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Extensão Universitária: A Ética da Alteridade na Relação

com a Comunidade - O Caso do Projeto Banda Mirim1


Dulce Cornetet dos Santos2

Este artigo é uma versão parcial do Com preensões sobre a ética


texto Extensão universitária: a ética da [...] os mundos sociais entrariam
a lte rid a d e na relação com a inevitavelmente em colapso se as
comunidade, realizado em co-autoria práticas sociais fossem inteiramente
com a Prof® Josilda Berenice Fogaça5e aleatórias e sem significado, se não
com Marcelo Rodrigues de Almeida1 e fossem regulamentadas por conceitos,
a p resen tad o no IX S em in ário valores e normas comuns a todos
Internacional de Educação, do Centro regras e convenções acerca de como
Universitário Feevale, em junho de fazer as coisas, de como as coisas são
2006. feitas nesta cultura. (Hall, 1997, p .42).
Pretende abordar a extensão Apesar de cientes das diferenças teóricas
universitária e as relações éticas nela na concepção de Hall para com os
percebidas. Através de um relato de dem ais au to res utilizados como
nossa experiência pessoal na extensão referência na construção deste artigo,
do Centro Universitário Feevale, optamos por iniciar nossa discussão
e x p lic a re m o s com o se deu a sobre as diferentes compreensões de
compreensão do conceito de extensão ética com um a citação do autor,
proposto nas políticas institucionais e exatamente por acreditarmos que esta
quais as perspectivas percebidas como compreensão passa pela diversidade dos
possibilidades de atuação. olhares para ela direcionados.
Iniciamos discorrendo sobre as Se buscarmos a origem da palavra
diversas conceituações de ética e as “ética”, encontraremos na expressão
suas manifestações na educação para, grega “ethos” o significado de hábito ou
finalmente apresentar um caso, a costume, entendidos com superficiali­
experiência do Projeto Banda Mirim, dade, como m aneira exterior de
que avaliamos ser, em sua prática, um com portam ento. E sta concepção
exercício de extensão construído embasou a tradução latina “moral”.
eticamente com as comunidades nele “A palavra Moral tem origem no
envolvidas, e como essa experiência latim - morus - significando os usos e
contribui para a nossa compreensão da costumes, conjunto das normas para o
concepção de extensão universitária agir específico ou concreto. A Moral está
que acreditamos ser norteadora de contida nos códigos, que tendem a
nossa prática. regulam entar o agir das pessoas”
(Moore, 1975).
Ainda na origem grega, podemos continuada em torno das questões de
constatar na palavra “ethos” um gênero, identidades culturais e
significado m ais com plexo, que diversidade étnico-racial, contri­
considera o lugar ou pátria onde buindo para a formulação de
habitualmente se vive e o caráter políticas públicas de inclusão social e
habitual, a maneira de ser ou forma de desenvolvim ento hum ano da
pensar da pessoa ou população referida região.
(Japiassu, 2001). O projeto, iniciado em 2003,
Esta versão, de alguma forma, constitui-se de oficinas de percussão
orienta a utilização atual que damos à - uma banda mirim - composta por
palavra “ética”. Boff ( 1999) aprofunda crianças oriundas de quatro escolas
ainda mais este significado, conside­ de samba de Novo Hamburgo. Este
rando-o como a toca do animal ou casa movimento se dá através da parceria
humana, a porção do mundo que com a Associação das Entidades
reservamos para organizar, cuidar, fazer Carnavalescas e Recreativas de
nosso hábitat. Trata de um “ethos” Novo Hamburgo e acontece em
civilizacional, que deve emergir da quatro comunidades: Sociedade
natureza mais profunda do humano e Cruzeiro do Sul, Escola de Samba Aí
referenciar-se no cuidado. Vêm os Marujos, Protegidos da
Princesa Isabel e Escola de Samba
O projeto Banda Mirim Portela do Sul.
O projeto Banda Mirim tem sua Além das oficinas de percussão,
origem no C entro U niversitário ocorrem, todos os sábados pela
Feevale, na cidade de Novo Hamburgo, manhã, oficinas temáticas organiza­
no Rio Grande do Sul. das por alunos/as e professores/as de
Está vinculado à área temática diversos cursos: é uma iniciativa do
Diversidade Cultural e Memória, que curso de História, mas recebe
constitui um espaço de reflexão e professores e acadêmicos dos cursos
articulação de projetos em torno da de Letras, Artes Visuais, Ensino da
diversidade cultural, abrangendo as Arte na Diversidade, Pedagogia,
diferentes m em órias sociais que Normal Superior, Educação Física e
constituem as diversas culturas na Comunicação Social. As atividades
região de abrangência do Centro acontecem e forma prioritaria nas
U niversitário Feevale. E sta área próprias comunidades, podendo,
temática problematiza conceitos como eventualmente, ocorrer fora dos
identidades culturais, memória social e espaços rotineiros, em situações
patrimônio cultural. O Programa onde planejadas previamente.
