sonâmbula de Cars hiss by my window; directo à
longa noite das intermináveis auto estradas americanas. Jim fonte na versão de Crawling king snake, original de John Lee
Morrison morrera mesmo, aos 27 anos, em Paris. Não estava Hooker que os Doors tocavam desde o início). Em L.A.
em São Francisco, nem em Los Angeles, no Tibete ou em Woman, a luz retemperadora de Love her madly e de
África. Poucos dias depois da sua morte, porém, e 50 anos Hyacinth house surge como fugaz ponto de fuga num álbum
depois dela, continua a atravessar a longa noite escura na auto assombrado, um álbum em viagem constante na sufocante
estrada interminável. Continua a ver os flashes de néon a L’America que Antonioni recusou para a banda-sonora de
encandear o olhar quando a cidade, frenética, surge perante Zabriskie Point (tê-la-ão tocado alto demais no estúdio, o que
si, continua a encontrar placidez e doçura no idílio da assustou o realizador), na The WASP (Texas Radio and the Big
perfumada casa dos jacintos, continua esmagado por essa Beat) que confere dimensão mitológica às ondas rádio que
trituradora Los Angeles, “so broke that I couldn’t leave town”. outrora haviam levado o blues e o jazz país fora (“Some call it
L.A. Woman, o álbum que se tornou o da despedida, foi o heavenly in its brilliance/ Others, mean and rueful of the
regresso ao lugar onde tudo começara para os Doors, os blues Western dream”), nessa Riders on the storm que encerra o
que ouviam na rádio no início da adolescência, e foi também álbum de forma magistral, balanço jazz envolvente,
aquele em que Jim Morrison, o Rei Lagarto, o agitador iluminado a piano Rhodes, imagens a sucederem-se em
dionisíaco, o xamã libertário, desceu à cidade para cantar, flashes, trovões a ressoarem à distância, um assassino na
como nunca antes, a realidade terrena da vida que pulsava à beira da estrada, uma família ignorante do perigo, dois
sua volta, mais próxima da verdade crua do blues, ou como amantes, almas solitárias lançadas ao mundo, perdidas no
apontava Ray Manzarek, dos planos do film noir e dos meio da tempestade.
policiais de Raymond Chandler. Algumas semanas depois do lançamento, Morrison ligou
Naquela altura Morrison vivia assombrado pelo julgamento para Los Angeles desde Paris. Contou a John Densmore, o
do caso de Miami, resultado do infame concerto que ameaçou baterista que era também seu confidente, como estava feliz
transformar-se em motim, ocorrido a 1 de Março de 1969, e que pelo sucesso de L.A. Woman. Estava entusiasmado com a sua
o levara a responder à justiça, acusado de atentado ao pudor, nova vida. “Se gostam deste [álbum], espera até saberem o
exposição sexual, profanidade e embriaguez pública. Fora que tenho em mente para o próximo”.

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Rita Vian: “Cantar e escrever d Nos últimos anos o fado tem-se afirmado como referência inspiradora p

EVA FISAHN
Raül Refree) e certamente que Rita Vian também irá ser enquadrada n

sufoco que é preciso tirar cá para


fora. São músicas que me atraem,
tanto podendo funcionar como ca-
tarse ou escape.”
Em 2010, acabou por participar
num programa da TV de captação
de talentos, a Operação Triunfo, que
Caos’a lhe serviu essencialmente, diz com
Rita Vian distância, “para perceber o que sen-
Edi. Arraial tia em palco. Foi quase como uma
terapia de choque, para perder a
mmmmn vergonha de cantar em frente aos
outros, porque até aí havia estado
fechada na minha bolha.” Nesse
contexto acabaria por travar conhe-
cimento com o videasta e músico

A
sua voz já chamara a aten- João Pedro Moreira, que a convidou
ção em alguns lançamentos a juntar-se à banda a que pertence,
avulsos, mas esta sexta- os Beautify Junkyards. “Tinha 18
feira, de surpresa, aí está anos, havia coisas que me interessa-
ela com o seu primeiro vam, principalmente o lado tradicio-
disco a sério. Chama-se nal-português, mas era um projecto
Caos’a. São cinco canções, com pro- já bem desenhado e com objectivos
dução de João Barbosa, ou seja definidos e nunca foi um espaço
Branko, suficientes para se entender onde encontrasse o meu lugar. Fazia
que Rita Vian não é estrela cadente. melodias de voz e escrevi uma das
O balanço insinuante electrónico letras, mas o facto de trabalhar ao
aloja-se na perfeição numa voz que mesmo tempo também não ajudava.
consegue ser tão profunda quanto Trago amizades para a vida dos
libertar leveza, fazendo-o com a Beautify, mas percebi cedo que não
maior das naturalidades, sem trejei- seria por ali, embora tenha sido im-
tos inúteis. portante estar ali.”
“Cresci no meio de música, por A procura era outra, embora não
causa da minha família, que sempre a soubesse nomear com exactidão.
que se reúne acaba tudo a cantar e a De um lado havia o fado, mas não
tocar”, diz-nos Rita Vian, 29 anos. “A chegava. A ideia foi sempre adicio-
maioria das músicas que se canta- nar-lhe outras camadas. “Andei sem-
vam em casa dos meus avós eram-no pre pelo fado, cantando Amália,
a capella e num registo que só muito Maria Teresa de Noronha, e os fados
mais tarde vim a perceber que se da casa da minha avós, mas faltava
enquadrava na ideia de fado-can- uma qualquer outra coisa que não
ção.” O tio, o terapeuta vocal e can- sabia exactamente o que era. Os fa-
tor lírico Luís Madureira, ajudou-a dos que se cantavam em casa dos
circunstancialmente, mas todo o seu meus avós não tinham som por trás.
percurso foi feito de intuição. “As Não havia guitarra portuguesa. A
músicas da minha avó, como chamo maior parte das vezes eram a ca-
a esses fados, foram fundamentais pella. Depois cantava fado com os
nesse meu início. Depois, já na ado- meus amigos, ao final da noite. Até
lescência, era difícil ouvir essa mú- conheci o [guitarrista] Gaspar Varela
sica. Nenhum dos meus amigos tinha nessas circunstâncias, a cantar, de
qualquer relação com fado. Era o madrugada, para os amigos que me
deserto. Os meus amigos da música pediam. Mas nunca fui a casa de fa-
eram do rap.” dos. Nunca foi esse o meu percurso.
Até aos dez anos viveu em Mas- Não conheço quase ninguém desse

Vítor Belanciano samá, depois já em Lisboa, seguiram-


se Telheiras e Laranjeiras. Agora
habita em Marvila. Em todas essas
universo.”
Pelo caminho foi encetando ou-
tras colaborações, de DJ Glue a Mike
deambulações capturou o fado do El Nite, acabando por, em 2019, lan-
lado familiar e as derivações urba- çar o primeiro tema a solo, Diágo-
Não é preciso muito. Uma voz transparente nas, hip-hop, R&B ou electrónicas
das sociabilidades entre amigos.
nas, a que se seguiria o single Sereia,
que já prenunciavam uma combina-
próxima do fado, palavras elegantes “Consigo encontrar paralelismos ção entre ambientes digitais e uma
entre o rap e o fado, por exemplo, a forma de cantar próxima do fado,
e uma cadência electrónica em nível emocional. Em ambas as ex- embora ainda não com a nitidez ac-
câmara-lenta por Branko, e eis Rita Vian. pressões existe urgência em dizer,
em verbalizar, em comunicar. É
tual. “Quando cantei no Carmen
com o Mike El Nite, ele disse-me que
A edição de um disco-surpresa. como se existisse uma espécie de o [produtor] Franklin Beats estava

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r dão sentido aos meus dias”


ra para praticantes das mais diversas linguagens (Conan Osiris, Pedro Mafama, Fado Bicha, João Não, Lina
a nessas movimentações

interessado em falar comigo e come-


çámos a trabalhar, o que acabou por “Consigo encontrar fazem, ou o que gostavam de fazer.
E percebo que muitas têm dúvidas.”
ser uma primeira e importante
forma de procurar essa sonoridade paralelismos entre Ela, ao contrário, sempre soube o
que gostava de fazer — cantar e es-
mais electrónica, por entre algumas
das pausas que ia tendo do trabalho o rap e o fado, crever — e sente-se privilegiada por
isso. “Cantar e escrever dão sentido
na restauração, na Musa e no Café
com Calma.” a nível emocional. aos meus dias. São a prova diária de
que estou bem. Porque é algo que
Quem já a ouviu cantar percebe
que incorpora com facilidade os mais Existe urgência gosto mesmo de fazer. Ajuda-me a
racionalizar. Ajuda-me a chegar a
diversos temas, expondo-os de uma
forma tranquila, elegante, íntima. em dizer, conclusões. Ajuda-me em tudo na
vida. E é uma coisa que quero trans-
“Essa forma de estar, lá está, vem de
casa dos meus avós. Todas as can- em verbalizar, mitir de forma simples. Pensar
muito e complicar pode dar maus
ções eram cantadas de forma suave,
muito fadista, mas sem os trejeitos em comunicar. resultados, mas pensar bem e com
regularidade é importante para se
acentuados de algum fado. A minha
mãe sempre teve uma forma incons- É como se existisse chegar a algum lugar. Daí que neste
disco exista uma grande procura da
ciente de cantar, onde era transpor-
tada de imediato para esse lado des- um sufoco que introspecção, talvez até de uma
forma um pouco inconsciente, pelo
pido da canção, reinterpretando-a à
sua maneira. Eu dizia-lhe: ‘mãe, a é preciso tirar contexto de pandemia.”
Nos últimos anos o fado tem-se
música não é assim!’ E agora dou por
mim a cantar da mesma forma.” cá para fora. afirmado como referência inspira-
dora para um número significativo
Ri-se quando lembra esses tempos
iniciáticos de treino vocal. Já com a São músicas de agentes, praticantes das mais di-
versas linguagens (Conan Osiris,
escrita a relação parece ser viven-
ciada de forma mais séria. Era através que me atraem, Pedro Mafama, Fado Bicha, João
Não, Lina Raül Refree) e certamente
dela que se refugiava do mundo ex-
terior. Talvez por isso diga que tem tanto podendo que Rita Vian também irá ser enqua-
drada nessas movimentações. Nada
uma relação radical com ela. “Às ve-
zes dou por mim a pensar como funcionar como que a surpreenda. “Há uns anos
Mike El Nite, que foi sempre de des-
aplico a minha forma de escrever a
uma canção — que acaba por ter um
lado automático — sem diminuir o
catarse ou escape” cobrir artistas e de quem sou amiga
há uns 15 anos, encontrou o
SoundCloud do Conan Osiris. Nin-
que quero expressar. Isso foi uma guém o conhecia na altura. Na ado-
aprendizagem e é algo de que não lescência estávamos sempre a passar
quero prescindir. Sou radical nisso. fins-de-semana fora e a descobrir
Depois o passo seguinte foi encontrar fluências afro-portuguesas em câma- artistas e a ouvi-los. Num deles, foi
alguém que estivesse disposto a criar ra-lenta, que são capazes de se dis- o Conan. Na altura ficámos malucos
música comigo que não passasse ne- tender de forma preguiçosa, para com aquilo, pela despreocupação
cessariamente por uma guitarra. E acolherem ambientes melancólicos com a escrita e a frescura da música.
isso acabou por demorar.” e uma voz que é como a sua escrita, Foi libertador ouvir aquele fado-não-
Depois apareceu João Barbosa, ou graciosa, enleante, circular. fado, apesar de termos abordagens
seja Branko, um dos fundadores dos “São canções que falam da minha diferentes. Mas sentia-se ali uma ou-
Buraka Som Sistema e já com um con- construção como pessoa, de um sadia distinta que, hoje, me parece
siderável trajecto a solo. Ele havia ponto de vista interno e externo — de muito natural, resultante do espaço
feito uma remistura do tema Sereia e alguma maneira acabo por expor e tempo em que vivemos, rodeados
a possibilidade de colaboração foi-se também a procura da minha inde- de inúmeros estímulos e de informa-
desenhando entre os dois. pendência, ter um trabalho, pagar ção que, inevitavelmente, a música
“Todos os temas deste disco são as contas, enfim, a vida normal de também traduz.”
produzidos por ele e só tenho de lhe qualquer pessoa.” É isso. Na sua visão os estímulos
agradecer. A excepção é Plana, uma Ao mesmo tempo que procurava surgem das mais diversas latitudes.
música que era para eu cantar num ordenar o mundo exterior, tentava “Há artistas que oiço muito pela es-
projecto dele. De resto, todos os te- definir o seu projecto. “É algo que crita, o Sam The Kid, o Manuel Cruz
mas foram feitos da mesma ma- tem de sair de ti e que mais ninguém ou o Jorge Palma, e outros pela alma,
neira: primeiro uma melodia a ca- vai fazer por ti e por isso obrigava-me como a Amália, e depois junta-se
pella, e depois a letra, havendo mais a escrever, até no caminho para o tudo numa cápsula em Lisboa onde
tarde tempo para terminar a estru- trabalho. Escrevo a toda a hora. To- tudo pode acontecer”, afirma, pen-
tura. O Branko ia trabalhando diver- das as experiências servem. Às vezes sando em músicas electrónicas e
sas versões do que poderia ser essa faço caminhos alternativos para casa afro-portuguesas.
base e chegávamos a uma conclu- só para me obrigar a ver coisas que “Há noites em que só me apetece
são. Foi sempre assim, a excepção é nunca antes vira.” cantar”, confessa às tantas. “Quando
essa tal música, que não é minha, Na sua actividade diária fala com trabalhava na Fábrica da Musa, no
mas dos dois.” muitas pessoas e existe um tema final da noite desligávamos as luzes
A cadência rítmica dos temas re- que gosta de abordar. “Tento perce- e eu cantava para quem estava.”
sulta em algo de suspenso, com in- ber sempre o que as move, o que Agora canta para toda a gente.

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 11


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EBRUYILDIZ
country/pop/rock Brandi Carlile
para cantar no Newport Folk Festi-
val, o mesmo onde Dylan ligou a
guitarra eléctrica pela primeira vez.
Integraria um grupo de mulheres,
incluindo Sheryl Crow, para canta-
rem 9 to 5, de Dolly Parton, com a
própria em palco, um mito vivo que
tem em Dollywood, Tennessee, o
seu próprio parque de diversões.
“Ela tem tanta segurança quanto um
presidente. Chegou numa parada de
Escalades [modelo de veículo utili-
tário desportivo da Cadillac] e tu
sabes que ela está num deles, mas
há uns que são para despistar. De-
pois foi para um atrelado para o qual
ninguém podia entrar, dois tipos
com óculos de sol, auriculares e fa-
tos estavam à porta, levaram-na até
ao palco e trouxeram-na de volta
para o Escalade. É inacreditável
olhar para ela. Vi-a em fotografias e
em filmes e é tão estranho ver
mesmo o corpo dela. Não faz sen-
tido, com tantas cirurgias que fez
como é que se mantém em
pé?”. Não falaram: “Mas ela pegou
nas minhas mãos e olhou-me nos
olhos em frente a muita gente”.

O
ano de 2018 mudou a vida camente fazem música com mais “Queria tentar exprimir o antes e Dolly Parton não é bem o tipo de
de Lucy Dacus. Lançou His- piada do que ela e cantam em alguns o depois de começar fazer música, artista que Lucy quer ser. Dacus foi
torian, o seu segundo ál- temas deste disco, ajudaram nessa quando as pessoas começaram a apoiante de Bernie Sanders e, nos
bum, e fundou com Phoebe abertura. “Só a amizade delas aju- observar-me e eu tornei-me uma últimos tempos, tem sido bastante
Bridgers e Julien Baker o dou. Há canções muito hilariantes entidade para algumas delas. Até activa em termos de lutas laborais
trio boygenius, que lançou de boygenius, não necessariamente então estava só a viver a minha vida, na indústria musical.
o EP homónimo nesse ano. Quando em termos de letras, mas de produ- só a ser vista e filmada pela minha “Tenho uma plataforma e sinto
regressou a Richmond, Virginia, a ção”, afirma. Há disso aqui, por família. Vejo o meu envelhecimento que tenho responsabilidade de mos-
terra que a viu crescer, já não era a exemplo quando em VBS se fala de e depois a próxima versão de mim trar às pessoas que estou grata por
mesma pessoa. Fazia música, era alguém pôr a tocar Slayer “no má- aparece no ecrã: é diferente de me ter sido mostrado muito por ou-
nome firmado no indie-rock ameri- ximo” e uma guitarra explode bre- quem eu sou. Penso na versão pré- tras pessoas. São coisas básicas: os
cano. Nem ela nem a cidade, capital vemente, ou no auto-tune na voz em música como uma proto-Lucy, é direitos de trabalhadores não estão
do estado, eram os mesmos. Parter in Crime. É um disco com uma pessoa complet amente garantidos. Sente-se isso no dia-a-
Meses antes da quarentena, Da- mais guitarras acústicas, algo que distinta”. dia, as ramificações da exploração
cus, 26 anos, mudou-se para Filadél- antes Lucy tinha pudor em usar para O ecrã do Byrd não é o único do afectam a nossa saúde física, as nos-
fia. Foi a partir dessa cidade que, via não parecer tão folk. disco. Brando, canção sobre um sas relações, como somos como
Zoom, falou com o Ípsilon sobre Está recheado de histórias da sua amigo que imitava o Marlon que progenitores e amigos. As leis po-
Home Video, o terceiro disco, que sai infância e adolescência, sobre ami- lhe dá o nome, fala de Lucy e ele diam mesmo só tornar a vida melhor
esta sexta-feira. São canções escritas gos e ex-paixões, alguns das quais faltarem às aulas para irem a outra para toda a gente. Se as pessoas ricas
há dois anos, gravadas pouco antes ainda não sabem que são visados: sala de cinema que passava filmes estivessem dispostas a abrir um
de começar a quarentena e mistura- paixões queer complicadas pela re- antigos para os mais velhos à tarde: pouco de algum do seu dinheiro,
das ao longo de 2021. Quando lançou ligião, como em Triple Dog Dare, Fred Astaire e Ginger Rogers, Do Céu seria muito fácil”, afirma.
Historian, disse que era o seu disco relações pouco saudáveis entre ami- Caiu uma Estrela, de Frank Capra e “É muito fácil chegar a um ponto
definitivo e tudo o que viesse depois gas (Christine). Lucy tem medo dos Um Eléctrico Chamado Desejo, de em que já nem sequer conhecemos
seria um bónus. Mantém: “Parecia confrontos que virão com o disco Elia Kazan. “Vimos também O Pa- pessoas com empregos normais.
um disco tão sério, senti que tinha lançado. drinho, O Apartamento, talvez o Tenho amigos na indústria do entre-
de exprimir tanta coisa de essencial Não é só dos outros que vive o ál- Casablanca, ou se calhar foi no tenimento e toda a gente que eles
sobre as minhas crenças para que bum, contudo. Hot & Heavy, canção Byrd, O Mundo a Seus Pés, Uma Noite conhecem é famosa. Estão comple-
pudesse ser mais bem compreen- de abertura, foi o primeiro single: é Aconteceu. Poderia facilmente ter tamente fora da realidade. Não
dida. Agora que sabem como me Dacus a falar para si própria sobre escrito a canção e dito Clark Gable, quero ser assim. Quero manter pes-
sinto e o que penso, posso contar Richmond. No teledisco, rodado em mas não era tão fácil de encaixar na soas na minha vida que me reco-
histórias da minha vida. Sou capaz Richmond, no Byrd Theatre, cinema letra”. mendam os livros certos e me man-
de me abrir de forma mais divertida local que ela frequentava, Lucy olha têm actualizada em termos de ques-
e brincalhona do que antes”. para vídeos da sua infância projec- Das 9 às 5 tões sociais, que me continuam a
As colegas de boygenius, que tipi- tados no ecrã. Em 2019, foi convidada pela artista afectar pessoalmente”.

