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UNIJUI - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

RAFAEL ZIMMERMANN

A FORMAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO E A IDEIA DE JUSTIÇA NA


CONTEMPORANEIDADE: DISCUSSÕES A PARTIR DA CONCEPÇÃO LIBERAL
IGUALITÁRIA DE JUSTIÇA

Ijuí (RS)
2016
1

RAFAEL ZIMMERMANN

A FORMAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO E A IDEIA DE JUSTIÇA NA


CONTEMPORANEIDADE: DISCUSSÕES A PARTIR DA CONCEPÇÃO LIBERAL
IGUALITÁRIA DE JUSTIÇA

Monografia final do Curso de Graduação em


Direito objetivando a aprovação no componente
curricular Monografia.
UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul.
DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e
Sociais

Orientador (a): MSc. Anna Paula Bagetti Zeifert

Ijuí (RS)
2016
2

Dedico este trabalho a todos aqueles que me


auxiliaram de alguma maneira, bem como
acreditaram no desfecho desse primeiro capítulo da
minha história na universidade.
3

AGRADECIMENTOS

A minha orientadora Anna Paula Bagetti


Zeifert pela sua dedicação, profissionalismo e
amor pelo tema escolhido neste trabalho.

A todos que colaboraram de uma maneira


ou outra para construção deste trabalho, meu
muito obrigado!
4

“A constituição do homem é obra da natureza; a do


Estado é obra de arte: não depende dos homens o
prolongar a sua vida, mas está em suas mãos
prolongar a do Estado o quanto for possível, dando-
lhe a melhor constituição que ele possa ter. O mais
bem constituído acabará, porém, muito depois de
outros, se imprevistos não o derrocarem
prematuramente.” (Jean-Jacques Rousseau)
5

RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica faz uma análise do surgimento do Estado


de Direito, sobretudo, a partir da concepção dos contratualistas clássicos. Discute brevemente
as gerações de direitos, bem como as revoluções liberais oitocentristas, buscando compreender
a importância desse movimento para a consolidação do constitucionalismo. Ainda, faz um
contraponto de ideias, entre o direito constitucional e os direitos humanos, entendidos neste
trabalho, sob uma perspectiva universal. Por último, tece algumas considerações sobre a ideia
de justiça, na medida em que propõe se debruçar nas novas perspectivas da filosofia política
contemporânea.

Palavras-Chave: Contratualismo. Constitucionalismo. Justiça. Direitos Humanos.


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ABSTRACT

The present work of monographic research makes an analysis of the emergence of the
rule of law, mainly, from the conception of classic contractualists. It briefly discusses the
generations of rights, as well as the liberal revolutions of the eighteenth century, searching
understand the importance of this movement for the consolidation of constitutionalism. Still,
it makes a counterpoint of ideas, between the constitutional right and the human rights,
understood in this work, from an universal perspective. Finally, it makes some considerations
about the idea of justice, in that it proposes to look at the new perspectives of contemporary
political philosophy.

Keywords: Contratualism. Constitucionalism. Justice. Human Rights.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8

1 A COMPOSIÇÃO DO ESTADO DE DIREITO: A RAZÃO DE ESTADO E O


NASCIMENTO DO ESTADO MODERNO ........................................................................ 10
1.1. Aspectos históricos que antecedem a formação do Estado de Direito ........................ 10
1.2. A doutrina contratualista e a transição para o Estado Moderno ............................... 15

2 A EXTENSÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO E A


CONSOLIDAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO NA MODERNIDADE ................... 29
2.1 A consolidação do Constitucionalismo ........................................................................... 29
2.2 Da Liberal à Social Democracia ...................................................................................... 36
2.3 Os direitos humanos e o Estado Constitucional: universalidade e reciprocidade ...... 43

3 OS DESAFIOS PARA UM ESTADO NA PÓS-MODERNIDADE: A IDEIA DE


JUSTIÇA ................................................................................................................................. 48
3.1 Justiça como princípio do Estado Democrático de Direito em John Rawls ................ 48
3.2 A democracia como razão pública em Amatya Sen ...................................................... 54
3.3 As críticas de Amartya Sen à Teoria da Justiça de John Rawls: ampliações da ideia
de justiça ................................................................................................................................. 57

CONCLUSÃO......................................................................................................................... 60

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 62
8

INTRODUÇÃO

A pesquisa visa abordar o debate acerca da formação do Estado de direito e a ideia de


justiça na contemporaneidade, no intuito de compreender como e por quais motivos o Estado,
enquanto instituição burocrática, ascendeu em meio a períodos de revoluções que
ocasionaram intensas mudanças na estrutura da administração do poder.

Além disso, faremos uma abordagem sobre justiça, sobretudo, a partir dos desafios
enfrentados pelos países com a evolução dos direitos humanos e o cenário de demandas cada
vez mais crescentes, que não podem ser resolvidas apenas por um Estado nacional, mas pela
ajuda mútua e cooperação internacional.

Acreditamos que somente a análise da conjuntura histórico-jurídica pode proporcionar


a compreensão das características da constituição do Estado de Direito, sobretudo, a formação
do Estado Moderno e as suas repercussões na filosofia política na modernidade. Nesse
sentido, o estudo da Idade Média, mais especificamente da baixa Idade Média, como um
período em que se constituíram as bases para o período subsequente, possibilitará a
compreensão da importância das revoluções oitocentristas para a consolidação do
constitucionalismo.

Assim, os ideais revolucionários do início da modernidade ascenderam a partir da


utilização da racionalidade como a principal característica dos movimentos jurídico-políticos
nesse período. Por esse motivo, realizaremos, de uma maneira crítica, um estudo detalhado
acerca da formação do Estado de Direito e sua importância jurídica para a modernidade,
utilizando os contratualistas clássicos. Nosso principal problema será compreender a relação
entre Estado de Direito, democracia e justiça.
9

Partindo das revoluções Francesa, Americana e Inglesa, identificaremos a afirmação


de uma sociedade ocidental pautada na burocracia de Estado, ou seja, oriunda de um
movimento positivista e legalista, que também desconsiderou muitos aspectos humanos,
afetivos e tangenciais, para a afirmação de direitos.

Entretanto, é com a evolução dos direitos do homem e o surgimento da democracia


que os direitos começam a ganhar terreno, ampliando a sua abrangência, sendo reconhecidos e
recepcionados pelas cartas de direitos em países, antes, sem nenhuma característica
democrática ou republicana.

Em seguida, apontaremos o debate sobre a universalidade de alguns direitos,


compreendidos como essenciais a todas as pessoas, de tal forma que o reconhecimento de
princípios como liberdade, igualdade, segurança, fraternidade, além do direito à vida, sejam
compreendidos como direitos humanos, tanto do ponto de vista positivista, quanto entendidos
como normas morais e, portanto, inatas a cada pessoa.

Apenas a compreensão universal de alguns direitos, entre eles, os direitos humanos,


possibilitará tratar o tema da justiça, sobremaneira, enquanto balizadora de princípios
inseridos tanto no arcabouço jurídico dos Estados, quanto no seio moral da sociedade.