se insere, Núcleo de Identidade, Gênero Através destas oficinas, busca-se
e Relações Interétnicas: NIGÉRIA, promover a auto-estima das crianças
fom enta a discussão e reflexão no resgate da cultura negra e na
valorização da sua identidade A proposta dialética e dialógica faz
dentro da constituição pluriétnica parte da história recente da educação.
de uma comunidade que se funda Ter na universidade um espaço também
no mito da colonização germânica. de escuta altera as relações até então
Nestes espaços se processam novas estabelecidas com a comunidade não
possibilidades de interpretação do acadêmica e apresenta-se como um
m u n d o , m e d ia n te p rá tic a s exercício novo de relações de poder.
pedagógicas que articulam os Para Sampaio (2004), este novo
diferentes saberes acadêmicos e exercício significa “ap re n d e r e
cotidianos em torno da identidade desenvolver a arte de saber sair de si
cultural e etnicidade negra. mesmo para ter uma pré-ocupação com
o outro, para querer o bem do outro. Em
A alteridade como essência uma expressão: é a capacidade de viver
ética na construção e na alteridade”. Reconhecer a existência
socialização de conhecim entos do outro, suas manifestações, seus
Ao reconhecermos a Universi­ desejos e respeitar sua cultura passa a
dade como espaço de acumulação, ser imperioso na relação transforma­
produção e socialização de dora entre universidade e sociedade.
conhecim entos e a extensão Conforme descrito no próprio
u niversitária como “processo projeto de extensão:
educativo, cultural e científico que
articula o ensino e a pesquisa de As Escolas de Samba de Novo
forma indissociável e viabiliza a H am burgo têm sido espaços
relação transform adora entre privilegiados para a visibilidade de
u n iv e rs id a d e e s o c ie d a d e ” uma identidade negra, apesar de
(Avaliação Nacional de Extensão estarem inseridas num território
U niversitária, 2001), torna-se branco cuja marca é a revitalização de
necessário questionar de que uma memória coletiva em torno da
m aneira acontece esta relação figura do colonizador branco e
transformadora entre universidade europeu. A segregação social e racial
e sociedade. dos grupos apontados como minorias
A extensão u n iv e rsitá ria traduz-se no afastamento de uma
parcela significativa da população do
m anteve por m uito tempo a acesso à cidade e dos seus espaços de
concepção de assistencialismo, sociabilidade, dos serviços de saúde,
unilateralidade e autoritarismo em educação, moradia, entre outros. As
sua relação com a sociedade. A sua escolas de samba apresentam-se, dessa
função primordial era de transmitir forma, como espaços fundamentais
os conhecimentos por ela produzi­ para o fortalecim ento de uma
dos e selecionados como relevante identidade, porque é através delas que
para respectiva população. esses grupos reivindicam e reafirmam
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o direito à memória e à cidadania. O assumido a coordenação do NIGÉRIA
projeto intenta um trabalho perma­ e de passar a acompanhar o cotidiano
nente, que seja capaz de integrar as de todas as escolas; até então, percebia
crianças e adolescentes à vivência das esta atividade como dotada do mesmo
escolas de samba, ao conhecimento de sen tid o das dem ais oficinas
suas histórias, bem como à defesa da pedagógicas. Não se trata aqui de
diversidade cultural da região. A propor uma hierarquização (o que
preocupação com a manutenção da implica rebaixamento de uma ou outra
tradição e preservação de uma atividade), mas de reconhecer o lugar
m em ória coletiva, som a-se a que determinadas práticas assumem
necessidade de oferecer alternativas em função dos seus contextos e neste
às crianças e adolescentes das caso, a radicalidade do lugar da música
comunidades frente a uma realidade (a “batida do samba”) na composição
de exclusão e violência. identitária destas comunidades!
