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Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público.

Sexta-feira | 4 Junho 2021 | publiico.pt/cultturaipssilon


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Na cabeça de
Ai Weiwei Desembrulhamos Rapture,
a partir de hoje na
Cordoaria Nacional, em Lisboa

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RUI GAUDÊNCIO

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O jogador
rapta-nos Bicicletas Forever, um barco gigante cheio de refugiados, o artista sem cérebro feito
de cortiça, o zodíaco chinês e os azulejos portugueses, um rolo de papel higiénico em
mármore com dez toneladas e uma embarcação feita em bambu. Épico, excessivo,
fascinado pelo que parece impossível — uma árvore de 280 toneladas vem a caminho
de Portugal? —, quem é aÄnal Ai Weiwei? Um jogador, diz Marcello Dantas, o curador
da exposição Rapture, que abre hoje na Cordoaria Nacional, em Lisboa.
Alexandra Prado Coelho

O
lado espiritual de Ai Weiwei — ou uma parte con- lançada pelo líder comunista Mao Tsetung. O seu pai, Ai “Ela apaga toda a história anterior da China e ele, filho
siderável dele — está suspenso no ar. O seu lado Quing (1910-1996), escritor e um dos grandes poetas chi- de um dos maiores escritores do país, vive o processo de
político permanece ainda encaixotado. É este o neses, foi objecto das célebres purgas contra muitos apagamento da memória, da memória do pai, da memó-
cenário no dia em que, na companhia do cura- milhares de intelectuais e artistas que Mao declarou con- ria ancestral chinesa. E fica nesse limbo. Tudo neste lado
dor brasileiro Marcello Dantas, visitamos a Cor- tra-revolucionários e inimigos do partido. da exposição tem a ver com uma ideia mítica da China
doaria Nacional, em Lisboa, uma semana antes Weiwei era uma criança quando a família foi desterrada que foi deliberadamente esquecida.”
da inauguração de Rapture, a grande exposição do artista para um campo de trabalho no deserto de Gobi, “o lugar É, afinal, um trabalho tão político como as peças que
e activista chinês, aberta ao público a partir de hoje. mais longínquo que encontra no mapa da China”, como podemos ver na ala esquerda da Cordoaria, apesar de
Desde que viram o espaço da Cordoaria que Ai Weiwei o artista o descreveu numa entrevista ao Democracy Now. pertencer a um universo diferente. Se do lado direito,
e Marcello Dantas começaram a trabalhar esta ideia de Aí foram forçados a viver numa casa que era “um buraco na peça Life Cycle, temos o tal barco de bambu, fazendo
dividir a exposição pelas duas asas, com duas lógicas debaixo de terra” e a assistir às humilhações, espanca- o contraponto do outro lado da sala encontramos Law
diferentes às quais, para facilitar, chamaremos espiritual mentos e insultos a que o pai era sujeito. Uma das memó- of The Journey, o épico barco cheio de refugiados a ten-
e política. Há dezenas de pessoas a transportar materiais rias que conta nessa entrevista é a de, antes da ida para tarem chegar à Europa, figuras negras, compactas, com
Durante e a retirar peças das caixas de madeira — um “exército”, o campo no deserto, ajudar o pai a queimar toda a sua três metros de altura, sentadas lado a lado numa imensa
a montagem como lhe chama o curador, mobilizado para a montagem biblioteca de livros de arte, numa tentativa inútil de es- embarcação de borracha.
de Rapture: de uma exposição de extrema complexidade. capar à perseguição dos Guardas Vermelhos. Também aí estarão os dioramas que mostram a rotina
o lado Seguimos para a direita, em direcção às delicadas pe- O universo mais espiritual de Weiwei que descobrimos na prisão durante os quase quatro meses que o artista
espiritual ças de bambu e seda que pairam acima das nossas cabe- na ala direita da Cordoaria, explica Marcello Dantas, passou preso pelo regime chinês, em 2011 — a presença
de Ai Weiwei ças, e do enorme barco, feito no mesmo material, ainda “nasce nessa China pré-Revolução Cultural, nessa China permanente dos guardas, a invasão da privacidade, a
já suspenso envolto num finíssimo plástico que ondula ao ar e através de um pai que era um poeta, um escultor, e que alimenta privação total da liberdade.
no ar; o seu do qual se adivinham figuras materializadas apenas nas essa busca por raízes perdidas da cultura chinesa”. Numa É disso (mas não só) que fala a misteriosa palavra es-
lado político linhas desenhadas pelo bambu. luta contra o esquecimento e o apagamento, Weiwei colhida como título da exposição em Portugal. Rapture
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permanecia Queremos, com a ajuda de Marcello, entrar na cabeça “abraça elementos míticos e técnicas ancestrais aban- tem um fundamento religioso cristão e pode significar
ainda de Ai Weiwei. Para isso é importante recuarmos até à sua donadas, coisas que vai resgatando”. êxtase, euforia, exaltação, mas também rapto ou seques-
encaixotado infância, na China dos anos 60 e da Revolução Cultural Aos nove anos, assiste ao início da Revolução Cultural. tro, algo que nos arranca subitamente de um local e

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decidiram avançar. Rapture é também o resultado disso.


Na China de Mao
O pai de Ai Weiwei, Ai Quing (1910-1996),
“Se quiser entender Apesar de reunir muitas obras anteriores de Ai Weiwei,
a exposição apresenta uma série de peças feitas já em
Portugal e com artesãos e técnicas portuguesas, da cerâ-
escritor, foi objecto das purgas maoistas
contra milhares de intelectuais e artistas
que foram declarados contra-revolucionários.
Ai Weiwei tem que mica ao trabalho em cortiça, passando pelo mármore.
A ligação do artista comPortugal tornou-se, entretanto,
mais profunda do que à partida seria de prever. Comprou
Weiwei era uma criança quando a família
foi desterrada para um campo de trabalho
no deserto de Gobi. Aí foram forçados a viver
entender que ele uma propriedade em Montemor, no Alentejo, onde tem
estado a viver, e um apartamento em Lisboa. Mas para
entender como isso aconteceu é preciso entrar um pouco
num buraco debaixo de terra e a assistir
às humilhações, espancamentos e insultos
a que o pai era sujeito
é um jogador. mais dentro da cabeça de Ai Weiwei. “Ele chegou aqui e
tinha arranjado um agente imobiliário”, conta Marcello.
“O avião aterrou às 8h da manhã e ele tinha combinado

Está jogando o tempo almoçar comigo no Chiado à uma da tarde. Chega, vê

DR
uma propriedade e compra. A única, a primeira que viu.
Falou para mim: ‘comprei’. Não tinha visto o país, só ti-

todo, com a própria nha visto aquilo. Em seguida veio a pandemia e ele disse
‘quer saber para onde vou? Portugal.’ E ficou aqui o
tempo todo.”

sorte, com o destino. Marcello pára um instante junto de uma asa gigante,
em metal, de um animal mítico, que está a ser instalada

Quando compra Rapture, apesar de reunir muitas obras anteriores de A


mármore. A ligação do artista comPortugal tornou-se, e

uma propriedade

DANIEL ROCHA
e um apartamento
em Lisboa no escuro,
sem ver, está
LUKAS FEIREISS

o tempo todo
dialogando com
a sorte” Marcello
Dantas, curador
deste em 2011. “Quando ele fez Sunflower Seeds [para a
Tate Modern, em 2010], que mobilizou 1600 mulheres
durante dois anos para esculpirem 100 milhões de se-
mentes de girassol em porcelana, eu pensei que se tra-
tava de um projecto de transformação social antes
mesmo de ele acontecer enquanto obra. A transforma-
ção está embutida no próprio processo”, conta o cura-
dor. Rapidamente imaginou que isso poderia ser repli-
e ou de um estado e nos transporta para outro, inde- cado noutros pontos do mundo.
pendentemente da nossa vontade. Rapto como perda “Weiwei interessou-se, mas quatro semanas depois foi
de liberdade. Mas também como perda dos sentidos. Do preso. Fiquei anos sem conseguir falar com ele. Primeiro
chão. Como, de certa forma, nos aconteceu a todos com ficou na prisão mesmo, depois em prisão domiciliária,
a pandemia. O sequestro dos sentidos. não podia viajar, e o projecto ficou parado uns quatro
Há uma outra palavra muito simbólica neste momento ou cinco anos. Até que em 2015 ele sinalizou que ia ter o
das nossas vidas, diz Marcello: trauma e sonho (traum, passaporte de volta.”
em alemão). A comparação é tentadora, apesar de, eti- Marcello viajou então até à China para explicar exac-
mologicamente, a palavra alemã vir do alto alemão an- tamente qual era a sua ideia. Começaram pela América
tigo troum, enquanto trauma vem do grego antigo latina — curiosamente, o pai de Weiwei tinha viajado para
trauma, que significa ferida. Mas vamos, por instantes, o Chile, na década de 50, e tinha feito amizade com o
entrar nesse jogo de uma aproximação entre as duas. “É poeta Pablo Neruda. “No Brasil, como eu conheço bem,
a ideia de que a gente pode, no mesmo lugar, na mesma iniciámos essa loucura que foi um processo de aproxi-
vida, viver entre o consciente e o inconsciente, entre o mação dele com os artesãos locais de diferentes técnicas.
trauma e o sonho, o sonho e a realidade, o aprisiona- Apresentei-lhe uma miríade de técnicas do Brasil, o que
mento dos sentidos, o aprisionamento do corpo. E a resultou em algumas obras com raízes, cerâmicas, ma-
Humanidade nunca sonhou tanto, de forma tão concen- deiras.” Daí nasceu a exposição Raiz.
trada como durante a pandemia. Porquê? Porque a clau- Quando, mais tarde, surgiu a possibilidade de replicar
sura produz o sonho.” a experiência em Portugal, e sabendo que o país “tem
Marcello Dantas conheceu Ai Weiwei antes da prisão materiais únicos e uma tradição em crafts muito boa”,

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por alguns membros da equipa de montagem. “Se quiser E “com um mármore raríssimo” criou uma escultura que ela não é sobre a China e Portugal, nem é sobre o agora,
entender o Ai Weiwei tem que entender que ele é um é “um símbolo dos nossos tempos”: um rolo de papel ela é sobre essa coisa maior, esse rapture, esse momento
jogador. Está jogando o tempo todo, com a própria sorte, higiénico de dez toneladas, suspenso do tecto. que é uma coisa que a gente não sabe até à hora a que ele
com o destino. Quando ele compra uma propriedade no “Em momento algum Weiwei tentou fazer alguma acontece. Assim como o sequestro.”
escuro e compra um apartamento em Lisboa no escuro, coisa da cultura portuguesa”, sublinha. “Isso seria o erro. A ideia do universal é muito importante para Ai Weiwei.
sem ver, ele está o tempo todo dialogando com a sorte. Pensar ‘agora que eu passei aqui uma semana, já posso Esse é, aliás, um dos pontos que une o curador brasileiro
Será que isto vai dar certo? Se tem risco, ele vai. Se parece contar tudo da cultura portuguesa e vou contar isso para e o artista chinês. “Somos muito amigos e somos os dois
seguro, ele se desinteressa. Quer esticar os limites até ao vocês’. Ele veio fazer o que simbolicamente é relevante terráqueos, antes de um ser brasileiro e o outro chinês.
ponto em que alguma coisa pode dar errado. Como qual- para o momento em que estamos na vida. Mas isso não O nosso compromisso é com o planeta, não com a geo-
quer bom artista, quer sair da sua zona de segurança e é nem português nem chinês, é terráqueo. Quando ele política dos nossos países, é com a cultura, mas a cultura
ir para outro lugar.” fala dos refugiados, isso é um problema do mundo. Va- da Humanidade. Porque é que ele é um artista verdadei-
Portugal durante a pandemia, portanto. Foi isso que mos falar disso e usar todas as técnicas que a gente tiver, ramente único? A maior parte dos artistas trabalha a
a realidade lhe apresentou. E ele lançou os dados. incluindo as portuguesas, que são boas. Se fossem ruins partir do seu filtro, da sua lente cultural. Ele não.”
Marcello começou a apresentar a Ai Weiwei os artesãos não as teria colocado.” Há em Weiwei uma linguagem que pode funcionar de
portugueses, levou-o a descobrir o trabalho com azule- Há, contudo, outra coisa que é fundamental perceber maneiras diferentes conforme a perspectiva cultural de
jos, encontro do qual resultou o enorme painel Odyssey neste trabalho, sublinha o curador: “Aqui a gente está quem a recebe. Veja-se o caso do trabalho Study of Pers-
sobre a saga dos refugiados (uma nova versão da sua obra falando desse sonho de liberdade dos refugiados, da pective, a série de fotografias feita ao longo de anos nas
com o mesmo nome) feito pela fábrica Viúva Lamego clausura dos homens sobre os homens, e ao mesmo quais o artista mostra o dedo do meio a vários monumen-
segundo as técnicas portuguesas; apresentou-lhe a cor- tempo estamos falando da libertação que a imaginação, tos, da Torre Eiffel à Praça Tiananmen. “Ele entende uma
tiça, esse material único, e o artista moldou-se a si pró- a literatura, a poesia, o mito é capaz de dar para a gente. coisa muito simples: aquilo para o Ocidente é uma lingua-
prio, em tamanho natural, numa estátua sem cérebro. É uma exposição sobre uma questão muito universal, gem e para o Oriente é outra. E trabalha a bidimen- e

e Ai Weiwei, apresenta uma série de peças feitas já em Portugal e com artesãos e técnicas portuguesas, da cerâmica ao trabalho em cortiça, passando pelo
e, entretanto, mais profunda do que à partida seria de prever

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“Neste mundo
em que todos estão
gritando, se você fizer
algo imperceptível,
ela será
imperceptível.
Tem que se fazer um
statement à altura
da gritaria do planeta”

Ao percorrermos a Cordoaria Nacional de uma ponta à outra, do lado espiritual ao político (ou vice-versa), d
que vemos e no que não vemos. Aqui há o muito grande e o muito pequeno. O detalhe, o peso, a ilusão. A

e sionalidade disso. Na China não quer dizer nada, é preensão por dentro desse sincretismo. “A mesma ima-
um dedo, e no Ocidente é uma mensagem muito clara.” gem, dois significados. Quando olhamos para Santa
E ele é alguém que entende bem o Ocidente — em 1980 Bárbara e Iansã, do candomblé, estamos olhando para
deixou Pequim, para onde a família se mudara depois a mesma mulher, mas um está vendo uma coisa, o outro,
de ser libertada, e partiu para Nova Iorque, onde viveu outra. E o Brasil, por causa do próprio processo portu-
Ai Weiwei durante 13 anos, limitando-se a explorar o universo ar- guês, precisou se moldar para lidar com essa dualidade,
tem um lado tístico, sem tentar ainda definir-se como tal. Desse pe- criando uma linguagem híbrida. O meu alinhamento
muito ríodo destaca-se uma série grande de fotografias a preto- com Weiwei tem também a ver com essa observação
intuitivo. e-branco da cidade, e alguns trabalhos reveladores do sincrética.”
Cabe ao fascínio que sentia por figuras como Andy Warhol (con- O projecto Sunflower Seeds demonstra bem essa lin-
curador, tou mais tarde que The Philosophy of Andy Warhol foi o guagem múltipla dos objectos. Cem milhões de sementes
Marcello primeiro livro que leu em inglês), Jasper Johns e Marcel de girassol feitas de porcelana por operárias de Jin-
Dantas, Duchamp, do qual diz admirar o facto de “encarar a arte dezhen, o maior centro de cerâmica artesanal da China,
“cercar essa como atitude, forma de vida, como mais do que arte, são um trabalho sobre o indivíduo e o colectivo, sobre o
intuição com uma actividade mental, um envolvimento total”. que é único e o que faz parte de um todo. Mas ligam-se
informação”. Mais tarde, como artista e já de volta à China, desen- também (mais uma vez) à infância de Weiwei no campo
É o que faz, volve essa “capacidade de falar uma língua que se sub- de trabalho.
“trabalho a verte, que é líquida, que penetra dentro da sociedade de As reuniões organizadas pela comuna, para as quais
quatro mãos” diferentes formas”, descreve Marcello. Um bom exemplo eram convocados todos os que viviam no campo, adultos
com Weiwei. é a obra Forever Bicycles, que no dia em que visitámos a e crianças, tornavam-se muitas vezes momentos de hu-
“Não me exposição ainda estava a ser montada à porta da Cordoa- milhação. O pai de Weiwei era quase sempre chamado
considero ria (a peça tem sido apresentada em diversos locais do ao palco, como “contra-revolucionário”, para ser insul-
curador de mundo, com as bicicletas dispostas de diferentes for- tado em público. Numa conversa com o jornalista norte-
obra para mas). Presa por uma grua, a obra ia sendo completada americano Brendan McGetrick a propósito do projecto,
colocar na por mais bicicletas que chegavam, transportadas em o artista recordou essas reuniões, num pavilhão nu, de
parede, isso é grandes caixas de madeira. tijolos vermelhos, sem cadeiras, onde as pessoas se sen-
o contrário “Todas as pessoas olham e entendem que são bicicle- tavam em bancos que levavam das suas casas e aguarda-
da curadoria. tas, mas aquela bicicleta era o objecto de desejo de todos vam, inquietas, o que iria acontecer. A única fonte de
A curadoria os chineses, era o Porshe”, explica o curador. “Chama- conforto eram as sementes de girassol que mordiam
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é esse jogo vam-se Forever Bicycles, era a marca. Por isso, se você é nervosamente, fazendo montinhos com as cascas.
entre intuição chinês vai olhar para aquilo e dizer ‘olha, mil forevers’.” Daí que as sementes de girassol que os visitantes pisa-
e informação” O próprio Marcello, como brasileiro, diz ter uma com- vam no Turbine Hall da Tate Modern, feitas à mão pelos

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), devemos procurar pistas nos objectos, nas ligações de cada pedaço de bambu ao outro, nos pormenores de cada azulejo pintado à mão, no simbolismo
o. Ai Weiwei lançou os dados

artesãos de Jindezhen, sejam, para os chineses em geral guras mitológicas feitas de bambu. “Esta peça exige um turas de Ai Weiwei no Brasil. “A gente mostrou-lhe umas
e para Ai Weiwei em particular, um símbolo de muito trabalho de linguagem do bambu que começa na ma- madeiras e ele falou ‘essa madeira é muito especial, o
mais do que o já de si complexo equilíbrio entre o indi- neira como você o corta do chão e como o desfia, peda- que é?’. Explicámos que se chama pequi-vinagreiro, é
vidual e o colectivo. cinho por pedacinho. Um artesão de bambu vai olhar uma árvore em extinção, praticamente não existe mais,
Tudo depende, então, da perspectiva que escolhemos nessa fase e perceber se funciona ou não. São linguagens a gente só consegue raízes dessas árvores, que tinham
para olhar. Vejamos os materiais. “Os chineses têm uma do material que se vão imprimindo sobre a obra. Se al- 600 ou 700 anos, foram cortadas há 100, mas a madeira
capacidade para juntar coisas. Enquanto o resto do guém quiser entrar aqui com esse olhar, vai reparar em ainda resistia. Ele falou ‘quero ir ver isso’.”
mundo passa cola ou bate um prego, o chinês não cogita muita coisa.” Conseguiram encontrar aquela que seria a última ár-
fazer isso, é uma violência, uma agressão absurda para Quando, no Brasil, trabalharam com os artesãos que vore de pequi-vinagreiro ainda em pé, numa reserva
a madeira. Você tem que resolver isso na junta, na arti- faziam ex-votos, Weiwei “ofereceu àqueles homens, que florestal de Trancoso, ao Sul da Bahia. Tratava-se, des-
culação entre peças.” É o que acontece com as Forever ficavam todos os dias fazendo o mesmo, uma iconogra- creve um texto da revista Piauí, de uma “árvore oca de
Bicycles, que se articulam “como um jogo de montar, um fia completamente nova”. Em vez de ex-votos, pediu-lhes 1200 anos, coberta de parasitas e quase inteiramente
quebra-cabeças”. para fazerem helicópteros, barcos e até o símbolo do seca — apenas o topo exibe alguns ramos vivos.” Vale a
E daqui saltamos para outra dimensão da linguagem, Twitter. “Ele libertou a criatividade desses artesãos. Con- pena reproduzir um pequeno excerto dessa reportagem
não falada. Uma “linguagem dos gestos” que Weiwei tinuaram a fazer o que sabiam fazer como técnica, mas feita durante o processo de descoberta: “Além de ser a
partilha com artesãos, seja em que parte do mundo for. foram desafiados a, conceptualmente, falar de uma coisa mais antiga da região, é a mais alta, com 31 metros, o
“Isso é muito bonito. Eu vi-o em vários contextos onde que, apesar de tudo, não é completamente exógena a equivalente a um prédio de dez andares. Weiwei caminha
não havia ninguém que falasse chinês ou inglês e não eles.” O logotipo do Twitter não é estranho àqueles ra- ao redor do pequi, entra em seu interior e observa a luz
precisava de intérprete. Quando os artesãos reconhecem pazes brasileiros de Juazeiro do Norte — no mundo glo- que penetra do alto. Fotografa todos os detalhes com o
outra pessoa que tem o domínio daquela linguagem, eles balizado, também eles utilizam as redes sociais. celular e, satisfeito, anuncia ao curador carioca Marcello
rapidamente conseguem entender com as mãos o que O artista tem um lado muito intuitivo. Cabe ao curador, Dantas: ‘Quero fazer uma réplica perfeita desta árvore.’
um e outro querem dizer. Isso é muito transformador, acredita Marcello, “cercar essa intuição com informa- ‘Claro, Weiwei, sem problemas’, responde Dantas.”
essa linguagem das mãos.” ção”. É o que faz, nesse “trabalho a quatro mãos” com Começou então uma aventura que Marcello considerou
Daí resultam objectos que podem evidenciar uma Weiwei. “Não me considero curador de obra para colocar “digna de Fitzcarraldo”, numa referência ao filme de
divisão entre a visão ocidental e a visão oriental. “O ob- na parede, nunca fiz isso, ‘ah, este quadro combina com Herner Herzog, com Klaus Kinski, que conta a história
jecto não é desprovido de filosofia, como o Ocidente aquele’, isso é o contrário da curadoria. A curadoria é do sonho de construir uma ópera na selva amazónica e
pensa. Para os orientais, o objecto carrega dentro dele esse jogo entre intuição e informação, e quanto maior que inclui a tentativa de transportar, por terra e sobre
a filosofia. Quando você faz, numa cerâmica, uma borda for a diferença entre curador e artista, mais rico é. uma colina, um navio de 320 toneladas de um rio para
assim, aquilo não é adorno — o adorno é filosofia. No Quanto menos informação ele tiver, mais intuição ele vai outro.
caso da cerâmica japonesa, por exemplo, a imperfeição jogar, e quanto mais informação eu tiver, mais consigo Weiwei foi ligeiramente mais modesto, mas levou 25
é a mensagem.” embasar aquele gesto.” chineses para Trancoso e reuniu mais 25 brasileiros para,
Olhamos com atenção para Life Cycle, o barco e as fi- Foi isso que aconteceu com uma das mais épicas aven- juntos, trabalharem no projecto. “Construímos um e