Trataremos a teoria da justiça por meio de dois autores liberais igualitários, John
Ralws e Amartya Sen, os quais divergem em algumas considerações, ainda que se utilizem
dos direitos civis, político, econômicos e sociais para afirmarem suas teses.

Quanto à metodologia a ser aplicada neste estudo, optamos pelo método de abordagem
hipotético-dedutivo, uma vez que se parte da coleta de dados em fontes bibliográfica
disponíveis em meios físicos e eletrônicos, afim de desenvolver uma hipótese com base no
problema apresentado. A pesquisa quanto ao objeto é do tipo exploratória e se utiliza de
referenciais teóricos com obras de renomado respeito da filosofia política, contratualismo
clássico, democracia, justiça e direitos humanos.
10

1 A COMPOSIÇÃO DO ESTADO DE DIREITO: A RAZÃO DE ESTADO E O


NASCIMENTO DO ESTADO MODERNO

A construção do Estado Moderno teve em sua gênese a ideia de Estados consolidados


a partir de um aparato burocrático de centralização administrativa em um período histórico
denominado modernidade, o qual se constitui com base na afirmação das ciências naturais do
século XVII, nas revoluções políticas do século XVIII e nas revoluções industriais do século
XIX (TORRES, 1989). Por isso, abordaremos nesse primeiro momento, a transição da Idade
Média para a Idade Moderna, sobretudo, no que tange às formas de representação, de maneira
a salientar algumas características essenciais da Idade Média, que possibilitaram o
aparecimento de um novo contexto social e político na Modernidade, o que mais tarde daria
origem ao Estado Moderno.

1.1. Aspectos históricos que antecedem a formação do Estado de Direito

Os aspectos históricos que determinaram a formação do Estado Moderno repercutem


de alguma maneira e podem ser mais facilmente compreendidos se abordarmos algumas
características históricas fundamentais apresentadas na Idade Média. Sobretudo, na Baixa
Idade Média, considerando que aquele período abrangeu cerca de mil anos na história da
humanidade, havendo divergências entre os fatos históricos que o especificaram, contudo, se
iniciou no século V d.C. e se encerrou no século XV d.C., aproximadamente, perdurando
entre o fim do Império Romano e o surgimento do Renascimento. (BEDIN, 2008)

Não obstante suas características particulares, a Idade Média apresentou quatro


momentos específicos, quais sejam, a Primeira Idade Média, a Alta Idade Média, a Idade
Média Central e a Baixa Idade Média. O primeiro momento se refere da queda de Roma
(século V) até o início do século VIII. O segundo, do início do século VIII e abrangeu até as
primeiras décadas do século X, em torno de 920 d.C., sendo que durante este momento
ocorreu a formação da dinastia carolíngia, de Carlos Magno. (BEDIN, 2012). O terceiro, o
auge da sociedade feudal, do século X ao XIII, sendo o declínio do Papado e, a Baixa Idade
Média, em que novos tempos foram preparados, dos séculos XIII ao XIV.
11

De outro modo, podemos considerar o Império e o Papado como as duas ideias


majoritárias na Idade Média, as quais possuíram uma presença significativa na vida coletiva
nesse período, como transcrito na passagem a seguir:

São os dois grandes projetos que se postulavam como universais: o de uma Igreja
Romana, que passaria a se apresentar na Europa Medieval como grande fator de
unidade da cristandade ocidental, e o de um Império do Ocidente, que já não existia
mais a partir da deposição de Rômulo Augusto em 476 d.C., mas que, a partir daí,
nunca deixaria de pairar o imaginário político dos novos reinos que, nessa parte
ocidental do antigo império Romano, dava agora origem aos inúmeros reinos
europeus, o que certamente era também imaginado pelo centro administrativo da
Igreja. (SILVA, 2014, p.35-36)

Se caracterizou também por ser um período de transição histórica entre a Idade Antiga
e a Idade Moderna, sendo denominada por muitos como um período de trevas na história, de
embrutecimento, de ignorância e de desenvolvimento, a qual significou a decadência em
aspectos de produção artística e literária. (BEDIN, 2008)

Outros autores, afirmam que esse período não foi de embrutecimento e


subdesenvolvimento, mas sim teve suas características próprias e ainda tem sido muito pouco
estudado com profundidade, tendo servido para fundar as bases cristãs e romanas na Europa.
(SILVA, 2014)

Além disso, devemos considerar as formas de sociabilidade predominantemente rurais,


quase sem a existência de comércio a não ser aquelas ligadas aos feudos. Por sua vez, a
estrutura feudal, propriamente, que foi formada a partir de uma relação de dependência, em
um período na Europa marcado pela violência, fome, pobreza, saques, epidemias e invasões,
além da fraqueza das organizações políticas. A forma de proteção e sobrevivência possível
consistiu na aliança feita pelas pessoas para garantir sua subsistência, uma vez que as
instituições políticas foram sendo descentralizadas.

Podemos constatar, portanto, uma séria dificuldade econômica e a preponderância da


sociedade agrária, a qual possibilitou a decadência dos centros urbanos e a estagnação da
sociedade medieval, nas configurações política, social e cultural, servindo de sustentação para
a servidão e a vassalagem no sistema feudal.
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Com a queda do Império Romano, a Igreja passou a ser a instituição oficial do mundo
medieval, do mesmo modo como passou a filtrar o conhecimento nesse período, sendo a
guardiã e a intérprete do conhecimento da Antiguidade Clássica. (BEDIN, 2008)

Desse modo, se considerarmos a influência do Direito Romano, bem como a


influência cristã ao longo do medievo podemos confirmar a fundação das bases europeias para
a Modernidade. Gilmar A. Bedin (BEDIN, 2012, p.22) entende que “[...] com a queda do
Império Romano, a Igreja passou a ser a única instituição organizada e com a capacidade de
produzir uma síntese do legado desta estrutura política e das contribuições germânicas.”
Desse modo, a Igreja passou a preencher os espaços deixados pelo Império Romano, já que no
século IV o cristianismo passou a ser reconhecido como a religião oficial do Império.

O monopólio da Igreja fazia dela a instituição incontestável, sobretudo, pela


prevalência da palavra de Deus, uma vez que a sociedade passou a girar em torno da Igreja e o
poder papal se constituiu como supremacia político-moral na sociedade medieval. Assim
sendo,

a nova visão de mundo criada pelo cristianismo é algo impressionante e marcante na


História universal. A explicação de que o homem é uma criação de Deus, de que
deve tudo a Ele e que a vida é provação para retornar aos céus é uma das expressões
da ordenação mais marcantes do ocidente. [...] obedecer a Deus conforme lhe
ensinam seus enviados aqui na Terra – os santos da Igreja (os pais-padre/papa – que
são ideias de hierarquia natural divina. O sucesso do mundo poderia ser medido pelo
sucesso da Igreja e quanto mais cristãos existirem maior seria o bem de Deus na
Terra. (SILVA, 2014, p.38)

A centralização do poder do clero regulou todas as esferas da vida social, adquirindo


um poder extraordinário e o seu representante máximo passou a exercer um poder típico de
Estado, dirimindo conflitos e apaziguando as relações sociais. Neste sentido, o Clero passou a
ser legitimado pelo poder divido, centralizando o poder de legislar e julgar, por exemplo,
condicionando a cultura e impondo regras, praticamente de forma ilimitada.