Os vídeos caseiros de Lucy Dacus


Home Video é o seu terceiro disco. Está recheado de histórias
da cidade em que cresceu e à qual já não consegue voltar.

Rodrigo Nogueira
12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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No décimo projecto da Companhia Maior, o realizador


e encenador apresenta com Fernanda Fragateiro e Gonçalo M. Gonçalo
Tavares Natureza Fantasma, instalação no CCB, de 24 de Junho
a 16 de Julho. Parte da infância rumo a um contido desassossego.
Frota

Marco Martins A
o fundo de um longo corre- rentes que os próprios não identifi-
dor, na Garagem Sul do cavam, como se fossem pistas para
Centro Cultural de Belém, histórias amputadas ou convites
em Lisboa, é projectado o abertos à ficção.
filme que toma o lugar cen- Sendo certo que Marco Martins
tral na instalação Natureza queria trabalhar sobre as imagens,

mexe nas gavetas da Fantasma. Ou, pelo menos, a cola


que junta cada uma das experiências
que o antecedem. Debaixo do som
não tinha antecipado que o material
que os 14 actores (Angelina Mateus,
Carlos Fernandes, Carlos Nery, Cata-

memória para inquietar o


de vozes que dizem frases impercep- rina Rico, Cristina Gonçalves, Ed-
tíveis, de ruídos que captam as mais mundo Sardinha, Elisa Worm, Isabel
variadas actividades quotidianas na Simões, João Silvestre, Kimberley

presente
rua, de excertos de canções, vemos Ribeiro, Maria Helena Falé, Michel e
avançar pela penumbra um conjunto Paula Bárcia, não tendo Manuela de
de corpos. Transportam e arrumam Sousa Rama podido participar) lhe
caixas, gavetas que guardam cartas, trariam incidiria de forma tão clara
fotografias, objectos de toda a espé- sobre a infância. “As imagens que
cie que remetem de forma imediata eles tinham eram muito mais sobre
para as memórias de cada um. A câ- os avós, sobre os bisavós e sobre eles
mara segue o movimento destes cor- em pequenos, e comecei a condicio-

MIGUEL MANSO
pos, mas não se fixa em nenhum, nar o discurso mais nessa direcção”,
antes documenta um vai-vém cons- conta. “Era também um tema que
tante naquele arquivo de memórias eles nunca tinham trabalhado. Já ti-
que ajuda a explicar tudo aquilo por nham trabalhado sobre memórias
que passámos antes. profissionais, sobre a relação com a
No derradeiro capítulo da ligação velhice, mas numa altura de pande-
da Companhia Maior ao CCB, a com- mia, fechados em casa há muito
panhia de actores séniores criada tempo, achei que era óptimo falar-
por Luísa Taveira colocou-se nas mos sobre a infância. E a infância é
mãos do realizador e encenador um espaço mais de ficção.”
Marco Martins — que levou consigo “A infância é evidentemente um
a artista plástica Fernanda Fragateiro sítio onde o nosso corpo estava como
e o escritor Gonçalo M. Tavares. quem está no estrangeiro”, escreve
Desde 2010, o gatilho é o mesmo: Gonçalo M. Tavares no texto Luz e
artistas como Tiago Rodrigues, Clara Fogo, colocado à entrada da instala-
Andermatt, Mónica Calle, Pedro Pe- ção. E acrescenta: “Pode ser um feliz
nim, Joana Craveiro, Tim Ecthells e país estrangeiro ou um infeliz país
Jorge Andrade, ou Sofia Dias & Vítor estrangeiro, mas sim, nenhuma
Roriz são convidados a conceber um criança conhece as palavras dessa
espectáculo para a companhia, re- língua — e um adulto ainda menos.”
flectindo com frequência sobre o A infância é, por isso, um território
lugar do envelhecimento em palco e distante nas vidas destes 14 intérpre-
servindo-se, amiúde, de um trabalho tes, desconhecedores já dessa língua.
sobre a memória. Daí, precisamente, falar-se de ficção,
Desta vez, e após um ano de inter- de uma construção sobre ideias e
regno forçado devido à omnipre- factos já com maior ou menor rela-
sente e omnipotente pandemia, ção com a realidade — sendo que a
Marco Martins quis apontar também realidade será também inútil e irre-
na direcção da memória. “O que levante quando aquilo que fica são
muda bastante aqui é que o ponto de apenas as memórias. Daí falar-se
partida da exposição são as ima- igualmente de estrangeiro, como se
gens”, conta o realizador. “Ou seja, a infância pertencesse, afinal, a pes-
a forma como as imagens, e aquilo soas distintas daquelas em que os
que sabemos dessas imagens ou nos adultos se tornaram.
foi contado sobre elas, condicionam E é também daí que vem esta Na-
as memórias.” Porque tratando-se tureza Fantasma, patente de 24 de
do seu campo privilegiado de actua- Junho a 16 de Julho. A fantasmagoria
ção, do trabalho sobre as imagens, “de uma coisa que está lá, em espí-
ao pedir aos 14 elementos da Com- rito, mas já não está lá fisicamente”,
panhia Maior que partilhassem con- descreve Marco Martins. “Uma coisa
sigo álbuns de família, fotografias e da qual sentimos ainda a presença,
vídeos que fizessem parte do seu mas que já não existe. E há outras
rasto e património emocionais, declinações que aquelas imagens nos
Marco foi percebendo que “a maior trazem — pessoas que desaparece-
parte nem sequer era uma memória ram, lugares que se foram e passa-
directa”. As fotografias documenta- ram a existir só na memória. E que
vam muitas vezes situações ou pa- aquela imagem está sempre a e

Convidado a comandar a décima criação para a Companhia Maior, Marco Martins contornou
as restrições da pandemia ao trabalhar com o elenco em vídeo e num formato de instalação

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 13


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e trazer-nos de volta.” É essa


mesmo a dimensão fantasmática
com que nos deparamos ao longo da
instalação: a certeza de que muito
daquilo que nos compõe é matéria
invisível — escondida ou esquecida
—, embora ainda capaz de produzir
estragos ou exaltações emocionais.
Mas estamos sempre no domínio da
ausência.
Num dos filmes apresentados
Buracos por preencher ao longo da instalação,
Numa área expositiva em L, a Gara- o criador envereda por
gem Sul do CCB implica, desde logo, uma linguagem de género,
uma descida a uma zona subterrâ- em específico afecta ao terror,
nea. Como se a primeira imagem, em que os corpos tanto
antes sequer de estarmos diante de parecem aguardar pela
filmes ou esculturas, fosse a de que autópsia quanto recusam
as memórias são algo a desenterrar, abandonar o toque
guardadas longe de olhares indiscre-
tos, matéria íntima e de difícil
acesso. As mesas de trabalho que
vemos à nossa volta, por seu lado,
levam também a pensar a memória
como uma construção, de natureza

Numa área expositiva em L, a Garagem Sul do CCB implica, desde logo, uma descida
a uma zona subterrânea. Como se a primeira imagem, antes sequer de estarmos diante
de filmes ou esculturas, fosse a de que as memórias são algo a desenterrar, guardadas
longe de olhares indiscretos, matéria íntima e de difícil acesso
oficinal, de constante transforma- bram de nada. Perante algumas ima- diferentes — fotografias arrancadas redores vamo-nos cruzando com
ção e readaptação, carpinteirada gens têm um vazio total — não sabem porque eram demasiado preciosas várias projecções de filmes e com 14
para melhor se encaixar no pre- a origem, não reconhecem aquelas para quem ali as encontrou ou por- pomos construídos por Fernanda
sente. Não é, portanto, algo escul- pessoas. E depois há aqueles que que se tornaram excessivamente Fragateiro. Em cada um destes po-
pido em pedra, imutável e indife- não têm imagens — ou têm apenas dolorosas. Não sabemos — nem é su- mos — varas cilíndricas brancas — vi- A base de partida para
rente à passagem dos anos. E há, duas ou três — da sua infância, o que posto que saibamos. Porque Natu- vem vozes, faladas ou cantadas, que a instalação esteve na recolha
pouco surpreendemente, uma é muito forte por si.” reza Fantasma não vampiriza as escutamos através de pequenos ori- de imagens de álbuns
enorme diferença naquilo que cada Se há buracos na memória, há-os memórias destes 14 homens e mu- fícios. Tanto podem ser excertos das de fotografias e de filmes
um conserva das suas biografias — e também nos álbuns de família. Marco lheres. Mais do que as memórias longas entrevistas que Marco Martins familiares, a partir da qual
das outras ocorridas ao seu redor. Martins confessa o seu encanto por concretas em si, aquilo de que se ali- conduziu com cada um dos intérpre- se construíram possibilidades
“Existem essas narrativas que se vai se cruzar com álbuns dos quais fo- menta é da relação que os intérpre- tes, conversas que partem das ima- de discurso sobre a memória
construindo sobre o passado”, diz ram arrancadas algumas fotografias, tes criam — e nós criamos também gens que levaram para o processo e
Marco Martins, “e há pessoas que deixando “um vácuo na história”. — com esses fragmentos soltos de que esgravatam as histórias e as re-
têm memórias complexas e detalha- Foi um dos elementos em que Fer- passado. lações impressas nessas fotografias,
das, constituidas por uma acumula- nanda Fragateiro quis também pe- Somos recebidos pelo texto de quanto pedaços de canções.
ção de informação daqui e dali; gar, neste súbito confronto com in- Gonçalo M. Tavares e, a partir daí, à Às canções, Gonçalo M. Tavares
enquanto há outras que não se lem- dícios de vidas que seguiram cursos medida que atravessamos dois cor- chama “a definitiva resistência”. “As
canções, que os elementos da Com-
panhia Maior cantam”, escreve o
autor, “ficarão na nossa memória e
não sairão tão cedo (...) A música é
talvez o que fica, mesmo em bailari-
nos: como num incêndio onde tudo
o que é material é destruído, mas das
cinzas vem um som, uma canção.
(...) E muitas vezes esse som é uma
canção de infância. E assim defini-
mos rapidamente aqui uma regra:
são as canções de infância que me-
lhor resistem aos incêndios. O fogo
não destrói o som.”

Um dos filmes incide sobre o trabalho de um taxidermista e foca-se em técnicas de preservação


de uma imagem de vida quando a morte entrou já em cena

14 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021


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Através dos filmes, Marco Martins çalo entrou mais tarde, mas foi um
leva-nos depois para uma outra re- diálogo a três.”
lação, mediada, com as memórias. Durante algum tempo, Marco ali-
Trabalhando a partir de arquivos de mentou ainda a ideia de que “podia
imagens — reveladores de “pessoas ter os intérpretes e alguma presença
que viveram quase todas em circuns- física deles dentro da instalação”,
tâncias muito privilegiadas” —, per- mas as dificuldades óbvias e a insta-
tencentes a um tempo em que as bilidade permanente levantadas
câmaras fotográficas amadoras não pela pandemia trataram de boico-
estavam vugarizadas e as fotografias tar-lhe os planos. Os planos, no en-
significavam, muitas vezes, uma ida tanto, foram sendo moldados não
a um fotógrafo profissional, vemos apenas pelas restrições circunstan-
agora os actores e as actrizes da ciais, mas também pelas portas que
Companhia Maior recriarem as si- a continuação do trabalho com a
tuações em que os seus antepassa- Companhia Maior ia abrindo. Não
dos foram imortalizados: vestidos havendo uma presença física dos 14
de soldados, de minhotas, de artis- no espaço da instalação, os seus cor-
tas de cabaret, de empregadas, de pos estão presentes de outras ma-
dama antiga, etc. São momentos de neiras, muito para lá daquilo que
fricção entre passado e presente: poderíamos imaginar.
momentos de tentativa de ligação a Assim acontece num dos filmes
um tempo longínquo, impossível de projectados ao longo do percurso,
ser revivido, numa encenação to- durante o qual se diria Marco Mar-
mada pela emoção mas em cons- tins enveredar por um fragmento de
tante sentimento de perda. cinema de género, valendo-se dos
Não é o único momento em que códigos do terror: filmado num pa-
Marco escolhe filmar uma recriação. lácio nos arredores de Lisboa, co-
Mas na segunda dessas situações o meça por mostrar-nos actores e
movimento é bastante distinto: não actrizes nus, cobertos por lençóis e
são imagens do passado transpostas deitados sobre mesas, como se
para o presente, são antes memórias aguardassem a autópsia, para pouco
de infância do elenco passadas para depois vermos rostos escondidos
vozes de crianças de hoje (sem qual- por longos cabelos e intérpretes que
quer parentesco). E que exploram se passeiam sobre um chão esbura-
sobretudo medos e experiências de cado, esfumando-se em seguida. A
alguma dureza, como descrições de atravessar estas imagens, fragmen-
castigos — “Se tínhamos sido castiga- tos de arquivo de um filme etnográ-
dos na escola, éramos castigados em fico evocador do ritual da taranta,
casa também, para reforçar”, na região italiana de Salento, em
ouve-se às tantas —, das expectativas que uma dança frenética e em
dos pais ou do medo da lua cheia, transe é usada para espantar a
causadora de uma perturbação que morte por envenenamento da ta-
se estenderia vida fora. rântula da zona. Um outro filme
sobre taxidermia vinca esta leitura
Uma sugestão de morte da preservação de uma imagem de
Avança-se por Natureza Fantasma vida quando a morte já desabou so-
abrindo caminho por entre memó- bre o presente.
rias e fragmentos de passados — Se até então era sobretudo com o
umas vezes dos próprios intérpre- passado que estávamos ocupados,
tes, outras dos seus familiares. Va- num fluxo de memórias a sugerir a
mos recolhendo pedaços de vidas revisitação da infância, a partir
alheias a partir de uma narrativa es- desse momento a morte passa a in-
boçada por Marco Martins com Fer- sinuar-se na instalação, a prosseguir
nanda Fragateiro e Gonçalo M. Ta- na sombra de cada momento de
vares, a partir sobretudo dos mate- tudo quanto se seguirá. Ao contrário
riais recolhidos nas entrevistas, dos filmes de zombies, corpos des-
desenvolvidos de forma autónoma tituídos de alma, Marco Martins joga
mas com imediatas repercussões no aqui com a noção dos fantasmas,
trabalho dos outros dois. “A Fernan- almas destituídas de corpo. Mas, na
das, às tantas, dizia que parecia que verdade, é aos corpos que cabe uma
estávamos a jogar xadrez a três”, diz das mais belas sequências do filme,
Marco Martins. “Porque um mexia quando todos deitados, uns sobre
uma peça e os outros colocavam-se os outros, estes 14 se tocam numa
em relação a isso. Eu ia recolhendo fisicalidade belíssima, imagens de
os materiais e lançando umas ideias vida táctil e sensual, como se o to-
e a uma dada altura as esculturas que — e até mesmo o desejo — se
impuseram-se como trajecto. O Gon- recusasse a morrer.