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REUTERS/STEFAN WERMUTH
As bicicletas Forever parecem reproduzir-se até ao
infinito, criando a ilusão de estarmos a atravessar um
túnel à velocidade da luz; os enormes refugiados em
borracha negra esmagam-nos na dimensão da sua tra-
“Vejo-o muito feliz aí
gédia em tamanho extra-large; o rolo de papel higiénico
de dez toneladas de mármore suspenso no ar tem um
impacto que em tamanho natural, mesmo que fosse de
[no Alentejo], mais feliz
ouro, não teria.
“Para a gente falar da urgência, você precisa envolver
toda a sua sensibilidade sensorial e física em relação ao
do que foi na Alemanha
espaço”, reforça. “Parte da linguagem tem a ver com a
gravidade, peso, a massa, o nosso encontro perante a
dimensão das coisas. A mensagem passa quando a gente
[onde viveu antes].
é capaz de deslocar os tamanhos para produzir articula-
ções de maior impacto. Aí, sim, vai surgir alguma
coisa.”
Está muito integrado
Ao mesmo tempo, a par desta sensibilidade para os
materiais e a linguagem dos objectos, há um lado mais
político, mais verbal, de (ainda) maior urgência no tra-
na natureza, mesmo estando
Cem milhões de sementes florirão
balho de Ai Weiwei. Basta seguir o Instagram do artista
para perceber que, entre imagens dos gatinhos que aca- sempre conectado com
a internet, fazendo lives.
baram de nascer da gata que tem no Alentejo, há posts
O projecto Sunflower Seeds, sobre os refugiados ou os ataques à população palesti-
que apresentou na Tate Modern: niana em Gaza. “Ele é um cronista da realidade contem-
cem milhões de sementes de girassol feitas porânea”, confirma o amigo.
de porcelana por operárias de Jindezhen,
o maior centro de cerâmica artesanal
da China. Um trabalho sobre o indivíduo e o
E o que é que acontece a alguém assim, com este sen-
tido de urgência, quando, subitamente é raptured?
Quando, de um momento para o outro, é colocado numa
Para que você possa fazer
colectivo, mais uma vez) a ligação à infância
de Weiwei no campo de trabalho maoista
cela de prisão ou detido na sua própria casa? “Durante
os quatro anos em que ficou em prisão domiciliária, ele
produziu quase cem exposições. Sem nunca poder ir a
barulho, tem que ter um
nenhuma delas. É uma pessoa extremamente criativa,
que está sempre fazendo alguma coisa. A mente dele
nunca foi aprisionada.”
pouco de silêncio,
e andaime no meio da floresta, com escorpiões, abe-
lhas africanas e o diabo a quatro, montámos uma estru-
tura com 36 metros de altura e moldámos essa árvore
Fazer as coisas à distância não é uma dificuldade para
Weiwei. Recentemente, realizou o primeiro filme sobre
o início da pandemia do novo coronavírus na China, Co-
e ele tem as duas coisas”
por dentro e por fora em silicone de joalharia, de super ronation, sem pôr os pés naquele país, utilizando equipas
alto nível de precisão”, recorda Marcello. “Ele levou es- espalhadas por pontos-chave para, seguindo as suas
ses moldes para a China e fundiu a árvore em ferro, num orientações, recolherem imagens impressionantes den-

DIOGO VENTURA
processo que levou dois anos. Pesa 280 toneladas e tem tro dos hospitais da cidade de Wuhan, onde se deu o
as mesmas características da árvore que existia no Brasil primeiro surto, ou junto às famílias que tentavam receber
e que no ano passado caiu, não existe mais.” as cinzas dos seus mortos.
Não foi possível terminar a obra a tempo de, como o “A China entendeu que não conseguiria acabar com
artista pretendia, a mostrarem na exposição Raiz, no ele”, diz Marcello. “A relação dele com a China autoali-
Brasil, onde acabou por passar apenas um filme sobre a menta-se. Ao censurarem-no, promovem-no tremenda-
empreitada. Agora, anuncia Marcello, a peça Pequi Big mente. É por isso que hoje o deixam quieto. Ele é um jo-
Tree deverá viajar até Portugal para ser exibida pela pri- gador e joga com o Governo chinês de igual para igual.”
meira vez em público nos jardins da Fundação Serralves, Mas é, ao mesmo tempo, capaz de parar e contemplar.
no Porto, “nos próximos meses”, data a anunciar. O Alentejo tem puxado por esse seu lado. “Vejo-o muito
O curador vê neste projecto a tal sobreposição de ca- feliz aí, mais feliz do que foi na Alemanha [onde viveu
madas de leitura, a linguagem líquida, e a colaboração antes], com certeza. Está muito integrado na natureza,
entre artista e curador. “Ele observou uma árvore, um nos processos das estações, mesmo estando sempre co-
potencial e um processo, e eu inoculei nele a história que nectado com a internet, fazendo lives. Ele não é tão agi-
dava a tudo isso um sentido mítico. Ao olhar para essa tado assim. Para que você possa fazer barulho, tem que
última árvore e ao transformá-la num monumento, a ter um pouco de silêncio, e ele tem as duas coisas.”
gente está revelando tantas coisas a respeito das nossas Voltamos à infância e início da juventude passadas
culturas e dos nossos processos. Os portugueses foram num buraco debaixo da terra num lugar esquecido do
para o Brasil cortar árvores, o pau-brasil, foi pega e leva. mundo, “o mais longínquo” que se encontra no mapa
Esta árvore estava lá antes de os portugueses chegarem, da China. “Uma pessoa que começa a vida assim, sendo
passou por tudo aquilo, e vai solidificar-se como uma o pai quem era e obrigado a fazer trabalhos forçados, é
árvore de ferro no quintal de Portugal.” alguém que entendeu claramente a sobrevivência.
Não por acaso, o filme Big Tree, que foi mostrado no Quando se está no deserto de Gobi, onde faz um frio
Brasil (e que pode ser visto no You Tube), começa com danado à noite e um calor enorme de dia e só se tem um
uma citação de um poema do pai de Weiwei, Ai Qing, buraco para dormir, você aprende alguma coisa. Cedo.
aqui numa tradução livre a partir do inglês: “Olhando Ele é um ser humano muito adaptável. A China escolheu
para este fóssil/Até um louco pode aprender muito/Sem prender um homem muito difícil de quebrar.”
movimento/Não há vida”. Devemos reter que estamos perante um homem que No Alentejo
A dimensão épica é igualmente importante para se gosta de jogar e que acredita no poder transformador do
compreender Weiwei. Marcello partilha com ele essa risco. Ao percorrermos a Cordoaria Nacional de uma Comprou uma propriedade em Montemor,
ambição: “I believe in big”, diz, usando subitamente o ponta à outra, do lado espiritual ao político (ou vice- no Alentejo, onde tem estado a viver, e um
inglês. A razão que apresenta é simples: “Neste mundo versa), devemos procurar pistas nos objectos, nas ligações apartamento em Lisboa. Marcello começou
em que todos estão gritando, se você fizer alguma coisa de cada pedaço de bambu ao outro, nos pormenores de a apresentá-lo aos artesãos portugueses,
imperceptível, ela será imperceptível. Tem que se fazer cada azulejo pintado à mão, no simbolismo que vemos e levou-o a descobrir o trabalho com
um statement à altura da gritaria do planeta. A percepção no que não vemos. Aqui há o muito grande e o muito azulejos, apresentou-lhe a cortiça, material
humana tem muito a ver com a escala humana, a magia pequeno. O detalhe, o peso, a ilusão. Ai Weiwei lançou único, e Ai Weiwei moldou-se a si próprio,
do cinema em parte é essa. Você acredita que naquela os dados. Rapture está aí para nos raptar do lugar onde em tamanho natural, numa estátua sem
escala você será raptured.” acreditávamos estar. Estamos nas mãos do jogador. cérebro

8 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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publico.pt/aovivo

O clube de leitura dos jornais


PÚBLICO e Folha de São Paulo.

TERÇA-FEIRA, 8 DE JUNHO,
22H (18H NO BRASIL)
Isabel Coutinho
e Úrsula Passos
conduzem um
encontro entre
Afonso Reis Cabral
e os seus leitores.
Em destaque,
a obra
Pão de Açúcar
Participe por Zoom
na reunião com
a ID 912 9667 0245.
A senha de acesso
é 547272.

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 9


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Arcos
Marco Franco
Revolve

mmmmn

O piano de
Marco Franco
continua a
deixar-nos
boquiabertos
M
arco Franco estava con- e se visse inundado por sons e notas até as probabilidades matemáticas
Após uma surpreendente estreia vencido de que à segunda que precisavam impacientemente de ser bem-sucedido eram pouco
com um álbum de piano solo, seria mais fácil. Depois de
ter entrado num período
de ganhar vida através do seu
corpo.
promissoras.
Só que não era pela matemática
o músico volta a esse registo obsessivo, em que aquele Essa queda livre e desamparada que Marco então se guiava, mas sim
que sempre conhecemos no universo do piano, cuja prática por um impulso — que não esmore-
em Arcos. E o espanto continua lá como um inspirado e idiossincrático passaria a ocupar cada hora de vigí- cia — na direcção de um instrumento
— o dele com o piano, o nosso baterista — do rock dos anos 90, ao
jazz vanguardista dos anos seguintes
lia do espaço mental de Marco
Franco, arrastar-se-ia durante quase
que nunca fizera parte dos seus dias.
Teria habitado sobretudo as suas
com a música delicada que resulta — virou o seu mundo do avesso e
encheu os dedos e a cabeça com as
três anos. “Naquela altura”, recorda
o músico, “praticava 24 sobre 24
noites, admite, ao lembrar-se de um
recorrente sonho durante a infância
dessa descoberta. teclas e os sons do piano, seria de horas”, diz, ciente do exagero literal, em que se via a tocar piano. “Como
esperar que não voltasse a viver com mas sem camuflar o exagero real aqueles sonhos em que conduzimos
a mesma intensidade esse período que então tomou conta da sua vida. um carro de Fórmula 1 ou voamos,

Gonçalo Frota em que tentou compensar os muitos


anos de não ter praticado e criado
intimidade com aquele instrumento.
“Em casa, na cabeça, estava sempre
a memorizar, a visualizar, a mecani-
zar, a interiorizar e a apreender tudo
quando temos a ilusão de termos
uma aptidão qualquer”, compara.
“E depois, foi como se tivesse batido
Tudo começou, na verdade, numa o que era necessário para controlar com a cabeça na parede e quisesse
altura em que ouvia bastante o com- um instrumento. Era uma espécie abarcar essa ideia.” Mas Marco ba-
positor Steve Reich e um amigo lhe de missão enviada a um planeta, ti- teu, de facto, com a cabeça. Na fase
mostrou um álbum com música para nha algo de missão sem volta. Talvez inicial, de febril prática do piano, em
piano da etíope Emahoy Tsegué- uma missão falhada, que pudesse que passava horas a fio no Instituto
Maryam Guèbrou. Foi como se umas ser abortada — mas nunca a abor- Goethe ou qualquer outro lugar que
comportas que acumulavam toda tei.” Foi um processo muito exaus- lhe permitisse o acesso ao instru-
uma musicalidade que Marco nunca tivo, “a única forma de ganhar anos mento, saía por vezes ainda “meio
tinha explorado se abrissem de re- de falta de experiência, num relativo perturbado”. Nessa altura, teve dois
pente, o apanhassem desprevenido curto espaço de tempo”, e em que acidentes — num deles embateu con-

10 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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Há três semanas, num primeiro concerto de Arcos, na Culturgest — seguir-se-á, em Julho, uma actuação no festival Jardins Efémeros
—, impressionava, de imediato, a simplicidade e beleza de um palco que julgávamos já não poder oferecer grandes surpresas

DANIEL BLAUFUKS
dica e minimalista, como se o espí-
rito de Erik Satie tivesse encontrado
para que o piano vertical fosse colo-
cado na boca de cena, à frente das “Uma coisa de que ou não análoga a essa identidade.”
Até porque, na sua opinião, “a iden-
nele o senhorio perfeito.
Se o caminho até Mudra parecia
cortinas vermelhas abertas apenas o
suficiente para que o músico pudesse me apercebi tidade, neste caso, é o criador”.
Dever-se-á também a essa crença
de uma dureza compreensível (e
ajustada ao percurso de um músico
atravessá-las na sua chegada e no seu
abandono do palco. A ladear o piano, com este segundo de que a identidade se manifesta no
gesto de quem faz — e de quem toca
que tentara adquirir sofregamente
as rotinas e os mecanismos necessá-
dois projectores usados com parci-
mónia, tudo pensado para criar um disco é que, se tiver — a decisão de abordar dois temas
criados fora deste modelo de música
rios à inventação da sua própria lin-
guagem), tendo em conta que este
ambiente que pede a utiilização da
palavra “intimidade” mas que pare- a consciência de para piano. Mas são dois temas quase
de casa. Um deles, Takket, pequena
era um instrumento que se propu-
nha explorar a solo, pouco se alterou
cia atirar-nos para um salão privado,
com acesso a algo de precioso e a que que posso sofisticar delícia de absoluta candura, foi re-
pescado da banda Mikado Lab — que
desde então. É verdade que Marco
tirou o pé do acelerador no período
só se poderia aceder na posse da cer-
teira palavra-passe. uma mesma ideia há mais de dez anos Marco manteve
com a teclista Ana Araújo, o guitar-
imediatamente a seguir às apresen-
tações de Mudra em concerto, mas
Na verdade, revela, o álbum esteve
para ser baptizado com o mesmo ou um mesmo rista André Matos e o baixista Pedro
Gonçalves (Dead Combo) —, compo-
a prática não poderia ser mais rela-
xada se queria voltar a compor um
título do tema Deambulações de sa-
lão. “É a isso que o disco soa”, acre- conceito, não é sição do próprio Marco, criada na
guitarra — instrumento que, entre-
conjunto de peças que pudesse viver
depois em disco e ao vivo. Na prepa-
dita, desde que não se pense em
“deambulações” como uma ausência necessário que tanto, abandonou por completo.
Trata-se, em parte, de uma homena-
ração para o recente concerto, na
Culturgest, em Lisboa, em que es-
de destino final ou uma total aleato-
riedade. Estas são, afinal, “deambu- a música mude gem a um grupo marcante no seu
percurso e cuja discreta existência
treou o material do segundo álbum,
Arcos, voltou a dedicar-se ao piano
lações fruto de um processo que não
foi muito fácil e foi também exaus- radicalmente merecia ter tido outra sorte.
Já no caso de Anecóica, trata-se de
durante dez horas diárias. “Se não
conseguisse dez horas, pelo menos
tivo”. “Criei uma expectativa de que
se fizesse um segundo disco seria ou que apresente uma composição de Norberto Lobo
— com quem Marco partilha o trio
seis ou sete tinha de tocar todo os
dias”, explica, “para dar consistência
tudo muito rápido e enganei-me
completamente.” Rápida foi so- uma proposta Montanhas Azuis, ao lado de Bruno
Pernadas — incluída no álbum Es-
à quantidade de música que, de re-
pente, in loco, tem de se conseguir
mente a captação dos oito temas,
registados num só dia, “como se es- conceptualmente trela, e em que o músico participou,
na altura, enquanto baterista. “Ne-
passar de uma forma digna. Se há
pessoas que compram bilhetes para
tivesse a tocar ao vivo”.
Há duas mudanças substanciais de antagónica a essa nhum desses temas estava sequer no
alinhamento previsto”, explica
ver um espectáculo, temos de nos
assegurar de que não estamos a co-
meter uma burla ou uma fraude para
Arcos em relação a Mudra. Se, no
primeiro álbum, Marco inventava
um mundo seu, aparentado de Satie
identidade” Franco. “No caso do Norberto, temos
uma ligação há muitos anos, somos
muito íntimos na nossa maneira de
com o público.” mas com um cunho fortemente pes- fazer. Ele telefona-me, consulta-me,
E tal como acontecera antes, boa soal, vários dos temas seguiam um mostra-me as gravações que faz e
parte das horas diárias da prática mesmo padrão de composição, vice-versa. A dada altura, quando
pianística de Marco Franco foi reali- como se emanassem dessa peça ma- pensei que seria interessante ter al-
zada a partir de um reconhecimento gistral que é Pole position — e que gum tema que não fosse meu, pensei
e mapeamento dos pianos disponí- Joana Gama integraria no reportório neste tema do Norberto, uma com-
veis a que podia recorrer. “Digamos do seu Arcueil —, agora descobrimos posição sofisticadíssima, soberba,
que estou habituado a usar o que uma outra diversidade de soluções. que adaptei ao piano.”
há”, diz. “O que não é saudável.” Não E se Mudra fora desenvolvido num Acidental ou não, Anecóica tro-
se trata de ingratidão, naturalmente, piano de cauda, desta vez o músico peça, às tantas, numa curta citação
mas de reconhecer o imperativo de quis trabalhar a partir do som do de Gymnopédie nº1 (que existe no
tra um sinal de trânsito e feriu-se na ter de adaptar-se constantemente a piano vertical. “Sempre gostei muito como se com os ruídos desaparecesse original de Norberto), a mais popular
cara. pianos com características distintas. dos pianos verticais”, justifica. “Tam- também a alma da música. “Assim das composições de Erik Satie, como
A história tem o valor residual de E questionado se não tem ainda um bém porque têm a surdina, accio- nota-se que estou a pedalar”, diz o se num só sopro Marco Franco tra-
uma anedota, mas diz muito, na ver- piano próprio, em casa, Marco hesita nada por um dos pedais, que retira pianista, “parece o som de um tear, tasse de encadear duas referências
dade, do quanto Marco Franco vivia na resposta: “Gostava de comprar um pouco de volume do instrumento de um barco a remos, de um bote ou basilares na sua música. Mesmo
num alvoroço interior enquanto ia, um piano, claro, mas são todos ca- e muda, de certa forma, o timbre. da estrutura de uma casa a vibrar.” “roubando” estes temas a outros
com avanços e recuos, progredindo ríssimos e não consigo. O piano ver- Sempre adorei esses pianos com a Há toda uma vida mecânica e vibrátil mundos, Arcos é sempre habitado
no sentido de desbravar o seu cami- tical que tenho é intocável.” Mas foi surdina accionada porque ficam algo que se desprende das melodias. A por um maravilhamento e um des-
nho no piano. E assim foi nesse fré- nesse “piano intocável”, que o obriga parecidos a um piano eléctrico.” música torna-se viva. lumbramento de descoberta do
mito desmedido em que esteve mer- a estar sempre em esforço e a imagi- Para Arcos, Marco tinha também Deambulações de salão é também piano que se mantêm intactos des
gulhado, que se foi chegando — não nar o som que ele pede ao instru- uma ideia mais clara do som que pre- um dos temas em que o piano de Mudra. Como se Marco continuasse
era coisa que acontecesse num re- mento e este não lhe devolve, que tendia. Sabia não apenas que queria Marco Franco parece tomar cami- ainda numa paixão indomada com
pente — à conclusão de queria avan- preparou o concerto da Culturgest, tocar um piano vertical com surdina, nhos menos previsíveis — a forma o instrumento, mas agora com ou-
çar para “a gravação de um hipoté- que compôs e trabalhou o reportório mas também que queria uma grava- como as notas do piano vão chu- tros recursos e outros horizontes.
tico álbum” que viria a chamar-se de Arcos. ção que valorizasse a organicidade vando no teclado lembram Ryuichi Sambódromo, Orognosia, Canta Tro-
Mudra (2017). E com Mudra cairiam do instrumento, captando o som das Sakamoto. E é um dos exemplos de vão ou Crisálida envolvem-nos em
os queixos e abrir-se-iam as bocas Simples e belo madeiras e dos martelos, como se como a pronta descoberta de um momentos de uma sublime delica-
em espanto: antes de mais ao escu- Há três semanas, nesse primeiro estivéssemos fisicamente no tal salão universo musical no primeiro álbum deza musical, temas em que as notas
tar-se alguém que todos julgavam concerto de Arcos, na Culturgest — em que poderíamos projectar, sem não se tornou uma prisão doravante. soam acariciadas e tratadas como se
baterista revelar-se como um cati- seguir-se-á, em Julho, uma actuação dificuldadade, a Paris na viragem do “Uma coisa de que me apercebi com fossem matéria tão evanescente
vante pianista; mas, talvez espanto no festival Jardins Efémeros, acom- século XIX para o século XX. Mais este segundo disco é que, se tiver a quanto bolas de sabão.
ainda mais pronunciado, deparar panhado de uma exposição de dese- tarde, o técnico Nuno Monteiro ainda consciência de que posso sofisticar Rezemos para que Marco Franco
com um músico que associávamos à nhos e gravuras também da sua au- “passou a gravação por um programa constantemente uma mesma ideia não volte a bater com a cabeça num
improvisação livre e a propostas de toria —, impressionava, de imediato, que conseguia eliminar todos esses ou um mesmo conceito, não é neces- poste. Não vá lembrar-se de descar-
elevado grau de experimentalismo, a simplicidade e beleza de um palco ruídos” mas o resultado era descon- sário que a música mude radical- tar o piano e recomeçar tudo de
desenhando nas teclas do piano uma que julgávamos já não poder ofere- fortável. Se o som final ficava com mente ou que apresente uma pro- novo. Assim estamos bem. Mesmo
musicalidade profundamente meló- cer grandes surpresas. Marco pediu uma qualidade mais depurada, era posta conceptualmente antagónica muito bem.