O período central de afirmação do pensamento cristão na Idade Média ocorreu nos


anos 900 a 1000 d.C., quando o advento das cruzadas passou a ganhar força e ser um
mecanismo eficaz para o exército cristão assentar seus domínios.

Somente com Carlos Magno, a partir de 800 d.C, o projeto de estabelecer uma
sucessão hereditária no Império Carolíngio e relacioná-lo com a ideia universal da Igreja
13

Romana, foi a confecção em 817, do documento denominado Ordinatio Imperii, o qual


estabeleceu que o Papa coroava o único Imperador, e que este reinaria sobre os reis dos
demais reinos, firmando assim, uma linha única de sucessão. (SILVA, 2014)

Esse sistema se afirmou na Alta Idade Média, séculos X a XIII, por volta de 1270,
momento este, em que se assentou a sociedade feudal, ou seja, o auge do feudalismo,
preparando novos tempos, delimitando alguns aspectos da modernidade, do laicismo e da
centralização administrativa. (BEDIN, 2012)

Por sua vez, o Declínio do Papado e a Baixa Idade Média repercutiu o conflito entre os
reis e o poder da Igreja. O resultado prático dessa concorrência se baseou na noção de que o
Império perdeu cada vez mais espaço e importância para a realidade política europeia, uma
vez que a dimensão de Império não se configurou nos moldes do Império Romano, restando
preponderante a ideia de “reinos”, até a consolidação de fato do Estado Moderno. De outro
modo, o papado seguiu-se daquele momento histórico até os dias atuais, como uma forte força
política e cultural, continuando a interferir de algum modo na configuração de Estados-
Nações, que se sucederam na modernidade. (SILVA, 2014)

As monarquias emergentes entraram em conflito com o poder Papal. Um exemplo


claro do declínio do poder da Igreja pode ser visto pelo Rei da França Felipe IV (1268-1314),
o qual levantou fundos, para uma guerra, de terras da Igreja em seu país, ignorando a
proibição contra a tributação dessas propriedades sem autorização do Papa. Além disso, em
outro evento, invadiu a sede do papado enfraquecendo, desse modo, o poder do Clero e
sobrepondo limites à atuação da Igreja. (BEDIN, 2012)

Outro exemplo, a Reforma, foi um episódio histórico que abalou a Igreja definhando
as estruturas institucionalizadas da Igreja Católica. Em 1517, Martinho Lutero expos as 95
teses contra o poder dessa Igreja, que havia caído na corrupção, cometendo práticas como o
tráfico de indulgências para obtenção de lucro. A Reforma impulsionou o Poder dos Reinos
em detrimento do poder da Igreja, o que foi altamente inspirador para os reformadores.
(SILVA, 2014)

Nesse sentido, podem ser definidos três aspectos desse momento. O aspecto teológico,
pois o fundamento do cristianismo se assenta na fé e não na idolatria de imagens e ídolos.
14

Moral, porque se opõe à corrupção e Política uma vez que os povos puderam ter uma leitura
diferente da palavra de Deus na Bíblia, mais próxima da sua realidade. As palavras de Lutero
estabeleceram os espaços que deveriam ser ocupados pela Igreja e os que deveriam ser
ocupados pelo Estado, impulsionando um posicionamento estatal mais laico e mais moderado.

Esse fato, ocasionado pelo fato de a Igreja Católica não mais passar a atender aos
interesses de seus fiéis e tão pouco os setores do próprio clero. Por conseguinte, a Reforma
dividiu os cristãos em católicos e evangélicos, pelos motivos expostos a seguir:

Com esse quadro consolidado, os ataques ao papado e à Igreja tornaram-se cada vez
mais fortes e sistemáticos. Neste sentido, contribuiu também para a fragilização da
Igreja e do papado a corrupção, o nepotismo, a busca de riqueza pessoal por parte
dos bispos e a concupiscência do clero. Esses atos passaram a ser condenados
publicamente pelos cristãos, letrados ou não. Essa condenação, no entanto, não
revelava sentimento anti-religioso, de seus membros. Ao contrário, o que se
condenava eram as práticas religiosas oficiais da Igreja, valorizando-se o resgate do
espírito e dos princípios do cristianismo dos primeiros tempos, que muitos cristãos
entendiam terem sido abandonados. (BEDIN, 2008, p. 73)

A Reforma protestante teve o apoio de três setores da sociedade. Os camponeses, os


moradores das cidades, que emergiam, a nobreza e os monarcas. Os camponeses viam em
Martin Lutero seu defensor contra a opressão da Igreja. Os moradores, que desejavam ter o
seu dinheiro distribuído não para Roma, mas para o seu próprio país. E, por último, os
monarcas que viam a possibilidade de confiscar as terras da Igreja sob seus domínios. Dessa
forma, a figura de Martin Lutero e de outros reformadores como Jean Calvino representaram
o fim da unidade cristã até o momento, bem como a ideia de universalidade da Igreja
Romana. (BEDIN, 2012)

Esse movimento, no entanto, não passou invisível aos olhos da Igreja Católica, a qual
propôs uma reação à essa reforma, ou seja, a Contra-Reforma Católica, que conjuntamente ao
Renascimento estabeleceram as condições necessárias para o surgimento em definitivo do
mundo moderno. Assim sendo, a Igreja Católica passou a se utilizar de diversos mecanismos
para manter sua hegemonia. A partir do Concílio de Trento, a Companhia de Jesus foi o
instrumento utilizado pela antiga Igreja retomar o poder exercido até então, buscando apoiar-
se nos príncipes e outros setores que os apoiavam. Do mesmo modo, a ampliação do papel
dos tribunais de inquisição e a confecção do Índex, ou seja, o livro de obras proibidas pela
Igreja Católica, possibilitaram a censura e a tomada de medidas hostis sobre aqueles que
criticavam e possuíam um pensamento divergente ao da Igreja. (BEDIN, 2012)
15

No entanto,

Essas medidas foram, portanto, fundamentais para a Igreja católica retomar a


iniciativa. Não foram, contudo, suficientes para conter o processo de centralização
do poder e, em consequência, frear a consolidação do Estado moderno. Nesse
sentido, os fatos ocorreram de forma diversa, pois, ao invés de a Igreja tentar conter
esse fenômeno político em expansão, acabou aliando-se aos reis católicos, numa
espécie de aliança estratégica contra o protestantismo. Assim, também a Igreja
Católica acabou auxiliando no processo de centralização política do Estado
moderno. (BEDIN, 2008, p. 78)