Este entendimento, que é tão óbvio em
Ao resgatar valores da cultura nossos livros, assume outro impacto
negra, em uma cidade de colonização quando reconhecido na percepção
tipicamente germânica, buscando sua vivenciada! Talvez eu esteja
perpetuação legitimada pela academia e exagerando, mas o ganho simbólico de
evitando o imperialismo cultural da um garoto/a que aprende a tocar
etnia predominante, o projeto Banda instrumentos percussivos, naquele
Mirim busca garantir um espaço de contexto, se equipara ao que
“capacidade de viver na alteridade”, ou representa, no contexto mais amplo, o
seja, estai’ em sintonia com o outro a aprendizado da escrita!
partir do outro. Por ser elemento radicado no cotidiano
das expressões identitárias destas
O reconhecimento da centralidade comunidades, é de se entender por que
que as atividades de percussão ocupam ocupa tanta centralidade. Não que
como força aglutinadora do Projeto outras atividades não possam lá ser
Banda Mirim, sendo, por isso, decisivas desenvolvidas... mas o Projeto Banda
na sustentabilidade de todo o processo, Mirim “como um todo”, tem nas
dem onstra que há características oficinas de percussão principal fonte
específicas da cultura negra que de legitim idade junto a estas
possuem a força de sustentar o desejo de comunidades!
perceber-se pertencente àquela etnia.
Percebe-se esta força na declaração A possibilidade de vivenciar estas
do C o o rd en ad o r do P ro g ra m a percepções, ultrapassando o conheci­
NIGERIA, prof. Norberto Kuhn Junior: mento descrito em livros e transfor­
mando estas aprendizagens em outras,
Confesso que passei a reconhecer esta que serão levadas novam ente à
centralidade apenas depois de ter universidade e lá discutidas, elaboradas
e devolvidas às comunidades em forma comunidade seja ouvida e entendida em
de conhecimentos sistematizados ou de vez de ser atendida - entendida na sua
novas dúvidas a serem respondidas essência, na sua necessidade local, na
coletivamente, enriquece o processo de sua possibilidade com o global, na sua
inovação pelo conhecimento e pode ser cultura. E entendida na sua contri­
percebida nos projetos. buição para a pesquisa, a construção de
Assim, ressignificamos a palavra novos conhecimentos e tecnologias.
“ethos” considerando-a a partir da Este talvez seja o princípio ético da
concepção de Boff como casa humana, extensão: saber ouvir o que a sociedade
ou porção do mundo que reservamos tem a dizer. Dar significado aos
para organizar, cuidar e respeitar. conhecimentos produzidos na academia,
Cuidar deste espaço que é de todos, nesta interlocução com a população para
espaço de relações interétnicas, de qual e com a qual produz conheci­
trabalho, de produções culturais, de mentos.
in teraçõ es afetivas, de relações E é nesta relação de diálogo que
econômicas e sociais, é colocar a percebemos a indissociabilidade da
Universidade a serviço destas popula­ extensão com o ensino e a pesquisa. A
ções, interagindo com elas de forma a academia, através de seus projetos
contribuir com aquilo que Edgar Morin pedagógicos, deve conter em sua base
denomina de construção da identidade possibilidades em que professores e
terrena. alunos visualizem oportunidades
infinitas de responsabilidade para com o
É nesse sentido que a extensão ocupa direito de vida digna do outro.
lugar privilegiado na academia, Assim, podemos elaborar projetos de
porque procura responder, com sua ações de extensão que se organizam de
especificidade, à pergunta sobre o tal forma que o ensino e a pesquisa
sentido tanto da produção quanto da estejam legitimados pela proposta
socialização do conhecim ento filosófica do curso, pela ética de seus
realizados no âmbito da universidade, proponentes e pelo desejo de seus
ajudando, assim, a efetivar a atuantes.
relevância social e política do ensino e
da pesquisa. E essa é a pergunta da Saber sobre a natureza da univer­
ética. (Calderón, 2004, p. 18). sidade como espaço privilegiado de
Se partirmos da idéia de que ética é acumulação, de produção e de
um modo de olhar a vida de maneira que socialização de conhecimento com
relevância social; saber a extensão
ela faça sentido, então poderemos como uma categoria ética que
pensar na extensão como lugar de pergunta pelo sentido do ensino e da
relação com o outro, de ouvir e pesquisa; saber a extensão como uma
oportunizar relações de diálogo onde a categoria estética que promove ações
substantivas de construção do belo e Referências bibliográficas
do bem-estar das pessoas; saber a
extensão como disposição ao ASSO CIA ÇÃ O N A CIO N A L DE
aprendizado da alteridade arte de EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. Fórum
amar; saber da imperiosa necessidade de Pró-Reitores de Extensão das
de superar posturas corporativistas, Universidades Públicas Brasileiras.
são hipóteses ou caminhos que podem Brasília: MEC Sesu, 2001.
ajudai' na construção de uma Política BRANQUINHO, João; MURCHO,
Nacional de Extensão, que transforme Desidério (org.). Enciclopédia de
o conhecim ento produzido e term os lógico-filosóficos. Lisboa:
socializado na academia em sabedoria, Gradiva, 2001.
em um bem público ao qual todos
possam ter acesso, visando ã BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética
construção da dignidade da vida. do hum ano com paixão p ela
(Calderón, 2004, p. 24). Terra.Petrópolis: Vozes, 1999
CALDERON, Adolfo Ignácio (org.).