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 11


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DR
para Reason to Live, o seu disco a solo
que saiu na semana passada. “As mi-
nhas canções vêm todas do mesmo
sítio: eu e uma guitarra. As primeiras
canções destes discos da reunião
foram compostas no baixo, mas
agora escrevi como uma velha e nor-
mal canção do Lou Barlow”, parti-
lha. No disco anterior de Dinosaur
Jr., Get a Glimpse of What Yer Not,
saído em 2016, Barlow decidiu pedir
a Mascis para tocar baixo, e isso tor-
nou-se uma “grande parte dos con-
certos”. “Aqui achei que ele devia
tocar baixo nas minhas canções, não
precisei de fazer nenhuma ginástica
mental”, conta. Gravou-as no
“mesmo amplificador de guitarra” e
“microfone de voz” que Mascis usa.
“Tentei, em termos de textura, inte-
grar-me com as canções dele o mais
possível, para tornar a mistura mais
rápida. Usei também uma Telecaster,
a guitarra com que ele grava, mas
uma mais barata e menos especial
do que a dele. Fiz exactamente o que

H Dinosaur
á mais de 35 anos que os ele faria”.
Dinosaur Jr., a banda do Lou Barlow é A forma como tudo funciona, diz,
Massachusetts, soam ao o baixista de é Barlow e Murph, o baterista que

Jr.: há
mesmo, com o ataque da saiu da banda em 1993 e voltou para
guitarra e dos solos de J. Dinosaur Jr., a reunião dos Dinosaur Jr., sozinhos
Mascis em primeiro plano. numa sala a tentarem trabalhar a
banda da qual foi
Isto apesar dos altos e baixos de uma
banda que durante oito anos foi dada
como terminada, entre os anos 1990
despedido em mais secção rítmica das canções de Mas-
cis. “Somos como irmãos neste som
que começámos a fazer em adoles-
e os anos 2000. Foi assim, ataque da
guitarra e dos solos de J. Mascis em
primeiro plano, em todas as décadas
1989 e à qual
voltou em 2007. de 35 anos centes. Forjámos uma forma de nos
mantermos unidos como uma defesa
contra o volume do ataque do J.”.
em que os Dinosaur Jr. estiveram ac-
tivos. Continua a ser assim em Sweep
it into Space, o seu 12º disco, editado
Fala sobre o 12º
álbum do grupo a soar Mascis é bastante rigoroso com as
baterias, que são compostas por ele
próprio, enquanto os baixos são dei-
pela Jagjaguwar.
“Somos um bocado como os Ra-
mones ou os Black Sabbath ou algo
de J. Mascis,
Sweep it into
ao mesmo. xados a cargo de Barlow. “Sento-me
com o Murph e vejo tudo com ele.
Fazemos gráficos com as nossas par-
do género: temos um som e está em
todos os discos”, diz, via Zoom, Lou
Barlow, o baixista e ocasional voca-
lista que foi despedido por J. Mascis,
Space. E bem tes. Podia ser só ele sozinho, mas
ajudo. O J. aparece e vem ver como
estamos a ir”.
O disco foi co-produzido por Mas-
vocalista-guitarrista, da banda da
qual fora fundador no final dos anos Rodrigo cis e por Kurt Vile, que empresta a
voz a alguns coros — Barlow está,
1980 e a que regressou para a reu-
nião de 2005.
“Como ouvinte, fã e músico, tive
Nogueira menciona, a aprender a fazer essas
partes em ensaios para poder tocar
ao vivo. Mas a secção rítmica mal tra-
momentos da minha vida e carreira balhou directamente com ele. “Ele
em que achei esse tipo de consistên- sentava-se numa cadeira e fazia pia-
cia suspeita”, confessa esta lenda do vamo-nos, portanto… J. parecia Sobre cada disco de Dinosaur Jr. das. Gosto da presença dele, ele
indie rock, mesmo fora da banda que odiar-me e em geral eu só odeio pes- soar essencialmente ao mesmo — e torna tudo mais leve. Ele trabalhou
o descartou e acolheu de novo, seja soas que me odeiam, então… não me bem — ao longo dos anos, Barlow não mais com o J., a adicionar embeleza-
a solo ou em Sebadoh, Sentridoh e sentia confortável. Aparentemente, comenta o que se passou nos anos mentos a algumas canções. Neste
The Folk Implosion. “Quanto mais de acordo com a história da banda, em que, entre 1989 e 2007, não con- disco, o J. adiciona umas reviravoltas:
velho fico, mais adoro familiaridade. ele até queria que eu pusesse can- tribuiu em nada para isso. “Não co- há uma canção que começa com um
O Neil Young pode lançar um disco ções nesse disco e ficou desapon- nheço os discos em que não toco, a piano Wurlitzer” (é Take it Back).
hoje e cada canção pode ser só uma tado, o que é uma loucura para mim. energia deles é algo por que não me Sobre os concertos: “Temos an-
ligeira variação da canção que já es- Quando voltámos, não me lembro sinto normalmente atraído. Conheço dado a ensaiar mais, tenho espe-
creveu dez vezes. Não importa. de eu e o J. termos falado sobre isso, Green Mind [1991, o primeiro álbum rança de que aprendamos a tocar
‘Obrigado pelo novo disco, Neil, que mas tornou-se uma regra não-escrita após a sua saída e o primeiro editado algumas canções do disco, sinto que
coisa simpática’”. que eu faria canções”. por uma multinacional], que acho são especialmente boas para tocar
Desde que a banda regressou aos Como é que está a relação entre os bastante bom. Partiu-me o coração. ao vivo. Nem sempre é o caso: a
discos, com Beyond, em 2007, a voz dois? “Parece bom, é sempre um bo- ‘Porra, é mesmo bom, ele não pre- maioria do que gravámos para novos
de Barlow e as suas composições cado esquisito, mas é como é. Mas a cisa de mim’. Isso ajudou-me a liber- discos nunca mais é tocada. Ninguém
têm-se ouvido cada vez mais. “No minha relação com provavelmente tar-me”, partilha. quer ouvir 12 novas canções num
primeiro disco, o J. escreveu as can- 95% das pessoas seria um bocadinho concerto. Temos de tocar as nossas
ções todas mas pôs-me a cantar me- esquisita”, responde. Estar no planeta Fazer como J. Mascis canções antigas e não vai dar.”
tade. Para You’re Living All Over Me, é, por si só, esquisito? “Sim, é estra- faria Fica o disco, que não é nada de
[1987] eu sabia que era suposto con- nho ser um ser humano. A minha Barlow tem duas canções em Sweep novo. Mas dá vontade de dizer:
tribuir com canções, e fiz algumas. relação com o J. é só outra estranha it into Space. Tinha levado cinco para “Obrigado, Dinosaur Jr., que coisa
Quando Bug [1988] aconteceu, odiá- relação humana, mas aprecio-a”. as gravações e três acabaram por ir simpática.”

12 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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AS CIDADES
TAMBÉM TÊM ALMA.
E AGORA TÊM UMA REVISTA PARA A MOSTRAR.
Para conhecer um lugar, é preciso conhecer-lhe a alma.
Sentir-lhe a verdade. Ouvir as suas gentes, escutar as
suas estórias, tropeçar nos seus percalços. É preciso ir
além de onde vão todos e ir por onde andam os da terra.
É a esta alma que o Público dá corpo numa nova revista
ēĚēĿČîēîî¡ūƑƥƭijîŕȦČîēîŠūDŽîĚēĿďĈūȡƭŞƑĚƥƑîƥūǛĚŕ
de uma nova cidade. Dia 5 de Junho, contamos-lhe o que
vai na alma de Famalicão.

4,90€
5 DE JUNHO
EDIÇÃO
TRIMESTRAL
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Sean Riley & The Slowriders à descoberta d


E
A banda que começou com

ANA VIOTTI
sta história, a de LIFE, o novo
álbum de Sean Riley & The os pés firmes na estrada aberta
Slowriders, surpreendente pela Americana, pelo folk
tendo em conta que a banda electrizado a guitarra eléctrica,
que começou com os pés fir- dispensa agora a guitarra
mes na estrada aberta pela na maior parte das canções
Americana, pelo folk electrizado a e traz caixas de ritmo
guitarra eléctrica, dispensa agora a e sintetizadores vários para
guitarra na maior parte das canções a equação
e traz caixas de ritmo e sintetizado-
res vários para a equação, começa
na última passagem de ano, quando
o vocalista e guitarrista Afonso Ro-
drigues corta a mão numa chávena
e fica impedido de tocar as seis cor-
das. Ou talvez comece quando, ál-
bum alinhado e preparado para
lançamento no Verão do ano pas-
sado, uma pandemia toma conta do
planeta. Também podemos atribuir
responsabilidades a Makoto Yagyu,
o membro dos PAUS e Riding Pâ-
nico, co-produtor com a banda do
LIFE (quase)
novo disco, que foi pondo à frente dispensa
de Filipe Costa vários sintetizadores
que povoavam “os piores pesadelos guitarras e
dos anos 1980” do teclista — e ele
não só os experimentou como foi
procura novos
gostando cada vez mais da experiên-
cia. “Uma das coisas que fizemos no
ambientes em
início de todos os discos foi apontar sintetizadores
um caminho, mas depois aparecem
muitas encruzilhadas, muitas cur- e caixas de ritmo.
vas, e o resultado final acaba por
não ser esse”, diz Filipe Costa. LIFE
Não é uma
será, então, a história de um novo banda nova,
caminho.
O caminho, na verdade, é já longo é uma banda
e a surpresa perante LIFE será me-
nor se o pusermos em perspectiva.
a surpreender-se
A banda que nos surpreendeu em
Farewell, o álbum de estreia editado
com novos
em 2007, com uma verve de singer- caminhos.
songwriter, Americana profunda, de
imaginário bem construído e letras
desenhadas com rigor, foi nos anos
seguintes expandindo, alargando,
explorando outros universos a partir
Mário Lopes
desse centro. “O primeiro disco é
um disco de trio, o segundo um um silêncio discográfico de cinco desencadearia a música que, poste- “O Bruno ia adorar isto” LIFE
quarteto [Only Time Will Tell, 2009], anos e que Afonso nos descreveu riormente, Afonso Rodrigues, Filipe LIFE é um disco com uma sombra Sean Riley &
o terceiro tem arranjos de cordas e como “o disco que vai das 5h às 9h Costa, o baixista Nuno Filipe e o ba- inescapável, tal como serão, de resto, The Slowriders
metais [It’s Been a Long Night, 2011], da manhã”, ou seja, escrevíamos terista, que é também contrabai- todos os que Sean Riley & The Slowri- Sony Music
o quarto tem máquinas [Sean Riley então, o som do “regresso a casa, xista e teclista, Filipe Rocha, cria- ders editarem a partir daqui. É o pri-
& The Slowriders, 2016]”, diz ao Íp- madrugada alta, corpo cansado mas riam em estúdio, Afonso e Filipe meiro álbum gravado depois de per- MMMNN
silon Afonso Rodrigues, acompa- cérebro ainda demasiado desperto começaram, na boa tradição meló- derem o baixista Bruno Simões, um
nhado de Filipe Costa, numa espla- para descanso”. Por mais que te- mana, a endereçar canções um ao dos fundadores da banda, tragica-
nada de Arroios, sol a brilhar, cerve- nham gostado desse lugar que des- outro. Recorda o vocalista: “Muita mente desaparecido em 2016. Nos
jas em cima da mesa na Lisboa a cobriram então — Filipe Costa colo- da música que trocávamos andava concertos da digressão do álbum ho-
desconfinar. “Tentámos sempre en- ca-o ao lado da estreia, Farewell, à volta de coisas como Kurt Vile, mónimo desse ano, Bruno era uma
contrar coisas que nos fossem entu- como momento especial na disco- War on Drugs ou Sharon Von Etten, ausência sempre presente — estava lá
siasmando e estimulando”, resume. grafia da banda —, não era ali que que têm esses ambientes instalados. na música tocada, no seu baixo aco-
LIFE foi um processo de procura. queriam continuar. Diz o teclista: Procurávamos muito isso. Encontrar modado em palco, no “King B” que
“Fomos experimentando coisas até “[Esse disco] era dramatismo, era um ambiente e instalarmo-nos, em surgia projectado em ecrã quando o
encontrarmos a roupa que nos as- um disco tenso, denso, e a primeira vez da lufa-lufa do álbum anterior, concerto se despedia. O mesmo acon-
sentava melhor. Um fato por me- imagem do caminho que queríamos com as dinâmicas, as quebras, as teceu neste disco. “Ele vai estar sem-
dida” — que será apresentado dia 15, percorrer para o novo era tudo me- mudanças. Se encontrarmos uma pre presente na nossa vida, na de
no Teatro Maria Matos, em Lisboa, nos isso. Basicamente, queríamos boa malha de guitarra, vamos ficar cada um de nós até ao fim, e conti-
e dia 18 no Teatro Académico Gil Vi- sair do buraco. Daí a luminosidade, nela quatro minutos, só a apreciar a nuará a estar intimamente ligado à
cente, em Coimbra. o instalar-nos numa ‘vibe’”. viagem. Era essa a premissa: um sí- música que fazemos e à história da
No início havia então o desejo de No início, recomecemos, havia tio que fosse descansado, confortá- banda”, afirma Afonso Rodrigues.
um álbum que fugisse do anterior, o outro álbum que não chegámos a vel, que tivesse luz”. Não foi a esse “O subconsciente tem formas
homónimo que, na altura, pôs fim a conhecer. À procura do mote que sítio que chegaram. muito esquisitas de trabalhar, mas

14 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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de uma nova vida 38.º


Organização
Câmara Municipal de Almada
Companhia de Teatro de Almada

“Fomos Monica
uma coisa que tínhamos muito pre- canções sem esse instrumento ante-
sente na sala de ensaios, quando riormente determinante. Entretanto,
surgia um refrão, cada vez que al-
guém ligava uma maquininha, era ‘o experimentando álbum quase preparado, alinha-
mento definido, cai-nos uma pande-
Bellucci
Bruno ia adorar isto”, recorda o vo-
calista. Filipe Costa desenvolve. “O coisas até mia em cima e a banda decide não
só adiar o lançamento previsto para
protagoniza
papel que ele ocupou na construção
da banda, nos novos elementos e encontrarmos o Verão de 2020 como aproveitar o
tempo extra para voltar a pegar na
linguagens que a banda ia abor-
dando, era muito grande. Grande a roupa que nos música já gravada e entrar decidida-
mente pela porta entreaberta. “Maria
parte do que resulta deste disco tem
alicerces criados por ele ao longo de assentava melhor. Na sala de ensaios, tinham uma
bolha criativa peculiar, escape do
Callas”
muitos anos”. Afinal, como refere o
teclista, “foi ele que chegou ao pri- Um fato por medida” mundo fechado lá fora — comparam-
no a “um clube pequeno, un-
meiro ensaio com um sampler, foi
ele que começou a introduzir beats — que será derground, meio disco mas ‘dirty’”,
onde ensaiam, naturalmente, mas
na banda, foi ele que sempre nos
tentou desviar para os caminhos si- apresentado dia 15, também onde ficam “até de madru-
gada a beber copos, a ouvir som al-
nuosos dos sintetizadores”.
A banda pode ter fundações nas no Teatro Maria tíssimo”, a falar sobre música, em
resumo, a criar o ambiente da mú-
Centro
linguagens clássicas da rock e do folk
americanos, mas Bruno Simões Matos, em Lisboa, sica que irão fazer depois. Nos estú-
dios HAUS, em Lisboa, onde grava- Cultural
“sempre batalhou contra a ideia da
América clássica” — “isso é a má- e dia 18 no Teatro ram o disco, encontraram em
Makoto Yagyu uma “peça fundamen-
de Belém
10 e 11 Jul
quina do tempo!”, reclamava. “O
rock será sempre o rock, mas tínha- Académico Gil tal na definição do som que temos
no álbum”.
mos que encontrar o rock do século
XXIII”, acentua Filipe Costa. Serena
a alma e abre-lhes um sorriso no
Vicente, em Coimbra “A Americana não é a cena dele”,
sorri Afonso. “Para o Makoto, usar
um [órgão] Hammond só faria sen-
ASSINATURAS JÁ À VENDA
rosto pensar que LIFE seria o disco tido se eu estivesse a gravar um disco Geral = 80€ • Clube de Amigos do TMJB* = 60€
preferido do velho companheiro. gospel”, diz Filipe. “Fez-me o favor * Com cartão válido até 25 de Julho de 2021.
“Seria o disco que ele quereria ter de me pôr à frente sintetizadores
feito e que nós nunca o deixámos mosférica Six years later e damos por que estavam nos meus piores pesa- As Assinaturas para o Festival de Almada dão acesso directo a todos
fazer”, brinca o teclista. nós a imaginar um encontro entre o delos dos anos 1980 mas que, minu-
os espectáculos (11 portugueses e 10 estrangeiros) e podem ser
Se a banda manteve de uns War on romantismo intemporal de Chris tos depois, me estavam a dar um
Drugs a ideia de construir um am- Isaak e a grandiloquência pós-punk gozo do caraças experimentar e que adquiridas na bilheteira do Teatro Municipal Joaquim Benite, nas
biente sonoro envolvente, naquela dos Echo & The Bunnymen; atraves- me ajudaram a descobrir uma lin- lojas FNAC e em www.ctalmada.pt.
hibridez orgânico-sintética que samos Roachie, batemos o pé ao guagem que eu procurava, mas que
transporta a matriz clássica da sua “stomp” do ritmo, e eis Sean Riley & ainda não sabia bem qual era”. Fi-
música para as paisagens artificiais The Slowriders a imaginar ao que lipe Costa compara o processo a
Teatro Nacional D. Maria II • 8 a 10 Jul Academia Almadense • 14 a 18 Jul
da década de 1980, e se é verdade soaria a E Street Band a gravar nos entrar numa casa estranha e retirar
que há em LIFE marcas que não se
desvanecem — a escrita narrativa de
estúdios da Motown em Detroit. prazer de a descobrir aos poucos.
LIFE é fruto desse entusiasmo pelo
Quem matou Rebota rebota
Afonso Rodrigues ou o cuidado com
o formato canção, de linhas bem de-
Explorando uma casa
nova
novo com que se estavam a deparar
— e talvez isso explique algumas fra-
o meu pai? y en tu cara
finidas (“há uma identidade que está No início havia então uma canção, gilidades que revela ocasionalmente, Texto
Édouard Louis
explota
ali, mesmo que não saiba bem qual Every Time. Aquele que viria a ser o quando, por exemplo, a delicadeza De Agnès Mateus
Encenação
é, e o respeito pela canção também primeiro single de LIFE, editado no das melodias se expõe, enfraque- Ivo van Hove e Quim Tarrida
está lá, o que quer que isso queira já longínquo Fevereiro de 2020, co- cida, no novo ambiente sonoro, que Produção ESPECTÁCULO
dizer”, dirá Filipe Costa) —, a verdade meçou a ser trabalhado segundo a pede outra robustez. Internationaal DE HONRA
é que descobrimos Sean Riley & The lógica pensada inicialmente — esse O novo álbum terminará de forma Theater 2021
Slowriders agora de outra forma. instalarem-se num ambiente e a despojada. Filipe Costa troca os te- Amsterdam
Exemplo paradigmático, a impeca- apreciarem a viagem. A banda não clados por uma guitarra e canta The
velmente intitulada Di Caprio from gostou do resultado, Afonso levou-o last one, balada clássica, que diría-
Russia. O tom, a melodia e a estru- para os seus concertos a solo — edi- mos criada sob a influência de
tura têm o cool rock’n’roll que é ele- tou em 2018, California, álbum gra- Townes van Zandt, onde alguém,
mento basilar da banda desde o iní- vado on the road nos Estados Unidos imaginando o seu fim, se dirige àque-
cio, mas há caixa de ritmos a pontuar — e insistiu. “Num ensaio às tantas les que ama. Na capa do álbum ve-
o seu movimento e a canção surge da noite”, conta o vocalista, “fizemos mos uma foto do teclista enquanto PROGRAMAÇÃO INTEGRAL ANUNCIADA A 18 DE JUNHO
banhada em mancha sonora densa, um arranjo sem guitarra e descobri- criança, guitarra em punho, óculos
à imagem dos supracitados War on mos a música, descobrimos a direc- escuros, charme total. “Dois putos
Drugs. Ou seja, em LIFE temos a ção, descobrimos aquilo que fazia que começaram a fazer música no
mesma banda, e isso é claro — mas verdadeiramente sentido com o bai- chão de um quarto com 5m2 deixam
não exactamente. xista que é o Nuno [Filipe, que par- neste momento as filhas a brincar
Never lonely atira o sol californiano ticipou no processo de composição uma com a outra para continuarem
em que tanto se banharam anterior- e gravação pela primeira vez], com a fazer música”, conta Afonso. “Essa
mente para as paisagens mais negras as máquinas que o Filipe queria usar música no final, com o Filipe a cantá-
de uns Depeche Mode; Love life tem e com as ideias rítmicas e melódicas la, com a letra que tem, é como um
o piano forte, percussivo, do Nick que eu tinha”. círculo a completar-se”.
Cave dos primeiros Bad Seeds, e o Entretanto, Afonso corta a mão É o regresso a uma casa que tão
balanço nocturno-misterioso dos enquanto lavava a louça da passagem bem conhecem, e é já outra coisa.
Gun Club, mas chega o refrão e tudo de ano e, impedido de tocar guitarra, LIFE, dizem Sean Riley & The
Info.: Teatro Municipal Joaquim Benite | Av. Prof. Egas Moniz – Almada | Tel: 21 273 93 60 | www.ctalmada.pt
é luminosidade pop; ouvimos a at- abriu-se caminho para trabalhar as Slowriders.