Em suma, a Baixa Idade Média se caracterizou como o período em que o comércio foi
se reascendendo, as cidades emergindo, ocasionando uma ruptura com a tradicional sociedade
agrária, no caminho da afirmação do Estado Moderno. Após o apogeu da Idade Média, nos
séculos XI e XIII, as profundas transformações provocaram o colapso no sistema feudal,
ocasionado pela fome, guerra e pestes, ou seja, privações de todos os gêneros, como a Guerra
dos Cem Anos, a peste negra e a fome decorrente da crise agrícola de 1315 e 1317. (BEDIN,
2008)

A mudança sobreveio por diversos fatores, sendo uma crise de grandes proporções,
envolvendo aspectos demográficos, econômicos, sociais, políticos e clericais, por exemplo. A
forma predatória e invasiva de lidar com a natureza e com as pessoas se tornou insustentável.
Portanto, as formas de sociabilidade predominantemente agrárias se alteraram para uma
configuração social, não mais balizada pelo feudo, mas sim pela indústria e pelo comércio,
pelo modo de vida urbano, assim como por relações sociais mais livres. Assim, desenhava-se
o início de um período que viria a seguir: a Modernidade, e em consequência, o Estado
Moderno.

1.2. A doutrina contratualista e a transição para o Estado Moderno

Com o advento da Modernidade inaugura-se uma nova era, a qual seria o berço do que
mais tarde iriam chamar de Estado Moderno. Assim sendo, por Modernidade se entende o
período histórico datado desde o ano de 1500 até os dias atuais. Possibilitou a formação de um
aparato público-estatal, o qual instituiu divisões e formas políticas pessoalizadas e parciais,
sendo um contraponto à proposta de universalidade e impessoalidade das formas de
representatividades. (TORRES, 1989)
16

Esse novo período foi determinante em relação ao surgimento de novas ideias,


pensamentos e reivindicações, as quais deram sentido ao pensamento da modernidade. Da
mesma forma, se construíram doutrinas acerca do Estado de Direito, sobretudo, se
compreendidas e alicerçadas nas revoluções Francesa (1789), Americana (1776) e a Inglesa,
no século XVII, assim como na revolução industrial do século XVIII, iniciada pelas
revoluções burguesas como a Revolução Puritana de 1640 e a Revolução Gloriosa, de 1688.
Toda essa “era de revoluções” marcou um novo momento na história do direito, na política,
na filosofia, nas artes, nas ciências, entre outros, o qual restou denominado de iluminismo,
especialmente, porque a Idade das Trevas, como ficou conhecida a Idade Média, tinha sido
inexpressiva para aquela ideologia que surgia, pautada, sobretudo, na razão humana, sendo
esta a luz para o futuro da humanidade e esquecida durante o período que acabava de ser
“superado”. (TORRES, 1989)

Um de seus expoentes, num primeiro momento, foi Nicolau Maquiavel, do século


XVI, que rompe com pensamento teocrático. Defendeu um Estado fruto do racionalismo
científico e não um mero acontecimento do mundo da natureza, ou, uma providência divina.
Afirma ele, que todos os homens são medrosos e buscam incessantemente o poder, para se
afirmar em algo. Mostrou que a política se consolida em um jogo de interesses, tendo escrito
um verdadeiro manual de como manter bons governantes e como destituir os maus, aqueles
sem virtude. Escrito entre 1513 e 1516, O Príncipe pode ser considerado uma das obras
políticas mais importantes da história da humanidade. (SILVA, 2014)

Na obra, ele se preocupa muito com o momento histórico da Itália, que conta com uma
fragilidade por falta de unidade nacional, intrigas políticas, imoralidades e instabilidade
política. Sua preocupação com as finalidades lhe rendeu a utilização de seu sobrenome como
adjetivo pejorativo: “maquiavélico”, ao defender que os fins justificam os meios. A maioria
dos leitores não considera o propósito final, que para o autor seria o bem comum. Disserta
que, se não tens bons fins não encontrarás os meios certos, da mesma maneira como não se
deve escolher maus meios para não destruir os fins. Injustiçado ou não, cabe considerar que
ele foi um dos maiores pensadores práticos da história. (MAQUIAVEL, 1987)

Fato é que este pensador pôs o homem, como um ser capaz, em frente ao poder divino,
rompendo com as bases do direito natural. Neste sentido:
17

O pensamento social da modernidade foi chamado de muitas formas: racionalismo,


iluminismo, jusnaturalismo, evolucionismo, contratualismo, idealismo, etc., que
partiam do pressuposto de que o homem é o centro de todas as coisas; de que o
homem é o principal ser natural. (SILVA, 2014, p.45)

O uso da razão de Estado possibilitou novas perspectivas com as visões dos


contratualistas, os quais afirmam ser o governo civil, isto é, governo das leis, condição
indispensável para a sobrevivência dos homens e a preservação de sua liberdade.

O governo civil, pautado nas leis civis, possibilitou a concentração administrativa do


Estado, o direito em questão passou a ser positivado em documentos, surgindo, então, o
direito positivo, isto é, um direito positivado em cartas de direito, ou, artificial, oriundo da
vontade do legislador. A partir dessa ideia, é possível aduzir que o direito positivo, criado pela
vontade humana adveio de um projeto racional que definiu as leis, normas legais e
constitucionais como “instrumentos da razão planificante”, capaz de regulamentar os
problemas sociais. (SILVA, 2012, p.63)

Neste sentido, a análise do contratualismo, enquanto fenômeno de fundamentação do


Estado de Direito na Modernidade, sobretudo, porque surgiu em oposição à concepção
orgânica de sociedade, consolidou-se em sobreposição à doutrina do Direito Natural
construída pelas leis da natureza, sendo estas inatas a cada indivíduo.

O contratualismo, por sua vez, apontou a ideia de contrato, pois fundamentada na


criação artificial da razão humana por meio de um consenso entre os indivíduos. (STRECK;
BOLZAN DE MORAIS, 2010). Logo, o estabelecimento de um Estado civil colocou a
sociedade ocidental em um momento histórico distinto, em que o uso da razão humana surge
como um imperativo em relação à organização primária e fora do contexto social, isto é,
anterior à sociedade política. A razão passa a ser um dos elementos mais importantes para a
formação do pensamento moderno, o qual tentou ser o mais fiel possível ao racionalismo
científico.

Diante do exposto, o Estado de Direito transformou a razão de Estado na virtude de


fazer leis civis e definiu normas substanciais para servirem de fundamento às constituições.
No entender de Canotilho (CANOTILHO, 2010), o Estado Constitucional, na concepção
18

liberal-formal de Estado de Direito, prescindiu de uma estrutura democrática para que tivesse
a soberania e o domínio de suas ações legitimados pelo povo.