A sensibilidade presente nos acadê­ Ação comunitária: um a outra face
micos e professores que participam dos do ensino superior brasileiro. São
projetos já constitui em si mesma um Paulo: Olho d'Água, 2004.
conteúdo de aprendizagem que faz a C H A U Í, M arile n a. C o n v ite à
diferença em suas formações e nos filosofia. São Paulo: Ática, 2001.
espaços onde atuam ou atuarão. D E C L A R A Ç Ã O DA B A H I A .
Poder acreditar que a extensão é tão Docum ento do I Seminário de Reforma
form adora e tran sfo rm ad o ra da Universitária. Salvador. Maio de 1961.
sensibilidade humana e colaboradora FÓRUM NACIONAL DE EXTENSÃO
legítima para a construção de um outro E AÇÃO C O M U N I T Á R I A . A
mundo possível, onde o perceber o outro Universidade e o compromisso social: a
e a sua cultura como alguém importante contribuição da Extensão. A nais.
para a manutenção da minha sobrevi­ Campinas: PUC, 2004.
vência e da minha própria cultura, HALL, Stuart. A centralidade da
reacende em nós o desejo de continuar cultura: notas sobre as revoluções do
particip an d o deste processo de nosso tempo. Educação & Realidade,
fortalecim ento da extensão como Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46,
indissociável do ensino e da pesquisa no jul./dez. 1997.
processo de formação humana. HUISMAN, Denis. D icionário de
obras de filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
Japiassu, Hilton; Marcondes, Danilo.
Dicionário básico de filosofia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
KUHN JUNIOR, Norberto. Oficinas da TAVARES, M. G. M. E x ten sã o
pós-indústria - arte e o lúdico como universitária: novo paradigm a da
m atriz criativa e produtiva nos universidade? Faculdade de Educação,
fundamentos do desenvolvimento social Universidade Federal do Rio de Janeiro.
das comunidades locais. Diversidade e Rio de Janeiro, 1996. (Tese de
políticas afirmativas: diálogos e Doutorado em Educação Brasileira).
intercursos. Novo Hamburgo, RS. p.
85-100. N otas
MOORE, G. E. Princípios éticos. São
Paulo: Abril Cultural, 1975. 1 O artigo toma como base os documentos
MORIN, Edgar. Os sete saberes institucionais do Núcleo de Identidade,
necessários à educação do futuro. São Gênero e Relações Interétnicas -
Paulo: Cortez, 2001. NIGÉRIA, programa de extensão que
NUNES, M argarete Fagundes. A a b rig a o P ro jeto B anda M irim .
extensão universitária como uma Atualmente o NIGÉRIA é coordenado
extensão do olhar: relato de uma pelo Prof. Ms Norberto Kuhn Junior,
experiência no projeto Banda Mirim. Professor do Centro U niversitário
Diversidade e políticas Feevale.
afirmativas: diálogos e intercursos, 2 Dulce Cornetet dos Santos - Feevale.
Novo Hamburgo, RS. p. 65-83. Graduada em Educação Física. Mestre em
R E V I S T A B R A S I L E I R A DE Educação. Professora Adjunta no Centro
Universitário Feevale. Assessora da Pró-
EXTENSÃO U NIVERSITÁRIA / R eitoria de E xtensão do C entro
Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universitário Feevale. Professora da rede
Universidades Públicas Brasileiras, Rio Municipal de Porto Alegre.
de Janeiro: UFRJ/ UNIRIO, vol. 3, n. 2, 3 Josilda Berenice Fogaça - Feevale.
2005. Graduada em Pedagogia. Especialista em
SAMPAIO, Jorge Hamilton (Coord.). A Psicopedagogia. Professora Assistente no
U niversidade e o com prom isso C e n tro U n iv e r s itá r io F e e v a le .
social: a contribuição da extensão: Coordenadora do Programa Educação e
Anais (do) Fórum Nacional de Extensão Cidadania, do Instituto de Ciências
Humanas, Letras e Artes no Centro
e Ação Comunitária das Universidades e Universitário Feevale. Professora da
Instituições de E nsino Superior Rede Municipal de Novo Hamburgo.
Comunitárias, XI Encontro Nacional de 4 Marcelo Rodrigues de Almeida - UFV
Extensão e Ação Comunitária. VI Acadêmico do Curso de Agronomia na
Assembléia Nacional, Campinas/SR 27 a Universidade Federal de Viçosa. Bolsista
29 de Outubro de 2004. Campinas/SP: da Extensão. Coordenador do Projeto
PUC/Campinas, 2004.208p. Cores da Terra - UFV

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