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 15


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ADRIANO FAGUNDES

“A última imagem
que tenho
é o Zé Mário [Branco]
a entrar no carro

O
disco estava inteiramente
gravado. Faltava passar à
edição e às misturas, mas e a debruçar-se
isso ficava para os dias se-
guintes. Nos relógios não da janela para me
tardaria a meia-noite e era
preciso descansar. Mas de manhã, dizer adeus.
uma triste notícia mudou tudo: José
Mário Branco, que assegurara a di- É uma imagem
recção, produção e arranjos (ele
gostava mais do termo encenações que vou guardar
sonoras) do disco, morrera nessa
madrugada. E Marco Oliveira ficava para sempre
nas mãos com um disco (Ruas e Me-
mórias, o seu terceiro) marcado por e que vai muito além
essa perda. Mas também pelo ânimo
de levar por diante um trabalho que deste meu terceiro
os tinha unido de forma estreita e
musicalmente arrebatadora. disco. Porque é uma
Tudo começara dois anos antes.
Nascido em Lisboa, em 1988, Marco presença marcante,
Oliveira já tinha lançado dois álbuns
em nome próprio: Retrato (2008) e um encontro
Amor é Água Que Corre (2016). Como
cantautor e fadista, imaginara um que ainda ressoa.
terceiro centrado em Lisboa: “Sabia
que queria trabalhar sobre a cidade, É maior do
que queria trabalhar as composições
originais que já tinha, mas ainda não
conseguia descobrir muito bem
que tudo isto”
como é que elas se ligavam.” Pensou
em alguém como José Mário Branco
para o ajudar na descoberta de um
caminho, mas julgou que, por dema-
siado ocupado, ele não pudesse re-

Por entre ruas e memórias com


cebê-lo. Sondou então o engenheiro
de som António Pinheiro da Silva e
este pô-los em contacto.
“Tivemos o primeiro encontro em
2017, em casa do Zé Mário”, diz Marco

um rasto de amargura e um adeus


Oliveira ao Ípsilon. “Eu queria ter al-
guém com a experiência dele para
olhar para estes temas e criar uma
narrativa.” Nesse dia, José Mário pe-
diu que lhe enviasse uma maqueta
com a ideia que já teria preparada:
“Os meus temas e aquilo que queria
dizer com este disco. Lembro-me de
Cantautor e fadista, Marco Oliveira acabara de gravar o seu novo disco com
ele ter dito: ‘Tem de haver uma José Mário Branco como produtor quando, subitamente, este nos deixou,
grande razão para aquilo que queres
dizer’. E a primeira coisa que me per- na madrugada de 19 de Novembro de 2019, aos 77 anos. Ruas e Memórias,
guntou foi: ‘Como é que eu te posso
ajudar?’ E apontou dois caminhos
disco que pela música os uniu numa forte amizade, percorre Lisboa com
possíveis: o do escritor de canções e um olhar de amargura e perda, mas também de renovação e de futuro.
o do fado, do fadista. E isso foi muito
forte para mim, porque tinha de ser
eu a fazer essa escolha. Comecei en-
tão a encaminhar as canções e os fa-
dos para um disco de raiz, com esse
Nuno Pacheco
cariz tradicional, porque no fundo foi
esse o meio onde eu fui criado. E en- estes temas. E seguimos o rasto dessa Ana Sofia Paiva) pela assistência de repensar o título, porque aquela o fado, vais convocá-los a todos’. O Zé
caminhar o disco nesse sentido tam- amargura.” Mas ligando sentimentos produção artística do disco, suge- frase, ‘ruas e memórias’, servia de Mário tinha esse grande respeito pelo
bém me fez descobrir ainda mais a de perda e de ausência à sugestão de risse a partir dele uma mudança no raiz e era importantíssima para en- fado. Era alguém que, de fora, tinha
autenticidade na escrita dos poemas, um eterno retorno, de ciclo, de se- título: “A minha primeira ideia”, diz cadear todas as canções. Tinha essa esse cuidado de mexer com pinças.”
na escolha dos fados tradicionais.” mente. Citando um dos temas de Marco, “era chamar a este álbum ‘A leitura muito mais profunda e menos A ideia de renovação, em contra-
Marco Oliveira (que, com Ana Sofia alma encantadora das ruas’, baseado de fascínio — e estava lá tudo.” ponto aos sentimentos de amargura,
Perda e eterno retorno Paiva, juntos ou individualmente, no título de um livro do João do Rio Como estavam lá “todos” naquele ausência e perda, está aqui presente
Aos poucos, foi ficando mais nítida assinam oito dos 12 temas do disco), onde fala dessa vivência das ruas, de estúdio, embora não em presença em temas como Que é feito da Mari-
a imagem do que tinha pela frente. De cada noite perdida, assim se liga as ruas terem memória e de essa me- física. “Houve outra coisa importan- quinhas? (“se ela deixou lá uma gui-
“Senti que as canções começavam a “a vida que vai passando” a “um pas- mória permanecer. Mas quando es- tíssima que o Zé Mário referiu: tarra/ um dia há-de voltar a Mariqui-
ligar-se pela temática da cidade, sado que não passa”. távamos a gravar De cada noite per- ‘Quando formos para estúdio, não nhas”) ou História sem fim, da dupla
desta mudança toda a que vamos A força deste fado levou a que a dida, a Manuela de Freitas, com vais estar sozinho comigo, vão estar Damas-Paião e vinda do repertório
assistindo, da impermanência da actriz Manuela de Freitas, compa- aquela sua maneira genial de olhar os poetas populares, os compositores, de Tristão da Silva, onde uma paixão
cidade. O Zé Mário percebeu que nheira de José Mário Branco e res- um trabalho, ouviu o primeiro verso o Armandinho, o Linhares Barbosa, lisboeta (ele da Mouraria, ela da Ma-
havia uma amargura que ligava todos ponsável (junto com a também actriz e perguntou-me se eu não queria todas essas pessoas que construíram dragoa) gera uma filha, que se apai-

16 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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“Comecei a encaminhar as canções e os fados para um disco de raiz, com esse cariz tradicional, porque no fundo foi esse o meio onde
eu fui criado. E isso também me fez descobrir ainda mais a autenticidade na escrita dos poemas, na escolha dos fados tradicionais”

xona e dá continuidade ao ciclo ini- acho que isso se torna mais visível, a sabemos que vamos morrer. […] Não o Zé Mário a entrar no carro e a de-
ciado pelos pais. Mas onde no origi- cidade brilha de outra forma.” conseguimos aceitar a morte como bruçar-se da janela para me dizer
nal se repetia “uma filha” (como um Por fim, o Bailado das folhas, que fazendo parte dum ciclo das coisas, adeus. É uma imagem que vou guar-
refrão), passou a estar “um filho”: Alfredo Marceneiro recitava, acom- um ciclo da vida […] Quanto mais en- dar para sempre e que vai muito
“Isso foi uma sugestão da Manuela e panhado à guitarra, mas não o can- velheço, mais penso nisso.” Marco: além deste meu terceiro disco. Por-
do Zé Mário, para assinalar essa con- tava. Escrito por Henrique Rego, “Achei que era importantíssimo, para que é uma presença marcante, um
tinuidade. Ou seja, há uma esperança poeta popular que nasceu e morreu quem fosse escutar o disco, ter essa encontro que ainda ressoa. É maior
de que isto não morra.” Os sinos que em Lisboa (1885-1963) e foi quem mais leitura do Zé Mário sobre esse poema, do que tudo isto.” Ruas e
se ouvem no fim são mesmo os da versos escreveu para Marceneiro, para se perceber como é que se chega Concertos, haverá lá mais para o Memórias
Igreja da Senhora da Saúde, na Mou- ganhou aqui música pela primeira ao âmago de um poema. Ele diz final do ano, no Teatro S. Luiz, po- Marco Oliveira
raria. “Havia a vontade de ter uma vez. “Foi uma encomenda que eu fiz aquilo, passados alguns minutos fe- dendo haver também uma outra Sony Music
sonoplastia da cidade, alguma coisa ao Zé Mário. Porque eu tinha ouvido chamos a gravação e horas depois o apresentação no Museu do Fado.
que nos remetesse para um lugar.” o Marceneiro a dizê-lo, mas não havia Zé Mário já não está cá. É um mistério Mas houve já uma pequena apresen- mmmmn
A segunda versão incluída neste uma melodia criada. Mas nunca pen- absoluto para mim e não há como não tação no dia 25 de Maio no Teatro
disco é a de Roda da noite. “Foi uma sei, na altura, que esse fosse o espírito encarar este comentário e esta balada da Comuna, à Praça de Espanha, em
escolha minha, porque não há como do disco, que tivesse uma leitura tão como uma despedida.” Lisboa: “O showcase que fizemos na
falar de Lisboa sem fazer referência grande antes e depois da partida do Além de Marco (voz e guitarra clás- Comuna foi importantíssimo para
a um grande disco que marca a his- Zé Mário. Acabou por ser uma balada sica), José Mário Branco, Manuela de deitar tudo cá para fora. Montámos
tória da música portuguesa, que é muito marcante, porque foi feita um Freitas e Ana Sofia Paiva, participam uma exposição com as fotografias
Um Homem na Cidade, do Carlos do mês antes de entrarmos em estúdio no disco Ricardo Parreira (guitarra do Tiago Fezas Vital que tínhamos
Carmo só com poemas do Ary dos e gravada no último dia.” portuguesa) e Carlos Barretto (con- guardadas de 2019, exposição essa
Santos. Curiosamente, o Zé Mário trabaixo). As gravações decorreram que vai acompanhar também o es-
nem achava que fosse o melhor As lições dos mestres no estúdio da Valentim de Carvalho, pectáculo. E foi importantíssimo ter
poema do Ary, mas disse que era Antes de Marco entrar na sala de gra- entre 4 e 18 de Novembro de 2019. essas fotografias presentes e com
lindíssimo e que se fazia. Tínhamos vações, José Mário Branco chamou-o “Terminámos por volta das onze e aquela dimensão, num teatro onde
era de criar um arranjo que fosse e disse-lhe umas palavras que o disco meia, fechámos a sessão e combinei o Zé Mário trabalhou tantos anos, e
uma leitura mais solitária. É na altura regista na faixa 11, antes de se ouvir o com o Zé Mário fazermos a edição também por ser no dia do aniversá-
do disco em que a noite já está muito Bailado das folhas. Alguns excertos: com o Tó Pinheiro durante a semana rio dele, 25 de Maio. A exposição é
presente, a noite escura. Para mim, “Esta canção é uma reflexão sobre a [dia 18 foi uma segunda-feira]. uma homenagem às lições dos mes-
essa voz é a do próprio fado, a can- pequenez do ser humano […]. Estas Deu-me um abraço, a Manuela tam- tres: ao ofício, à criação. E docu-
tiga da cidade, a alma das ruas. Essa folhas mirradas, soltas ao vento, bai- bém estava presente, respirámos menta aquelas últimas horas de al-
tal memória que fica nas ruas e que lando loucamente pelos caminhos, fundo, ‘missão cumprida, fechámos guém que está a dar tudo pela cria-
nós vamos encontrando. E à noite somos nós […]. Quando nascemos, já isto’, e a última imagem que tenho é ção artística, pelo seu ofício.”

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 17


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Marilynne Robinson, a grande


prosadora do pecado original da América
Cada romance
que escreve torna-se
num clássico.
Contém a
complexidade,
a linguagem, a marca
da grande literatura.
É uma das vozes
mais representativas
da consciência
da América.
Quando chega
a Portugal o seu
último romance,
Jack, a escritora
de 77 anos muitas
vezes apontada como
candidata ao Nobel
fala de religião,
de política, de poesia.

Isabel Lucas

18 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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ZEROEMCOMPORTAMENTO.ORG

T O seu ponto de vista


abor é uma pequena cidade
no extremo sudoeste do
Iowa, no coração do Midwest
americano. Tem pouco mais é a de uma cristã
de mil habitantes e uma his-
tória de 150 anos. Fundada — uma “protestante
por clérigos cristãos abolicionistas,
numa sociedade dividida, fica num liberal” — que vê
ponto alto entre as grandes pradarias
e ganhou o nome por causa do Monte na ideia de Deus
Jack
Marilynne
Tabor, perto de Nazaré, Galileia, a
terra de Jesus Cristo. Tabor, Iowa, é o contrário do medo.
Robinson
(Trad. Alda
a cidade modelo de Gilead, território
ficcional criado por Marilynne Ro- É alguém que, UM FILME DE ARIEL DE BIGAULT
Rodrigues)
Relógio D’Água
binson no romance com o mesmo
título — Gilead — vencedor do Pulit- na literatura que
mmmmn
zer em 2005. Não sabíamos — prova-
velmente nem a autora — , mas era o pratica, não visa
primeiro título de que agora se revela
uma tetralogia com a publicação de doutrinar, mas ir
Jack, original de 2020, tradução em
Portugal pela Relógio d’Água. à ancestralidade
Vale a pena conhecer o percurso
que levou até ele e a razão pela qual buscar a base para
cada romance de Marilynne é um
acontecimento. Em 2014, quando questionar: o amor,
Gilead foi publicado, a escritora não
escrevia um romance desde 1981, a mortalidade,
ano em que se estreou na ficção com
Housekeeping, Laços de Família na a crença, os mitos,
edição portuguesa da Difel. A acção
decorre no Idaho natal de Robinson a culpa,
e acompanha três gerações de mu-
lheres. A crítica aclamou-o como um o desenraizamento,
clássico, de imediato. Tinha as carac-
terísticas da narrativa que sobrevive a solidão,
ao tempo, um enorme sentido poé-
tico ao falar da casa como espaço a contradição,
espiritual, inaugural, fundador, uma
prosa com ecos de ancestralidade. a sexualidade,
Seria finalista do Pulitzer nesse ano.
E depois fez-se silêncio. Até 2004, o conceito
ano de Gilead e da criação de um ter-
ritório mítico que condensa toda a de graça e as suas
complexidade do mundo.
“A cidade de Gilead baseia-se em
Tabor, Iowa, um povoado criado
implicações políticas
como paragem do underground rail-
road [o mítico caminho de ferro
subterrâneo por onde escapavam
escravos do Sul em direcção aos es-
tados do Norte], um lugar para o rica contemporânea está cheia de
abolicionista John Brown e seus se- medo”, escrevera Robinson num
guidores descansarem e serem rea- ensaio a que chamou Medo, publi-
bastecidos. Havia cidades como esta cado poucos dias antes dessa entre-
NOS CIN
em todo o Midwest”, conta Ma- vista, em que desenvolve a ideia de
EMAS
3 JUNHO
rilynne ao Ípsilon a partir Des Moi- religião associada à ignorância, ao
nes, Iowa, onde Barack Obama a preconceito, à desigualdade, à into-
visitou em Setembro de 2014. Nessa lerância. O seu ponto de vista é a de
altura, o então presidente mostrava- uma cristã — uma “protestante libe-
se grato por poder conversar — pa- ral”, como se define — que vê na
lavras dele — “sobre algumas das ideia de Deus o contrário do medo.
forças culturais que moldam a nossa Alguém que, na literatura que pra-
democracia e moldam as nossas tica, não visa doutrinar, mas ir à an-
ideias, e o que sentimos sobre cida- cestralidade buscar a base para
dania e a direcção que o país deve questionar: o amor, a mortalidade,
seguir”. As imagens do presidente a crença, os mitos, a culpa, o desen-
“Da importância do cinema. Para mostrar,
negro ao lado da mulher branca de raizamento, a solidão, a contradi- denunciar, dar vida.É a convicção partilhada
longos cabelos grisalhos passaram ção, a sexualidade, o conceito de por todos os cineastas entrevistados
nas televisões, fizeram capas de jor- graça e as suas implicações políticas. neste muito instrutivo documentário sobre
nais, foram reproduzidas em duas É que se do ponto de vista teológico os filmes portugueses que retratam o colonialismo”
edições do suplemento The New York Robinson entende a ideia de graça
Télérama
Review of Books. aplicada a todo o ser humano, cria
A primeira pergunta de Obama a personagens que põem a nu um dos
LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES

Robinson foi sobre o medo. “A Amé- pecados mortais da América: a e

Muito por causa da religiosidade — não no sentido doutrinário,


sublinhe-se — que transporta para o que escreve há quem lhe
chame “líder espiritual da literatura americana”. Ela não vê como
esse epíteto lhe possa servir

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 19


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e segregação racial com base no Jack, escrito na perspectiva de Jack, Gilead que abandonou. Dessa rela- oralidade, Jack não repete nenhuma um mundo maior, definem o hu-
sistema esclavagista. Ou seja, nas tarefa complicada tendo em conta o ção nasceu uma filha que morreu. das fórmulas dos romances anterio- mano. E é esse grande tema de toda
décadas de 40 e 50, onde centra a carácter que a sua criadora lhe tra- Jack carrega essa culpa sempre que res de Robinson. Sempre que escreve a obra de Marilynne Robinson. Na
acção dos livros, não é possível es- çou nos romances anteriores e a tem um rebate de consciência, logo a partir de uma das personagens da ficção como no ensaio, com uma
tender essa ideia de graça aos negros partir de quem a escritora acrescenta ele que não acredita no pecado. grande Gilead — chamemos assim ao qualidade que levam a que o seu
americanos. uma instigante pergunta teológica, Como pode haver culpa se não se grupo de quatro romances — procura nome surja como candidata ao No-
Gilead é sobre tudo isso na sua poética, literária: pode alguém ser acredita no pecado? Pergunta o que ela pode trazer de novo, e isso bel da Literatura, uma mulher dis-
essência, na forma fragmentária das condenado à perdição? mesmo se haveria pecado se não implica forma e conteúdo. Por isso creta, nascida no Idaho em 1943.
cartas, na dúvida, num sentido de “Jack ficou na minha mente. De- houvesse Deus. Della responde-lhe talvez se possa dizer que este seja o
fim e de continuidade. No antes, no morei algum tempo a decidir como que talvez sim, mas Della acredita seu romance mais experimental. A democracia como
durante, no depois do tempo em me aproximar dele, como seria a sua em Deus e no pecado. Porque Jack não é uma personagem negociação permanente
que Gilead se conta. No que Gilead voz. Mas começou a parecer-me que “A culpa é simplesmente uma en- fácil. Se em 1981 não houve dúvidas Com 77 anos é autora de cinco ro-
e todas as terras que ela representa ele, como todos os outros, era neces- tre um conjunto de emoções que nos quanto às qualidades da escritora mances, sete volumes de ensaios e
contam, como afirma Marilynne ao sário para uma compreensão desse permitem viver como membros de que então se estreava, 40 anos de- outras tantas reportagens, textos fi-
Ípsilon, “uma história fascinante, mundo”, refere a escritora sobre famílias e comunidades, amar um, pois não se pode falar de uma con- losóficos, análises. Entre eles, Mother
fortemente igualitária, integracio- uma personagem que lhe permite sentir lealdade por outro. As conse- firmação. Marilynne Robinson ga- Country (1989), When I Was a Child I
nista e assim por diante. Tem sido explorar temas que ainda não tinha quências do seu passado [de Jack] nhou um estatuto que poucos alcan- Read Books (2012) ou What Are We
largamente esquecida, juntamente aprofundado, entre eles o racismo. alienaram-no da sua família, outra çam. E, muito por causa da Doing Here? (2018). “Escrevo não-fic-
com as ideias e exemplos muito A voz de Jack soa assim: “É como fonte de culpa. Penso que a culpa religiosidade — não no sentido dou- ção para me educar. Ao longo dos
avançados que teriam servido bem se estivesse no inferno. Sou um ho- pode ser simplesmente uma capaci- trinário, sublinhe-se mais uma vez anos, tenho sido convidada a dar
o país, poupando-lhe muito sofri- mem destrutivo num mundo onde dade humana de fazer um julga- — que transporta para o que escreve palestras. Usei muito frequente-
mento. Estou interessada nas for- tudo pode ser estragado ou danifi- mento objectivo de si próprio, mais há quem lhe chame “líder espiritual mente estas ocasiões para explorar
mas como a história se perdeu e se cado”, ouvimo-lo dizer numa das forte entre as pessoas de consciên- da literatura americana”. Não vê ideias ou suposições que me pare-
reteve.” poucas vezes em que fala de si a al- cia, não necessariamente associada como o epíteto lhe possa servir. “Es- cem erradas, pouco reflectidas. Sem-
No princípio de Gilead, o livro pri- guém que não Della, a mulher por à religião”, afirma Robinson, a escri- crevo para explorar o meu próprio pre senti que existe o risco de qual-
meiro da tetralogia, o calendário quem se apaixona depois de sair da tora que nunca descolou a sua acti- pensamento ou visão, que tende quer escritor ir numa corrente de
assinala o ano de 1956. Nele, um pai prisão. Esse encontro aconteceu por- vidade literária do modo como en- muito para a fé e a religião. Não te- convenções. Faço estes exercícios
de 76 anos, o reverendo John Ames, que se houve algo que manteve da tende e vive a religião, uma cristã nho a presunção de me apresentar para testar os meu sentido crítico.”
ao sentir que o coração lhe falha co- educação em casa foram as boas ma- progressista que explora a ambigui- como líder.” Em When I Was a Child I Read Books
meça a escrever cartas ao filho, uma neiras. “Entre tudo o que o pai lhe dade e a complexidade da fé, inte- Com uma escrita apurada, pró- afirma que a razão pela qual a demo-
criança. Ele será o adulto que Ames tinha cuidadosamente ensinado essa grando a questão numa mundividên- xima da poesia, parte da ideia de cracia é tão difícil é porque os seres
nunca conhecerá e deverá lê-las foi a única lição que Jack reteve. Por cia maior. casa como centro formador, identi- humanos são dados a discussões
como um legado. Nessas cartas, o isso, naquele dia tão importante, ao Jack e Della estão no mundo. tário, demora-se em detalhes do fracturantes. “Demonizamos aque-
reverendo apresenta uma comuni- ver uma senhora deixar cair uma Como todas as personagens de Ro- quotidiano enquanto representati- les que não partilham os nossos va-
dade, um cenário, as personagens braçada de papéis no passeio du- binson têm uma dimensão política, vos de carácter — “a esmagadora lores ou prioridades, e ostracizamos
dos livros que se hão-de seguir. En- rante uma tempestade, tinha atra- religiosa, social, cultural, de classe. inocência da vida doméstica”, como (na melhor das hipóteses) os grupos
tre elas o reverendo Robert vessado a rua para a ajudar a apanhá- Se os vizinhos desconfiarem que se lê num destes livros. No conjunto, que tomamos por serem diferentes”,
Boughton e a sua família, ente eles los. Como o vento tinha arrastado Jack e Della namoram, ela será des- essas miudezas humanas compõem lê-se. Diz ainda: “A democracia é
o filho, Jack. alguns papéis para longe, ele passa- pedida, abandonada pela família e uma negociação permanente que
“Aqui houve heróis, santos e már- ra-lhe o guarda-chuva e correra um toda a sua existência passará a ser requer criatividade, compaixão e
tires, e quero que saibas isso. Porque pouco para os alcançar. Ainda se ri- precária numa sociedade segrega- vigilância.”
essa é a verdade, mesmo que nin- ram daquilo. Em sinal de respeito cionista. O único modo de Jack sair Diante de um texto de Robinson o
guém se lembre dela. Olhando para para com o fato escuro que ele teve desta história de forma honrada é leitor sente-se espicaçado. Robinson
o local, é apenas um aglomerado de
casas enfiadas ao longo de algumas
a honestidade de vender depois de
secar, para deixar de enganar as pes-
deixar Della. Mas Robinson põe aqui
outro elemento calvinista ou shakes- “Ao longo dos anos, é alguém sempre atrás de um melhor
entendimento do mundo, que ensi-
estradas, e uma pequena fila de edi-
fícios de tijolos com lojas, e um ele-
soas desse modo, ela tinha dito:
‘Obrigada, reverendo.’ Ele já não ia
pereano: este é um amor indestru-
tível sejam quais forem as conse- tenho sido nou literatura a partir do Antigo Tes-
tamento, desconstruindo dogmas,
vador de grãos e uma torre de água
com Gilead escrito de lado, e os cor-
chegar a casa a tempo do funeral:
além disso, sentiu escrúpulos.”
quências. No momento em que Jack
apanha os papéis e Della agradece convidada a dar mostrando até que ponto Melville se
inspirou no Livro de Job para Moby
reios e as escolas e os campos de jo-
gos e a estação de comboios, que
A casa era Gilead, o funeral, o da
mãe. Ele estava em St. Louis, vivia
já se denunciou o correr do drama.
Um homem e uma mulher educados palestras. Usei muito Dick e alertando para a importância
das camadas de sentido que podem
agora está muito bem entregue à
erva daninha. Mas como terá sido a
num quarto alugado numa pensão
barata e havia noites em que dormia
na religião, ele presbiteriano, ela
metodista. Ele sem fé, ela crente, ele frequentemente existir por trás de uma palavra.
Publicado em 2004, Gilead sai
Galileia? Não se pode dizer muito
acerca da aparência de um lugar”,
no cemitério. Deambulava. “Sou um
sujeito duvidoso. Não. Isso faz-me
um vagabundo, ela uma menina de
família. Ele branco, ela negra. Mas estas ocasiões dessa reflexão. No Livro dos Génesis,
o primeiro da Bíblia, Gilead é um
escreve Ames sobre esse núcleo que
alimentou, até agora, quatro clássi-
parecer interessante. Sou um vaga-
bundo, sem ambições nem ilusões.”
Robinson garante que não se limitou
a juntar opostos, até porque eles para explorar ideias lugar mencionado na história de
José. Uma descrição vaga feita pelos
cos: Gilead (1981), Home (2008), Lila
(2014) e agora Jack. Neste Robinson
As vozes de Jack — parecem mais do
que uma — soam cruzadas. Como se
têm muito em comum. “Ambos pro-
vêm de famílias sólidas e respeitá- ou suposições que mercadores que compararam José
aos seus irmãos. Robinson recupe-
recupera uma das personagens mais
problemáticas desse território, um
Jack se olhasse de fora, sempre a ten-
tar interpretar-se, ou então é Jack a
veis e os dois cresceram na igreja,
por isso há todo o tipo de orações, me parecem erradas, rou-a e deu-lhe vida na América a
partir de John Ames, que escreve
dos quatro filhos de Boughton, um
desajustado. “Que direito tens tu de
mergulhar na sua essência. E depois
a voz audível, a dos diálogos, muitos,
hinos e textos que ambos sempre
conheceram. Ela tinha ido para a pouco reflectidas. assumindo as suas contradições pes-
soais ao narrar a saga da família, as
ser tão estranho?”, perguntou-lhe a
irmã mais nova ainda em Home. Ele
a partir dos quais a maior parte da
trama se desenvolve, um contraste
Spelman, uma bela e antiga facul-
dade para mulheres negras. Ele an- Sempre senti gerações que o antecederam. Do pai,
pacifista cristão, ao avô, capelão du-
desaparece e aparece quando quer,
duvida da existência de Deus, é vio-
com as longas descrições ou monó-
logos introspectivos dos romances
dou, pelo menos, pela faculdade e
recebeu uma educação do irmão, que existe o risco rante a Guerra Civil.
Alguns críticos têm-se referido a
lento, embebeda-se, engana os que
confiam nele. Em Gilead, John Ames
que o precederam.
Mas a voz de Jack ganha identidade
dos seus antepassados e dos seus
livros. Como ela também. Os obstá- de qualquer escritor Jack como romance calvinista. “Não
sei bem o que significa. Os primeiros
já se interrogara acerca do paradeiro
de Jack, da esperança do pai em re-
sobretudo quando encontra a voz de
Della, a mulher que deixou os papéis
culos entre eles são leis e códigos
arbitrários, certamente não a cul- ir numa corrente escritores americanos que admiro
são, pelo menos culturalmente, cal-
ver o filho. “Ele [Boughton] tem es-
tado bem disposto desde que teve
voarem à chuva. Della é professora,
jovem, amante de poesia, negra. Os
tura ou a religião. Jack afirma não
ter qualquer crença, mas é tão for- de convenções. vinistas. O próprio Calvino tem sido
importante para o meu raciocínio.
notícias do Jack. ‘Ele estará em casa
em breve!’ disse ele. Quando lhe per-
dois encontram-se nos anos 40 em
St. Louis, Missouri, onde não são
mado por hábitos religiosos de pen-
samento como ela. Penso que mui- Faço estes Mas a palavra ‘calvinista’ ocorre nor-
malmente num contexto polémico
guntei de onde vinha, Boughton
disse: ‘Bem, o carimbo na carta diz
permitidos relacionamentos inter-
raciais. Jack sabe que representa um
tas pessoas no mundo ocidental são
agora assim, profundamente in- exercícios para que nada tem a ver com eles ou com
ele. Ou comigo, já agora. E peço des-
St. Louis’.”
Jack é o filho pródigo, aquele por
perigo para Della por ser branco.
Todas as outras fraquezas nem con-
fluenciadas por uma cultura reli-
giosa que já não compreendem nem testar os meu culpa se estou a defender-me (e ao
meu livro) desnecessariamente.”
quem todos esperam que regresse
redimido. Jack é o protagonista de
tam. As já aqui mencionadas e o facto
de ter engravidado uma rapariga em
adoptam.”
Profundamente poético, de grande sentido crítico” Jack brinca, é um “príncipe das
trevas”, um Hamlet, “o homem mais