Ocorre que, o renascimento (XVI a XVIII), se refere à formação de um novo


pensamento ocidental, que rompia com as bases católicas e feudais até então. Promoveu a
sobreposição da ciência à religião, isto é, no âmbito político, por exemplo, a sobreposição da
razão de Estado em detrimento da religião de Estado. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS,
2010) (2010, grifo nosso)

A transição do modo de produção feudal, no qual preponderava a produção agrícola,


camponesa e manual, em que o poder estava dividido em setores sociais hegemônicos, como
os senhores feudais, o clero e os proprietários de terras, os cavaleiros, e outros, para a de
produção industrial, mecânica e urbana, demonstrou uma mudança social, que mais tarde
influenciou a concepção de Estado, marcado pela ideia de “neutralidade” e de contrato social,
onde o Estado passou a existir como uma unidade centralizadora.

Houve, dessa maneira, um avanço do pensar humano, de explicar e buscar soluções


para todos os problemas, sendo que a transição para um Estado Civil, pautado em leis civis, se
consolidou com a doutrina contratualista, especialmente, inspirada por Thomas Hobbes
(1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778), os quais
propuseram a elaboração de um pacto, ou seja, um contrato, como um meio de garantia de
direitos, no intuito de preservar a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos.

Como observa (SILVA, 2014), o pressuposto político da modernidade é fazer o


homem sair do estado de Natureza e fundar a sociedade civil, isto é, a sociedade dos homens,
na intenção de ultrapassar aquela concepção natural e ir em busca da capacidade de ser
racional.

O contratualismo assumiu notória importância neste contexto de transição, de uma


sociedade onde os indivíduos devem prover sua própria segurança e liberdade a uma
sociedade onde os indivíduos são protegidos por um acordo, um contrato, sob a tutela de um
governo que respeite as leis civis de um determinado Estado.
19

A primeira versão do Estado Moderno se refere ao Estado Absolutista, o qual se


baseou na ideia de soberania, levando à concentração de todos os poderes nas mãos dos
monarcas, dando origem, às denominadas monarquias absolutistas. Neste sentido, estas
últimas se apropriaram do Estado, assim como faz o proprietário sobre seus bens privados,
fazendo surgir um poder de império, em que há o poder absoluto do rei sobre o Estado.
(STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Na visão de Thomas Hobbes, no estado de natureza há a guerra de todos contra todos,


mais precisamente por não haver um poder comum capaz de manter todos os homens em
temor respeitoso. O autor assegura não haver prazer na companhia de um homem com outro,
e sim apenas a necessidade de reconhecimento de seu poder. Assim, se não houver um poder
capaz de intimidar a todos, no intuito de manter todos em respeito, os homens serão levados à
ruína e destruição. (HOBBES, 2003)

O referido autor afirma encontrar nos homens igualdade ainda maior do que a força,
sendo esta a prudência, a partir da experiência adquirida em vida. Com base nessa igualdade
quanto à capacidade dos “homens deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos os
nossos fins”. (HOBBES, 2003, p. 107-108). O caminho que leva a um determinado fim faz
com que os homens se destruam e subjuguem um ao outro, uma vez, que o fim constitui-se na
sua conservação e também no seu deleite. Por isso, surge nos homens a desconfiança, isto é, o
alicerce para o que se pensa, uma maneira de se garantir, e esta é a antecipação. Nada mais
razoável do que a força ou a astúcia para subjugar as pessoas e todos os homens que puder,
durante o tempo necessário para que não veja mais poder algum que o ameace.

Na natureza dos homens se encontram três causas principais da discórdia: a


competição, a desconfiança e a glória. A primeira leva os homens a atacarem os outros em
busca do lucro, a segunda, a segurança e a terceira, a reputação. (HOBBES, 2003)

Dessa maneira, sem um poder comum capaz de manter todos os homens em temor
respeitoso se encontram em estado de guerra uns com os outros.

Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um
poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram
naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens. Pois a GUERRA não consiste apenas na batalha ou no ato
20

de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida. (HOBBES, 2003, p. 109)

Na opinião do autor, o estado de natureza se constituiu como um estado de guerra


onde todo homem seria inimigo de todos os homens. Neste sentido, a capacidade de cada
indivíduo em proteger a si mesmo se constitui na verdadeira forma de proteger sua vida,
propriedade e liberdade. Contudo, nesta condição não há espaço para o trabalho, isto é, o seu
fruto torna-se incerto por haver sempre o perigo de roubo, disputas e guerras. Por conseguinte,
não há cultivo de terra, nem navegação, comércio marítimo, não há construções confortáveis,
nem instrumentos para garantir a movimentação de coisas que necessitam de uma grande
força. Além disso, não há espaço para a ciência, entre ela, as artes, as letras; não há sociedade
e se vive sempre com um medo continuo e perigo de morte violenta. Restando a vida do
homem “solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”. (HOBBES, 2003, p. 109)

Nessa guerra de todos contra todos não há espaço para a lei, logo, não há a noção de
certo e incerto ou de justo e injusto. As virtudes da guerra são a força e a fraude,
contrariamente à noção de justiça. Esta por sua vez, faz parte do homem que vive em
sociedade, de forma coletiva. Do mesmo modo, não há a distinção entre o meu e o teu
somente pertencendo a cada homem aquilo que for capaz de conservar e durante o tempo em
que conseguir.

Quais os desejos dos homens em manter a paz? O uso da razão sugere algumas normas
onde os homens conseguem entrar em comum acordo. Por outro lado, alguns dos desejos dos
homens tendem para a paz. O medo da morte, o desejo das coisas necessárias a uma vida
confortável e a esperança de alcançá-las por meio do trabalho. (HOBBES, 2003)

No intuito de procurar a paz e segui-la, (HOBBES, 2003) estabelece algumas leis da


natureza, que se relacionam com a sociedade civil. A primeira lei da natureza diz respeito à
superação de um estado de guerra, que ocorre com a utilização de um instrumento, o contrato,
uma vez, que a palavra dos homens é fácil de ser desfeita. Assim, a justificativa de um poder
absoluto sobre os homens encontra respaldo na intenção de obrigar os contratantes, isto é, os
indivíduos, a cumprirem seus pactos. Caso este, que ocorre em uma República Civil, a qual
institui um poder para coagir aqueles que violaram sua confiança.
21

Surge então, para (HOBBES, 2003) a terceira lei da natureza, a qual afirma que uma
vez celebrado o pacto todos devem cumpri-lo. Nestes termos, o fundamento do contrato e da
lei em si é a possibilidade de ser exigida dos indivíduos uma conduta de acordo com a
convenção das partes.