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 15


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Nas
imagens
de João
Maria
Gusmão

FOTOGRAFIAS DE NELSON GARRIDO


e Pedro
Paiva
podemos
pensar
Terçolho é uma
das mais
completas
exposições
de João Maria
Gusmão + Pedro
Paiva e o
momento da
separação da
dupla iniciada
em 2001. Filmes,

U
ma coincidência. Quando Terçolho — o nome da exposição, com a curadoria de Marta Moreira de Almeida e Phillipe Vergne
instalações, João Maria Gusmão (Lisboa, — estende-se pelas galerias até à garagem, num caleidoscópio de exposições dentro de exposições.
Filme, fotografia, escultura e instalação em trabalhos realizados entre 2004 e 2021
esculturas 1979) + Pedro Paiva (Lisboa,
1979) começam a apresen-
e desenhos, tar, no Museu de Serralves,
a mais completa exposição sensorial nos proporciona? Como suspenso no ar, a queda congelada questão conceptual muito impor-
mapeiam um da obra que fizeram juntos, a notícia noutras exposições, a dupla encena e enquadrada pela moldura da ja- tante que se prende ao limite da in-
já circulava. Enquanto dupla, ha- um teatro, o da experiência do nela do atelier dos artistas. Parece dexação cinematográfica”.
universo viam chegado ao fim. Definitivo, ir- tempo, da ilusão e dos sentidos das um desenho, mas não é. Trata-se de Ao fundo do corredor, espera-nos
artístico em reversível? Isso só ao futuro dirá.
Enquanto isso, Terçolho — o nome
imagens. Experiência que, por sua
vez, explica o sentido metafórico ao
uma imagem feita com recurso a um
flash de alta velocidade (já agora: o
o filme Pato em Pequim. Lda (2015-
2019). O som dos projectores, leve-
busca de uma da exposição, com a curadoria de
Marta Moreira de Almeida e Phillipe
título. Ninguém sairá da exposição
com a vista inflamada, é certo, mas
gato era um animal de estimação
dos artistas e não sofreu qualquer
mente ensurdecedor, conduz-nos às
imagens que parecem homenagear
primeira visão Vergne — estende-se pelas galerias não faltarão corpos estranhos no ferimento) e revela um dos elemen- o cariz experimental do cinema,
de uma imagem. dos museus até à garagem, num ca-
leidoscópio de exposições dentro de
olho, efeitos inesperados sobre a
perceção da realidade. Dito de outro
tos característico da obra da dupla.
“O nosso trabalho tem forte ele-
quando esta arte ainda não se tinha
apropriado da poética da narrativa.
No Museu de exposições. Filme, fotografia, escul-
tura e instalação em trabalhos rea-
modo, no fim de cada visita, formar-
se-ão abcessos, mas serão menos
mento técnico e teórico”, diz João
Maria Gusmão “Toda a nossa pes-
No ecrã, os objectos representados
animam-se numa vertigem descon-
Serralves, até lizados entre 2004 e 2021 (os mais físicos, do que mentais, metafísicos quisa em relação ao cinema e à ima- certante, mas, sob o efeito, esconde-
recentes da autoria de João Maria ou até existenciais. gem tenta encontrar uma certa teo- se uma técnica apurada, uma expe-
7 de Novembro. Gusmão), que deixam os visitantes ria do fantasma articulado com o rimentação conceptual. O artista
num estado de espanto, e perpétua Uma técnica escondida que acontece no cinema em que a menciona uma referência autobio-
indagação. O que estamos a ver? Convidadas pela dupla a entrarem, imagem em movimento é uma su- gráfica, mas enfatiza a criação téc-
Que imagens são estas? O que lhes os jornalistas fazem-no, pé ante pé, cessão de imagens estáticas e não a nica das imagens.

José acontece? Como foram feitas? Serão


este objectos esculturas ou podem
ser imagens bidimensionais? O que
cobertos pelo ruminar das máquinas
antigas, curiosos brinquedos do ci-
nema analógico. Do caminho, salta
descrição efectiva do movimento.
Por meio das nossas intervenções,
procuramos fixar um momento tem-
“A primeira vez que o mostrámos
foi com uma câmera obscura. Tínha-
mos um disco que andava à volta com

Marmeleira se esconde por detrás deste fasci-


nante absurdo? Que experiência
Gato a Cair de 2010, um “foto-
grama”. Vê-se um pequeno felino
poral e cerebral, que não é percetí-
vel, da matéria fílmica. Esta é uma
animações e outro que colocámos,
antes da óptica, e que usámos para

16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021


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Conceito e estética,
técnica e imaginação
O que nos deixa esta obra de forte erudição, de insaciável apetite
intelectual pela ÄlosoÄa, literatura, arte, estética, e uma mestria
técnica?

J
oão Maria Gusmão e Pedro Paiva trabalharam Natxo Checa faz parte do percurso de João Maria
com curadores diferentes e cruzaram-se com Gusmão e Pedro Paiva. “Quando os conheci, estavam
diversos artistas, construindo com uns e com no quarto ano da universidade”, recorda o director
outros afinidades artísticas, estéticas e da Galeria Zé dos Bois. “Vi o trabalho com que
pessoais. Desse conjunto extenso e rico (que participavam numa exposição colectiva, gostei
este texto não esgota, basta recordar, por muito. E convidei-os para uma residência do qual
exemplo, os nomes de Alexandre Estrela, de Nuno resultaram obras para a série exposições
Faria ou dos colecionadores Maria e Armando DeParamnésia, em 2002”. Estava inciada uma
Cabral), o Ípsilon conversou com o professor e relação, sustentada na amizade e em afinidades
curador Sérgio Mah, que convidou a dupla para o estéticas, que manteria um ritmo intenso, com
PHotoESPAÑA, 2018, com o director e curador da Zé viagens, projectos e exposições, até 2009, ano em
dos Bois Natxo Checa, que trabalha com eles desde que a dupla representou Portugal na Bienal de
os anos 2000, e, finalmente, Gonçalo Pena, artista Veneza. O curador e os dois artistas permanecem
com o qual João Maria Gusmão e Pedro Paiva já amigos próximos e a história da Zé dos Bois, nos
colaboraram e com quem Gusmão continua a últimos vinte anos, tornou-se indissociável da
colaborar (a exposição de Gonçalo Pena no Museu de história de João Maria Gusmão + Pedro Paiva. “A ZDB
Serralves tem a sua curadoria). associou-se aos seus projectos”, conta Natxo,
Embora a separação não signifique outro fim a não “trabalhámos e fizemos viagens juntos no âmbito de
ser o da dupla, o que nos deixa a sua obra, como investigações que, por sua vez, deram origem a
podemos, passadas duas décadas, caracterizá-la? exposições importantes. São artistas autónomos que
“Criaram um mundo peculiar, idiossincrático, um se associaram a uma entidade autónoma e
imaginário que ocuparam de forma muito séria e independente como é a ZDB”.
eficaz. Sem estagnarem numa fórmula ou numa Foi na ZDB que Gonçalo Pena viu pela primeira um
retórica”, diz Sérgio Mah. Para este comissário, João trabalho da dupla. “Havia ali um absurdo, com um
Maria Gusmão e Pedro Paiva conceberam um feixe lado poético, algo de invulgar. Não era uma piada ou
que vai da percepção à pesquisa em torno dos uma anedota. Comecei a acompanhar o que faziam”.
imaginários. “Nunca deixaram de desierarquizar Ao fim de alguns anos, os três artistas — que
domínios, da filosofia à literatura, das ciências à chegaram a trabalhar na mesma galeria —
ficção científica ou à magia, entrelaçando-os com começaram a participar juntos em residências.
fertilidade e rigor. Por outro lado, fizeram uma Seguiu-se um contacto quotidiano entre trabalhos e
reflexão sobre a percepção a partir da genealogia da uma curiosidade mútua. “Começaram a
imagem, da imagem analógica à imagem técnica”. interessar-me pelo [meu] desenho e fiquei
Pensaram, acrescenta, “o arco da obsolescência [da impressionado com a exposição Abissologia na
imagem], explorando, com inteligência, o jogo da Cordoaria. Mais tarde, apercebi-me que antes de ser

O que estamos ilusão”.


Uma forte erudição, com um leque de referências
um trabalho artístico, a obra [do João Maria Gusmão
+ Pedro Paiva] se constituía como indagação

a ver? muito vasto, é outro elemento constitutivo, mas,


lembra Sérgio Mah, existe em articulação com uma
filosófica e metafísica sobre o conhecimento. Daí a
importância do analógico. Cada chapa batida

Que imagens são? obturar a sequência das imagens. A


acessibilidade. “Não precisamos de todo o aparato
teórico que eles têm”, esclarece, “para nos
corresponde a uma imagem que está lá, a uma
impressão, enquanto no vídeo há uma mediação

Serãoesculturas câmara escura funcionava como um


projector de cinema. Fazíamos um
deslumbramos, para nos espantarmos com a obra.
Isso é uma qualidade muito fascinante O pensamento
tecnológica que torna a coisa menos real, mais
impura”. Para Pena, o trabalho da dupla

ou imagens microcinema. Aqui estamos a ver o


cinema de um microcinema”.
deles provém da consciência da impermanência do
visual. Há uma fenomenologia visual, um disrupção
materializava a ideia do filme como operação sobre o
real, transformando o real. “Criava uma espécie de

bidimensionais? Passado este prólogo, percorre-se


uma galeria dedicada à produção
na relação empírica com as coisas que permite que
julguemos o que estamos a ver e como podemos ver.
uma ciência do discernível, um modo de olhar a
realidade a partir da câmara fotográfica e

O que se esconde por fotográfica da dupla. Destaca-se uma


série de imagens, iluminadas, de
Ou podemos imaginar”.
Será pertinente perguntar sobre a influência da
cinematográfica”. Dois elementos sustentavam essa
ciência. Um insaciável apetite intelectual pela

trás deste fascinante padrões têxteis coloridos. No lugar


de cenas ou animações, estão agora
dupla noutros artistas do panorama nacional?
“Exercem uma influência, mesmo não sendo directa.
filosofia, a literatura, a arte, a estética, e uma
maestria no trabalho técnico sobre a câmara, as

absurdo? A dupla formas, linhas, cores. É tentador


pensar em afinidades com a história
Sempre foram muito sérios e empenhados, muito
rigorosos. Encontro, hoje, em alguns artistas uma
distâncias focais, as velocidades, as emulsões, os
materiais. “É um dos raros trabalhos que tem uma

encena um teatro, da pintura, mas, com efeito, é a his-


tória da fotografia aquilo que os ar-
atitude semelhante. Mas, sobretudo, souberam
estabelecer um equilíbrio muito interessante entre
ambição de clara de epistemologia. E nisso revela um
potencial político, porque subverte as formas de

o da experiência tistas evocam, observam e indagam.


As imagens fazem referência a Tar-
um rigor conceptual e teórico e a natureza plástica
das obras”. Essa exigência, colocada na técnica e no
conhecimento”. Nesses termos qual será o sentido
do espanto, do belo nas obras que podemos ver em

do tempo, da ilusão tan Ribbon (1861), considerada a


primeira fotografia a cores, de Tho-
pensamento, permitiu criar várias portas de entrada
[para a obra], uma das quais é ou pode ser a imagem
Serralves? “A questão estética está lá, mas não o
esteticismo”, responde. “Uma bela coisa pode ser

e dos sentidos mas Sutton. “Ele fotografou a fita


três vezes, cada qual com um filtro
fotográfica “Em muitos dos seus filmes, verifica-se
um abrandamento do movimento. É como se a
uma bela coisa mas se não tiver significado, se não
constitui uma operação conceptual forte, potente no

das imagens de cor diferente. Vermelho, verde e


azul-violeta, sobre a lente. O desafio
aqui foi imaginar como produ- e
imagem em movimento fosse a caminho de uma
fixidez que não ocorre verdadeiramente. A ideia do
fotográfico é aí muito relevante.”
conhecimento, é fútil e vazia. Diria que a operação
conceptual está em primeiro lugar, o prazer estético
vem em segundo”. J.M.

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 17


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FOTOGRAFIAS DE NELSON GARRIDO


mmmmm “Toda a nossa
Terçolho
De João Maria Gusmão + Pedro pesquisa em relação
Paiva
PORTO. R. Dom João de Castro 210, 4150-417 .
ao cinema
Até 7 de Novembro.
e à imagem tenta
encontrar uma teoria
do fantasma
articulado com
o que acontece
no cinema em
que a imagem
e zir uma imagem fotográfica
em movimento
apenas com luz e cor e que corres- é uma sucessão nossa experiência da percepção. Ar-
ticulados entre si, ganham fisicali-
pondesse a uma ideia de tecelagem
fotoquímica.” Desse procedimento de imagens dade, matéria. “O que vemos [na câ-
mara] é o que está dentro de uma sala
técnico e rigoroso, quase automá-
tico, resultaram faixas horizontais e estáticas e não técnica iluminada. Entre a câmara e
a sala estão quatro lentes que projec-
verticais coloridas que formam uma
imagem compósita. a descrição efectiva tam os movimentos das rodas”, expli-
cam os artistas. “Em vez de criarmos

Fantasmas em atalhos do movimento. uma sequência de imagens estáticas,


produzimos um movimento real. Um
Os visitantes suspendem os passos
diante das imagens, para as contem- Por meio das nossas tipo de cinema sem fotogramas”.
A exposição conclui-se na gara-
plar. Perto, Phillipe Vergne decide
interpelar os artistas. “Podiam ter intervenções, gem, com uma série de filmes em
que se incluem Papagaio (djambi),
fotografado directamente os pa-
drões, mas não seguiram essa via. procuramos fixar de 2014, Peacock (Nue), de 2016 e
Sleeping in a Bullet Train de 2015. São
Por que razão, na vossa prática, sen-
tem essa necessidade de começar do um momento trabalhos que afirmam a criação ex-
perimental de um universo com-
início, de compreender como a ima-
gem foi realizada originalmente? temporal e cerebral, posto de movimentos e formas im-
percetíveis que os olhos não capta-
Com a luz, a imagem, a matéria, a
cor?” João Maria Gusmão escuta que não é percetível, riam mas cujas origens
reconhecemos. Nascem de uma pes-
atentamente antes de responder:
“Parte da pesquisa que fazemos pro- da matéria fílmica” quisa sobre as imagens, em particu-
lar as analógicas, que libertam tem-
cura reconstituir um primeiro olhar
ou visão de uma imagem que nunca
antes tinha aparecido, que de algum
José Maria Gusmão pos que, por sua vez, libertam
fantasmas.
Terminada a visita, fora do espaço
modo rompe a lógica da actual mer- fechado, sob a chuva que vai caindo
cantilização da própria imagem. céu, João Maria Gusmão e Pedro
Sempre esteve lá. São fantasmas [das Paiva resumem Terçolho: “Propõe-
imagens] e, para os descobrirmos, se reflectir sobre os mediums que
temos de ver onde apareceram pela fomos trabalhando sempre de forma
primeira vez”. isolada. Tenta apresentar uma an-
Na sala seguinte, revelam-se e es- tologia do trabalho, com os alguns
condem-se esculturas negras de ca- dos seus primeiros passos. É a expo-
valos, objectos, figuras, dioramas. sição mais ambiciosa que fizemos.
Em prateleiras e plintos brancos, Como noutras exposições, a dupla encena um teatro, o da experiência do tempo, da ilusão e dos Não é um projecto. E coincidiu com
feitas de bronze, formam um estra- sentidos das imagens. Experiência que, por sua vez, explica o sentido metafórico ao título, Terçolho. a suspensão da nossa colaboração.
nho labirinto. Por vezes, o visitante Ninguém sairá da exposição com a vista inflamada, é certo, mas não faltarão corpos estranhos Nesta exposição ainda trabalhámos
parece no interior de um teatro ou no olho, efeitos inesperados sobre a perceção da realidade juntos. No futuro, podemos vir a
de um filme. Algumas das esculturas mostrar trabalhos antigos, mas não
parecem congeladas, apanhadas em está em cima da mesa produzirmos
acções ou movimentos. Estamos lon- resultado é que aquelas esculturas, sentação do mundo e o gesto do ração panoscópica intensa, outras em coisas novas como dupla. Mas pode
ges da fotografia ou não? “São escul- em termos perceptivos, são bidimen- desenho. João Maria Gusmão vai re- longos corredores. Onça Geométrica acontecer”.
turas que provêm de desenhos que sionais, planas. Colocadas nas mol- velando as advinhas, nomeando o (2013) é uma instalação alucinatória O futuro está em aberto, mas para
pretendem ser universais. São ideias duras, rejeitam a experiência do que os traços significam ou podem de cinco projeções de 16 mm, em que já Gusmão e Paiva tomarão trilhos
de desenhos que todos podem dese- corpo, para se entregarem à expe- significar, mas estes, ao fim de alguns podemos ver círculos de vidros pin- separados. Fica uma obra que ofe-
nhar. Quisemos explorar a ideia de riência da visão. Mesmo aquelas mais segundos, voltam a ser apenas dese- tados em movimento; dos filmes rece ao espectador experiências di-
origem da escultura como algo que físicas e volumétricas parecem, afi- nhos. Ou, conte-se tudo, desenhos dessa ciência do abismo que é a Abis- ferentes do filme, da fotografia, da
vem do vazio, do nada, para se tor- nal, imagens congeladas. fotografados. sologia (à qual os artistas dedicaram escultura. “Nos nossos trabalhos, a
nar numa imagem”. Da escultura, a exposição expan- uma série de obras presentes na ex- técnica permite-nos pensar, abrir
Na sala, frisa Pedro Paiva, “não há de-se aos desenhos, mistos de doodles Um programa estético posição e apresentadas em 2008 na possibilidades conceptuais. Há por
uma escultura modelada, no sentido (rabiscos) e advinhas, que podem ser O visitante entra e sai com mais ou Cordoaria Nacional, em Lisboa), des- exemplo nos filmes uma experiência
clássico. Fazemos as peças a partir vistos num dos corredores. O humor menos inflamações na vista e na prendem-se gestos e cenas cujo ab- imersiva e um tempo definido pelas
de negativo. São construções a partir associado ao trabalho evidencia-se mente. São sintomas que se intensifi- surdo continua a incitar a reflexão (o próprias peças para que se possa
de ideias desenhos, de imagens sin- sem ser um fim em si mesmo. É meio cam sob a escala e a extensão da ex- que estamos a ver? O que foi fil- construir uma discursividade. É um
téticas. Nunca modelamos as nossas para pensar a experiência da percep- posição, toda ela uma grande instala- mado?); num projecção, numa câ- trabalho em que se pode pensar, mas
esculturas no sentido de as fazermos ção das formas. Simples, muito pro- ção. Afinal, são 63 fotografias, 47 fil- mara escura, descobrem-se movi- que suprime a palavra na altura da
crescer, de lhes dar forma. Procura- saicos, acendem sinapses na memó- mes e 45 esculturas, sendo que mentos de rodas de bicicletas que sua aparência. É uma atitude delibe-
mos sempre um atalho qualquer”. O ria, incitando a um jogo com a repre- algumas aparecem sob uma configu- abalam o modo como pensamos a rada e um programa estético”.