20 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021


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só à face da terra”, indiferente à mo- sentido, visionária ou reveladora.


ciclo jazz 05 junho 21:00
ral à religião, aos costumes. “Seria Isto requer tanto abertura como es- sala suggia
uma tarefa delicada, defender pe- forço de interpretação. O ‘conflito’

ORQUE E
rante a filha de um pastor que, em é realmente uma consciência de
certos casos, havia considerações complexidade, uma consciência que
mais importantes do que a morali- está fortemente presente na inter-
dade, em teoria. No que dizia res- pretação de Jack de todos os aspec-

JAZZ D
peito àquela peça, que podia ser tos da sua experiência.”
sobre a diferença entre o amor e a Mas a pergunta permanente, a
solidão, e sobre o facto de as pessoas mais antiga de Jack, era: “como vi-
de um lado não compreenderem as viam as pessoas?” O deambular pela
do outro.” À partida, Jack e Della cidade, a poesia, a literatura davam-
representam opostos. Marilynne é, lhe pistas. Della abriu-lhe outra
no entanto, mais precisa ao subli- porta, prometedora, e com ela
nhar: “Há uma atracção simples, trouxe poemas, como auxiliares. De
claro. E o facto de ela ser gentil e W. H. Auden, de William Carlos
educada com ele quando ele acaba Williams, de John Milton. A poesia
de sair da prisão”. Mas isso seria sim- parece redentora, desempenhando
plificar. “Jack era um patife quando mesmo, no romance, a ligação entre

STRA
MATO
era rapaz, cruelmente irresponsável estes dois sentimentos: fé e amor.
quando era jovem — e, desde então, “A poesia é uma das expressões
tem aspirado irada, mas seriamente, profundas da distinção humana,
à inocuidade. Della decide desiludir algo que nos torna uma esplêndida

SI
as esperanças da sua família e aban- anomalia entre as criaturas. Pessoas
donar um trabalho importante. Tal- que a valorizam encontraram o seu
vez essa fosse a escolha mais piedosa caminho para um mundo libertado,
ou idealista que ela poderia ter
feito.”
Já muitas vezes tinha tocado no
assunto, mas nunca como em Jack:
como um belo cemitério à noite”,
diz Robinson, que em criança escre-
via poemas numa pequena cidade
pérfida nas montanhas do Idaho,
NH
OS
Robinson elevou a raça a tema prin- enquanto o irmão pintava. Dois anos
cipal da sua literatura. Quando a mais velho, ele era um cicerone na
“ORNETTE,
irmã de Della pede a Jack que se
afaste, revela um dos aspectos mais
vida de Marilynne. Um dia ele disse-
lhe: “quando crescermos, eu pinto THIS?”
WHAT IS PEDR
ambíguos desta questão. Estamos, e tu és um poema”. Ela continuou a O GUEDES direcção musical
convém lembrar mais uma vez, nos escrever poesia, mas desistiu. En-
anos 40: “A minha família e muitos controu na prosa a sua expressão WWW.CASADAMUSICA.COM / 220 120 220 APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA

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convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.
modo de vida que procura desen- o encontro de um homem e de uma
volver a autossuficiência da raça mulher à noite, num cemitério,
negra através da prática do separa- numa cadência de diálogos que in-
tismo, na medida do possível na diciam desconforto, sensualidade
sociedade actual. Eu sei que há reprimida, medo, frio, punição. Sem
brancos a quem o separatismo in- se exceder.
digna, apesar das alternativas lhes Quem já leu os livros anteriores da
suscitarem a mesma indignação. agora tetralogia Gilead sabe que a
Não estou a pedir a sua opinião so- decisão de Jack e Della de seguir o
bre esta questão. Só quero explicar curso desse amor irá carregar tragé-
que a minha objecção não é contra dia. Mas ler ou não ler um deste li-
si enquanto indivíduo.” vros não retira o valor individual de
Robinson expõe, complexifica o cada um. São peças autónomas que,
que não pode ser simplesmente dito. no conjunto, ajudam a iluminar uma
E ao expor não se quer substituir aos ideia melhor do que é a América e a
que acha mais capazes de escrever sua relação com a diferença, a reli-
sobre a raça, na América. “A maior gião, a ideia de nação, mas também
ajuda que virá da literatura será o a condição universal do humano. Na
trabalho realizado pelos muitos e cronologia, o último romance, Jack,
bons escritores negros que surgiram situa-se num tempo antes de Gilead
nos últimos anos”, afirma. e de Home. Em Gilead e Home, Jack
E põe na boca de Jack, no seu regressa ao Iowa. Ele, Della e o filho
modo atormentado de viver, a difi- de ambos foram forçados a deixar a
culdade de combinar doutrina ou casa de St. Louis acusados e miscige-
teologia com sentimentos. Jack nação. Segue-se um desencontro. “O
questiona o reverendo de uma co- país tinha criado uma estrutura cruel
munidade negra de St. Louis sobre para dificultar a existência de filhos
a relação entre teologia e experiên- assim”, lê-se em Jack, onde Robinson
cia. Em criança fizeram perguntas ensaia um pensamento sobre a Amé-
semelhantes ao pai. “Certa vez, rica actual a partir do seu passado.
quando era pequeno, tinha pergun- “É um choque apercebermo-nos do
tado ao pai se o Diabo sentia arre- pouco que avançámos em certos as-
pendimento. O pai respondera: pectos, e da pouca garantia que te-
‘Bem, sabes, é possível que o Diabo mos de que os ganhos que parece-
seja só uma figura de estilo’. Em he- mos ter obtido são seguros. Histori-
braico, Satã quer dizer adversário, camente tem havido um grande
etc. Por isso Jack não fez a pergunta recuo, e estamos a ver que agora,
seguinte, sobre se o Diabo teria pe- embora haja também uma forte ten-
sadelos. Nas conversas bem-educa- dência progressista na cultura e uma
das, não há espaço para abismos.” boa e forte voz afro-americana no
Marilynne: “Há uma tradição muito nosso governo e na nossa sociedade,
forte em teologia que considera a o que é um verdadeiro avanço único
experiência como sendo, num certo para este momento.”

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 21


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Interrogações, partilhas

PEDRO SANTASMARINAS
tudo isto”, diziam-nos uma hora an-
tes, numa escola primária transfor-
e emoção, da parte mada em atelier de criação. “É preciso
democratizar as ferramentas, as ma-
de artesãos ou artistas neiras de fazer, sejam as do Sr. Antó-
e designers, numa série nio ou as nossas, e tentar cooperar”.
Essa é a marca das residências da 1ª
de residências integradas Bienal Art(e) Facts, que juntaram du-
rante um mês artesãos e criadores
na bienal Art(e) Facts, contemporâneos em aldeias da Beira
Interior: criaram-se vínculos e parti-
expuseram o potencial lharam-se experiências. Depois, há
do território e das aldeias objectivos mais programáticos, como
a preservação, o mapeamento e acti-
da Beira Interior. vação das artes e ofícios do interior,
num diálogo com artistas, designers
ou arquitectos, obrigados também

Vítor eles a reinterpretar a sua actividade.


“A ideia surgiu no contexto da candi-
datura da Guarda a Região Europeia

Belanciano da Cultura, integrando a bienal a área


de Arquitectura e Território da qual
sou responsável”, enquadra a cura-
dora do projecto, a arquitecta Andreia
Garcia. “Constituir um património
contemporâneo de obras artísticas
que têm em conta a valorização do

S
PEDRO SANTASMARINAS
obre afecto, emoção, coope- território e a recriação dos saberes
ração. “Tenho 85 anos, sou tradicionais, e de forma mais vasta a
cesteiro há 75, não ando acção colaborativa entre seres huma-
muito bem de uma artrose nos, espécies ou saberes como res-
do joelho, mas esta rapaziada posta às emergências ambientais, é o
é alto lá com eles, é gente do que norteia esta edição.”
melhor que já vi, é como família. Nes- As actividades iniciaram-se com
tas semanas já fizemos de tudo e mais uma open call internacional para apre-
alguma coisa juntos”, diz-nos António sentação de projectos, produzidos em
Nunes dos Santos na sua horta, num residências artísticas, com a colabo-
intervalo da actividade na oficina. Es- ração de artesãos locais, envolvendo
tamos na localidade da Alcongosta, os municípios do Fundão e da Guarda.
perto do Fundão. Aos quatro vencedores, de um total
Não distante está a esposa e três de 110 propostas, juntaram-se a artista
rapazes de fato-macaco, os arquitec- Fernanda Fragateiro e o colectivo Wa-
tos Diogo Rodrigues, Fernando Pi- rehouse, convidados pela organiza-
menta e João Oliveira. Desenvolveu-se ção. As residências culminam a 2 de
uma relação de afeição entre todos. Julho, com a apresentação dos projec-
Há cumplicidade nos gestos. “Acredi- tos numa exposição que estará pa-
tamos na recolha de conhecimentos, tente até Setembro em seis pontos —
mas também na partilha, no envolvi- Alcongosta, Janeiro de Cima, Telhado,
mento e na componente social de Famalicão da Serra, Gonçalo e Fun-

DR
Bienal Art(e) Facts
A criação
contemporânea
está nas aldeias
do interior
O colectivo Warehouse, que operou no Fab Lab do Fundão, explorou o potencial da fabricação digital ; os arquitectos Diogo Rodrigues, Fernando Pimenta e João Oliveira
ladeiam o artesão António Nunes dos Santos, na oficina deste, onde desenvolve a sua técnica de cestaria de castanho; a artista Fernanda Fragateiro e Fernando Meireles
olhando algumas peças produzidas em colaboração com o artesão Alberto Carvalhinho
22 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021
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dão. A 9 e 10 de Julho haverá ainda um


fórum de ideias. “Todos estes
Revitalizar e pensar o futuro do in-
terior, a partir da cultura, são ideias saberes tradicionais
com horizonte. Mas para isso há que
cuidar da memória. E aí há muito a em vias de extinção
fazer. Fernanda Fragateiro, que opera
sempre na ligação entre arte e vida, são uma afronta.
na sua dimensão política, e que tem
vindo a desenvolver uma investigação Não estão apenas
contínua em matéria de arquivo,
sabe-o bem. “Todos estes saberes tra- num processo
dicionais em vias de extinção são uma
afronta. Não estão apenas num pro- de desaparecimento
cesso de desaparecimento na conti-
nuidade do fazer, mas da história. na continuidade
Faltam arquivos, documentação, fo-
tos, cartas. Alguma coisa haverá, mas do fazer, mas
quando se chega a esta terra, que ti-
nha não há muitos anos 600 pessoas da história”
a operar com estas técnicas, fica-se a
pensar para onde se esvaiu toda essa
memória.”
Fernanda Fragateiro
Essa terra é Gonçalo, onde Fraga-
teiro colabora com Alberto Carvali-
nho, que começou a trabalhar em
cestaria de vime em 1978. Quando lhe
perguntamos, na sua oficina, como foi uma exposição no museu de arte con-
trocar ideias com a artista, ele sorri. temporânea de Elvas, com curadoria
“No início foi difícil, porque esta ca- de Delfim Sardo, com peças dos últi-
beça quer é descansar. Mas fui-me mos dez anos, mas onde há uma peça
adaptando, sem prescindir do que é nova com a rafia que existe na agricul-
mais precioso: o tempo. É preciso tura. Acaba por ser um pequeno diá-
chegar satisfeito ao fim, leve o tempo logo com Alberto Carneiro, que utili-
que levar.” Fragateiro elogia-lhe o per- zava estes materiais naturais que me
feccionismo. “É inteligente, culto, têm interessado ultimamente.”
dedicado, rápido a pensar e a fazer.” Ela, que gosta de intervenções em
Quando chegou à localidade, per- espaços inesperados, escolheu um
dida, algures, entre as serras da Gar- solar semiabandonado de Gonçalo
dunha e da Estrela, “vinha com uma para expor as peças concebidas com
ideia de replicar umas persianas, Carvalhinho.
umas peças em vime, uns quebra-sóis Não longe situa-se Famalicão da
muito bonitos, que o arquitecto Serra, onde Joaquim Venâncio, 78
Eduardo Anahory criou para o hotel anos, e a esposa, Irene, são dos últi-
de Porto Santo nos anos 60”, conta. mos praticantes da cestaria de casta-
“Há poucos registos dessas peças, nho. Ali a experiência com a dupla de
apenas algumas fotos fantasmagóri- designers alemãs Anja Lapatsch e An-
cas. Mas foi essa a primeira conversa nika Unger, sediadas em Berlim, pas-
com o senhor Alberto e agora esta- sou por diversas fases. O primeiro
mos a fazer uma peça que se apro- contacto não foi fácil pelo obstáculo
xima desses tais quebra-sóis. Depois da língua. “Mas depois, nem que seja
o desafio era tentarmos levar este a nível emocional, a coisa foi aconte-
material e esta técnica para uma es- cendo”, reflecte Anja, “e isso foi uma
cala da arquitectura e menos para a aprendizagem. Parecia que tínhamos
do objecto.” 5 anos, usando as mãos e o coração
Pelo meio sucederam-se momentos para comunicar.” Na sua prática o
de partilha. “Ontem eram quase nove design adquire um cunho experimen-
da noite e ainda estávamos à conversa, tal, explorando a cultura material e os
esquecidos do tempo, a ver livros e fenómenos culturais para revelar ca-
documentação, eu, ele e o Filipe Mei- madas de conhecimento ocultas.
reles, que trabalha comigo. Não vim À sombra de uma árvore, perto da
aqui para dar lições. Aqui, só tenho a oficina-cave onde costuma operar,
aprender. Interessa-me a ideia de co- Joaquim Venâncio acaba por confes-
laboração. Aborrece-me estar comigo sar que existiu um momento definidor
própria. E é preciso também haver da relação. Quando as alemãs insisti-
tempo para outras coisas, como ir à ram em acompanhá-lo na recolha do
junta de freguesia, ver documentos castanho. “Está a ver o cimo daquela
que vão apodrecer se ninguém os di- serra, ao lado daquele pinhal?”,
gitalizar. Essa dimensão acaba por me aponta, “foi ali que fomos cortar a
entusiasmar.” madeira. É duro. Corta-se, esgalha-se,
A matéria-prima é plantada pelo faz-se feixes, tem de se acartar. De-
artesão. Mas é insuficiente. “Este pois, estando aqui, é rachar, passar e
vime, por exemplo, é importado do fazer. O mais difícil é arranjar a ma-
Chile”, diz. “Uma das coisas que me deira. E elas estiveram em todas. São
chocou quando aqui cheguei foi per- meigas, amigas de trabalhar e gostam
ceber que o vime é escasso. Não há de aprender.” A senhora Irene re-
ninguém que trate disto, não há inves- força: “Quando se forem vou sentir
timento”, reflecte, argumentando que muito a sua falta.”
de forma intuitiva se tem vindo a apro- Elas confessam que tiveram de UNIÃO EUROPEIA

Fundo Europeu
A

de Desenvolvime
ento Regiona l

ximar de algumas das técnicas com adaptar as expectativas — “a ligação


que se foi confrontar ali. “Vou fazer entre o castanho e a resina de e
ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 23
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A matemática

PEDRO SANTASMARINAS
Barro está uma coelheira, objecto sair dali é uma projecção ou reflexão
que, segundo Nuno, “replica uma sobre isso mesmo.” Vanessa
toca.” O objecto interessou-o. “Num De regresso a Alcongosta, encon- Foster,
primeiro momento, pareceu-me uma tramos os três jovens arquitectos en- que utilizou
peça cuidadora, feita para acolher os volvidos num processo de experi- algoritmos
animais. Mas percebi que também mentação pelas potencialidades da na feitura
funcionava para aí ter coelhos para técnica e da matéria da cestaria de de peças
mais tarde serem mortos.” Resultado? castanho. Percebe-se que estão a fruir de tecelagem
“Estou a trabalhar numa narrativa, da prova. “É uma aprendizagem in- na aldeia
através de vídeo, explorando esse tensa”, diz Diogo Rodrigues. “O tra- de Janeiro
paradoxo do cuidar e do matar. E es- balhar aqui, conhecer os artesãos, o de Cima;
tou a descobrir coisas interessantes, modo de produção do castanho: é de O artista Nuno
como o facto de, até há pouco tempo, uma riqueza imensa vislumbrar esse Vicente, que
em algumas aldeias, ser comum ma- conhecimento.” O reverso é a percep- se envolveu
tar-se os animais dos vizinhos e não ção de que muitas das actividades na arte
aqueles que cada um cuidava. Muita estão em perda. “Há dificuldades eco- da olaria
na aldeia