Nesta lei da natureza reside a fonte e a origem da JUSTIÇA. Porque sem um pacto
anterior não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas;
consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado o pacto
rompê-lo é injusto. E a definição de INJUSTIÇA não é outra senão o não-
cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo. [...]. Portanto, para que
as palavras “justo” e “injusto” possam ter lugar, é necessário alguma espécie de
poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento dos seus
pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que
esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de confirmar propriedade que os
homens adquirem por contrato mútuo, como recompensa do direito universal a que
renunciaram. E não pode haver tal poder antes de se erigir uma república.
(HOBBES, 2003, p. 124)

Com base no exposto, a superação do estado de natureza se propõe a retirar o poder de


autotutela dos indivíduos para fazerem o que bem lhes aprouver. É o que dispõe a décima
sétima lei da natureza, a qual nos mostra que ninguém pode ser seu próprio juiz. Assim,
“Considerando que todo homem supostamente faz todas as coisas tendo em vista seu próprio
benefício, ninguém pode ser árbitro adequado em causa própria”. (HOBBES, 2003, p. 134)

Desse modo, restam aqui estabelecidas as únicas leis que dizem respeito à doutrina da
sociedade civil, as quais possuem como objetivo principal ditar a paz como um meio de
“conservação dos homens em multidões”. (HOBBES, 2003, p. 135)

Por sua vez, John Locke, assegura a existência de leis no estado de natureza, contudo
este estado não consiste na guerra de todos contra todos como supunha Hobbes. Assim, a
superação do estado de natureza ocorre principalmente para proteger a liberdade e a
propriedade dos indivíduos.

Neste sentido, a origem do poder político advém de um estado natural, onde todos os
homens estabelecem formas de manter a propriedade e ordenar-lhes as ações conforme as leis
naturais sem pedir autorização a outro homem. (LOCKE, 1963). Embora, possuam os
homens, no estado de natureza, total liberdade de dispor da própria pessoa e posses, ninguém
detém o poder, diga-se, direito de destruir a si mesmo ou a qualquer outro ser vivo existente.
22

Assim, a lei da natureza caracteriza-se na busca pela paz e a preservação da humanidade se


assemelhando em alguma medida do proposto por Hobbes.

Assim, neste estado todos são executores da lei da natureza e juízes em seus próprios
casos. Desta forma, o governo civil é um remédio para os inconvenientes do estado de
natureza, haja vista, que um homem que comete um mal contra outro, mesmo sabendo de tal
malefício raramente condena a si próprio. Locke afirma que o mundo nunca estará com
poucos homens nesse estado, porque mesmo o estabelecimento de um pacto para a vida em
comunidade e em corpo político, não significa dizer, que qualquer pacto retire dos homens o
estado de natureza. Neste sentido, cabe ressaltar que todos os homens se encontram
naturalmente no estado natural até que por consentimento próprio se tornam membros de uma
sociedade política.

Para Locke, o estado de guerra difere do estado de natureza, como se segue: “O estado
de guerra é um estado de inimizade e destruição”. (LOCKE, 1963, p. 13). afirmando
diferentemente de Hobbes, que “[...] não há quem deseje ter alguém sob seu poder absoluto
senão para compeli-lo pela força ao que é contra o direito de liberdade, isto é, torna-lo
escravo.” (LOCKE, 1963, p. 14)

Esse estado de guerra pretende a transgressão das leis naturais, dessa forma, é preciso
evita-lo, o qual não se tem a quem apelar senão para os céus, onde também não existe
autoridade que decida sobre a divergência e faça cessar tal violência.

A liberdade de um homem denota-se tão necessária para a preservação de sua vida que
ele não pode desfazer-se desta, senão perdendo o poder sobre a própria vida. Não obstante, a
vida pode ser perdida não somente pelo pulsar, mas pela falta do direito de dela dispor, como
se evidencia na condição de escravidão, a qual pode ser considerado “um estado de guerra
continuado entre o conquistador legítimo e o cativo”. (LOKCE, 1963, p. 18). Por conseguinte,
uma vez realizado um acordo entre ambos cessa o estado de guerra, por força de disporem de
seus direitos, faculdades e liberdades sobre a própria vida.

A liberdade natural do homem consiste em estar livre de qualquer poder superior


sobre a terra, e não sob a vontade ou a autoridade legislativa do homem, tendo
somente a leis da natureza como regra. A liberdade do homem na sociedade não
deve ficar sob qualquer outro poder legislativo senão o que se estabelece por
consentimento na comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição
23

de qualquer lei senão esse poder legislativo promulgar de acordo com o crédito que
lhe concedem. (LOCKE, 1963, p. 17)

Outro direito indispensável à sociedade civil versa sobre a propriedade, de tal modo,
que apesar de todos os seres inferiores estarem em condição de apropriação por todos os
homens, cada um possui a sua própria propriedade. Ninguém senão ele próprio possui direito
sobre o que dela advier. Seja o que for que tenha retirado do estado de natureza pertence a ele,
de modo que tenha o direito sobre isto, pois trabalhou para ter o que outros nãos fizeram. A
despeito desse direito adquirido pelo trabalho, ninguém pode se apoderar da propriedade sem
a existência de um pacto, exceto quando não houver o suficiente para terceiros e, desde que
não prejudique aquele proprietário. (LOCKE, 1963)

Nesta passagem podemos observar:

Ninguém se julgaria prejudicado porque outro homem bebesse, embora fosse longo
o trago, se dispusesse de um rio inteiro da mesma agua para matar a sede; e o caso
da terra e da agua, quando há bastante para ambos é perfeitamente o mesmo.
(LOCKE, 1963, p. 23)

Antes da apropriação da terra, o homem que empregava seu trabalho, colhendo o


máximo de frutas possíveis, plantando e pescando, apanhando ou domando tantos animais
quanto possíveis, adquiriu para si certa propriedade deste produto da natureza. Por
conseguinte, o trabalho incorporou valores em tudo o que existe.

Em determinado momento, quando do surgimento das cidades o consentimento das


pessoas tornou possível o acordo sobre os limites da propriedade, bem como a divisão das
terras e de cada território através de leis que delimitaram a quantidade respectiva a cada
membro da sociedade.

Quando esses homens formaram uma comunidade, como um só corpo essa vontade de
agir ocorreu somente pela vontade da maioria. Assim sendo, em assembleias o poder
legislativo passou a agir em nome da vontade da maioria e somente através dessa vontade
possui, atualmente, legitimidade no ato de criar uma lei, seguindo desse modo, a lei da
natureza e da razão.
24

Todo homem quando concorda em fazer parte desse corpo político assume que a
vontade da maioria deve prevalecer sobre sua singular vontade. Entretanto, presume-se que a
união de homens em comum enfraqueça as discordâncias tornando-os raros ou poucos em
comparação aos pontos em comum. Se os desencontros fossem maiores do que as
semelhanças, o pacto de união de uma sociedade perante um governo dessa mesma sociedade
não teria eficácia. (LOCKE, 1963)

Desde que o poder legislativo seja composto por membros da coletividade e


representem as necessidades e imperativos da sociedade política o governo pode ser
considerado legítimo. Por conseguinte, o que constitui ou o que dá início a uma sociedade
política é a união de qualquer número de homens livres capazes de maioria para se reunirem e
incorporarem a esta sociedade. Somente isto poderia originar um governo legítimo no mundo.
Na visão de Locke, os membros de determinada sociedade se unem para um fim e assim,
acabam por renunciar parte de sua liberdade existente no estado de natureza.