18 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021


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BRUNO LOPES
mance A Viagem Invertida (apresen- no centro de Lisboa, numa zona de
mmmmn tada sala Garrett do D. Maria II, 2019) troca, de comércio, de passagem de
É só uma ferida a reflexão que nos deixou sobre a turistas. A porta dá directamente
De Pedro Barateiro predação da Terra pelo homem, o para a rua e acabei por reflectir sobre
LISBOA. Fundação Carmona e Costa, R. Soeiro
consumo humano do mundo natural a multiplicidade que marcava aquele
Pereira Gomes, 1 e VILA NOVA DA BARQUINHA. e a influência da tecnologia digital na lugar.”
Fundação Carmona e Costa. R. do Tejo, 32, subjectividade humana. Para É só
2260-433. Até 17 de Julho.
uma ferida, leu Frankentsein de Mary Onde está o espectador?
Shelley, A Hora do Diabo de Fernando Na exposição, estão também as es-
Pessoa e The Transformation of Si- culturas Living Alone e Living To-
mmmmn lence into Language and Action da gether. Feitas de materiais e objectos
Eixo-próprio activista e escritora afro-americana industriais, reflectem a curiosidade
De Pedro Barateiro Audre Lorde. Destas leituras e textos, do artista pelas relações que estabe-
LISBOA. Rialto 6. Rua do Conde de Redondo
há ecos que se diluem no monólogo lecemos com as coisas (no espaço) e
N6, 1. Até 30 de Julho. do monstro, sugerindo afinidades, acentuam um imperturbável humor.
posições. Pedro Barateiro interroga Têm ambas quatro pernas, mas ape-
a relação com o digital, os efeitos do nas uma evoca uma noção de convi-
capitalismo tardio, a cultura do em- vialidade. Quase que passam desper-
preendedorismo ou, as nas palavras cebidas e dialogam, em termos for-
dos curadores da exposição, João mais, com outra peça, noutra
Mourão e Luís Silva, “os mecanismos exposição de Barateiro. Trata-se de
binários e opressivos do ocidente”. Eixo Próprio, que pode ser vista na
“Isso fez sempre parte do meu traba- mostra homónima patente, até 30 de

U
m monstro, um ser que só tual representação humana. “É cu- lho”, diz. “Essa tentativa de descons- Julho, no espaço Rialto6 dos colec-
tem cabeça e pernas. E que rioso como no meu trabalho nunca truir o pensamento binário ocidental cionadores Maria e Armando Cabral,
fala, fala num tom lento e representei visualmente [a figura hu- que está enraizado numa cultura que em Lisboa. Replica um fio-de-prumo
instrospectivo. Chama-se mana]. Sempre a evitei ou, quando é muito subserviente do capitalismo, [instrumento constituído por um fio
Data Monster, a criatura, e é aparece, está ausente, por exemplo, de uma certa ideia de ciência, dos no qual é suspensa uma peça de me-
a protagonista de um filme nos trabalhos que fiz à volta do espec- desenvolvimentos técnicos. Trata-se tal e que serve para verificar a verti-
de animação de Pedro Barateiro que tador”, considera. “Mas neste não de perceber que as imagens nos es- calidade de objecto] cuja presença
o espectador pode ver em É só uma posso evitar falar dela, se a quiser truturam, nos condicionam, nos in- pode desestabilizar ou não a expe-
ferida, até 17 de Julho na Fundação desconstruir”. fluenciam com as suas mitologias que riência e a percepção. Que verticali-
Carmona e Costa, em Lisboa. No ecrã, De volta ao vídeo, ou ao filme de escondem relações de violência e dade pretende verificar aquela peça?
Data Monster divaga, num tom con- animação, Data Monster é agora um poder. Nesse sentido, o meu trabalho A do nosso corpo, do nosso olhar? A
fessional, sobre o processo de trans- conjunto de pestanas que, depois de participa na desconstrução dessas Barateiro sempre interessou reflectir
formação que está a viver ou a sofrer. transformadas em curvas, linhas e mitologias”. De um modo oblíquo, sobre o lugar do espectador. É uma
Apresenta em Assume-se não binário, diz não ter
nome e fala de um ecrã que aparece
dobras, acabarão destiladas por um
alambique. “Já não fazia animação
diga-se, ou não reconhecesse Bara-
teiro os limites da arte. “A única coisa
disposição que aparece noutros tra-
balhos de Eixo Próprio, sobretudo na
Lisboa duas sempre que deles necessita. Os seus
dedos, revela, são os seus órgãos se-
desde a faculdade, mas a vontade de
retomar essa linguagem não desapa-
que posso fazer, citando a Clarice
Lispector, é dar ferramentas que po-
instalação 82 poemas — que pode ser
vista no interior e no exterior do Rial-
exposições xuais e não tem olhos, só pestanas recera. Nunca tive um medium espe- dem ajudar a desmantelar essas es- to6 — e numa série de esculturas
(quase) que se despegarão do seu estranho
corpo. A dada altura, alude a questões
cífico, sempre gostei de trabalhar com
vários e a animação permitiu-me tra-
truturas. O campo do artista é limi-
tado, específico”.
constituídas por cadeiras ocupadas.
São trabalhos que também preten-
em simultâneo, e tópicos hoje muito debatidos no
espaço público: os discursos de ódio,
balhar uma ideia presente no meu
trabalho. A de uma condição ou es-
De volta aos desenhos, grande
parte faz referência aos tempos que
dem olhar, de modo abstracto, para
as questões levantadas por É só uma
É só ferida, a circulação incessante de informa- tado potencial de mudança, de algo vamos vivendo, mas sem qualquer ferida: dos efeitos do capitalismo aos
ção, a depredação do planeta, a visão passível de ser transformado”. orientação unívoca. Uns são mais discursos que definem o humano e o
e Eixo-próprio. eurocêntrica do mundo. Há nela, con- abstractos, outros mais figurativos. não humano, à produção material e
Oportunidade tudo, algo de ambíguo. Parece fazer Desenhos na Rua Há-os mais tomados pelo gesto breve a produção imaterial, passando pela
uma crítica, mas a sua forma parece da Madalena da mão, outros mais detalhados. Al- condição do fabricador no campo da
para um determinada pela tecnologia. Por ou-
tras palavras: como se estivesse ligada
Sendo rara no trabalho de Barateiro,
a narrativa, quase linear, estrutura o
gumas cores e soluções cromáticas
repetem-se, sem tédio.
arte contemporânea. Mas a ligar to-
dos estes “tópicos” persiste a condi-
reencontro à máquina, como se fosse uma má- filme. “Quis explorar um universo “A figuração no meu desenho de- ção do espectador, manifesta na re-
com um trabalho quina. Onde se posiciona este mons-
tro? O que quer?
mais infantil e directo, que me per-
mitisse chegar a um espectro maior
sapareceu anos depois da sair da
ESAD [Escola Superior De Artes E
cepção de 82 poemas, composta de
82 filmes de poucos minutos que Pe-
que, heterógeno Diante da animação, que conta
com a voz de Conan Osiris, a música
e mais diverso de espectadores. Com
uma linguagem muito simples. O de-
Design Caldas Da Rainha], mas nunca
deixei de desenhar”, atalha, “[Os de-
dro Barateiro foi realizando entre
viagens e residências. Não nos pro-
nos seus meios, de BLEID e a produção do estúdio senho ofereceu-me um espaço de li- senhos] não têm uma lógica directa. põe este trabalho um compromisso
Sardinha em Lata, Pedro Barateiro berdade, e o filme permitiu-me de- À partida não sei o que vão ser, acon- específico? Ver ou não ver? Ver o
permanece revela a origem do vídeo. “Parte de purar mais o trabalho e, com ele, tecem pontualmente. Há uma ideia quê? Em que condições?
crítico um conjunto de desenhos que fiz em
2015 e que podemos ver na exposi-
uma série de questões”. Sobre a cria-
tura, diz-nos que há algo próximo do
de série, mas não é linear. Cada [de-
senho] corresponde a uma obra au-
Na Fundação Carmona e Costa, a
relação é mais imediata, a experiên-
e poético, ção. Num deles, há uma personagem
intitulada Data Monster que tem dois
auto-retrato, que, em parte, também
representa uma monstruosidade que
tónoma, é um filho único”. Nota-se
um virtuosismo no traço, embora
cia mais linear. Sentamo-nos para ver
e ouvir o monólogo do Data Monster,
imbricado no braços, duas pernas e uma cabeça. É todos podemos reproduzir. Para lá rápido, e aqui e ali referências à pin- sentimos (ou não) as suas dores ou
quotidiano e na muito dependente do computador e
muito parecida com outra que se
do bem e do mal? Este ser não biná-
rio, aparentemente assexuado, que
tura, à manga, à animação, ao mo-
dernismo artístico, à esfera mais
alegrias, percorremos os desenhos,
com as suas figuras e cores, alguns tão
vida com chama O Empreendedor”.
Uma breve incursão pelos dese-
acumula informação antes de se des-
integrar em pestanas (e se liquefa-
privada do artista. Alguns têm a com-
panhia das palavras, nomes, expres-
distintos que parecem feito por artis-
tas diferentes; veja-se por exemplo
os objectos. nhos expostos — feitos com guache e zer), tem semelhanças com os “em- sões que correspondem, afinal, aos The Night em contraponto a Coreogra-
tinta-da-china — permite descobrir preendedores” que se vêem nos de- títulos. “Gosto muito de usar a pala- fia. E, no entanto, o repto do artista
outros seres: Mr. System, Code, Them senhos. Como noutros trabalhos e vra escrita, de introduzir a sua pre- permanece o mesmo. Mais ou menos

José Data, The Night. Híbridos, estranhos,


têm qualquer coisa de humano, não
momentos, Barateiro volta a pensar
artística e poeticamente o mundo, a
sença nos trabalhos. Fiz estes dese-
nhos em 2015, no meu atelier, na Rua
depurado, heterógeno nos seus
meios, desprendido nos seus fins, é

Marmeleira são absolutamente humanos. Ou dito


de outro modo, esquivam-se da habi-
responder-lhe sem proselitismo ou
grande ilusões. Recorde-se na perfor-
da Madalena, para onde me havia
mudado em 2014. É uma rua agitada,
crítico e poético, imbricado no quo-
tidiano e na vida com os objectos.

Somos humanos, com os monstros


e os objectos de Pedro Barateiro ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 19
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Alexandra
Prado Coelho

N
o início desta história esta-
mos na Lisboa de 1597 e se-
Com Arrancados
guimos, “na penumbra, an-
tes dos primeiros raios da
da Terra, o
manhã”, os passos de um jornalista e
homem, Gaspar Rodrigues
Nunes, de 39 anos, comerciante de historiador
pregos. Segue numa fila de 90 ho-
mens, “pés descalços e velas amarelas
brasileiro recua
nas mãos”, vestidos com o “sambe- no tempo para
nito”, o “traje da infâmia”, uma túnica
de linho amarela imposta aos hereges, seguir os judeus
apóstatas, bígamos, devassos, sodo-
mitas e os praticantes do judaísmo.
expulsos de
Quase conseguimos ouvir, como
terá ouvido Gaspar nesse dia, “o vo-
Portugal
zerio da turba […] entrecortado pelo pela Inquisição
repicar dos sinos das igrejas, pelo
estrépito das matracas e pelo entoar até Amesterdão,
contínuo de cânticos religiosos”. Os
autos-de-fé eram um espectáculo
Brasil e, por Äm,
público, com as multidões que apu- Nova Iorque.
pavam e insultavam o grupo de pe-
nitentes à passagem pelas ruas a A imersão nos
aguardar depois o momento alto do
acender as fogueiras, já no Terreiro
arquivos
do Paço.
Em Arrancados da Terra, que
e a “visão do
acaba de ser lançado em Portugal outro como
pela Objectiva, com prefácio de
Esther Mucznik, Lira Neto, jornalista ameaça”,
e historiador brasileiro a viver no
Porto, autor de várias biografias, en-
trouxe-lhe “a
tre as quais a do antigo ditador do todo o instante
Brasil Getúlio Vargas, convida-nos a
seguir a personagem de Gaspar, con- ecos da realidade
duzindo-nos até aos cárceres da In-
quisição em Portugal, incluindo a
que vivemos
tenebrosa Casa do Tormento, e faz-
nos assistir às torturas infligidas a
hoje”.
Gaspar e à sua mulher Filipa, para
que confessem a sua fé judaica.
Gaspar irá conseguir escapar à fo-
gueira, mas Filipa, forçada sob tor-
tura a denunciar o marido, acaba por
enlouquecer. O médico do Santo Ofí-
cio irá declará-la “mentecapta” e
vítima de “melancolia mórbida”. Já
ela, sobre o estado em que se encon-
tra, consegue apenas repetir uma
coisa: “Tenho um fogo e um bicho
dentro do coração.”
Mas este é só o início de uma epo-
peia que dará a volta ao mundo. Um
relato de intolerância, centrado na
saga dos judeus sefarditas que, ex-
Sambenito
O “sambenito” (acredita-se que o nome fosse uma corruptela de saccus benedictus, “saco
pulsos de Portugal pela Inquisição, bendito”) era “o sinal imposto pela Inquisição para identificar os hereges, os blasfemos,
encontram refúgio primeiro na Ho- os apóstatas, os bígamos, os devassos, os sodomitas e, sobretudo, os que haviam ‘atentado
landa, mais tarde no Brasil e por fim contra a fé em Cristo’ ao professar o judaísmo”. Os infiéis ostentavam assim publicamente as suas
em Nova Iorque, quando esta era “culpas”. Se esta túnica de linho, este “traje da infâmia” que os judeus eram obrigados a usar, tinha
ainda Nova Amesterdão. Uma histó- pintadas chamas viradas para cima, significava que aquele que o envergava iria morrer na fogueira
ria que Lira Neto vê como mais do
que isso — como um olhar, à luz da

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A saga
PHAS/UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY IMAGES
dos judeus Lira Neto, jornalista e historiador brasileiro a viver no Porto,

do século
convida-nos a seguir a saga dos judeus sefarditas que, expulsos de
Portugal pela Inquisição, encontram refúgio primeiro na Holanda,
mais tarde no Brasil e por fim em Nova Iorque

XVII

NELSON GARRIDO
fala-nos das
intolerâncias
do século
XXI
realidade actual, sobre a persistência
não apenas do antissemitismo, mas
Apesar de aparecer só na metade do
livro, ele é o fio condutor”, explica o
Terra não inclui as notas e referên-
cias bibliográficas mas todas elas Para Lira Neto
de muitas outras intolerâncias.
É precisamente porque esta saga
autor. “Não se conta uma boa histó-
ria sem bons personagens. Não há
podem ser consultadas no endereço
http://bit.ly/notasarrancadosda- é muito claro que
particular de um grupo humano num
período específico da História tem
narrativa sedutora sem um persona-
gem igualmente sedutor.”
terra. Sendo os judeus sefarditas da
Península Ibérica o foco do seu tra- “a História não é feita
ressonâncias universais que o autor
dedica a obra “a todos os desterrados,
Quis perceber quais as origens da-
quele homem que, num tempo de
balho tinha, logo à partida, uma di-
ficuldade dado tratar-se de pessoas de verdades
retirantes, refugiados, apátridas,
proscritos, exilados, imigrantes, de-
grandes polémicas religiosas e de
divisões profundas, que atingiam a
que, por razões de pura sobrevivên-
cia, apagavam tanto quanto possível estabelecidas”,
gredados, foragidos, expatriados,
fugitivos e desenraizados do mundo”.
própria comunidade, tentava conci-
liar pontos de vista aparentemente
todos os registos da sua existência.
Os que fugiram para Amesterdão ela nasce
A todos os que, ontem e hoje, foram
— ou são — “arrancados da terra”.
inconciliáveis, e construir pontes
onde elas pareciam impossíveis.
adoptaram outros nomes, pelo que
é necessário estabelecer essas liga- “das perguntas do
O livro começa com Gaspar Nunes,
mas o fascínio de Lira Neto com este
“Faço uma busca e chego a Gaspar
Nunes, o pai de Menasseh, que se
ções para perceber quem é quem no
meio dessas duplas identidades. presente lançadas
grupo de homens e de mulheres par-
tiu inicialmente de uma outra figura:
revela um personagem igualmente
maravilhoso, não só pelo facto de ter
Por outro lado, há arquivos muito
ricos. “O principal foi o da cidade de ao passado” e
o filho de Gaspar, Manuel Dias
Soeiro, aliás, Menasseh ben Israel,
escapado da fogueira nas condições
em que escapou, mas por o inquérito
Amsterdão, que está digitalizado e
totalmente disponível. A partir da- “o nosso olhar de
“um erudito, um impressor, um livre
pensador”, que nas primeiras déca-
de que foi alvo por parte da Inquisi-
ção ser tão minucioso, detalhado,
queles papéis consegui reconstituir o
quotidiano da comunidade sefardita cidadãos do século
das do século XVII não está em Lis- eloquente.” na Holanda — as actas das reuniões,
XXI condiciona essas

Judeus
deus
boa mas sim em Amesterdão, inte- Para poder contar esta história, ttodos os contratos comerciais, os re-
grado na importante comunidade
sefardita da cidade. “Ele foi o pri-
meiro personagem que identifiquei.
Lira Neto mergulhou nos arquivos
— por uma questão de dimensão, a
edição portuguesa de Arrancados da
ggistos religiosos, tudo está muito bem
organizado. Da mesma forma, no ar-
o
quivo da cidade de Nova Iorque,
Io e
perguntas”

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 21


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DEA / G. DAGLI ORTI VIA GETTY IMAGES