PEDRO SANTASMARINAS
gente não matava os animais que nómicas, falta de rentabilidade, de
criava.” atenção e de apoios públicos e falta do Telhado;
As peças vão ficar expostas numas de divulgação.” o artesão
ruínas perto da aldeia, onde todos “Uma coisa que nos surpreendeu é Joaquim
esses binómios entre vida e morte, a escassez da matéria para trabalhar”, Venâncio,
entre o lugar cuidado por seres huma- refere Fernando Pimenta. “Nesta fre- um dos
nos e abandonado por estes para ser guesia e na do lado existem apenas últimos
apropriado por outras espécies, acaba quatro cesteiros de castanho. Há aqui da cestaria
por estar em diálogo, formando outro uma riqueza de conhecimento téc- de castanho
tipo de paisagem. nico, e um brio no fazer, que não se vê na localidade
Por falar nela, na paisagem: para se por aí.” E depois existe ainda a singu- de Famalicão
chegar à aldeia de xisto de Janeiro de laridade de António Nunes dos San- da Serra,
Cima, vindos do Fundão, defrontamo- tos: “Comecei a fazer peças diferentes, a operar
nos com uma estrada aos ziguezagues, que não se faziam e que tirei da minha na sua oficina
e o rio Zêzere no vale, onde se encon- cabeça.” Um artesão particular, reco-
tra a Casa das Tecedeiras, centro in- nhecido por João Oliveira.
DR

terpretativo do linho e da tecelagem “Teve essa capacidade de adaptar


onde a peruana Andrea Canepa e a aquilo que era a sua técnica para ou-
matemática canadiana Vanessa Fos- tros usos e formas. O que vai de en-
ter, a residirem em Berlim, desenvol- contro a um dos eixos da nossa pro-
veram a ideia singular de tecer a partir posta — a investigação sobre a maté-
de algoritmos. “A Vanessa desenhou ria, o processo, o território, numa
um modelo através dos algoritmos e lógica documental. Por outro lado
da informação fornecida que acabou interessa-nos ver o que dá para explo-
por originar a estrutura tangível que rar, do ponto de vista da matéria, da
deu forma às peças concebidas”, técnica, da instalação artística ou de-
conta Andrea. “Não é o tipo de pa- senho arquitectónico.” No culminar
drões a que aqui estão habituados mas da residência, o trio pretende criar
a reacção foi boa.” Para Vanessa é uma instalação que seja tanto objecto
como se “a matemática desenhasse artístico como suporte de exposição.
um modelo e no processo encontrasse A 2 de Julho, nas ruas de Alcongosta,
o design e a arte.” Ou dito de outra se verá.
e pinho, com a qual já trabalhá- lidade do Telhado. “Quando cheguei forma pela tecedeira Sónia Latado: “O Mas o principal já foi garantido. “A
mos, era a ideia inicial”, referem — às aqui pensava que iria trabalhar com processo exigiu readaptação e foi di- forte presença do artesanato neste
circunstâncias. “Um dia eles senta- alguém bem mais velho, mas apare- ferente do que fazemos por aqui, mas território vai além dos objectos ou
ram-se aqui e, certamente, aos seus ceu-me Cátia Pires, nos seus trintas, o resultado acaba por conter qualquer oficinas. Muitas vezes são as dimen-
olhos, estávamos a fazer coisas doidas que se licenciou na ESAD das Caldas coisa de tradicional.” sões imateriais que definem os terri-
com a resina. Percebemos que tínha- como eu”. Ele vive e trabalha entre No Fab Lab do Fundão o colectivo tórios”, reflecte a curadora Andreia
mos de os integrar no processo do Madrid e Alicante, onde desenvolve de arquitectura e arte Warehouse Garcia. “É a prática de gerações que
design”, diz Anna. “A sua acção ia um borboletário em expansão livre acaba por desenvolver algumas ideias define a identidade destes lugares.”
sempre na direcção do objecto. Fa- para um jardim, o que acaba por ter com pontos de contacto. Os projectos Uma identidade que poderá estar em
zem cestos o ano todo e não podía- pontos de contacto com a sua pro- procuram contribuir para a constru- causa por escassez de matéria ou de
mos pensar que na nossa presença posta actual. “Por norma o meu tra- ção colectiva e responsável do espaço circuito comercial justo, mas que
iria ser diferente. Desistimos da re- balho passa-se na paisagem e aqui público e privado. No caso concreto pode ser ainda revalorizado. Há sinais
sina. Recentrámos o trabalho, desen- queria criar peças destinadas a auxi- trata-se de explorar o potencial da contraditórios. Há sensação de perda.
volvendo algo com o qual eles se pu- liar a vida — de insectos, pássaros, etc fabricação digital para a criação de Mas também potencial. Falta activá-
dessem conectar, porque acredita- — na chamada ‘terceira paisagem’, de sinergias e novas ideias, adaptadas ao lo. Vive-se um momento histórico
mos no design inclusivo.” E assim baldios a espaços abandonados, que território e aos produtos oficinais. onde a apetência pelos saberes pere-
acabaram por criar, a quatro mãos, na sua maioria têm mais biodiversi- “No início ficámos na dúvida se a fa- nes existe. A cooperação com outros
objectos que não são de cestaria tra- dade que as áreas verdes lúdicas e bricação digital estaria a par da cesta- conhecimentos pode ser alavanca. E
dicional, embora com elementos urbanas.” O propósito é promover a ria, olaria ou tecelagem”, diz Monica não é apenas o artesanato que pode
desse ofício. “É interessante para eles, reflexão sobre novos conceitos de Di Eugenio, “mas fomos encontrando ser repensado num diálogo dual.
e para nós, no sentido de alargarmos natureza e de paisagem, recorrendo respostas, porque a fabricação digital, Também a arte contemporânea.
o leque de escolhas. As coisas muda- à olaria, onde contou com a colabo- para além de ser um processo, é tam- “Os intervenientes quiseram docu-
ram. Já não existe grande utilidade ração de Cátia Pires. “Quando chegou bém ferramenta, um ofício em si. É mentar as diferentes fases do pro-
para os cestos de agricultura, mas há houve uma troca de ideias rápida e algo que permite transformar objec- cesso, o que é sintoma do seu questio-
para outro tipo de objectos, como logo na primeira semana estávamos tos ou espaços.” E aponta para um namento”, reflecte Andreia. “Quando
estes, até do ponto de vista comercial, a explorar coisas”. É ela a responsá- carrossel a ser recuperado. “Foi res- falamos de cultura imaterial, que é o
com uma forma de sentar, mesmo vel pelo atelier de barro. “Estudei gatado do lixo dos arraiais da câmara conhecimento, o resultado maior não
que pareçam algo rudimentares.” cerâmica na ESAD, mas quando e é um objecto com forte componente é o produto da residência, mas a di-
Joaquim Venâncio diz que os mais houve a oportunidade de ingressar de memória colectiva. Quisemos tra- mensão da experiência para o artesão,
novos já não querem saber do seu neste projecto de olaria fiquei encan- balhá-lo, reflectindo sobre o papel da o artista, o território, para os habitan-
ofício. Mas não é uma inevitabilidade. tada. Fui aprender e hoje é a minha fabricação digital e como ela pode dar tes da aldeia, e para nós como espec-
Que o diga o artista Nuno Vicente, em paixão.” nova vida a peças obsoletas ou de tadores ao encontro do lugar que
residência na Casa de Barro, na loca- Na exposição patente na Casa do memória colectiva. Aquilo que vai detém a memória total.”
24 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021
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E
m tecido de algodão, as pintu- amarelos, preto, rosas. Uma paleta entre as duas”, assevera a artista. “O ritmos, de padrões. “A ideia de pa- Christina Ramberg [1946-1995]. Tinha
ras de Francisca Carvalho determinada pelas condições do es- meu trabalho é metabólico, vem do drão interessa-me, não enquanto uma maneira de reconfigurar o corpo
(Coimbra, 1981) provocam paço de trabalho. “Na Índia, no exte- corpo, é uma linguagem. Preciso de desenho ou unidade [do padrão], a partir da ideia de invólucro muito
uma espécie de transe. Pa- rior, [a paleta] abre, embora não fazer isto. Não é uma coisa que arqui- mas ritmo que depois parto. Essa interessante. Invólucro e corpo re-
drões entrecortados, ritmos, muito. Gosto de trabalhar com as li- tecte absolutamente e que me ponha ideia específica fui buscar a uma tra- criam-se mutuamente. Ela pinta so-
cores, recortes de corpos, ge- mitações, de estar em pé de igual- a executar a partir de uma coisa que dição têxtil africana que se chama bre madeira, com formatos rectan-
nitália vão-se despegando das super- dade com as circunstâncias, em vez projectei. Não é domínio da projec- Kuba [da região homónima, na actual gulares, há uma ideia de recorte, de
fícies na Galeria Municipal de Arte, de querer logo mudá-las”. É dos limi- ção, mas da prática. Há alguma pro- República Democrática do Congo] e armadura, quase apocalíptica”.
Almada. Ao fim de alguns minutos, tes ou das condições encontradas jecção, mas é rudimentar. Deixo a aos têxteis japoneses que encontra- Nos corpos recortados pela pintura
envolvem quem passa e vê. O efeito é que o trabalho começa: pintura a intuição e o corpo fazerem o resto”, mos no livro com padrões de ondas de Francisca Carvalho a atmosfera é
físico, sensorial, mental. Poético e partir de uma técnica associada ao explica. “A ideia é saturar o trabalho Hamonshu”. Com os ritmos dos pa- mais leve, tem mais graça, transmite
erótico. Com esta imperfeita sinopse, têxtil, com o atrito que o tecido ofe- com muitas leituras, preparação, drões, ou isolada num recorte do uma sensação benigna de transe.
introduz-se a experiência de Às nonas, rece ao gesto, tornando-o mais lento. para depois chegar a um estágio em tecido, insinuava-se, também, uma “Tem a ver com a repetição”, diz.
Midas nos dedos medram e mondam, “Se fosse um trabalho têxtil, seria que possa não pensar”. Fazer apenas? erótica fina, poética, ali mais explí- “Interessa-me essa tradição que
exposição individual da artista na ci- tapeçaria”, nota, “mas [a técnica] “Exatamente, por que é aí que se dão cita, acolá mais subtil. “É um ele- passa pela música, mas também pela
dade da margem sul do Tejo. No es- tem a sua origem na tinturaria têxtil, as verdadeiras sinapses”. mento que está no meu trabalho. qualidade do tecido e das cores. Al-
paço, as cores, feitas de tintas vegetais usada, por exemplo, nas tapeçarias Diverte-me. No domínio da porno- gumas [das cores] vêm de plantas
e naturais, vão ressoando dentro e à do século XVI, quando não havia pig- Sensação grafia, há algo de erótico que tem sido usadas em rituais, fazem parte de
volta dos contornos. “Tem muito a mentos sintéticos. As pessoas recor- de plenitude um olhar masculino a tratar. Gosto oferendas. Outras são pigmentos usa-
ver com a materialidade da cor, a cor riam às plantas e aos minerais para Para essas sinapses, a música tem da ideia de ser mulher a fazer isso dos para fertilizar a terra, na jardina-
como matéria”, sugere a artista. “São fazer as cores. Tinham uma intuição papel muito relevante. “É uma cons- (risos)”. gem e na agricultura”.
[o resultado] de processos de tintura- muito aguda, pré-química, alquímica tante, sim. Vem muito da música. A fragmentação da pintura dá a ver Num passo, regressámos ao
ria muito antigos, alguns com milha- dos elementos. Percebiam como se Enquanto fazia estas pinturas, estive corpos ou partes de corpos, em esca- Oriente e à Índia. “O [Rainer Maria
res de anos, no Oriente e, sobretudo, transformavam. Era um jogo com a a ouvir a minha peça preferida do las e formatos diferentes. Espreitam Rilke] diz que há uma matriz da feli-
na Índia”. Processos que conheceu matéria”. Karlheinz Stockhausen, Stimmung e escondem-se torsos, pernas, ven- cidade, uma sensação que perdura
neste país com o apoio de bolsas das Em certa medida, é esse jogo (1968). Aliás, dele, é a de que gosto tres, rabos, mãos. O humor assoma da infância. Associo essa memória de
fundações Oriente e Calouste Gul- (sendo outro) que a artista propõe em mais. É uma peça para seis vozes em num ritmo que ressoa, que se escuta felicidade, essa sensação de pleni-
benkian. “Visitei o Rajastão e o Guja- Às nonas, Midas nos dedos medram e que [o compositor] vai buscar ritmos sem se deixar apanhar. “Há um grupo tude, a uma relação com as plantas,
rat [estados da Índia]. Na primeira mondam, como aliás, também, na polifónicos, influências dos mantras de artistas que me interessa no trata- a terra, a água, num quintal na Serra
vez, durante seis meses, estive numa exposição Cosmic Tones no Centro e nomes de deuses. Da Polinésia, hin- mento da figuração humana”, aponta da Estrela. Na Índia, quando cheguei,
pequena fábrica onde aprendi com Internacional das Artes José de Gui- dus, de várias culturas. Incorpora-os Francisca. “São os Imagists de Chi- tive a mesma sensação de plenitude.
os tingidores.”, conta. “É um pro- marães. Patente até 5 de Setembro, nas vozes e na música”. A acompa- cago [surgidos nos finais dos anos 60 Não precisei de recorrer à linguagem
cesso lento. Quando as comecei a fa- no âmbito do programa artístico con- nhar a artista estiveram, também, do século passado e associados ao verbal para me exprimir. Sentia uma
zer, transformei o meu atelier numa cebido pela curadora-geral Marta cantos dos monges tibetanos, música Instituto de Arte de Chicago], em par- espécie de harmonia com as pessoas
cozinha. As cores que se vêem aqui Mestre, esta individual apresenta de- tocada com [o instrumento de cordas ticular o grupo Hairy Who, que re- que estavam a trabalhar. Havia uma
são as possíveis”. senhos a guache e pastel de óleo so- indiano] rudra veena, muito canto e criaram muito a arte pop. Foram aprendizagem mútua de gestos, sem
Índigo ou azul escuro, verde acas- bre papel Jaipur (capital do estado percussão. De volta às pinturas, pres- muito refrescantes e, entre eles, há falar. Isso gerava uma sensação de
tanhado, cor-de-laranja, cinzento, indiano do Rajastão). “Há relações sente-se, a animá-las a presença de uma artista que me interessa muito, plenitude”.
DANIEL ROCHA

MMMMN
Às nonas, Midas nos dedos
medram e mondam
De Francisca Carvalho
ALMADA. Av. Dom Nuno Álvares Pereira 74A.
Até 12 de Junho.

Sob transe, nos ritmos e nas cores


das pinturas de Francisca Carvalho
Na Galeria Municipal da Almada, a artista Francisca Carvalho
apresenta um conjunto de pinturas realizadas a partir
de processos de tinturaria. Em que os corpos fragmentados
José sugerem uma erótica e um humor inspirados nos elementos
Marmeleira naturais, na música e nas cores. Até 12 de Junho.
ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 25
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VERA MARMELO
sem se implicar, aceita a conversa

Cinema da mãe (sobre o pai supostamente


morto antes de ela nascer) sem
acreditar. De certa forma, entre os
primeiros planos de Raparigas e os
últimos, que os rimam, o que se
passa é só isto: aquela miúda
ganhou uma voz.
Estreiam Projecto delicado, o de Pilar
Palomero: estar à altura da
O espírito infância. Em questões muito
práticas, primeiro, com a sua
da Espanha câmara sempre naquela meia
altura do rosto de uma rapariga
dos anos 90 pré-adolescente, os adultos quase
demasiado grandes para caberem
Espanha já deu grandes em campo. Filmar os olhos e as
filmes sobre a infância e expressões de Celia (assim se
chama a protagonista, interpretada
Raparigas não desmerece. por Andrea Fandos) é uma
Luís Miguel Oliveira obsessão para a câmara de
Raparigas Palomero, que ela consegue, quase
O espanto é uma constante em toda a exposição paradoxalmente, com uma
Las Niñas
delicadeza e uma distância que
De Pilar Palomero
Com Andrea Fandos, Natalia nunca falham e que a distinguem
desmedidamente impositivo e percebermos, passado o primeiro da muito mais violenta e invasiva

Exposições recheado de referências


historicistas, à boa maneira da
moda arquitectónica pós-moderna
fragmento de segundo de
observação do espaço, que o que
vemos não é arquitectura, a tal
de Molina

mmmnn
câmara dos irmãos Dardenne (em
Rosetta e outros filmes). E, depois,
estar à altura do mundo da
dos anos 80 do século passado, arquitectura visualmente estridente Raparigas abre com a expressão de infância, pleno de mistérios e
convoca vagamente o modelo da de que falávamos, mas obra uma ideia fortíssima: um grupo de incompreensões por si mesmo mas
mastaba egípcia ou do zigurate escultórica que se confunde com raparigas, doze, treze anos no onde nada parece mais misterioso
As ruínas de mesopotâmico. Replica as
referências religiosas dos
ela.
E o perigo é também, tal como o
máximo, no coro de um colégio
católico da região de Saragoça,
e incompreensível do que o mundo
dos adultos e as coisas do mundo
António Bolota primórdios da arte, mas agora espanto, uma sensação que chega mexem os lábios sem cantar. E a dos adultos — essas coisas que lhe
venerando o dinheiro, a finança e, no momento seguinte àquele em ideia que se exprime é a de que a são exclusivas, os cigarros, o
analisando melhor, a euforia que vislumbramos determinada miúda protagonista está a passar álcool, a atracção sexual, e outras
António Bolota tem a sua
provocada pela entrada maciça de peça. É o perigo provocado por uma pela vida em lip sync — repete a coisas que, não lhe sendo
primeira antológica na dinheiros europeus nas duas viga que quase tapa a saída de uma conversa das freiras sem realmente exclusivas, a esse mundo parecem
Culturgest de Lisboa. últimas décadas do século XX. O sala, viga essa que sustenta o peso acreditar nela, alinha na estroinice extraordinariamente importantes
Luísa Soares de Oliveira interior corresponde ao exterior; na imenso de um muro em pedra vã. (os cigarros, as discotecas, os (como o olhar e o julgamento dos
parte que toca aos espaços Ou aquele que vagamente sentimos rapazes) das colegas “rebeldes” outros: Celia aprenderá também
Mão-de-obra expositivos, ele é visualmente quando atravessamos o corredor de que, na hiperconservadora
ruidoso, colorido, texturado, que já falávamos para continuarmos província espanhola, faz uma
António Bolota
permitindo montagens ora lineares, a visita. Há sempre o risco diferença enorme a sua mãe ser
mmmmm ora labirínticas. Betão, alvenaria, percebido de que tudo resvale, viúva ou ser mãe solteira).
tijolo, para não falar das alcatifas e mesmo que a razão nos diga, uma e Espanha já deu alguns grandes
LISBOA. Culturgest. Rua Arco do Cego, 50. De do vistoso mobiliário que decora outra vez, que tecnicamente tudo filmes sobre a infância, e se
3ª a 6a, das 11h às 18h; sábado, das 11h às 13h;
domingo, das 10h às 13h. Até 18 de Setembro.
átrios e corredores, completam o está muito bem feito, e que estas Raparigas não é O Espírito da
desenho de interiores do edifício. ruínas, porque se trata aqui sempre Colmeia (até porque lhe falta a
Num pequeno filme inserido nas Foi com este molde que António de ruínas simuladas, não estão em dimensão sobrenatural: o
páginas do site da Culturgest Bolota trabalhou. O resultado é uma risco de derrocada. horizonte está sempre à vista no
dedicadas à exposição de António exposição notável, feita de É evidente que este trabalho tem filme de Palomero e é a realidade
Bolota, o artista afirma que sempre intervenções no espaço que uma vocação de exterior. Na curta da vida de todos os dias) não
entendeu a arquitectura como um duplicam, cortam, separam ou exposição, de resto, há um filme desmerece, evitando todos os
molde. E acrescenta: “A escultura é unem cada local. Bruno Marchand, que mostra as obras de António clichés de representação que
o positivo desse molde, e os o curador que trabalhou com o Bolota feitas para o espaço público, costumam caracterizar as
espectadores situam-se também no artista, cita no seu texto duas onde essa vocação é bem visível.
negativo”. Ou seja, tal como sucede palavras que nos parecem fulcrais Mas ele também cabe aqui, no
na antiga escultura de modelação —
a que se serve do bronze ou do
para compreender o trabalho do
artista. São elas o perigo e o
espaço do museu. De outra forma,
sem os limites físicos de cada sala,
As estrelas Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
barro como matéria-prima —, existe espanto. não haveria possibilidade de
uma relação de imbricação O espanto: percebemo-lo provocar as sensações que
obrigatória entre o molde e o quando, logo na primeira sala, um referimos no corpo de quem
objecto. No caso de Bolota, essa telhado de telha de marselha, observa. E que, no exterior, são
relação faz-se entre o espaço e o colocado na diagonal, atravessa o mais fáceis de evitar, de diluir na Ao Sabor da Ambição — mmmmn mmmnn
espectador, por um lado, e a obra, espaço, quase ao nível do chão, de dimensão móvel da paisagem, Be Natural: A História nunca contada... — mmnnn mnnnn
por outro. E, porque ele é um artista um lado a outro. Ou quando um urbana ou rural, em que nos
Blackbird — A Despedida mmmnn a mnnnn
que trabalha nesta charneira entre enorme disco cinza parece movemos.
dois séculos em que muitos de nós equilibrar-se sobre uma bola Assim, a presença da morte, Dias Selvagens — mmmmn mmmmn
vivemos, a escala é a do edifício prateada, numa das últimas salas da como sombra que segue o visitante, Fantasmas do Império mmnnn — —
urbano, como acontecia na obra de exposição. De certa maneira, este é uma constante nesta exposição.
Robert Smithson. E talvez nenhuma espanto é uma constante em toda a Claro que, como refere Marchand, Higiene Social mmmnn — —
outra instituição dedicada às exposição, e isto mesmo quando ela se contrapõe também Marighella mmmnn mmnnn mmnnn
exposições de arte contemporânea não identificamos sempre, como é o constantemente ao exultar da vida,
O Mauritano mmnnn mnnnn mnnnn
se adequasse tão bem como esta ao caso da primeira peça mencionada, que é muito nítido no próprio acto
modo de conceber a escultura de uma referência óbvia para as peças de construir que António Bolota As Mulheres Fazem Cinema mmmmn — mmnnn
António Bolota. que vemos. Houve o telhado, como sempre deixa transparecer. De Prazer, Camaradas! mmmnn mmmnn mmnnn
De facto, o edifício-sede da Caixa noutro local haverá um muro, uma qualquer modo, este é um trabalho
Geral de Depósitos, onde se situam armação de madeira inclinada (um de uma maturidade notável, e que Quo Vadis, Aida? mmnnn mnnnn mnnnn
as galerias da Culturgest, é um pouco à maneira de um dólmen), as exposições do artista dedicadas Raparigas — mmmnn mmnnn
“novo monumento”, no sentido umas vigas de betão que atravessam ao desenho, que ocorreram em
Tesla mmnnn mmnnn —
que Smithson deu a esta palavra. o tecto de um corredor, entre outras Lisboa há alguns anos, já deixavam
a Mau mnnnn Medíocre mmnnn Razoável mmmnn Bom mmmmn Muito Bom mmmmm Excelente
Ocupando um quarteirão inteiro, peças. Este espanto decorre de adivinhar.
26 | ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021
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“crianças no cinema” (e numa em que o exército sérvio qualquer. Depois há o fundo