A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade


natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras
pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança,
confôrto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que
tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela.
Qualquer número de homens pode fazê-lo, porque não prejudica a liberdade dos
demais; ficam como estavam na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer
número de homens consentiu dêsse modo em constituir uma comunidade ou
govêrno, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a
maioria tem direito de agir e resolver por todos. (LOCKE, 1963, p. 60)

Até o estabelecimento de um governo, que precede a toda a história do mundo, os


homens estão em perfeita liberdade e somente dá causa a este governo a união voluntária e
consensual de homens livres, que agiriam livremente sobre a escolha dos governantes e das
formas de governo.

Além disso, o autor afirma que em sociedades políticas menores, onde não existem
conflitos sobre terras e cada indivíduo possui o suficiente para a subsistência, de forma que
não prejudique os demais membros dessa comunidade, os conflitos existentes são menores do
que em localidades em que existam mais membros e disputas por terras, riquezas e poder. A
necessidade de muitas leis não existe, visto que os conflitos são menores ou em algumas
situações, inexistentes. Da mesma forma, não era preciso muitos funcionários para gerir o
governo e acompanhar a execução da justiça. (LOCKE, 1963)
25

Naturalmente, os mais sábios e os mais fortes guerreiros sempre foram escolhidos para
conduzir determinado povo, bem como em guerras contra os inimigos governando,
principalmente, no intuito de evitar a destruição dessa comunidade. (LOCKE, 1963)

Do mesmo modo, independentemente quem pôs os primeiros governos nas mãos de


uma pessoa só, agiu certamente no intuito de preservar o bem público e a segurança da
comunidade. Todos os motivos levam a crer que o estabelecimento de qualquer governo se
baseou no consentimento dos homens. Alguém nascendo sobre a tutela de um governo não
pode criar novo governo legítimo, pois este já existe. Esta pessoa pode apenas participar desse
governo, da forma que for, mas sempre estará vinculado à vontade dos homens livres que
legitimaram tal governo. Se esta premissa for verdadeira, como se originaram as monarquias
absolutas em tantos governos do mundo?

Todo homem no momento em que se vincula a um governo submete toda sua


propriedade sob a tutela e legislação de tal governo. Caso contrário, o governo não teria
sentido se não tivesse propriedade para proteger.

Assim, é fácil distinguir entre quem pertence e quem não pertence no corpo da
sociedade política. Aqueles que unidos permanecem vinculados a uma legislação e estão em
comum acordo sobre as penalidades de uma conduta que confronte os motivos da constituição
da sociedade civil.

Para John Locke, se as pessoas se inserem na sociedade política não podem se eximir
da obrigação e do imperativo da lei.

Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor


absoluto da sua própria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que
abrirá êle mão dessa liberdade, por que abandonara seu império e sujeitar-se-á ao
domínio e contrôle de qualquer outro poder? (LOCKE, 1963, p. 59)

Para responder a essa pergunta o autor menciona que nenhum indivíduo trocaria o
estado de natureza voluntariamente para um Estado pior do que estava em perfeita liberdade,
uma vez, que o poder do Estado perante a sociedade civil limita-se ao bem comum.
26

Como no estado de natureza todos possuem o poder de castigar um ao outro, na


sociedade política, o governo é em regra, o único que pode opor-se aos membros da própria
sociedade para resguardar a paz, a segurança, a propriedade e o bem comum.

Além da propriedade e da liberdade a união em sociedade procura preservar a vida.


Dessa forma, em tudo o que acordar a comunidade, se estabelece a legitimidade do poder
executivo e legislativo, bem como dos governos e sociedades.

Consoante a Locke, Rousseau declara que a passagem do estado de natureza para o


estado civil implica a observância da justiça e da razão. O contrato social fez o homem perder
a liberdade natural em um direito sem limites, contudo, faz ganhar a liberdade civil e a
propriedade de tudo o que possui. Entre os três autores citados neste capítulo, Rousseau é
aquele que melhor descreve o que seria o pacto social. Para ele no estado de natureza não há
pacto e, por conseguinte, não há dever com alguém que não se estabeleceu pacto algum. O
mesmo não ocorre no estado civil. Portanto, o autor formula o que seria a vontade geral, que
guiaria o povo para a “conservação comum e o bem de todos”. Com base nessas ideias é
possível descrever brevemente a passagem do estado de natureza ao estado civil.
(ROUSSEAU, 2012)

Toda ação livre possui duas causas. Uma delas é a vontade moral, aquela que
determina o ato e outra, a vontade física a qual se constitui na potência que a executa. Da
mesma forma, há no corpo política duas forças. Uma delas é o poder legislativo e a outra o
poder executivo. (ROUSSEAU, 2012)

O governo ou suprema administração, é o exercício legítimo do poder executivo e, o


príncipe, ou magistrado, o homem ou corpo que executa. Se as ordens do governo não são
seguidas pelo povo, não havendo equilíbrio entre a relação dos vassalos e soberanos, sem que
ocorra controle sobre todos os produtos de ambos, corre-se o risco de o Estado ser dissolvido
devido à não mais haver uma força uníssona que o move caindo no despotismo ou na
anarquia.

Rousseau afirma em O Leviatã que o povo unido forma um soberano e nada mais
representa do que a fragmentação do poder individual. Assim, suponha-se que existam 100
membros do povo, o poder de cada um é dividido à fração de um centésimo do poder do
27

soberano, isto, se este poder for considerado como um corpo político. Assim, o autor conclui
que quanto mais se estende o Estado, mais se diminui a liberdade. (ROUSSEAU, 2012)

Por existir uma variação na constituição do Estado aufere-se que podem haver tantos
Estados e constituições diversas quantos os existentes e, por isso, o governo pode ser diferente
em cada Estado, mas não haverá por isso uma constituição de governo única e absoluta.

Para Rousseau, o governo “[...] é em pequeno o que é em grande o corpo político que
o inclui; é uma pessoa moral dotada de certas faculdades, ativa como soberano, passiva como
o Estado [...]”. (ROUSSEAU, 2012, p.60). Por sua vez, essas particularidades e atributos
pressupõem a existência de “[...] assembleias, conselhos, o poder de deliberar, de resolver, e
supõe direitos, títulos e privilégios, que pertençam exclusivamente ao príncipe e que tornem a
condição de magistrado mais respeitável [...]”. (LOCKE, 1963, p.61)

Assim, podemos dizer que passaram a existir alguns princípios norteadores das cartas
de direitos nos países ocidentais, influenciados, principalmente, a partir das revoluções
oitocentristas. Esses princípios, via de regra, foram concentrados em direitos fundamentais, ou
seja, nas constituições nacionais, as quais possuíram um viés bastante substancial em limitar o
exercício do poder político.

Houve, portanto, um movimento jurídico e político para expandir os direitos civis e


políticos da população. Assim, a sociedade foi se desenvolvendo e ampliando a possibilidade
de votar e ser votado, por exemplo, algo restrito na história da humanidade àqueles oriundos
de uma camada mais influente econômica e politicamente.