Auto-de-fé
“Todo o herege ou cismático há-de ser lançado ao fogo eterno, na companhia do Diabo e dos seus
anjos, a não ser que, antes da morte, seja incorporado ou reintegrado na Igreja”. Assim dispunha o
Directorium inquisitorum. A Inquisição perseguia impiedosamente todos os que, mesmo tendo
sido baptizados na fé de Cristo, eram suspeitos de praticar o judaísmo em segredo. Se não
confessassem e se não renegassem para sempre a Lei de Moisés, eram condenados a morrer na
fogueira, nos autos-de-fé que se realizavam periodicamente em Lisboa

e disponível para os pesquisado- dos relatos que existem desse pe- seh ben Israel, o editor e construtor Pernambuco em 1641, tornando-se que era fazer com que os judeus re-
res pela Internet, foi possível estabe- ríodo e das lutas entre luso-brasilei- de pontes que “teve vários embates o primeiro rabino das Américas. tornassem ao império britânico.
lecer uma ideia do que era a Nova ros e neerlandeses. “Você percebe e muitos deles estão descritos nos “É quase impossível não nos iden- Deixo entender no final que a aceita-
Amesterdão naquele período.” E, em ali o mesmo episódio contado de seus papéis pessoais e não nessa do- tificarmos com Menasseh”, diz. “Não ção dos judeus no que viria a ser
Portugal, “os arquivos da Torre do forma absolutamente diversa, cumentação oficial”. só pelo facto de ele ser um editor, um Nova Iorque decorre muito dessa
Tombo são impressionantes, em nú- oposta, antagónica, e eu ofereço ao O entusiasmo de Lira Neto ao en- homem que trabalha com a palavra, embaixada de Menasseh a Londres,
mero e em qualidade”. leitor a oportunidade de mergulhar contrar a personagem de Menasseh com os livros, mas pelo facto de ele, o que faz dele um personagem ainda
É, contudo, preciso um cuidado nessas duas versões, nesses dois uni- sofreu um abalo quando percebeu em vez de construir muros, tentar mais significativo.”
especial quando se trabalha os arqui- versos mentais, e como os dois gru- que, ao contrário de muitos outros construir pontes e pagar um alto Atravessam o livro outras perso-
vos. “Não existe um documento des- pos se viam um ao outro. Tem passa- judeus da comunidade sefardita de preço por isso. E ainda o ter morrido nagens, menos centrais mas não
interessado. Todo o documento é gens curiosíssimas, como aquela em Amesterdão, este não tinha ido para imerso numa última grande utopia menos fascinantes, como o padre
produzido com uma intenção. A mais que os holandeses, ao olhar para a o Brasil. Mas depois entendeu que jesuíta e capitão de uma força de
prosaica certidão tem um interesse casa dos colonos portugueses, se mesmo essa não-ida era relevante índios tabajaras e potiguaras, Ma-
específico. É preciso ir para além da perguntam: ‘mas eles não têm qua- para a história. Foi precisamente por nuel de Morais, que várias vezes
letra do que está escrito, tentar pene-
trar na entrelinha. No caso dos da
dros nas paredes?’”.
Mas se os arquivos da Inquisição
causa dos seus escritos — entre eles
uma obra que foi um sucesso edito- “Como é que muda de vida, e de lado, largando a
batina e tornando-se, a certa altura,
Torre do Tombo, por exemplo, sabe-
mos que são produzidos com um
têm um viés evidente, é preciso tam-
bém cuidado ao analisar os da cidade
rial, mas que lhe trouxe grandes dis-
sabores, O conciliador ou Da adequa- Portugal ainda funcionário da Companhia das Ín-
dias Ocidentais, instalado em Lei-
determinado viés, nitidamente re-
pressivo. Um pesquisador da História
de Amesterdão, que “eram os arqui-
vos oficiais das comunidades e nos
ção dos trechos da Santa Escritura
que parecem contraditórios entre si permite uma den, onde escreve vários livros, en-
tre os quais um glossário do idioma
tem que seguir a lição de Walter Ben-
jamin e ler os documentos a contra-
quais as desavenças internas, as dis-
putas, nem sempre estão explicita-
— que Menasseh acabou por ser pre-
terido em favor do seu rival, Isaac nostalgia saudosista tupi em latim.
Ou Dierick Ruiters, “o Mãozinha,
pelo, contra a intenção com a qual
foram produzidos. A tarefa aqui é
das”. É o que acontece com Menas- Aboab da Fonseca, que viajou para
do Estado Novo? autor de um manual de navegação
importantíssimo na época, que
juntar esse voo de pássaro que a bi-
Mas Portugal tem perde a mão numa rusga no Brasil,
SPENCER PLATT/GETTY IMAGES

bliografia te dá e, ao mesmo tempo, vai ao cárcere e consegue sair da ca-


descer às minúcias da vida privada
que esses papéis oferecem.” uma grande deia por motivos bem suspeitos, in-
fluência de poderosos, desenhava os
Em Arrancados da Terra esse tra-
balho assemelhou-se à construção diferença em relação mapas do litoral brasileiro, sabia des-
crever as cidades”. E ainda o padre
de um puzzle, no qual Lira Neto foi
encaixando as novas peças que ia ao Brasil, vocês António Vieira, que encontramos
pela primeira vez, com apenas 16
encontrando. Tinha, à partida, uma
base importante pelas pesquisas que tiveram o 25 de Abril, anos, descrevendo “a tempestade de
fogo e ferro” que cai sobre Salvador,
há muito vinha fazendo sobre o pe-
ríodo do chamado Brasil holandês enquanto no Brasil em pleno ataque dos neerlandeses
contra a cidade, em 1624, e que reen-
— a sua ideia inicial, entretanto aban-
donada, era até fazer uma biografia a transição para a contramos muitos anos mais tarde,
em 1648, tentando convencer o rei
de Maurício de Nassau, governador
da então província holandesa de democracia foi feita D. João IV da importância de atrair
os judeus de novo para Portugal.
Pernambuco.
Um dos aspectos que sempre fas- de forma negociada Lira Neto tenta “compreender es-
tes personagens nas suas contradi-
cinou Lira Neto foi a discrepância
até demais ções e ambivalências” — “o facto de
Vieira ter compactuado com o sis-

e se preferiu
SPENCER PLATT/GETTY IMAGES

tema escravocrata não invalida o


mérito da obra deste homem”. O

o esquecimento mesmo, aliás, se aplica aos judeus

Jud
que trocaram Amesterdão pelo Bra-

à memória” sil, compactuando de igual forma


com um sistema económico que se

Cemitério
No prólogo de Arrancados da Terra, Lira Neto descreve a sua visita ao discretíssimo “primeiro
cemitério da sinagoga espanhola e portuguesa Shearith Israel da cidade de Nova Iorque”, fundado
em 1656. “Hoje, as sepulturas de St. James Place são uma relíquia histórica quase ignorada”,
escreve. A cova mais antiga tem uma lápide de 1683 identificando Benjamin Bueno de Mesquita
que aqui “espera por seu Deus, que ressuscita os mortos do seu povo com piedade para viver o
sem-fim da eternidade”

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sustentava no trabalho dos escravos Curiosamente, o mesmo vai acon- çou uma campanha contra o politi- “é muito doloroso perceber que tan-
vindos de África. tecer no final do livro, quando (num camente correcto” que “foi abrindo tos séculos depois ainda estamos
Judeus que, a cada novo momento episódio ainda aberto a investigação uma caixa de Pandora” e levando à debatendo as mesmas questões.”
de crise, são uma e outra vez escolhi- por não ter sido ainda possível che- aceitação de coisas que pareciam Sem planos para regressar ao Bra-
dos como bode expiatório. Um gar a conclusões definitivas sobre inaceitáveis. sil por agora, Lira Neto viu-se forçado
exemplo, entre muitos: a 2 de Julho ele), os judeus fugidos do Brasil che- “Bolsonaro”, prossegue, “fala as a congelar o projecto da sua triologia
de 1641, 66 mercadores calvinistas gam a Nova Amesterdão, futura Nova piores bombagens e nós vamo-nos sobre a história do samba, mas aper-
residentes no Recife enviam ao go- Iorque. A partir dos documentos da acostumando a isso da mesma forma cebeu-se de que viver em Portugal
vernador Maurício de Nassau um cidade, elaborados na época pelos que nos vamos acostumando com a lhe abriu os olhos para outros assun-
documento pedindo a restrição da colonizadores holandeses, Lira Neto morte nesta pandemia. Chegou um tos. “Por mais que Arrancados da
liberdade de comércio dos judeus, percebe que “a forma como tratavam ponto em que os números já não nos Terra seja uma biografia colectiva,
descritos como “uma verdadeira os judeus que chegavam ali em situa- diziam mais nada. No Brasil morrem tenho uma certa saudade de agarrar-
peste neste país” porque “detêm o ção de vulnerabilidade, de precarie- 2000 pessoas por dia e isso não está me à vida de um indivíduo e passar
comércio do Brasil todo, e não se vê dade, é uma visão de quem tratava o na capa do jornal todos os dias. E, três, quatro, cinco anos convivendo
movimento senão nas lojas dos ju- outro como um incómodo”. mesmo assim, o homem que comanda com ele”, confessa.
deus, e não se vê açúcar senão nas Um grande problema, segundo o este extermínio em massa tem a ade- Está, por isso, a tentar perceber
mãos dos judeus”. autor, é que hoje estamos longe deste são de 30% da população brasileira. quais seriam “os personagens que
Mas a própria comunidade judaica esforço de compreender contradi- Eu fico me perguntando como é que poderiam ter um pé no Brasil e outro
tem uma capacidade muito signifi- ções e ambivalências. “As discussões naturalizamos uma pessoa como Bol- em Portugal e de que modo poderia
cativa de se dividir: “Há momentos dão-se de uma forma muito epidér- sonaro e esse tipo de discurso.” aproveitar a minha experiência de
em que se estabelece um poder e em mica, superficial, não temos a capa- Também em Portugal, onde esco- viver aqui e produzir outro livro que
que há judeus de primeira e segunda cidade para a escuta, para ouvir o lheu viver por agora, há coisas que o tivesse esse diálogo entre os dois
categoria. É interessante notar que argumento do outro, preferimos des- perturbam. “Como é que Portugal mundos, a Europa e a América”.
quando a comunidade sefardita de qualificar o adversário”. ainda permite uma certa nostalgia Para já, não quer revelar muito mais
Amesterdão começa a ascender so- Daí que veja tanta actualidade na saudosista do Estado Novo? Como é sobre os seus projectos futuros. “São
cialmente, os asquenazes que chega- história que conta. “Há muitos que que esse tipo de discurso ainda é con- coisas que estão no meu arco de pos-
vam do Leste Europeu eram vistos fazem do seu credo político uma es- siderado absolutamente normal por sibilidades. Não quero explicitá-las
de forma ameaçadora. Tinham me- pécie de religião, com uma fé inaba- vezes? Mas Portugal tem uma grande porque ainda não estão devidamente
nos posses, chegavam em condições lável na sua convicção.” Vê isso no diferença em relação ao Brasil, vocês maturadas. Mas esta imersão no uni-
mais precárias.” Brasil onde “há uns dez anos come- tiveram o 25 de Abril, enquanto no verso português talvez renda ainda
Brasil a transição para a democracia outros e bons frutos.”
foi feita de forma negociada até de-
mais e se preferiu o esquecimento à
memória. Institucionalizou-se o es-
Sinagoga quecimento quando devíamos ter
institucionalizado a memória.”
A sinagoga portuguesa de Amesterdão (na imagem em Ao mesmo tempo, para Lira Neto
baixo num óleo sobre tela de Emanuel de Witte, de 1680) era é muito claro que “a História não é
o centro da vida da importante comunidade judaica feita de verdades estabelecidas”, ela
sefardita daquela cidade no século XVI. Fugidos de nasce “das perguntas do presente
Portugal, os sefarditas encontraram em Amesterdão — que lançadas ao passado” e “o nosso
chegou a ser conhecida como a “Jerusalém do Norte” — um olhar de cidadãos do século XXI con-
ambiente favorável para poderem instalar os seus negócios diciona essas perguntas”. Inespera-
e viver abertamente a sua fé. A partir desta cidade damente, Arrancados da Terra, sendo
cosmopolita, os cristãos-novos dedicavam-se ao comércio o livro em que o historiador mais re-
marítimo transatlântico num clima de “opulência económica cua no tempo, tornou-se, de entre
[que] transformou a Holanda naquela que pode ser todos os que já escreveu, “o mais ac-
considerada a primeira economia moderna do mundo” tual, o mais contemporâneo”.
O mergulhar nos arquivos, trouxe-
lhe uma realidade tristemente fami-
HERITAGE IMAGES/GETTY IMAGES

liar: “Essa xenofobia, a construção


de um discurso de ódio contra um
determinado grupo, a dificuldade de
se colocar no lugar do outro e a visão
do outro como uma ameaça, isso me
trazia ecos a todo o instante da reali-
dade que vivemos hoje aqui na Eu-
ropa em relação aos refugiados”.
Assim como o “clima de polarização

udeus
ideológica crescente do mundo, em
que os antagonismos se explicitam
de uma forma cada vez mais ruidosa,
mais agressiva”. Olhando para trás

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 23


O homem boémio, o escritor monástico pensamento é de José Car- se relacionasse com a obra. A minha riáveis que não consigo dominar. Se
Inventor de pessoas e não de heróis, perfeccionista doso Pires, mas pode ajus- grande preocupação não foi estilís- eu quisesse fazer iria estampar-me.
da palavra, ouvido apurado para as histórias, tar-se ao trabalho do seu tica. Não senti que era um romancista Mas são referências e queria fazer
biógrafo. “O balanço é muito a fazer um exercício de estilo pegando coisas dessa dimensão.”
José Cardoso Pires é um dos nomes maiores das letras importante. O difícil é o co- em factos da vida deste homem, mas Estão lá a formação do escritor, a
meço feliz. Toda a gente diz um biógrafo que queria um estilo vi- influência intelectual, política, de