cena, Raparigas até nos dá a ver comandado por Ratko Mladic toma Alice no país ligeiramente (ou profundamente)
um pedaço de um dos clássicos a cidade e a população procura conspiracionista, que se pode
espanhóis da idealização — asilo na base militar holandesa. do cinema tornar irritante. Quer a realizadora
franquista — da infância, o Aida é uma personagem ficcional Pamela Green quer muitos dos
famigerado Marcelino Pão e Vinho). colocada em eventos verídicos, mas Para o filme, o mundo convidados evocam o seu total
Mas em quem se pensa, por vezes, inspira-se na experiência real do montou uma conspiração desconhecimento de Guy-Blaché
é no autor de alguns dos maiores bósnio Hasan Nuhanovic como como um problema do mundo —
contra Guy-Blaché; mas
milagres contemporâneos quando tradutor da ONU; é a quinta ficção um mundo que, por alguma pérfida
se trata de filmar a infância, longa da bósnia Jasmila Zbanic, cuja Be Natural apenas prova que razão, a teria “escondido”. Mas são
Jacques Doillon, sobretudo o de carreira tem sido desde o início aconteceu com ela o mesmo intervenções que julgam estar a
Ponette (mesmo se aqui a idade e as marcada pela ferida aberta da que com muitos outros dizer algo sobre o mundo quando
circunstâncias são diferentes), com guerra dos Balcãs, e que venceu o aquando da estreia de Fantasmas dizem apenas algo sobre as pessoas
parceiros dessa e doutra
quem Palomero partilha um Urso de Ouro de Berlim em 2005 do Império no IndieLisboa há quase que as proferem: que nunca
sentido de justiça e honestidade na com o seu primeiro (e ainda um ano, a documentarista e geração. Luís Miguel Oliveira abriram uma história do cinema,
devolução do olhar da infância, melhor) filme, Filha da Guerra. divulgadora francesa Ariel de Be Natural — a História Nunca por exemplo. Claro que isto é um
sem imiscuir a sobranceria ou o Não se duvida em nenhum Bigault referia que queria com o Contada de Alice Guy-Blaché contexto americano, sempre sui
paternalismo do olhar dos adultos momento da sinceridade dos filme demonstrar como a generis na relação com o passado e
De Pamela B. Green
e sobretudo sem impor, como propósitos de Quo Vadis, Aida?, e o colonização portuguesa foi, “em Com narração de Jodie Foster ainda mais com uma figura vinda
realizadora, “o olhar do adulto”. É grosso do filme é até bastante eficaz termos de imagens, uma ficção”, de um universo não-americano
um feito, que se completa com no modo como reconstrói, com expressa de modos muito mmnnn (mesmo que Guy-Blaché se tenha
impressão de justiça no retrato urgência e alguma energia, o caos diferentes ao longo dos últimos radicado nos EUA e tido um papel
sociológico balizado (o ano de da evacuação de Srebrenica, a cem anos. E, de facto, sente-se ao Alice Guy-Blaché (1873-1968) foi na então incipiente indústria
1992) de uma Espanha ainda a impotência das tropas holandesas longo da sua projecção que o olhar uma das pioneiras do cinema, uma americana), mas pôr
carregar o lastro franquista e sem deixadas desamparadas, o do cinema português sobre “o das muitas vocações despertadas constantemente a tónica no
ter perdido um grama do peso da desespero crescente de Aida ao outro” foi mudando ao longo dos pelas primeiras projecções dos “apagamento” de Guy-Blaché,
influência da Igreja (mas já a perceber o risco em que a sua anos, apoiado numa série de filmes dos irmãos Lumière. Poucos quando ainda por cima o filme está
discutir, como se percebe por dois família está, a impossibilidade de excertos de filmes que tanto meses depois dessas sessões sempre a encontrar sinais que o
ou três apartes nada retóricos, a dar sentido a tudo o que está a abrangem jornais de actualidades inaugurais, apresentava La Fée aux desmentem (nos anos 50
despenalização da IVG), um retrato acontecer enquanto está a do regime salazarista como ficções Choux (A Fada dos Repolhos), um Guy-Blaché foi convidada de honra
capaz de dar o horror sufocante da acontecer. Mas, pela mesma bitola, do século XXI com temática dos títulos não-Lumière mais de um dos primeiros congressos da
vida num colégio católico sem ter é decepcionante perceber que tudo colonial conhecidos e mais vistos desses FIAF, teve elogio público de
que mostrar horrores nem freiras responde a uma fórmula resolvente Fantasmas do Império surge absolutos primórdios, o que vale a Langlois), é puxar o desejo de
hediondas enquanto mostra como do “filme de tema”, filmado sem assim num momento significativo, Guy-Blaché o estatuto, vitimização longe de mais (assim
o “colégio católico” existe para lá personalidade, de acordo com uma em plena reavaliação do historicamente nada inequívoco, como, se há muito boas razões para
das suas paredes propriamente lógica funcional e anónima: Quo colonialismo português em África, de “primeira mulher cineasta”. Foi criticar Georges Sadoul e o seu
ditas. Bela primeira obra, vale toda Vadis, Aida? poderia bem ter sido e com uma abordagem que, no célebre e influente nos anos iniciais célebre dicionário de cinema,
a atenção que se lhe dê. realizado por um competente papel, é francamente interessante: do cinema: Hitchcock, por exemplo sugerir que o homem, que andou
holandês, sueco, francês ou confrontar os cineastas não exclusivo, teve ocasião de a pelo deserto a compilar informação
espanhol que não lhe veríamos contemporâneos que exploraram o nomear como uma das lacunar e nunca antes coligida,
O dilema grande diferença. colonialismo nos seus filmes com as responsáveis pelo despertar da sua identificou mal alguns filmes da
da intérprete Terá sido isso, um filme para o
mundo, que Jasmila Zbanic quis
imagens que foram rodadas pelos
seus antecessores, encetar diálogos
própria vocação. Depois, e como
sucedeu com dúzias de pioneiros, e
realizadora por alguma espécie de
má vontade misógina é de uma
fazer — e a nomeação para o Óscar, entre o passado e o presente, mesmo com realizadores já de uma ordem de parvoíce só possível a
O filme da bósnia Jasmila bem como as críticas positivas convocando Margarida Cardoso, fase seguinte aos primórdios, foi alguém que fale do alto do século
Zbanic sobre o massacre oriundas da imprensa Fernando Matos Silva, João caindo no esquecimento, muitos XXI e com o google search à mão).
de Srebrenica é um objecto anglo-americana, refletem o Botelho, Hugo Vieira da Silva ou Ivo filmes se foram perdendo e os que Este tom acaba por corroer a
sucesso a esse nível. Mas é pena que Ferreira para debater estas não se perderam tornaram-se relação com o filme — e por
sincero, mas sujeito à lógica
não haja mais garra ou identidade imagens, e inserindo como exclusivo da programação de exemplo também nunca se diz que
do “filme de tema”. numa obra que, ainda por cima, dá moderadores pontuais dois actores cinematecas. Be Natural, que o fenómeno dos filmes perdidos de
Jorge Mourinha pistas pontuais interessantes (como africanos, o são-tomense Ângelo encontra o seu título no credo Guy-Blaché sucedeu com
a “dissociação” entre passado e Torres e o angolano Orlando Sérgio. naturalista de Guy-Blaché (“sejam incontáveis outros realizadores das
Quo Vadis, Aida? presente que acontece quando um Mas o que daqui sai é mais frouxo naturais”, era o que pedia os seus primeiras gerações, que nem de
“inimigo” sérvio cumprimenta com e desequilibrado do que se actores, num tempo em que quase Ford, DeMille ou Griffith subsiste a
De Jasmila Zbanic
Com Jasna Djuricic, Izudin afecto Aida, de quem foi aluno). desejaria. Os diálogos entre todos eles traziam o arsenal íntegra da obra, e que casos há de
Bajrovic, Boris Ler Tudo está sujeito à necessidade de cineastas e actores são em alguns artificialista dos palcos), conta a realizadores de quem se perdeu
relembrar as pessoas da tragédia casos pesadamente artificiais história da vida e da obra da tudo. Para Green, o mundo montou
mmnnn dos Balcãs, e tudo termina com (como se não tivessem muito a realizadora, numa operação uma conspiração contra
uma “coda” tripartida cujo traço dizer, nem mesmo uns aos outros), arqueológica de certa envergadura Guy-Blaché; mas o seu filme prova
Quo Vadis, Aida? chega a Portugal grosso, que raia até o noutros casos tão fascinantes que e total pertinência, encontrando que aconteceu com ela apenas o
aureolado de uma passagem pela desnecessário, arrisca desfazer o temos pena que não prossigam. documentos e testemunhos, mesmo que com muitos outros
competição oficial de Veneza em que de bom Quo Vadis, Aida? ainda Quanto à escolha de excertos, inclusivamente depoimentos da parceiros dessa e doutra geração:
2020 e, sobretudo, da sua tinha. Fantasmas do Império é pouco própria Guy-Blaché, capazes de saíram da vista da primeira linha,
nomeação para o Óscar de Melhor explícito, cruzando imagens de recomporem o fio da sua biografia do grande público, tornaram-se
Filme Internacional (que perdeu arquivo documentais com ficções pessoal e profissional, e exclusivo de iniciados, estudiosos,
para Mais uma Rodada). É um olhar O império que perpetuavam a linha do regime contribuindo para a recuperação cinematecas. O mérito do filme de
para um dos momentos mais
negros da história europeia, o
da Äcção (Chaimite), visões críticas
contemporâneas (Tabu, Posto
de alguns filmes que se
encontravam perdidos, muitas
Green é, pelo menos durante duas
horas, voltar a trazer Guy-Blaché à
massacre de Srebrenica em Julho Avançado do Progresso) e filmes vezes não identificados ou mal vista da primeira linha e do grande
de 1995, através da vivência de Ariel de Bigault convidou interditados pela censura identificados, em arquivos ou público, antes de voltar, fatalmente,
Aida, professora tornada tradutora realizadores para debater as (Deixem-me ao Menos Subir às colecções particulares. ao domínio dos iniciados,
das forças da ONU, durante os dias imagens que o cinema fixou Palmeiras, Catembe), colocando-os A organização de todo este estudiosos e cinematecas.
a todos num mesmo patamar material é meramente funcional,
do colonialismo português.
descontextualizado que arrisca numa clareza didáctica standard,
O resultado não faz justiça confundir mais do que iluminar. que parece ter sido mais pensada
aos propósitos. Percebe-se que havia uma ideia para a televisão do que para o
Jorge Mourinha estimulante por trás, mas o filme cinema, e também com problemas
acabado, de interesse para os de síntese — em termos de
Fantasmas do Império estudiosos do cinema português depoimentos, há imensa gente que
Documentário de Ariel de Bigault mais do que para o espectador aparece para dizer duas frases e já
médio, não lhe faz justiça. Há um está, sem acrescentar nada de
mmnnn óptimo filme sobre as imagens relevante, parecendo que Pamela
coloniais por fazer, mas não é ainda B. Green os quer ter lá mais como
Em entrevista que nos deu este. caução do que como outra coisa
ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 27
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Crónica
José Barahona
Nos 80 anos de Bob Dylan
U
m homem que nos deu, nos anos 60 do uma abertura às mais variadas influências referidas Saved (1980) e Shot of Love (1981) com muito ênfase
século passado, canções com melodias e atrás. Este disco já não tem as canções de refrão nesse género musical. O gospel que, por natureza,
refrães eternos, que de tão perfeitas e eterno. No entanto, tem uma riqueza narrativa, de depende muito dos dotes vocais de quem canta. E
ouvidas quase não conseguimos voltar a elas. histórias, que continua ímpar e se aprofunda na toada Dylan chegou a ganhar um Grammy, em 1980, pela
Quem ainda consegue ouvir o original de longa e repetitiva que viria a tornar-se recorrente até prestação vocal em You Gotta Serve Somebody, faixa
Blowing In The Wind? São as canções míticas hoje, como em Hurricane, história de um boxeur de abertura de Slow Train Coming, e assim arrumar
(anteriores às da fase mística), das quais pouco é negro condenado injustamente, julgamento racista, com os detractores. Ainda sobre a sua forma de
preciso falar de tanto que se escreveu e ouviu. por assassínio. O Nobel não aconteceu certamente só expressar as canções, Mick Jagger disse recentemente
Enunciar Like a Rolling Stone, Mr. Tambourine Man, A pela característica poética da obra. É preciso lembrar ao The Guardian: “o que Dylan transmite não são só
Hard Rain’s A-Gonna Fall torna-se desnecessário. sempre a narrativa que prevalece em Dylan, mesmo as palavras, é a acentuação, a atmosfera e as
Quem lê os títulos imediatamente se lembra das que a Academia Sueca não tenha chamado a atenção reviravoltas que coloca nelas”.
melodias e dos refrães e pode cantá-los de cor, para essa faceta. Ainda nos anos 80, encerra a década com Oh Mercy
mesmo os que não são os mais fanáticos. E o pior é E o que dizer dos malfadados anos 80, que viram a (1989). Mais uma obra prima de regresso a um lugar
que vale mesmo voltar a essas canções e dar atenção morte criativa de grande parte das estrelas pop-rock onde sempre esteve, agora mais refinado e maduro e
ao que as palavras nos dizem. dos anos 60 e 70 do século XX, como Rolling Stones, com a ajuda preciosa do produtor Daniel Lanois.
Gosto muito dos álbuns menos conhecidos de por exemplo? Há quem diga que Dylan os atravessou Lanois, que trabalhara com Brian Eno em álbuns dos
Dylan, das fases mais obscuras e, agora, dos álbuns com as obras menores aliadas ao seu lado místico. U2, foi sugerido a Dylan por Bono. Political World
tardios. Estes últimos continuam a encantar-me não Nada de mais errado. Nem só de Blowing In The Wind abre de rompante um disco todo ele sublime e
só porque são obras recentes e me trazem mais vive a obra. Vale muito a pena ouvir os discos desses delicado nas ambiências, característica de Lanois,
música nova mas também porque me trazem um anos. Entra nos anos 80 (ainda em 1979) com Slow mas sempre fiel ao que é Dylan (We live in a political
Dylan diferente: o Dylan envelhecido, mas não por Train Coming, a primeira das colaborações com Mark world, love don’t have any place, We’re living in times
isso menos potente, que fez agora 80 anos. Knopfler, num momento em que os Dire Straits ainda where men commit crimes, And crimes don’t have a
Dylan explica as melodias e poemas eternos da fase não tinham dado o salto para a fama estratosférica (o face). Nada mau para quem atravessa os anos 80 na
inicial como canções que não foi ele que escreveu, que aconteceria com Brothers in Arms) nem tinham ressaca de tudo o que sabemos que foram as duas
mas sim canções que o escolheram como veículo para atingido o requinte de álbuns como Love Over Gold, décadas anteriores! No primeiro, e único até agora,
serem divulgadas. É uma explicação que de certa mas já eram uma banda onde a influência de Dylan se volume das suas Crónicas, detalha o seu bloqueio
forma liga a fase mítica à fase mística. Depois de ouvia por todos os lados. Bob Dylan vai buscar o criativo até ao dia em que, numa noite, se sentou à
esgotadas essas canções que todos conhecemos, ele guitarrista que se encaixa na perfeição na sua música, mesa da cozinha e escreveu os primeiros versos de
abre o seu campo de acção a quase todos os géneros e colaborando com texturas e ritmos característicos, a Political World, e a relação tensa com Lanois.
sub-géneros da música popular norte americana, do marca de Knopfler. É também neste período que se Modern Times (2006) vem inaugurar o que talvez
blues ao gospel roçando o jazz, sempre com alicerces converte ao cristianismo e se aproxima do gospel, por possamos definir como a velhice assumida: um
no rock e no folk. A música, para ele, vai-se tornando motivos óbvios: é um estilo que nasce na igreja. Os rock-bas-fond encontra uma voz cada vez mais gasta e
aos poucos, de forma cada vez mais evidente, apenas seus álbuns reflectem isso, não só tematicamente, rouca e, por isso mesmo, cada vez melhor, num
um suporte, por vezes um fundo musical, para as mas também em termos formais. Apesar da voz difícil registo que Tom Waits iniciou no início da sua
histórias que sempre habitaram as suas canções. Em e complexa, que faz com que alguns não ultrapassem carreira. Perdura até hoje. O último álbum, Rough and
1976, sai da fase mítica, inicialmente folk (mas que o preconceito a que o cantor também se presta (por Rowdy Ways, é de 2020 e pode ouvir-se como uma
inclui a famosa e polémica abertura ao rock e à vezes as relações com a obra são de amor ou de ódio, continuação que mantém nas alturas a profundidade
electricidade), com o seminal Desire, uma viragem e sem meio termo), Dylan trabalhou Slow Train Coming, com que o músico vem marcando ciclicamente a sua
obra de originais. Com vários temas embalados num
ROWLAND SCHERMAN/GETTY IMAGES
forte groove e onde os tons são muitos e sombrios, a
ambiência é a de um homem que canta aos 79 anos a
vida e a história do seu mundo. Há que destacar a
cadência repetitiva, quase sem melodia, sem
mudanças de acorde e sem refrães, que sustenta os 17
minutos de Murder Most Foul, que poderá ser um
texto poético, ou uma narrativa ou uma mistura de
tudo, numa forma que Dylan parece ter vindo a
ensaiar desde sempre e que fala, ainda e sempre, do
momento traumático da história norte-americana
que foi o assassínio de John F. Kennedy. É o
dispositivo que já se encontrava nele há muitos anos e
em muitas canções declamadas e é, no fundo, uma
essência apurada pelo tempo. Como se tivesse
lentamente decantado a sua música, reduzindo-a ao
essencial, desprovida de qualquer floreado mas que
não deixa de ser de uma beleza estonteante na sua
forma e conteúdo mais simples e directa.
Dylan não vai parar a sua produção musical por
aqui, uma vez que nunca passou muito tempo sem
nos oferecer um disco. Mas se este fosse o seu último
poderia ser a súmula perfeita da obra. Felizmente
mais virão por aí.
Não se pode dizer que seja como o vinho do Porto e
que vai ficando melhor com a idade porque sempre
foi muito bom. Mas podemos certamente afirmar que
está cada vez mais refinado. O que podemos fazer?
Voltar sempre aos seus muitos discos onde tanto se
esconde e se mostra, se o quisermos ver.
A obra de Dylan é “fogo que arde sem se ver”, rica
em todos os níveis, sem deixar de padecer de pecado
Temos o privilegio de ser contemporâneos de um dos maiores compositores e poetas do século XX e de momentos intricados. Mesmo esses, é preciso
e XXI, que fez por estes dias 80 anos conhecê-los.
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RUI GAUDÊNCIO
construídas por inviabilidades, Morta, 2014; Fazer de Morto, Língua

Livros falhas, lacunas, revela, desde logo, o


seu engenho na forma de tematizar
o empobrecimento da paisagem,
Morta, 2016; A Lição do Somâmbulo,
Companhia das Ilhas, 2020), a
casarem-se com os do poeta. Ou
dos modos de vida, dos lastros seja, a capacidade de lançar mão da
conviviais, da perda — “A praia história, da captura do quadro
impossível onde te vi enfim/ vivente, a perplexidade do
descalça e feliz como poucos teriam acontecer, em contrabalanço com a
Poesia ousado/– pétala tremendo muito de actuação do poeta — a revolver,
frio ao de leve/ e de uma fome que desfazer o trabalho prévio, o que ia
Esta arte não vem neste século nem no
seguinte./ Contaram-nos histórias,
encarreirar-se como sólido
percurso narrado. O poema, por
do que não essas ondas íngremes/ que o povo seu turno, torna-se mais poroso e
quase todo dizia ter escalado,/ ágil, rapidamente passa de uma
pode ser dito talvez dom os peixes apertados na consideração mais ou menos
boca.” (p.13) A citação (longa, de estática para o dinamismo de um
Um livro de poesia toda a segunda estância do poema), quadro vivo, em flagrante captura; a
construído no trilho como se perceberá da leitura de poesia é, assim, sujeita a
Coração Lento, constitui a contaminações que tornam a sua
de engenhosos contrastes. antecipação de uma súmula. O Admiráveis luzes e sombras nos mais recentes poemas prática o terreno de uma outra
Hugo Pinto Santos reforço de sentido trazido pela de Frederico Pedreira forma de ficcionar. Não se trata,
Coração Lento presença contígua de “não” e como se sabe, de uma prática
“nem”, mas também a expressão da inusual na mecânica do texto
Frederico Pedreira
Assírio & Alvim impossibilidade, da fome, precisamente, tudo menos a mera poesia a horizontes mais vastos e poético. O ponto está, acima de
sublinham a negação, que o poema envolvência funcional de um surpreendentes; ressalta, por tudo, na gestão, no calibrar do que
mmmmm reforçará, no que ficou por citar, cenário — como sucedia em Carlos exemplo, na inserção de um verso se pode, muito facilmente,
com a “brevidade”, o “insolúvel”, o de Oliveira, com o seu tratamento como “As parcas notícias no converter em extremismo. De um
Coração Lento é “informe”. Ainda neste poema peculiar da espacialidade. E, televisor submarino” (p.25) — que lado, um “prosaísmo” que tornasse
um livro inicial se começa a delinear a entretanto, seria facilitismo imputar possui a brusquidão insólita dos fútil qualquer distinção entre verso
construído sob a importância dos lugares, a disciplina da metáfora, o “mergulhadores” de Cristovam e, por hipótese, conto; do outro, a
órbita de uma assinalada, ao longo do livro, por rigorismo imagético a uma eventual Pavia: “Súbitos mergulhadores aspiração (nefelibata, nociva) a um
certa uma ruralidade agreste. Mas a herança de Carlos de Oliveira? descendo nas águas inimigas/ Com estado de rarefacção tal em que já
negatividade. A escassez traduzida nos poemas, o Realmente, ambas as obras se os olhos fitos e os peitos nada fosse nada, e assim
qual, no entanto, desamparo e a privação que encontrariam, em caso de esmagados,/ Descendo devagar, ao sucessivamente. Aqui é costume
é amiúde atravessam Coração Lento, não se imaginado confronto, em posição som lento de segundos vertiginosos confundir-se desbaste e
questionada pela fundem num cenário de de se reclamarem posições como séculos” (Poesia, D. Quixote, contenção com falta de assunto, ou
afirmação de impulsos vários em relativismo, nem tão-pouco se distintas; mas qualquer uma, volta a 2010). O elemento marinho é outra do que dizer. Esta poesia, podia
sinal contrário, surgidos na esfera inscrevem nas redes de um projecto dizer-se, poderia também das correntes fortes na escrita de afirmar-se, procede a uma
do vital. O que implica, ao longo do demagógico de segundas e terceiras descrever-se na sua contida Coração Lento, não só na sábia selectividade exemplar. Abeira-se
mais recente livro de Frederico intenções. Nem panfletarismo, nem destreza da imagem, na sua evocação dos apelos oceânicos, mas de quadros realistas, referenciais,
Pedreira, que à consideração dos decorativismo, são, portanto óbices particular expressividade, na também nos seus ressaibos menos mas afasta-se a tempo de não os
elementos constituintes de um pólo a estes versos. A categoria do espaço excelência das suas construções. A encantados — “Alguma morte tornar vinhetas “apenas”
se sucedam apelações do outro lado é antes um dos constituintes da rasa elocução de Frederico Pedreira espreita a desoras,/ se esquecermos retratistas, ou o palco de simples
da argumentação. Há, por isso, um aproximação à realidade que esta detém-se no estudo atento e que a noite finda/ e recordarmos historietas. A elipse, a ocultação, a
encadeamento de avanços e recuos, poesia promove. Sem medido de estados de escassez e que o mar traz a revolta/ dos peixes escolha e a manobra do léxico e das
entre anúncios de luz e exibições de esquematismos, nem a facilidade de tribulação, de padecimento e tingidos de mercúrio” (p.66). suas incidências, dir-se-ia,
obscuridade. De resto, o elemento uma identificação excessivamente iniquidade. As fainas e os ritos mais Não raramente, os poemas de subjectivas, reconduz sempre de
visual é uma das matrizes deste sentimental, ou manipuladora. ínfimos, os actos sociais, e os que Coração Lento utilizam os volta ao poema, e não à crónica, o
livro. Palavras como “olhar”, Há qualquer coisa de “paisagem e pertencem ao quadro da apetrechos típicos da narrativa apontamento circunscrito. O poeta
“olho[s]”, mas também “retina”, povoamento” em Coração Lento. individualidade — todos são objecto ficcional — e mesmo a sua será, então, como um narrador
além de vocábulos correlatos, Não só porque uma das epígrafes de um tratamento capaz de nomenclatura específica —, que se omnisciente, que abdica de um
repetem-se numa cadência iniciais pertence a Carlos de Oliveira resguardá-los de uma exposição cruzam com os mecanismos poder absoluto para ser apenas um
frequente e deliberada. Desde (pelo (ainda que ali citado mum poema, imoderada, ou uma explicitação característicos do lirismo — “Todas dos seus validos — “todos os
menos) os pré-socráticos que se tem onde comparece a palavra “treva”), abusiva. O que não deixava de ser as personagens são/ por enquanto etcéteras/ que a memória considera
glosado a prevalência da visão sobre mas porque talvez se possa detectar marca crucial em Olveira. um peso morto/ na minha ofensivos/ e os romances muito
todos os outros sentidos: “os olhos a lição do autor de Finisterra, A precisão metafórica e o acerto imaginação./ Só vejo cenários” estimam” (p.47). Estará, nesse caso,
são, de facto, testemunhas mais mesmo nos mais insuspeitos da imagética, em Frederico Pedreira (p.46). Note-se, por exemplo, como a poesia mais perto do
precisas” (Fragmentos lugares. Nada disto quer dizer que a (outra possível memória de Carlos a manipulação de tempos se faz memorialismo, que Pedreira
Contextualizados, Heraclito, IN-CM, poesia, ou a prosa, de Frederico de Oliveira), sintetizam-se em como no regime da prolepse na também pratica? É possível que as
2005, trad. Alexandre Costa). E é, Pedreira sejam credoras, digamos versos como: “O branco sorriso da prosa narrativa — “enredos que lhes contaminações sejam imparáveis...
precisamente, sobretudo por via da assim, directas de Carlos de criança/ coincide com a vertigem do saberiam sem sal/ assim que Já não é, de qualquer modo, o
visão que os poemas estabelecem o Oliveira; mas que a sua mestria mar —/ um atol cheio de algas” crescessem mais um pouco,/ narrador proustiano que se recolhe
xadrez de opostos, os cambiantes, o depuradora não passou (p.26); “não corre uma aragem,/ quando a voz da bandida lhes cedo a dormir, mas tudo o que o
ciclo da afirmação e do negado — desapercebida a Pedreira — ainda nem o subtil segredo do sal,/ a servia/ à tarde as cervejas no café do rodeia, do mundo ao mais vasto
tão admiravelmente patentes em que haja entre as duas poéticas, dolente razia dos remos” (p.27); “os coreto/ fosse já uma memória real. E o poeta di-lo como não seria
Coração Lento. Uma disposição que como é evidente, muito mais teus ombros voltando-se/ num amansada” (p.40). Serão, capaz de o fazer outrem — “o
se pode já notar no primeiro poema vastidão do que estas possíveis sorriso de paisagem petrolífera” porventura, os dons do narrador, mundo deita-se cedo/ e já todos nós
do livro. Esta composição de sinais filiações. Ainda assim, o espaço (p.50). Mas a sageza imagética de que Frederico Pedreira também é desistimos dos fantasmas./ O real
opostos, conjunto de proposições envolvente de Coração Lento é, Pedreira conduz, ainda, a sua (Um Bárbaro em Casa, Língua torna-se enfim real” (p.58).

Obrigado pela vossa


participação.
Nos Censos, todos contaram. Até porque com as contas feitas,
é a todos que temos de agradecer.
É bom poder contar com todos. E todos podem contar connosco. censos2021.ine.pt Onde estão todos.

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Acção Paralela Crónica


António Guerreiro Ana Cristina Leonardo
Arquitectura e crime Os livros são como a
A A
estrutura de metal e vidro, dita qual este e muitos outros edifícios como este se s muralhas impenetráveis das
“marquise”, que Ronaldo mandou apoderam. piteiras que crescem pelas bermas
implantar por cima da sua penthouse, no Se lermos a descrição do edifício, percebemos dos caminhos desataram a florir.
topo do edifício de 13 andares, em que ele foi concebido segundo o modelo urbano a Como que dispostos em cocurutos
Lisboa, projectado pelos arquitectos José que os urbanistas americanos chamam gated oblongos, tufos ripados e
Mateus e Nuno Mateus, tornou-se comunities, isto é, comunidades fechadas, alaranjados brotam na orladura das
imediatamente matéria para discursos jocosos, completamente separadas da cidade, sem palmas cobertas de espinhos que servem
mas é um assunto muito sério. Só começa no alimentar a vida que lhe corre nas veias, de onde também de cerca a pastos e a hortas.
entanto a ser sério se deslocarmos a questão da esta se oferece apenas como uma vista Penso cerca enquanto tomo a direcção de
riqueza e do desejo de luxo ostentado por Ronaldo panorâmica. As gated communities que se formam casa e logo me teletransporto para O Curral
(coisa, aliás, bastante inocente) para o estetismo — nos bairros mais ricos das cidades são das Bestas de Magnus Mill, prova de que as
a anestesia da arquitectura — e a exacerbação “privatopias”, isto é, espaços utópicos privados, palavras — graças a todos os deuses, com
autoral de quem desenhou o edifício. para utilizarmos um conceito introduzido por um dispensa de um daqueles papers hoje em dia
Não falarei do edifício em si, da sala de cinema, estudioso americano de política urbana, Evan imprescindíveis, até para demonstrar o
do spa, do hall de entrada, das piscinas, dos McKenzie. São atentados à cidade. Os arquitectos “óbvio ululante”… — são entidades
puxadores das portas, dos corrimãos, do primor têm todo o direito de reivindicar a sua liberdade autónomas e vivas, muito à frente dos
de todos os pormenores, dos quais José Mateus autoral, mas na medida em que conformam a significados a que as confinam os
falou com o orgulho de mestre de uma bela obra nossa cidade e determinam o seu destino, eles não dicionários.
que recita aos que têm o privilégio de aceder ao podem sentir que só têm de responder à razão O Curral das Bestas conta a história de três
interior: “Vejam como sou belo e requintado”. estética e à exigência dos clientes que de um modo homens que montam cercas para animais no
Exclusivo for the few. O problema começa aqui e, geral não coincide com a nosso direito a uma campo. Um inglês, o capataz, e dois
como é óbvio, não se limita à Rua Castilho, 203, cidade habitável e mais produtora de uma cultura escoceses. Magnus Mill, que é inglês, ele
nem ao atelier de arquitectos ARX. Até seria que animou o “espírito” das grandes cidades. O próprio montou cercas durante uma série de
injusto tomá-lo como exemplo se não fossem as “atropelo estético” perpetrado no topo do belo anos. Depois conduziu um autocarro em
palavras cândidas dos próprios arquitectos, para edifício desenhado por José e Nuno Mateus é um Londres e foi a conduzir um autocarro em
quem o pecado, que dantes morava ao lado, se crime menoríssimo quando comparado com a Londres que soube que o seu livro fora
veio instalar mesmo por cima. Uma arquitectura anestesiante que desconhece seleccionado para finalista do Booker Prize
“conspurcação ignóbil da nossa arquitectura”, completamente a responsabilidade profissional de em 1998.
disseram eles. Certamente com razão. um arquitecto, a questão ética que lhe é inerente. De 1998 até agora, Mill fartou-se de
Mas há uma outra razão que devia estar acima Este vínculo não é de agora, vem de Vitrúvio. A escrever e publicar mais livros e muita coisa
dessa. E essa serve não para interpelar os donos bienal de arquitectura de Veneza, no ano 2000, aconteceu no mundo. Na Escócia, por
dos apartamentos, mas os arquitectos, urbanistas, tinha como título Less Aesthetics, More Ethics. Esta exemplo, aconteceu o referendo à
vereadores e presidentes que nos espoliam a questão da ética da arquitectura não é certamente independência de 2014 que deu a vitória ao
cidade que é de todos nós. Ouvindo as reacções de dos temas mais frequentes e sempre que surge Não com 55,3% dos votos — derrotado o Sim,
José Mateus à vilipendiada “marquise” que veio provoca polémica. O grande historiador de arte que se ficou pelos 44,7% — embora os
“atropelar” a “cultura” e as “autorias”, até parece italiano Salvatore Settis, que chegou a ocupar um independentistas não desarmem e apontem
ele que vive num empíreo e que só tem de cargo oficial relacionado com o património, para novo referendo até 2023, enquanto de
responder perante quem lhe encomendou a obra defendeu há alguns anos que se devia consagrar Londres lhes asseveram que só lá para 2050.
e em nome de uma razão estética, de uma na Constituição dos países o direito à paisagem. E, Resumindo depressa: uma figueira do
abstracta beleza. Ora, embora isso seja uma regra por entender que os arquitectos deviam estar diabo, nome científico, Opuntia ficus-indica,
a que já estamos habituados, há momentos como deontologicamente obrigados a defendê-la, reenvia-me, em 2021 e no Sul de Portugal,
este em que apetece dizer que essa regra é um propôs, em jeito de provocação (bastante para um livro de 1998 que mete escoceses e
atropelo ignóbil ao nosso direito à cidade. Os polémica, aliás) que eles deveriam fazer um pastagens verdejantes, tudo o que por aqui
arquitectos daquele edifício sabem seguramente o “juramento de Vitrúvio”, por analogia com o não existe.
que significa a verticalização da arquitectura, a “juramente de Hipócrates” a que os médicos estão Narrativa hilariante, contida e negra — o
transformação do skyline da cidade para oferecer obrigados. Tal como um médico não pode matar o enigmático Thomas Pynchon chamou a The
a uns poucos “um conceito único de doente, o arquitecto não deve matar a paisagem Restraint of Beasts, “a demented, deadpan
exclusividade” (como se diz no site do edifício). nem deve contribuir para saquear a cidade. Mas comic wonder” —, o primeiro livro publicado
Entre essas exclusividades, está a paisagem, da isto, não percebem os autores do “Castilho 203”. por Magnus Mill é recomendável em
qualquer século e sob qualquer pretexto.
Também por causa da ironia com que
aborda certos clichés.
Livro de recitações “… Tam atirou-o depois [ao maço de
tabaco vazio] pela janela fora.
“Ode ao filho único” — Não devia fazer isso — repreendi-o.
Título de uma crónica de Nelson Nunes, PÚBLICO, 31/05/2021 — Por que não?
— Bem, parece mal, não é verdade? Estraga
Para celebrar o Dia dos Irmãos, eis uma ode do contra, mais difícil de assimilar do que a ideia da família como a paisagem e tudo o mais.
que muitos lerão como uma elegia. Nelson Nunes, um teatro de sombras, cheio de obscuridades. Foi — Isso são tretas e você sabe-o muito bem
que se declara um exemplo de uma família atípica, sempre assim, não é de agora. Provavelmente, é uma — comentou.
está muito mais de acordo com os modelos familiares daquelas mentiras que o doutor Freud diz serem a — Não, não é — disse eu — Não se pode
hoje dominantes do que pretende, sobretudo no item base sobre a qual assenta a civilização. Todo o jogo de espalhar lixo por todo o lado.
que diz respeito aos pais e mães ausentes e padrastos aparências que se desenvolveram em torno da — Podemos sim, se nos apetecer — disse
e madrastas que ocupam os lugares deixados vagos. instituição familiar é um grande edifício cultural. Maior Tam. — Tudo isso é conversa de ingleses…–
Mas as representações oficiais dominantes continuam do que todos os outros. A família merece bem um Calou-se e recomeçou outra vez: — Isto aqui é
a ser a da família tradicional. Na verdade, não há nada hino. a Escócia. Estamos na Escócia e estas
montanhas estão aqui há milhões de anos.
Uns maços de cigarros a mais ou a menos
não fazem qualquer diferença. Isso não
passa da porra de uma mania inglesa.
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE — Ele tem razão — atalhou Richie.
SÓNIA MATOS DESIGNER ANA CARVALHO E SOFIA ESPADINHA MARTINS FOTO DA CAPA RUI GAUDÊNCIO E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT — Pois… acho que sim — disse eu.
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O que me passa pela cabeça


Na semana passada, uma bela notícia: está para
breve, questão de semanas, a publicação (na editora
francesa Capricci) da autobiografia de Luc Moullet,
Mémoires d’un Savonnette Indocile. A notícia
entusiasmou-me ao ponto de estar a escrever sobre
ela: Moullet (n. 1937), um dos últimos sobreviventes
da geração dos Cahiers de capa amarela (para onde

as cerejas começou a escrever quase adolescente, com 18 ou 19


anos), a quem devemos, entre tanta coisa, a
reabilitação de Samuel Fuller (para escândalo
intelectual parisiense tão grande que Bazin teve que
escrever um editorial dos Cahiers a defender a sua
Não se viam quaisquer montanhas.” tempo, mas mesmo assim ficaram rijas. jovem guarda de críticos) ou a ideia de que “a moral é
in O Curral das Bestas, tradução de José Há-de explicar-me o seu truque para as uma questão de travellings” (depois remodelada por
Luís Luna, ASA, 1999. deixar mais tenras. JLG), é um génio desconhecido em Portugal, no que
Literatura e linguística à parte e por muito — As minhas são congeladas. Do escreve e no que filma. E se já teve retrospectivas na
contestados que sejam, os clichés (que, supermercado. Favas e ervilhas tenras, Cinemateca e em Vila do Conde, e até com catálogo,
quando se chega a assuntos considerados garantidamente, só mesmo as do nenhum dos seus livros foi traduzido e editado, e
mais sérios, adquirem por vezes a condição supermercado. salvo erro só um filme seu teve estreia comercial no
de mitos) estão por todo o lado, servem-nos E lá se foi mais um simpático estereótipo, nosso país, Os Náufragos da D17, há quase vinte anos
de muleta, por vezes de bússola. No limite, no caso o das refeições confeccionadas com (entrevistei-o por telefone nessa altura, ele estava em
não podemos viver sem eles, por muito que legumes da horta colhidos na hora! casa a fazer o jantar, duas ou três vezes interrompeu a
isso fosse incompreensível para o vulcano Se bem me lembro, tudo isto começou por conversa com “desculpe, tenho que ir espreitar a
Doutor Spock da Guerra das Estrelas e por causa das Opuntia ficus-indica — vulgo sopa”). Mas também me entuasiasmou ao ponto de
muito que a realidade se encarregue de os piteira, vulgo figueira-do-diabo, vulgo voltar a mergulhar no Moullet cineasta, exercício
contrariar. figueira-da-Índia — terem começado a florir. muito menos elitista do que parece (basta ter Youtube
Por exemplo: se o bucolismo na sua versão Abundantes no país e utilizadas de forma e digitar as palavras certas na caixa de pesquisa).
mais exaltada e exaltante passou de moda — criativa na cozinha mexicana, o mais
é sabido que, embora possa parecer “que no provável é terem sido importadas para a Os seus filmes curtos, realmente políticos e realmente
campo só há vacas, […] afinal dorme uma Europa via México e, por conseguinte, a subversivos, como Barres, inventário de todas as
perversidade enorme debaixo daqueles a-Índia (noutra versão,
denominação figos-da-Índia maneiras possíveis e imaginárias de passar pelas
malmequeres”, para citar o Adeus, Princesa se-á antes a “índio” e
figos-de-pita) referir-se-á cancelas do metrop
metropolitano e viajar à borla; ou Essai
de Clara Pinto Correia —, perdura nas mentes fusão pela qual
não a “indiano”, confusão lut de um homem contra uma
d’Ouverture, a luta
urbanas uma visão desfocada das delícias devemos responsabilizar izar Cristóvão Colombo garrafa de Coca Cola, jerrylewisiana crítica do
rurais e seus protagonistas que nem o que teimou em navegar gar para Ocidente e, (com por escrito, Moullet já tinha
capitalismo (como,
episódio das estufas de Odemira, com todos chegado à América, pensou que tinha im
deixada uma impagavelmente jerrylewisiana
os elementos sórdidos e ultrajantes, terá chegado à futura União ão Indiana. Deleuz da Imagem-Tempo/Imagem-
crítica do Deleuze
feito vacilar (veja-se como a preocupação Também chamada figueira-da-barbaria Mas sobretudo, Les Sièges de
Movimento). Mas,
com o licenciamento de um (terras da Barbaria, ou u da Berberia, era o to dentro duma sala de cinema,
l’Alcazar, filme todo
empreendimento turístico de campismo, nome atribuído, desde de os romanos, às recomposição arqueológica da cinefilia histórica
bungalows e casas pré-fabricadas em terreno regiões costeiras do Magrebe e, de histó de amor entre um crítico dos
(uma história
afecto à Reserva Agrícola Nacional e à facto, o que por lá nãoo falta são Cahiers e uma crítica da Positif, os
Reserva Ecológica Nacional, logo se mestíveis…),
piteiras de frutos comestíveis…), Montec
Montecchios e os Capuletos da cinefilia
substituiu à indignação com as condições -me a
regressada a casa, eis-me clássic dos pequenos gestos, manias e
clássica),
dos trabalhadores agrícolas sazonais alavras
associar livremente palavras hábito dos espectadores fervorosos, e
hábitos
chegados a Portugal de países tão iguais e realidades qu podia acontecer numa
do que
improváveis como a Índia, Paquistão, Nepal do,
diferentes, dispensado, proje
projecção de bobinas de película em
ou Bangladesh, oitenta e dois anos após John naturalmente, o divã de 35m É uma obra-prima de 52
35mm.
Steinbeck ter escrito As Vinhas da Ira e Freud, e a ir à estante à minu
minutos, e calhou estar a revê-la no dia
oitenta e cinco depois do jornalista e escritor procura de Praias da em queq se soube que o supervilão
James Agee e do fotógrafo Walker Evans Barbaria, salvo erro o Bezo tinha comprado o património da
Bezos
terem partido em reportagem para o segundo romance de MGM para encher a despensa da sua
Alabama durante a Grande Depressão. A Norman Mailer a seguir uir ao Amaz
AmazonTV. O cinema cada vez mais
peça jornalística, uma encomenda da sucesso inquietante de Os longe da cultura da sala, enlatado para
Fortune inexplicavelmente nunca publicada Nus e os Mortos, livro que li servir em streaming — o que se passava
na revista, saiu apenas em livro, pela pela primeira vez no início da “
nas “cadeiras do Alcazar” pareceu
primeira vez em 1941, Let us now praise cordo
adolescência e que recordo ainda mais longínquo, mais anacrónico,
famous men — traduzido no Brasil pela ter-me fascinado emborabora não mais extra-terrestre, e o filme, mais do
Companhia das Letras, Elogiemos os Homens eralmente)
tivesse percebido (literalmente) arq
que arqueologia, etnografia, retrato de
Ilustres. O texto original completo só seria nada, demasiado jovem em para raç de gente em vias de extinção.
uma raça
(re)descoberto cinquenta anos depois da minar pela
não me deixar contaminar Quanto ao livro, as “memórias de um
morte precoce de Agee, impresso em 2013 própria confusão de Mike sabon
sabonete indócil”, há-de haver ocasião
pela editora Melville House com o título Lovett, o protagonista a narrador para nosn passar pela cabeça, aqui
Cotton Tenants: Three Families: obrigatório a quem a guerra havia a levado a mesm
mesmo.
para quem não pense que a grande literatura memória.
se esgota na ficção, apesar da séria Manchado, amarelado, ado, com o
advertência, Above all else: in God’s name miolo cosido à linha e as folhas Por Luís Miguel Oliveira
dont’t think of it as Art. rta-papéis,
separadas por um corta-papéis,
Se por cá ficámos a saber há poucas sobrevive numa edição ão da Portugália
semanas que afinal bastaria, para acabar érbios de modo
de 1961, ainda os advérbios
com o tráfico humano e o trabalho escravo — mantinham os acentos. os. Talvez o releia
e quem diria que era tão fácil! — deixarmos um dia destes.
de consumir tomate cherry (a frase, “As ovàvelmente
Começa assim: “Provàvelmente
pessoas são contra as estufas de Odemira, estive na guerra. Há o sinal de um
mas depois querem comer tomate cherry” ferimento atrás da minhanha orelha, um
foi chamada de capa na imprensa escrita…), espaço oblongo de carne rne estéril onde
o tema da minha conversa aqui no monte gora está coberto, e
não cresce cabelo. Agora
foram favas. pode até ser disfarçadodo pelo mais inábil
— Cheira-me a favas! — disse eu. arbeiro algum
dos barbeiros, mas barbeiro
— E cheira-lhe bem, que é o que estou a consegue esconder a cicatriz das minhas
fazer para o almoço. costas. Para isso será melhor um
— Já agora… Deram-me tantas favas que alfaiate”.
tive de as congelar. No outro dia, fiz das que meços são preciosos e
Há livros cujos começos
tinha congelado. Deixei-as ao lume mais que valem o risco de nos desiludir. SERGE BENHAMOU/GAMM
BENHAMOU/GAMMA-RAPHO VIA GETTY IMAGES

ípsilon | Sexta-feira 4 Junho 2021 | 31


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