24 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021


em português. Quando a sua obra está quase esquecida,
sai Integrado Marginal, biograÄa que o recupera como
referência literária e que é também retrato de um certo
O
que a primeira frase é definitiva, seja
a primeira frase de um romance ou
de um poeta. Eu penso que é ver-
dade. O trabalho criativo tem muito
goroso que não fosse um exercício de
virtuosismo estilístico. A força estaria,
como dizia o próprio Cardoso Pires,
em desenhar a cobra e não cair na
gente como Mário Dionísio, Casto
Soromenho — a obra e a correspon-
dência com um e com o outro revela-
ram-se fundamentais —, Aquilino Ri-
a ver com o assombro. Quando o tra- tentação de lhe acrescentar patas.” beiro, a amizade que terminou mis-
mundo português no século XX. É trabalho sério balho começa bem, quando se tem A metáfora está no livro e é mais teriosamente com Alexandre O’Neill,
sorte, é exactamente como os tipos um exemplo de como Cardoso Pires a relação cordial, algo fria, com José
de Bruno Vieira Amaral, o biógrafo, obrigatório da halterofilia. O indivíduo agarra encarava a escrita, as “suas verdades Saramago que aprendeu as primeiras
para se entender um país no seu tempo. num peso descomunal, todo concen- essenciais”, como afirmou num in- letras na mesmo escola de Pires, a
trado, é claro que tem o direito de quérito à revista O Tempo e o Modo no nº14 de Arroios, onde foi colega de
desconfiar que ele está a fazer teatro, início dos anos 80: 1) que o exibicio- Luiz Pacheco, o encontro com Antó-
ele pega naquilo, são pesos brutais, nismo de estilo é como o sarampo, nio Lobo Antunes a quem passou a
Isabel Lucas vai até à linha do ombro com deter- uma doença que resulta em vacina, chamar irmão, a correspondência de
minado esforço, e depois faz o resto, tolerável na infância e perigosa na uma sinceridade e intimidade únicas
que parece facílimo. O trabalho cria- idade adulta. 2) Que só quem não es- com Maria Lamas. E cada ideia de
tivo é a mesma coisa: o que está antes creve pensa que é possível impor um cada livro, a actividade jornalística a
é sempre mais difícil do que o que estilo e uma acção. E, finalmente, 3) seguir ao 25 de Abril, as crónicas, a
vem depois.” que não conheço melhor receita para “morte branca”, os dez dias em que
A procura do “começo feliz” foi aprendizes de escritores que aquela não sabia dizer quem era depois do
sempre uma da angústias do autor de que se contém neste provérbio co- primeiro AVC que resultaram no livro
O Delfim. A partir daí ganhava ba- reano: “quando desenhares uma co- raro que é De Profundis Valsa Lenta.
lanço, talvez menos o de um haltero- bra não lhe panhas patas, nem que E tudo se lê com a fluidez de um ro-
filista do que o do ourives ou do relo- seja para a embelezares”. mance, com a personagem-protago-
joeiro, atrás da palavra exacta, a que A dificuldade do biógrafo, neste nista a ganhar um corpo e uma pro-
não destoasse no pulsar do texto. E caso, também tinha a ver com a quan- fundidade numa grande inteireza.
Integrado tinha de quer aquela palavra porque tidade de informação. Há muito ma- Das cabeçadas “à Cais-do-Sodré” que
Marginal, não podia haver uma palavra a terial. Além dos livros, da correspon- ia distribuindo por quem o ofendia,
Biografia de mais. dência, das crónicas, reportagens nos à sova a Batista-Bastos por ter abor-
José Cardoso Como é que esta procura angus- jornais, muitos dos que os conhece- dado Edite de maneira que ele não
Pires tiada se enquadra no perfil do boé- ram estão vivos. Era preciso domar o admitia, passando pelas postas de
Bruno Vieira mio, do noctívago frequentador de excesso de informação, um monstro pargo — o peixe preferido que gostava
Amaral bares, do rufia que distribuía cabeça- que pode levar à perdição do biógrafo. de comer em Lisboa ou quando se
Contraponto das a quem o melindrasse mais do “Desde o início percebi que ia ter to- refugiava na Caparica para escrever
que a conta e que preferia a compa- neladas de informação e que o grande — ou pelo sofrimento, calado, com
mmmmm nhia dos malandros da rua à dos aca- desafio era evitar que isso me impos- que recebia algumas críticas. A ou-
démicos, comportamento que aju- sibilitasse de contar uma história, li- tras, respondia cáustica ou mesmo
dou a criar uma caricatura que, re- mitando-me, quase, a um despejar fisicamente.
fere o seu biógrafo, não descolou do informação”, admite Vieira Amaral, Mas desiludam-se os que quiserem
A ambiguidade, o paradoxo, rosto do escritor? Não estamos diante que seguiu a cronologia da vida e da encontrar revelações escandalosas.
a permanente luta interna de um homem de retrato fácil. A am- obra, recuando pouco na narrativa “Tive acesso a pormenores que não
marcaram os 73 anos de vida biguidade, o paradoxo, a permanente dos antepassados, só até ao dia do cabiam na biografia, alguns episódios
de um dos escritores mais luta interna marcaram os 73 anos de nascimento do pai, o suficiente para rocambolescos que não acrescenta-
marcantes e desalinhados vida de José Cardos Pires, um dos se perceber de onde vem e a sua rela- vam nada”, refere o biógrafo. “Não
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da literatura portuguesa escritores mais marcantes e desali- ção conflituosa com o mundo rural. foi para proteger nenhuma imagem,
do século XX nhados da literatura portuguesa do Ele é o neto do “Zé dos bois”, filho porque se alguém se quiser armar em
seculo XX. de José António, que por não te ape- juiz e julgar o homem ou o escritor do
“A vida dos bares, beber e andar à lido recebeu o dos padrinhos, Neves. ponto de vista moral, pode fazê-lo
pancada não é a escrita dele. Ele não O pai saiu novo de São João do Peso, com a informação que está no livro.
é um Bukowski. A escrita dele é de concelho de Vila de Rei, para Lisboa, Eu não o quis fazer enquanto bió-
outra ordem. Até podia haver ali uma foi marçano numa leitaria, andou na grafo. Ponho um ou outro episódio
confluência. Não é o caso. Ele era escola comercial e inscreveu-se na que podem ser reveladores da perso-
muito cerebral. Não era boémio na Escola dos Alunos Marinheiros e fez nalidade, e algumas curiosidades,
escrita. Pelo contrário. Era quase carreira na Marinha. Casou em segun- mas quis evitar abastardar a biografia,
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monástico na escrita. Não bebia das núpcias com Maria Sofia Cardoso tornando-a mera sucessão de episó-
quando estava a escrever, isolava-se. Pires, também de Peso da Régua, filha dios bizarros. O essencial está lá, per-
São dimensões separadas dentro da de um agricultor abastado. E “às 16 mite uma visão completa de quem foi
mesma pessoa. A certa altura, teve horas do dia 2 de Outubro de 1925, na este homem, nunca me desviando do
dificuldade em fugir dessa imagem aldeia de São João do Peso, nascia o importante: a obra, que foi o que fez
que se lhe colou. Mas a obra não é primogénito do casal, um rapaz a de Cardoso Pires, Cardoso Pires. Quis
isso. Há coisas sobre os bares, sobre quem puseram o nome de José Au- não só perceber este homem e as cir-
a vida nocturna, no Delfim e na Ale- gusto Neves Cardoso Pires.” O rapaz cunstâncias em que trabalhou e foi
xandra Alpha, mas a forma como da cidade foi nascer ao campo. escritor, mas também o que era ser
descreve esses ambientes é outra O trabalho de Vieira Amaral passou escritor em Portugal na segunda me-
coisa”, diz Bruno Vieira Amaral, o por dividir o livro em unidades pe- tade do século XX, com os condicio-
escritor que passou três anos a traba- quenas, e em cada uma ia “entrela- namentos políticos, de censura, com
lhar na biografia agora publicada çando toda as dimensões” de uma os grupos e correntes ideológicas e
com o título Integrado Marginal, ex- vida, explica. “Tive que ir ali arran- estéticas que existiam. Quis perceber
pressão retirada do livro Cardoso jando truques, artifícios que não fos- esse ecossistema, usando como linha
Pires por Cardoso Pires a partir de sem escandalosamente artificiais. narrativa a história de um dos maio-
uma entrevista a Artur Portela, em Espero que os leitores tenham a sen- res escritores dessa época.”
1991. “Quando muito, talvez nunca sação de facilidade, de que as coisas Nesse trabalho escolheu apagar-se
tenha passado em toda a minha vida estão ali de forma natural, harmo- como biógrafo. “No capítulo do Del-
de um integrado marginal ou coisa niosa”. Como estímulo, havia algumas fim há uma intervenção do biógrafo
que se pareça... para aí, sim: inte- biografias de que gosta muito. “Uma quase para defender o romance. As
grado e marginal.” das minhas preferidas é uma do fun- críticas que lhe fizeram falharam
Integrado Marginal tem a estrutura dador da igreja Mormon, Joseph completamente o alvo. Era olhar para
de uma biografia clássica, contruída Smith, por uma historiadora, Fawne a pulga e não ver o cão. Enquanto
cronologicamente e tendo como M. Brodie [No Man knows My History, biógrafo senti-me na obrigação de me
eixo a obra bissexta de Cardoso Pi- The Life of Joseph Smith]. Foi em bio- chegar à frente e defender o meu bio-
res. Divide-se em 53 capítulos, cada grafias como essa que apontei o meu grafado. No resto procurei o apaga-
um como unidade semi-autónoma alvo, olhei para essas. Eu não quis mento. O meu olhar já está na cons-
num puzzle cuidadosamente cons- fazer uma biografiazinha. Quis fazer trução. Quis evitar especulações. Em
truído onde nunca perdemos o pé uma grande biografia. O Ruy Castro, relação aos ambientes que ele fre-
do homem, mas com o subli- para mim, é a maior referência. Mas quentava nunca tentei o exercício
nhado no autor. Um autor que se atenção: é muito difícil. Gosto muito mediúnico de tentar ver pelos olhos
indaga a si mesmo, à sua escrita, enquanto leitor, há ali coisas, da mi- dele.” Isso, apesar de ter feito o péri-
ao país e à cidade onde vive, núcia, do rigor, que tentei que a bio- plo pelos lugares de Cardoso Pires.
crítico inclemente da classe grafia tivesse, mas em relação ao es- “Usei essas coisas, mas não quis que
social a que pertence — a da tilo, aquele é o dele, depende de va- isso se visse; não quis mostrar as cos-
burguesia conformada —, que turas, quis dissimulá-las.”
se rebela contra o provincia- Nesse processo, sentiu-se um
nismo, luta pela democracia aprendiz, também, da obra de Car-
sem obedecer aos dogmas do doso Pires, de uma certa maneira de
partido onde militou — o PCP escrever que aprecia. “Ter uma espé-
—, amigo do grupo de católi- cie de ouvido musical para a escrita,
cos progressistas, ele que para o que os outros dizem, mas tam-
sempre foi ateu apesar — ou bém para o próprio funcionamento
em reacção — do catoli- “É muito difícil passar da frase, a sua organização, a sua mu-
cismo obsessivo em que a sicalidade. Quando li declarações
mão educou; um homem três anos com uma dele sobre essas questões estilísticas,
da rua, o marialva que, estava a receber isso não enquanto
apesar das muitas mu- pessoa e não ficar biógrafo, mas enquanto escritor.”
lheres, amava a sua, a Sorri. Fala agora da relação com
de sempre, Edite, o “Es- a sentir que ela faz Cardoso Pires, que nunca conheceu.
quilo”. Ele era o “Zé Car- Sente que ele continua a espreitar-lhe
doso Uísque”, como sa- parte do nosso por cima do ombro quando escreve.
bia que o alcunhavam, “Parece que há uma nuvem de Car-
“com uma paixão não círculo. Tenho a doso Pires à minha volta. É uma pre-
correspondida pelo ci- sença quase gasosa aqui em cima. É
nema”, alguém nde- sensação que fiz um como se estivesse disseminado pelo
pendente, que prezava ar. Tento perceber o que acharia do
a liberdade e cujo prin- amigo que já morreu. que estou a escrever. Será que estou
cipal desígnio, escreve o a ser um bocadinho sentimentalóide?
biógrafo, “sempre fora a Não sei que relação Será que estou a puxar à lágrima?”
seriedade.” Em Integrado Ao fim de três anos, feito o livro,
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Marginal temo um escri- teríamos se nos uma pergunta: gosta dele? “Gosto!
tor incómodo, como Gosto dele com os defeitos dele, com
achava que todos os tivéssemos cruzado as muitas qualidades que tinha. É
escritores deveriam muito difícil passar três anos com
ser. ou se fôssemos uma pessoa e não ficar a sentir que
“Fiz aquilo que gosto ela faz parte do nosso círculo. Tenho
de ler numa biografia”, contemporâneos. a sensação que fiz um amigo que já
explica Bruno Vieira Ama- morreu. Não sei que relação teríamos
ral. “Era fundamental que Não sei se ele se nos tivéssemos cruzado ou se fôs-
a obra servisse de eixo, e semos contemporâneos. Não sei se
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que tudo de alguma forma gostaria de mim” ele gostaria de mim.”

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 25


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MIGUEL MANSO
apenas que o fez devido a alguns habitantes do lugar de viverem de

Livros problemas pessoais, entre os quais


o de ter ficado sem emprego. O
povoado chama-se — talvez de
maneira incestuosa. Depois de
vários acontecimentos, os mesmos
habitantes que os repudiaram com
modo metafórico — La Escapa (de nojo, foram os que de imediato
escapar?). lhes saquearam todos os pertences
Naquele mundo fechado e rural, que acharam úteis, e que
Nat é uma forasteira, uma intrusa; destruíram o resto numa fogueira.
Ficção é uma mulher sozinha que chega Aos poucos, e ao longo da
de fora, por isso se torna numa narrativa, o pequeno povoado de
A intrusa presença incompreensível para
aqueles que vivem em La Escapa
La Escapa vai-se transformando
numa espécie de personagem que
e o desejo desde que eram crianças, e que há interage com Nat. Aquele lugar
muito tempo só pensam em sair de opressor, quase claustrofóbico —
Romance que arrisca lá. Mas ela não é a única que, de apesar dos largos horizontes que só
certa forma, vive na margem o monte El Glauco mancha —, tudo
desassossegar o leitor daquela comunidade rural: há vai tornando hostil, confuso e
contrapondo o poder de “uma família de ciganos que ocupa complicado, obrigando a que a É esta a desconcertante singularidade: fontes eruditas, chavões
comunicação da linguagem um velho monte em ruínas”, há a protagonista do romance não se publicitários, receitas culinárias, leituras de infância, provérbios
ao risco de incompreensão velha demente que “é uma espécie confronte apenas com os outros
de bruxa, capaz de predizer o habitantes, mas também consigo
e de exclusão. José Riço própria, com os seus fracassos e Adília Lopes (AL), sentidos. É indecidível muitas
futuro e de ler o pensamento”, há o
Direitinho hippie (que tal como Nat também inseguranças, com os seus medos isto é, Maria José vezes se se está num plano retórico
Um Amor veio da cidade), e há ainda o primitivos. Mas tudo se complica Fidalgo de ou literal. “Isso tudo é pose”. Será?
enigmático alemão. Depois há na ainda mais com uma paixão Oliveira, publicou A revista Relâmpago organizou
Sara Mesa
terra jornaleiros, gente que vai e amorosa exacerbada, irracional, Dias e Dias, um número com diversos autores a
(Trad. Miguel Serras Pereira)
Relógio d’Água vem de acordo com “as datas do por um homem sem qualidades escrito aquando partir da questão: como se faz um
calendário rural”. A personagem aparentes, e que vai provocando do confinamento. poema? A resposta de AL é a mais
mmmmn do senhorio (que lhe oferece um em Nat a descoberta de lugares “A minha mãe crua, real, desarmada. Deixa o
cão que espoletará a fúria do recônditos que ela desconhecia, chamava-se Maria leitor mudo, engolindo em seco
Num ambiente povoado), com os seus modos escuras moradas de fantasmas: o José”, diz. Até uma tia-trisavó tinha perante tamanha exposição
tenso de grosseiros e sempre provocatórios, desejo como ponte para os o mesmo nome. É uma mesma autobiográfica. A sua poesia
silêncios, Um acaba por, simbolicamente, ser a tormentos do passado. linhagem afunilando o caos, como diverte e/ou dilacera. Não há nela
Amor, da expressão das opiniões e dos Com o decorrer deste modo a epígrafe deste livro: “a poesia qualquer lirismo ou sujeito que
espanhola Sara julgamentos dos outros habitantes. lento de narrar, desta escrita que desentropia”. Também a enuncie. Diferente da polarização
Mesa (n. 1976), Numa das vezes em que se dirige a quer desassossegar sem pressa o turbulência fica confinada. binária homem-mulher, é uma voz
arrisca Nat, diz-lhe: “Pensam que isto é leitor, Nat como que atravessa um Entropia prende-se com a Segunda impessoal, uma terceira via
confrontar o tudo um céu cheio de estrelinhas à processo de metamorfose, uma Lei da Termodinâmica e a distinta do paradigma tradicional
leitor com zonas noite e cordeirinhos a balirem de transformação quase radical; terminologia científica abunda na da ginocrítica. Como escreve Sónia
cinzentas da moral; ao mesmo manhã. E depois vêem que há aquilo que era invisível, aquilo que autora. O título, Dias e Dias (e não Rita Melo: “feminino e masculino
tempo que, num hábil jogo de mosquitos, que há chuva, que há parecia estar fora, está agora dia após dia ou dia a dia), é sintoma representam-se na escrita de Adília
equívocos e de mal-entendidos, ervas daninhas.” Aquele é um lugar dentro dela e sacode-a. Como se de um continuum que insiste mais Lopes através do uso de
aborda os limites da linguagem, da onde “cheira a fumo e a flor de tudo se tivesse desordenado. do que se desenvolve. O mesmo estereótipos e clichés manuseados
sua incapacidade, e da sua função laranjeira e também a bosta”. Percebe que havia nela partes traz segurança — “Estar em casa/ ironicamente”. Nada disto invalida
na comunicação. Apesar de Nat conhecer já bem maldosas, partes desconfiadas, que estar dias e dias”, por entre os a consciência apontada da
Nat, a protagonista, é uma jovem todos os caminhos do povoado, estavam adormecidas; agora objectos de que tanto gosta. natureza da sociedade falocrática e
tradutora que deixa a cidade e se tinha sempre a impressão de que despertaram. “O mal cresce, Quase terminou Física. Por desigual em que vivemos. Um
vai instalar num pequeno povoado alguma coisa lhe fugia do ramifica-se dentro de si”; algo se causa de uma psicose breve exemplo da voz da terceira
rural, onde aluga uma casa. A entendimento, de que havia coisas revolve no seu interior, vai de alto a esquizo-afectiva de que fala sem mulher: Poetisa-fêmea Cliché em
monotonia do campo em redor — que ela não era capaz de ver nem baixo, algo que a sacode, que dá a rodeios, foi aconselhada a papel couché (Dobra. Poesia
uma paisagem de oliveiras, de entender, quase como uma volta uma e mais outra vez, “tudo interromper os estudos, que reunida, Assírio&Alvim, 2009).
sobreiros, azinheiras, e também de espécie de mistério, de algo em menos tempo do que leva para retomaria numa área distinta — Não se sabe se se trata ou não de
espinheiros e sabugueiros — é não-dito. Isto acaba por, de certa gastar 125 mililitros de dentífrico”. Literatura e Linguística Portuguesa uma escrita feminina (nunca se
somente alterada pelo contorno no forma, ser materializado numa Em Um Amor, Sara Mesa, na sua e Francesa. Contudo nunca pôs de tendo estabilizado esta definição);
horizonte do El Glauco, “um monte pichagem que ela vê numa casa escrita sólida e ágil, traz para o lado a intenção de escrever. ela é em termos de ginocrítica, a
baixo de arbustos e matagal que abandonada: “Castigo de Deus”, e centro do romance a Publicou muito. É desde sempre voz de uma terceira mulher que
parece desenhado a carvão sobre o também a palavra “Vergonha”, impossibilidade da lógica da figura controversa. Estamos ou aqui habita um universo antes de
céu nu”. O solo é árido e pobre, e as tudo escrito em letras vermelhas. linguagem responder à lógica da não perante uma produção poética mais doméstico e de vários
estevas são as únicas flores que Saberá depois que esta é uma realidade, contrapondo o poder da (mesmo em prosa)? Pode alguém cenários contíguos, universo esse
enfeitam a terra. Pouco se sabe da história antiga, silenciada, de que comunicação ao risco da com um problema de saúde do passado recente ou da infância
vida de Nat até ao momento em se não fala amiúde: dois irmãos, incompreensão. psíquica suscitar algo mais que o vivida, universo convocado pelo
que ela se muda para aquele lugar, forasteiros, foram acusados pelos riso, a surpresa de certos presente da enunciação.
DR
tocadilhos ardilosamente achados? A sua escrita atravessa e arrebata
Poesia Na faculdade começou a publicar várias origens e instala um
(edição de autor): Um Jogo Bastante sincretismo singularíssimo. Num
Tenho sessenta Perigoso (1985). Outras edições de
autor houve. Muitas editoras,
mesmo plano aquelas conectam-se
sem hierarquizações, e é esta a sua
anos maiores ou menores, mas sempre
especiais, a editaram: Frenesim,
desconcertante singularidade:
fontes da tradição erudita que a
adolescentes Hiena, & etc., Black Son Editores, autora domina, chavões
Angelus Novus, INCM, Mariposa publicitários, receitas culinárias,
A sua escrita atravessa Azual, Averno, Relógio d’Água, leituras de infância (Enid Blyton,
Assírio & Alvim. Foi a partir da livros da Anita ou da Condessa de
e arrebata várias origens reunião da obra que a sua Ségur), provérbios. Toda esta
e instala um sincretismo relevância se tornou sensível. diversidade, numa voz desprovida
singularíssimo. Maria Especializou-se em Ciências de qualquer toque pessoal, voz
Conceição Caleiro Documentais (1995) na Faculdade que um sujeito sem sujeito,
de Letras de Lisboa. Contribuiu amalgama, interrompendo muitas
Dias e Dias para a organização dos espólios de vezes a meio o discurso,
Adília Lopes Pessoa, Nemésio e José Blanc de trocando-lhe as voltas. É
Assírio & Alvim Portugal. Tudo isto, naturalmente, habilidosíssima na recriação
Sara Mesa traz para o centro do romance a impossibilidade a subsume num universo literário e distanciada do lugar comum
de a lógica da linguagem responder à lógica da realidade mmmmn da ciência da linguagem. Dos jogos expectável.
com as palavras, com sons e os Vários autores sérios, nem
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DR
sempre reconhecíveis, subjazem orquestrações dramaticamente
ao texto, outros mais à mostra: Ruy
Belo, um dos poetas que mais
admirava: “No Jardim Zoológico
Música inatacáveis (ainda que sejam mais
Robert Kirby, o orquestrador de
Nick Drake, que Rogério Duprat, o
havia umas casinhas de Portugal mestre orquestrador do
do Pequenitos (...) Eu adorava ir tropicalismo brasileiro, o que, de
para lá. Nunca esqueço o problema resto, confere uma camada
da habitação”. Este é um título de enriquecedora às canções).
Ruy Belo. E Sophia é uma autora Pop Neste álbum onde o humor
com quem tece uma relação espreita a intervalos regulares
intertextual fortíssima, desfocada,
quase fetiche — “Beja: ‘Cortaram os
As micro (como não adorar a sequência em
que, em Quero tanto, um micro solo
trigos/ Agora a minha solidão vê-se fantasias pop de guitarra “psicadelicamente” tão
melhor” (in O Nome das Coisas). No empenhado é sucedido por um
poema de Sophia quem fala é soror do Rapaz Ego épico solo de flauta sacado em
Mariana Alcoforado. Onde Sophia teclado Casio?), encontramos um
vê a paisagem, a solidão espelhada Rapaz Ego é Luís Montenegro autor a desenhar-se nas fantasias
na planura, Adília vê o seu corpo, o a solo, é o co-fundador Luís Montenegro tem a cabeça cheia de ideias e sabe como que imagina e a construir-lhes uma
rosto. A soror torna-se num de as pôr em prática banda-sonora tão rica e inventiva
alter-ego de Adília.
dos Salto a ir de Tânger quanto eficaz.
A escrita de Dias e Dias pode ao Brasil, da pop barroca São oito canções, sendo que uma
traduzir-se como dentro de casa e ao psicadelismo, com um pé surrealismo feito matéria pop. E é como na pop barroca de Grão delas, Canto d’Ourique, é um curto
da janela, frente ao Hospital Dona de dança “funkalhado” aqui que tudo se torna Mestre, a primeira canção, que vai instrumental que concentra em
Estefânia: as árvores que se vêem. definitivamente interessante. Luís do pesadelo musicado a guitarra Mellotron o ambiente dos álbuns de
pelo meio. Mário Lopes
A epígrafe de Cristovão Pavia foi Montenegro tem a cabeça cheia de acústica e arranjo de cordas, voz a exótica de Lee Baxter ou Martin
escolhida à exacta medida: “havia Vida Dupla ideias e sabe como as pôr em descer ao falsete, sintetizador a Denny. No total, a viagem completa
grandes tílias aromáticas (...) / e prática com precisão. Cada uma dobrar as orquestrações, até chegar fica às portas dos 30 minutos de
Rapaz Ego
pedrinhas brilhantes coloridas / Cuca Monga das canções de Vida Dupla é uma a dança para prog-rockers a duração. Nada de problemático na
conforme a luz”. A poética da micro sinfonia pop, não no sentido iniciarem-se no funk. Há viagens de duração em si — Younger than
autora é uma poética da atenção. mmmnn Brian Wilson do termo (não são roteiro bem delineado, como na Yesterday, obra prima dos Byrds
Sendo que a poesia alinha o caos: “elegias adolescentes a Deus” o que entusiasmante Crime em Tânger, de editada em 1968, não ultrapassa os
“Arrumo as minhas coisas Já sabíamos que aqui encontramos), mas no sentido ritmo bamboleante, com o bailado 28 —, mas saímos desta Vida Dupla
minuciosamente. Sou doméstica”. havia vida Foxygen ou MGMT da coisa: o luxuriante das guitarras e com a sensação que tudo aconteceu
É toda a lógica da desentropia diversa, vida Rapaz Ego cola, adapta, sintetizadores do rock psicadélico rápido demais. Gostávamos que o
como arte poética. múltipla a latejar recontextualiza, harmoniza uma da Anatólia turca (do histórico Rapaz Ego se demorasse um pouco
É uma tarefa sem fim. São oito em Luís diversidade de linguagens e Erkin Koray à recente Gaye Su mais, que se fixasse um pouco mais
quartos, pode andar-se Montenegro, o expressões musicais, vaga ou Akiol), ou, como em Que isto sirva e demoradamente pelos tantos sítios
infinitamente às voltas. Ou músico que assina como Rapaz Ego. directamente relacionadas com as Ponto cruz, que são MPB e por onde nos conduz. Só para
também ficar sentada num quarto Para o perceber, bastava prestar décadas de 1960 e 1970, e pinta com tropicalismo evocados deste confirmar que sim, que existem
sem luz a cismar (palavra reiterada atenção aos Salto, centrifugadora elas os cenários cantados. Marvila (assim o diz a letra), com mesmo, e que não foi um sonho
na autora). Ou não, apenas a pop que fundou no Porto, em 2007, Há sempre muito a acontecer, balanço bem medido e estranho que nos aconteceu.
pensar nos que amou e já com Guilherme Tomé Ribeiro,
morreram e cuja memória bastava, avancemos no tempo,

29 JUNHO 19:30
nenhuma música por mais linda ouvi-lo entre esse delicioso delírio
que seja esmorece. Sucede-se a do (primeiro) confinamento que foi
enunciação de múltiplos cacos Cuca Vida, o álbum colectivo criado
reparáveis (o pombal de loiça que à distância pelo pessoal ligado à
estava partido mas que ficou Cuca Monga, a editora/colectivo
impecavelmente colado com associada aos Capitão Fausto (onde
UHU). Os nomes próprios são encontramos também Luís Severo,
sempre usados. Seguem-se os Zarco, os Reis da República ou os
histórias de outros tempos. A Ganso), e bastava testemunhar
criança Adília viveu sempre entre como, depois de ver a sua estreia
velhos sem outras crianças, velhos
que recordava as suas histórias de
em longa duração, enquanto Rapaz
Ego, adiada pela pandemia, criou
CARTA BRANCA AO REMIX
crianças de há 30 a nos atrás. E que no seu lugar um EP de latinidades PETER RUNDEL direcção musical
morreram. Com mais ou menos intitulado Rapaz Ego Canta durante
humor, contrariado aliás muitas La Siesta. Quando nos chega Vida obras de LUCIANO BERIO,
vezes nas últimas linhas do poema, Dupla, o referido longa-duração de GIUSEPPE VERDI, FRANCO DONATONI,
o que instala uma cesura estreia, sucessor de Gente a Mais, SALVATORE SCIARRINO e outros
inabsorvível que a alguns leitores, editado no já distante ano de 2016,
ou admiradores, desconforta. já estamos, portanto, preparados.
Como resgatar tamanha Mas, ainda assim…
infelicidade ou divertido Ainda assim, somos
desajuste? surpreendidos com esta colecção
Este último livro dá exemplos de cuidadosamente construídos,
com histórias de outros tempos, primorosamente produzidos
figuras pictoricamente delírios pop de um homem à solta
convocadas: “aos 18 anos fiz o pelo lado B da vida que fervilha em
Propedêutico (para poder entrar si (com o apoio, enquanto
na Universidade), nas férias fui a instrumentistas, de Guilherme
Paris com uma amiga”. Terá ido no Tomé Ribeiro ou de vários dos
sud-express, iniciaram-na no Capitão Fausto). Há estripadores no
xadrez durante a viagem, tarefa corredor de casa, bolsos vazios em
levada, como quase sempre por AL noite de sedução no Bairro Alto, um
muito a sério, até anotou a posição super-herói em Tânger (“quero que
das peças para continuar, contou a fique bem claro, Rapaz Ego me
um pequeno a estória do patinho salvou a vida”, versos mantra
feio umas cinco vezes, “depois já ouvidos algures), Cartola e Milton
todos tínhamos sono. Estas Nascimento citados em canção de
recordações são boas. Mas os meus balanço tropical a condizer, análise WWW.CASADAMUSICA.COM / 220 120 220 APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA

18 anos não foram bons”. poética onde Miguel Torga a queijo Seja um dos primeiros a apresentar hoje este jornal completo na Casa da Música e ganhe um convite duplo para este
concerto. Condicionada à disponibilidade da sala, a oferta é limitada aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um
convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.
É quase sempre assim. “Tenho brie são elementos postos lado a
sessenta anos adolescentes”. lado. Fantasia e biografia,
ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 27
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publicamente um estado das entrada de Nine Antico nesse


coisas inaceitável num estado de clube, com um primeiro filme de
direito moderno. Mas Alexander tonalidades autobiográficas à volta
Nanau não é idealista nem utópico de Sophie (excelente Sara
e sabe que um estado de direito Forestier), aspirante a
moderno é mais frágil do que desenhadora que procura o
parece, sobretudo em países onde sentido da vida pelo meio de
a tradição democrática nunca se empregos de ocasião e frustrações
enraizou. O cinema pode mudar constantes.
alguma coisa? É a pergunta que A fotografia a preto e branco e a
Colectiv faz e à qual não dá — omnipresença da música (o
porque não quer nem pode dar — “mote” de Playlist é True love will
uma resposta. Nanau ergue-nos find you in the end do
um espelho a nós, “colectivo” de cantor-compositor de culto Daniel
espectadores, “colectivo” de Johnston) remetem
cidadãos, e mostra-nos as coisas inevitavelmente para Philippe
como elas são, num filme que é ao Garrel — os desencontros amorosos
mesmo tempo elogio da que formam parte da trama ainda
integridade, demonstração do seu o sublinham mais. Mas a referência
preço e questionamento sobre a mais assumida é a Frances Ha de
nossa disponibilidade para o Noah Baumbach, embora a história
pagarmos. O que o pai de Vlad de Sophie seja mais triste, feita de
Voicolescu diz no fim do filme — micro-agressões quotidianas
“como é possível?” — é algo que registadas com uma ironia mordaz
continua a ser dito hoje muitas à beira do desespero, e a
A morte de 64 pessoas no incêndio de um clube de Bucareste em 2015 está no centro de Colectiv vezes. E Colectiv sugere que personagem seja mais “áspera” e
enquanto isso continuar a ser dito, menos estouvada.
os castelos não deixarão de ser Playlist é menos uma narrativa
Todos já tivemos a ambição de Vlad Voicolescu, nas suas erguidos sobre areia. fluida e mais um “agregado” de

Cinema tentar construir algo para o futuro


e a experiência de perceber que a
vida se encarrega de nos trocar as
tentativas de reformar o sistema.
Colectiv é um diálogo construído
na montagem entre ambos os
Os desastres
episódios que desenham um
retrato de mulher tirado à la
minuta, mas que, à imagem da sua
voltas, um pouco como o Dom percursos, pontuado a espaços heroína ainda em devir, disparam
Quixote de Cervantes e a sua luta
contra os moinhos de vento. Tudo
pelo quotidiano de uma das
sobreviventes, que perdeu o uso
de Sophie para todo o lado, à procura de uma
identidade própria. Em parte, é
aquilo que nos afincamos a de uma mão e vive com um corpo por aí que este filme difuso e
Estreiam construir e a defender pode desfigurado pelas queimaduras. A A estreia na realização derivativo adquire um assinalável
desaparecer de um momento para equipa de Nanau remete-se a um da desenhadora Nine Antico capital de simpatia: Nine Antico
Castelos o outro, levado pela maré como
um castelo de areia que fizemos na
papel puramente de observação e
registo, sem fazer perguntas nem
é uma Frances Ha à gaulesa, não teve problemas em assumir as
suas fraquezas e joga com elas a
difusa e derivativa.
de areia praia. Colectiv é um filme sobre intervir; o que se construíu na
Jorge Mourinha
seu favor. Mas isso não chega para
esses castelos de areia, usando mesa de montagem é uma espécie tornar Playlist mais do que um
Um dos documentários mais uma tragédia como ponto de de thriller seco em tempo quase Playlist filme simpático, navegando à vista
partida: a morte de 64 pessoas no real, uma investigação jornalística entre o banal e o curioso.
falados dos últimos meses, De Nine Antico
incêndio de um clube de Bucareste semelhante à dos grandes filmes Com Sara Forestier, Laetitia Dosch
é um thriller seco em tom em 2015, e o escândalo público liberais dos anos 1970, sobre a luta
de filme político cruzado que se seguiu quando se descobriu de David contra Golias, da verdade mmnnn O exílio
de serviço público. o estado lamentável do sistema de contra o capital.
Jorge Mourinha
saúde romeno, minado pela
corrupção, pelo compadrio e pela
Não se encontrarão em Colectiv,
que foi nomeado para o Óscar de
Existe uma curiosa tradição
francesa de ver autores de
no museu
Colectiv — Um Caso ofuscação. melhor documentário (e que o banda-desenhada (ou, como hoje
O documentarista Alexander teria merecido muito mais do que se diz, “novelas gráficas”) passar à Encontro entre a crise
de Corrupção
Colectiv
Nanau acompanhou a equipa do A Sabedoria do Polvo…), realização — o caso mais evidente dos refugiados sírios e a arte
jornal de Bucareste Gazeta formalismos nem dos últimos anos é Marjane contemporânea. Luís Miguel
Documentário de Alexander
Sporturilor, durante as experimentações; este é um filme Satrapi, mas Joann Sfar ou Riad
Nanau Oliveira
investigações que revelaram a embalado pela necessidade do Sattouf também experimentaram o
mmmnn dimensão do escândalo, e a equipa serviço público e que confia na cinema, com melhores ou piores O Homem que Vendeu a sua
do ministro interino da Saúde, energia de denunciar resultados. Playlist marca a Pele
The Man Who Sold His Skin
De Kaouther Ben Hania
As estrelas Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara Com Yahia Mahayni, Dea Liane,
Koen deBow, Monica Bellucci

mnnnn
Encontro entre a crise dos
Colectiv- Um Caso de Corrupção mmmnn mmmnn — refugiados sírios e a arte
Entre a Morte mmmnn — mmmnn contemporânea (ou, enfim, uma
O Homem que Vendeu a sua Pele mnnnn mnnnn — ideia mais ou menos incipiente de
“arte contemporânea”), O Homem
Luca mmnnn — — que Vendeu a sua Pele é uma
O Mauritano mmnnn mnnnn mnnnn co-produção internacional que tem
Miss Marx mmmmn mmnnn mmmnn ao leme uma realizadora tunisina —
e apesar das suas características de
O Movimento das Coisas mmmnn mmmmn mmmmn “euro-pudim” (ou “pudim
Missão Inesperada — mmnnn — euro-árabe”), foi como filme
Nocturno mmmnn mmnnn mmmnn tunisino que se impôs, merecendo
estar entre os nomeados para o
Pecado — mmnnn mmnnn
ultimo oscar de “melhor filme
Playlist mmnnn mmnnn mnnnn internacional”. A chave do filme,
Ao Ritmo de Washington Heights mmmnn — — que vale o que vale (e na sua
legibilidade imediata não vale
Supernova mmmmn — mmnnn
Uma aspirante a desenhadora à procura do sentido da vida muito), é a constatação, dita num
a Mau mnnnn Medíocre mmnnn Razoável mmmnn Bom mmmmn Muito Bom mmmmm Excelente
diálogo, de que actualmente a
28 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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As mercadorias em vez das pessoas...

tendência geopolítica é para modus vivendi do capitalismo


colocar entraves à circulação de global) tem tendência a ir
pessoas enquanto se retiram os mergulhando, cada vez, mais no
entraves à circulação de vazio do cliché telegrafado ao
mercadorias. E é assim que Sam (o espectador. E, se as cenas que na
actor Yahia Mahayni), sírio teoria seriam mais significativas (as
obrigado a deixar o seu país por “exposições” do corpo de Sam),
supostas ofensas ao estado, se acabam por ser de uma banalidade
deixa cair nos braços de um irredimível, a questão da
conceituado, e conceptual, artista circulação dos refugiados e
plástico. O rapaz torna-se exilados (mais as referências à
“mercadoria”, a “obra de arte” é guerra civil síria, ao ISIS, etc) sofre
uma grande tatuagem nas suas também, de maneira conexa, por
costas, e com isso ele pode nunca se autonomizar, parecer
conseguir o visto para entrar na sempre mera roda de uma
Bélgica e ir à procura da sua engrenagem que a toma por
ex-namorada. pretexto, que a “sinaliza” (ou seja,
É difícil dizer se o filme tem algo faz por dar a impressão de ter
de concreto a exprimir seja sobre a alguma coisa a dizer sobre o tema)
sorte dos refugiados políticos sem a explorar de maneira
(sírios ou outros) seja sobre “a arte relevante. Sobram algumas cenas,
contemporânea”. A questão dos onde a simplicidade se revela afinal
refugiados parece sobretudo uma mais eficaz do que a
forma de pôr as coisas a mexer, grandiloquência: por exemplo,
enquanto o tempo que o filme uma conversa pela internet entre
perde com observações Sam e a namorada onde os “delays”
supostamente lúcidas sobre o do sinal criam burlesco e suspense.
cinismo da “arte contemporânea” Mas é muito pouco, e sobretudo é
(tomada como uma miniatura do muito decepcionante.

HAMSTER SÃO LUIZ

CLOWN
TEATRO MUNICIPAL
23 JUN A 4 JUL

CINETEATRO
UMA CRIAÇÃ O DE LOULETANO
RICA RDO NEVE S-NE VES
16, 17, 18 JUL

E RUI PAIX ÃO
© fotografia: Estelle Valente / Teatro São Luiz · art designer: José Pinheiro 2021

CENTRO DE ARTE
DE OVAR
30 JUL

ESTRUTURA
FINANCIADA POR

teatrodoelectrico.com
PARCEIROS

ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 29


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Acção Paralela Meditação na Pastelaria


António Guerreiro Ana Cristina Leonardo
A paisagem literária Ponha a mão na boca
Q C
uem, hoje, se dispõe a acompanhar e o lugar escasso que a literatura ocupa no omeçou o Verão. Ninguém diria.
regularmente um universo bem espaço público mediático. Esta situação não Aqui, onde a desertificação avança a
representativo da edição literária precisa transforma os editores “independentes” em galope montada nos abacates —
de fazer périplos constantes por salvadores da coisa literária e não é isenta de dizem — a chuva surpreendeu-nos.
diferentes livrarias: porque o fluxo de alguns vícios e equívocos. É difícil hoje ter uma Ocasionalmente, uma chuva grossa
livros editados é grande e cada livraria só visão panorâmica do mundo literário porque e africana, o mais das vezes
consegue absorver uma parte reduzida da estamos perante um mundo completamente enfadonha e diuturna. Em síntese, um
totalidade; porque a existência e sobrevivência atomizado, composto por territórios que quase tempo meteorologicamente very british,
das espécies literárias implica a criação de não se cruzam e, por isso, não entram em péssimo para os figos.
ambientes que são ecologicamente favoráveis grandes hostilidades nem em polémicas. Não há De longe, chegam-nos notícias da peste e
para uns livros e desfavoráveis para outros. É lugar para os gestos reactivos, para as batalhas do futebol. Os espanhóis, esses chegam da
hoje necessário pensar uma ecologia da literárias de um tempo em que havia um centro a outra margem. Desembarcam no cais,
literatura que destronou os princípios e as conquistar. Todas as encenações e reivindicações ocupam o largo, saturam-no de vozes
asserções da sociologia da literatura. E são estas de centralidade tornaram-se patéticas. Não há salerosas, almoçam e vão-se embora, dando
determinações ecológicas que estão na base da um mundo comum, não há a capital e as de novo lugar ao silêncio. Os jogos florais que
criação de uma associação que se chama Rede de províncias. anunciam as autárquicas ensaiam-se ainda
Livrarias Independentes. Independentes de quê? Seja como for, permaneceremos no com recato. Resultado do tresvario do
Das cadeias dos grupos editoriais e livreiros. desconhecimento de uma grande parte da nossa tempo, o rio deixou de ser o espelho prata
Outrora, num tempo que permanece ainda paisagem literária actual se não estivermos onde já reverberava o sol. As chuvas
muito presente e do qual até muita gente do atentos ao que se passa nestes lugares revolveram-lhe as funduras e emprestam-lhe
“sector” (como dizem os que continuam a usar minoritários da edição e da venda de livros. uma coloração lamacenta. É bom para a
representações de uma lógica sectorial) não Avanço com um exemplo, um livro que se chama pesca às enguias. Enquanto a maré sobe, as
percebeu que chegou ao seu fim, estas livrarias Vaca Preta, de Marcos Foz, um autor que já tinha águas correm para Norte, varridas pelo
seriam os templos dos “marginais”, dos publicado um livro, um longuíssimo poema, vento chão que vem do mar.
“alternativos”, dos adeptos das imprecações chamado Arca e Usura, em edição de autor. Vaca Despachada a paisagem, vamos à espuma
literárias, dos “nichos”. Continuar a vê-las desse Preta é editado pelo Bestiário e pela Livraria dos dias. Os que antecederam o solstício de
modo é um erro de perspectiva. Neste domínio, a Snob, mas essa informação só a obtemos através Verão fizeram prova daquilo a que vou
não ser o que encontra no número de vendas da ficha técnica, colocada na penúltima página. arriscar chamar equilíbrio
uma evidência indesmentível, já não se sabe O objecto é sofisticado, a literatura dialoga aqui cósmico-ó-político, ciente de que não só o
muito bem o que se pode entender por “nicho”. com as artes gráficas, com a paginação, com toda caos pode a qualquer momento, qual
O critério da quantidade conta muito pouco se a materialidade do livro. E o que nos é dado a ler elefante desembestado, irromper na loja de
não tem mais nada a apresentar. Na verdade, é uma escrita que começa por ser um longo porcelanas, mas também de que o fará de
uma boa livraria destas ditas “independentes” (e poema e passa depois para a prosa, em vários certeza (c.f. o exemplo do vírus que
nem todas se equivalem, até porque diferentes andamentos. Prosa narrativa? Ficção? Podemos apareceu na China e que acabou por
são os ambientes em que cada uma está aceitar a noção de narrativa, na condição de provocar, um ano e oito meses depois, uma
implantada) faz-nos ver que se deu uma inversão excluir as histórias assépticas, as marquesas que cerca sanitária, perdão, “uma restrição de
e são as livrarias das grandes cadeias como a saem às cinco horas, tudo aquilo que, sufocado fim-de-semana” na Área Metropolitana de
Fnac e a Bertrand que — pelo menos no que diz em esquemas de acção, nos impede de ver, de Lisboa).
respeito à literatura — se tornaram livrarias de escutar, de entrever um outro mundo descolado Portanto se, por um lado, tivemos um
nichos. Por trás desta inversão, está o facto de a das falsas evidências que nos cegam e paralisam. Presidente da República focado na magna
edição vinda dos pequenos editores — também Quanto à ficção, nem pensar: Vaca Preta nada questão do futebol, por outro, fomos
eles ditos “independentes” — ter crescido imenso tem de ficção, esse nome mágico que, nas suas recompensados com o facto de Portugal ser
e se ter deslocado para aí uma parte muito metamorfoses actuais, serve para designar “a primeira selecção europeia a marcar dois
significativa da “vida literária”, depois de terem técnicas que visam encerrar-nos no existente. É auto-golos numa só partida de uma grande
entrado em declínio as instâncias onde se uma escrita que nos liberta da tristeza dos competição” (dos jornais).
desenvolvia essa vida. Veja-se o exemplo dos géneros, um laboratório onde se produz a Se a selecção perdeu em Munique, num
prémios literários que, na melhor das hipóteses, lucidez crítica sobre a paisagem contemporânea. jogo a que o primeiro-ministro pôde assistir
são recompensas financeiras (nada contra), mas Errado seria vê-lo como um livro vindo das presencialmente apesar da proibição de
completamente descapitalizados quanto ao margens para as margens. Pelo contrário, ele está circular para dentro e para fora das
prestígio; veja-se a exiguidade da crítica literária bem no centro. fronteiras da AML, já António Costa foi
reeleito secretário-geral do PS com cerca de
94% de votos.
Se Fernando Medina, presto e prenhe de
Livro de recitações dramatismo, nos anunciou em directo a
exoneração de um funcionário da Câmara
“José Cardoso Pires. A Biografia brilhante de Bruno Vieira Amaral” Municipal de Lisboa, esquecendo-se embora
Título de uma recensão crítica, Expresso online, 20/06/2012 de citar o Levítico, terceiro livro do
Pentateuco onde surge a figura do bode
Na versão impressa, este texto da autoria de Mas estas operações são tão ingénuas que nos expiatório — referência que sem dúvida teria
José Mário Silva chama-se E outrora, José. Esse fazem rir e têm o efeito contrário daquele que contribuído para o engrandecimento da sua
título certamente autoral tornou-se, na versão pretendem produzir: um título tão apologético e aura de homem ilustrado —, já a inauguração
online, um título editorial que contém um juízo tão ostensivo nas sua intenção publicitária e de pelo edil do Parque Gonçalo Ribeiro Telles
superlativo: “magnífico”. A operação tem a auto-celebração do jornal arruína a reputação veio demonstrar aos lisboetas que, se o
finalidade de “magnificar” um escritor lá da do autor do livro e é lícito supor que Bruno arquitecto Ribeiro Telles foi um homem
casa, de acordo com um preceito de ausência Vieira Amaral não deve ter gostado nada de “antes do seu tempo” (palavras de Medina),
de pudor que se tornou moeda corrente e está precisar de ser defendido de um amor tão nada impede que o jardim que leva o seu
longe de ser uma originalidade do Expresso. desesperado. nome seja, também ele, inaugurado antes de
tempo.
Se os níveis de ansiedade, tristeza e
depressão dos portugueses têm aumentado
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNER ANA significativamente com a pandemia — um
CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS FOTO DA CAPA ESTATE OF EDMUND TESKE/MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT estudo levado a cabo pelo Instituto Nacional
30 | ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021
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O que me passa pela cabeça


Nunca olhamos duas vezes da mesma forma para
uma coisa. Não apenas um filme, uma canção, um
quadro. Podem ser coisas mais intrigantes: o mar, por
exemplo. Há um ano, na varanda deste mesmo hotel
um dia filmado por Wim Wenders, o ruído das ondas
falava-me, embalava-me de outra maneira. Por certo
que, pouco mais de um ano após o início da

ca pandemia, os meus olhos estão diferentes. Talvez que


só tardiamente me esteja agora disso a aperceber. Por
certo, também, que não somos os mesmos quando
nos olham em duas ocasiões distintas — e quem não
nos diz que são, afinal, o sol, o vento, o mar quem nos
Ricardo Jorge, dava conta de que “dos comunicação social anunciou que o olha e testemunha, enfim, diferentes? Felizmente, há
indivíduos que indicaram estar ou ter estado desaparecido e entretanto encontrado tinha uma senhora muito idosa que, decerto numa das
em quarentena, em isolamento ou já por bisavô um escritor “aventureiro, raras saídas de casa em pandemia, insiste com o
recuperados da Covid-19, 72% reportaram aristocrata e revolucionário” (dos jornais). A vigilante apressado do Chalet da Condessa d’Edla
sofrimento psicológico e mais de metade educação ao ar livre passava para segundo (Elise Hensler, actriz e cantora lírica antes de D.
referiu sintomas de depressão moderada a plano; a explicação, afinal, estava nos genes. Fernando II por ela se apaixonar em pleno São Carlos;
grave. Dos indivíduos infectados que O absurdo da hipótese genética chegava ao diz-se que era Un ballo in maschera, de Verdi, o
estiveram em internamento hospitalar ou ponto de ninguém parecer ter notado que o espectáculo dessa noite de Abril de 1860…) e me
em cuidados intensivos, a maioria (92%) escritor morrera precocemente com 55 anos, remete para questões muito mais essenciais: “Duvido
refere sintomas de ansiedade moderada a desfecho fatal de um cocktail de depressão e muito de que, naquele tempo, já se fizessem casas de
grave” — já a recente chegada do cheque da alcoolismo. banho como esta que os senhores aqui têm”. A filha
bazuca proporcionou ao primeiro-ministro Descubro impresso na contracapa da puxa-a, mãe temos de ir, o senhor quer fechar, e só a
um instante de humor hilariante e redentor edição que assinala os 50 anos de A Noite e o custo ela acede, uma estóica demonstração de
quando, dirigindo-se a Ursula von der Leyen, Riso que escrevi isto há um bom par de anos: vitalidade de fazer corar de vergonha os fragmentos
perguntou: “Já posso ir ao banco?”. “… imagens surrealizantes, a história pessoal de ruínas que — fetichismo romântico supremo — D.
Rimo-nos todos imenso, excepto os que não transfigurada, o erotismo e a política, a Fernando II mandou acoplar à fachada do Palácio da
se riram… oficina da linguagem […] Escritor de culto Pena. Num bar lisboeta onde o sol não nos falha,
Se a viatura em que seguia Eduardo […] bebe na grande literatura apercebo-me da presença de uma grande e longeva
Cabrita — a que velocidade, continuamos norte-americana dos anos 40 e 50 e não actriz portuguesa na mesa ao lado. Gostaria de estar
sem saber… — atropelou mortalmente um recusa as experiências de distanciamento à enganado, mas a intuição, nestas coisas, raramente
trabalhador na autoestrada, por outro lado, nouveau roman europeu: uma combinação me falha. Não é privilégio, antes uma maldição, esta
uma criança de dois anos e meio apareceu cuja originalidade se vê acrescida pelo facto de fazer a fotografia antes sequer de ter havido tempo
viva e com saúde ao fim de cerca de 36 horas de a biografia de Nuno Bragança se casar de para pegar na câmara. Subitamente, um carro pára
desaparecida. modo indissolúvel com a sua obra”. mesmo à nossa frente; o condutor abandona o
Chegada aqui, permitam-me que sobre o Curioso que tenha tropeçado nestas volante, os meus filhos e eu gostamos muito do seu
caso da criança desaparecida me alongue linhas, que já nem sequer me recordava ter trabalho, parabéns, sim senhor, está cheia de força.
por algumas linhas, tais os níveis de delírio a escrito. Porque sem oficina não há história Não está, não, pensa o fotógrafo ao lado, e, mal o
que catapultou os portugueses. pessoal que aguente e sem transfiguração carro arranca, esta woman under the influence que
Não negando a relevância intelectual da não há ficção que valha a pena. O que seria também admiro e que mal teve tempo para agradecer
polémica em que se encontram envolvidos de Ana Karenina sem o génio de Tolstoi? Uma o gesto tal a condoída surpresa com que o recebeu,
José Pacheco Pereira e João Miguel Tavares a história de faca e alguidar em que uma só não desaba completamente por um pequeno
propósito da história recente de Portugal, é mulher, após enganar o marido com o milagre. Já a vi tantas vezes, nunca desta forma.
minha opinião que bem mais indicativa de amante, se sujeitaria à vingança do primeiro Quando me levanto, penso no que lhe poderia dizer
l’air du temps foi a intransponível barreira e ao enfado do segundo, acabando por se sem provocar efeito semelhante; não descubro as
que se ergueu entre aqueles que acusaram os atirar para debaixo de um comboio. palavras, venho-me embora. De volta à serra, a rádio
pais de negligência e aqueles que os O delírio em torno do menino dá-me uma canção totalmente atípica dos Beastie
aplaudiram pela educação que lhe terão desaparecido — da condenação impiedosa Boys (I don’t know, do Hello Nasty de 1998) que
ministrado. dos pais ao endeusamento quase desconhecia por completo e que, muito
Note-se, antes de mais, que nem uns nem sebastianista da criança: além de provavelmente, não viria alguma vez a ouvir não fosse
outros eram próximos da criança ou da aventureiro, “U omãi que dava puluspulus”,, o a generosidade deste locutorloc (leio que só a tocaram
família, pronunciando-se, assim, a partir dos bisavô era também m aristocrata; só faltando, ao vivo uma única vez): “I “I’m walking through time /
dados que a comunicação social ia ou pelo menos issoso não li, vir alguém D
De luded as the next g
Deluded guy / Pretending and hoping
fornecendo, sempre escassos, apesar das defender que fora a vítima de abdução to find / That distan
distant peace of mind”…
longas horas dedicadas ao assunto por extraterrestre… — não é, contudo, apenas Sucede-lhe Here C Comes The Sun e fico
algumas televisões. sintoma do apetitete pelo kitsch, de tal convencido de qu que a generosidade pode ser,
As trincheiras foram-se delineando ao modo vulgarizado o que já chegou à afinal, intuição. À chegada, tal como há um
longo das buscas, embora o guesa de Escritores.
Associação Portuguesa ano, David Simon faz-me companhia, agora
bombardeamento feroz e recíproco das Mais do que isso, mais profundo do que com Treme (201 (2010-2013), mais uma brilhante
forças adversárias só se tenha realmente isso, mostra um entrincheiramento série-documento sobre a América, desta feita
dado após o final feliz do caso, algo desde ideológico a que nada escapa, nem sobre o histórico bairro com o mesmo nome
logo bizarro. ecimento de um bebé de
sequer o desaparecimento de Nova Orleães durante
d a ressaca
Argumentavam os críticos da família que que o que a defesa
carne e osso. Porque pós-Katrina: há um uma cidade desfeita, uma
nunca, jamais em tempo algum se vira um gogias ou modos de vida
acirrada de pedagogias comunidade deslaçdeslaçada, muitos nunca voltaram,
ser tão pequeno sobreviver ileso a tempo tão diversos esconde é o encontro de alguns estão desaparecidos,
desapa outros partirão…
longo num cenário minado de tantos ológicos simplistas,
preconceitos ideológicos Um antes e um depo depois, nada ficará como antes….
perigos: a história estava mal contada! aparentemente de e sinal contrário, Mas e… as ondas? N Não oiço as ondas… Talvez
Do outro lado, enaltecia-se a vida ao ar convergentes entre re si no essencial: num próximo ano ano, quiçá um próximo olhar.
livre, a educação para a responsabilidade, a actos (neste caso,
desprezo pelos factos
liberdade da vida no campo, o desprezo pelo desconhecidos). Que saudades do
excesso de protecção dos infantes. ão dos Santos e
olhar sábio de João Por Francisco Noronha
Não fora isso, nunca teria sobrevivido, das suas históriass simples e
juravam a pés juntos! Não precisaria de complexas como a daquela
sobreviver se não deixassem a porta aberta, criança que tendo o fugido de
berravam os outros! casa, e ao fim de muito
O esmiuçamento do caso levou a que até o tempo parada juntonto a
comportamento da cadela que acompanhara uma passadeira, alguém
a criança na fuga fosse sujeito a escrutínio e, lhe pergunta o queue faz
para ajudar à festa (e ao delírio), no meio e que
ali e ela responde
ainda apareceu a Marinha a convidar o petiz fugiu de casa, mass
para ingressar nos fuzileiros. O paroxismo, os pais a proibiramm
porém, ainda não fora atingido! de atravessar a
A história atingiu o rubro quando a rua.
ípsilon | Sexta-feira 25 Junho 2021 | 31
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VOL. 2 – Os Interessantes, de Meg Wolitzer


Numa noite de Verão de 1974, seis adolescentes ensaiam a atitude cool que, esperam, os defina
como adultos. Fumam erva, bebem vodka, partilham os seus sonhos. E juram ser sempre Os Interessantes.
Mas nem todos vão conseguir manter viva a chama que os distingue na juventude. Décadas mais tarde,
será a amizade ainda possível quando uns construíram uma carreira artística de sucesso, e outros se
conformaram com a normalidade? Um livro fascinante que nos desafia a pensar de que lado
estamos na eterna luta de uma vida adulta.

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