Sob outro aspecto, após a garantia dos direitos civis, políticos, individuais e outros, a
partir das conquistas e lutas históricas, isto é, em sua maior parte, direitos subjetivos a cada
indivíduo, o Estado passou a ser um instrumento de limitação de poderes, mas também como
um instrumento de trabalho em prol da sociedade. Montesquieu (2010), afirma que a
liberdade política só se encontra nos governos moderados, em que não haja abuso de poder.
Para que o povo detenha o poder preponderante na sociedade, há que existir um instrumento,
qual sejam as constituições, em que ninguém seja forçado a fazer as coisas que a lei não
obriga, e a não fazer o que a lei lhe permite.
28

Como bem sabemos, a centralização administrativa e burocrática atribuiu poderes e


funções ao poder público, no intuito de concretizar os direitos oriundos das cartas magnas,
isto é, das cartas de direitos. Por isso, surge de forma criteriosa e relevante a tripartição dos
poderes proposta por Charles de Secondat, Barão de Montesquieu, no que se refere à divisão
estrutural do exercício do poder, com base nos tradicionais Poderes do Estado na
Modernidade, sendo eles o Legislativo, Executivo e o Judiciário, aos quais foram atribuídos
competências, atribuições e poderes. (MONTESQUIEU, 2010)

Diante dessa nem tão simples teoria e definição, o espírito, ou seja, a virtude da lei, em
uma República, deve ser considerada como um sentimento e não uma série de conhecimentos.
Para Rousseau “[...] cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a
suprema direção da vontade geral, e recebemos enquanto corpo cada membro como parte
indivisível do todo”. (ROUSSEAU, 2012, p.26)

A democracia se consolidou, de forma mais pujante, após a utilização da tripartição


dos poderes e a limitação das funções de cada membro do Estado, como uma forma de
governo que englobou a participação política, as liberdades materiais e formais, além de um
espaço de diálogo entre os agentes públicos, sociedade civil, órgãos estatais e de todas as
esferas organizacionais e gerenciais do governo.
29

2 A EXTENSÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO E A


CONSOLIDAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO NA MODERNIDADE

A doutrina contratualista clássica vista no capítulo anterior estabeleceu um direito na


modernidade pautado em acordos de vontades, estabelecendo direitos e limites às ações
estatais. A seguir, veremos alguns acontecimentos que colocam essa doutrina em prática e
corroboram para a divisão do poder político. Nesse sentido, o surgimento dos Estados
nacionais, com as novas configurações geopolíticas, possibilitou a criação de cartas de
direitos que acomodaram objetivos comuns de convivência entre os povos.

2.1 A consolidação do Constitucionalismo

O constitucionalismo surgiu de diversos movimentos constitucionais, em diversas


localidades, não havendo, portanto, um momento único ou um fato histórico determinante
para a consolidação do Estado constitucional. Ocorre, que três movimentos constitucionais
foram determinantes para se extrair uma definição de constitucionalismo, sobretudo, o
denominado constitucionalismo moderno, o qual ficou conhecido por ser um movimento
político, social e cultural, o qual questionava nos planos filosófico, político e jurídico as
tradicionais configurações do domínio político. (CANOTILHO, 2003)

Essa inversão de pensamentos coloca o indivíduo no centro do mundo político e não


mais o Estado, uma vez que o indivíduo passa a antecedê-lo. A ideia de que os homens
possuem direitos e não apenas deveres fica clara com a consolidação do Estado Moderno, o
qual pautado no constitucionalismo, abriu espaço para a ruptura com o passado, uma vez que
a análise dos antigos documentos como a Lei das XII tábuas, a Lei de Eshunna, o Código de
Hamurabi e os Dez Mandamentos são obras que elencam deveres e não direitos do homem.
(BEDIN, 1998)

O que aconteceu para essa inversão de pensamento, em que a igualdade natural foi
semeada entre as pessoas e a liberdade e a propriedade foram protegidas como essenciais à
vida de cada indivíduo? Para responder a essa pergunta abordaremos três movimentos
constitucionais, sejam eles, o Inglês, o Americano e o Francês, os quais se diferenciaram do
movimento antigo, justamente por este ser um conjunto de princípios escritos ou
consuetudinários sedimentados na existência de direitos estamentais perante os regimes
30

monárquicos, preponderantes do final da Idade Média até o século XVIII. (CANOTILHO,


2003)

A partir dessa exposição trataremos da importância dessas constituições em cada


contexto histórico, como um conjunto de normas, tanto escritas quanto costumeiras, moldadas
à determinadas estruturas e instituições, de acordo com uma ordem jurídico-política em uma
dada sociedade.

Dessa forma, o constitucionalismo enquanto conceito pode ser definido como “[...] a
teoria que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em
dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”. (CANOTILHO,
2003, p.51)

No mesmo sentido, a constituição moderna, objeto de nossa pesquisa, pode ser


entendida ainda, como um ordenamento sistemático, normativo e racional formulado pela
comunidade política, por meio de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e
os direitos, assim como se fixam os limites do poder político. (CANOTILHO, 2003). Deste
modo, há a garantia e o reconhecimento das liberdades negativas, em que o Estado não deve
interferir na vida privada dos indivíduos, ao passo em que há a limitação do poder político,
em prol do poder popular.

Em outras palavras:

Os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de Direito têm o objetivo


de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras palavras, são garantias de
liberdade, da assim chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em
que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo
que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja. (BOBBIO, 1993,
p.20)

Essas definições nos trazem uma ideia de finalidade a ser alcançada pelo Estado
Moderno. Por assim dizer, a consolidação do Estado, acrescido de constitucionalidade,
pressupõe o poder não só de limitar o poder político, mas de delimitar o seu uso quando
necessário. Caso este, em que o Estado está legitimado a intervir na esfera privada para julgar
e punir os cidadãos conforme um processo justo.
31

Neste sentido, podemos abordar o princípio da reserva legal, isto é, o princípio legal
balizador de toda ação estatal, constituindo-se em uma garantia de que não haverá crime sem
lei anterior que o defina, nem aplicação de pena sem prévia previsão legal. Tal enunciado foi
estabelecido pela primeira vez no art.39, da Carta Magna de João Sem Terra em 1215.
(BEDIN, 1998)

Por sua vez, a Magna Carta de 1215 deu início ao movimento constitucional na
Inglaterra, em que o rei João Sem Terra para não ser deposto cedeu e aceitou os termos
elencados nessa carta, a qual limitou o seu poder. Não pode mais aumentar impostos ou
alterar leis sem antes consultar o Grande-Conselho, órgão composto por integrantes da
Nobreza e do Clero. Assim sendo, fez prevalecer as leis e costumes em detrimento da
discricionariedade do poder real, a obediência e controle do poder executivo à soberania do
parlamento, assim como o ideal de igualdade no acesso à justiça e aos tribunais.
(CANOTILHO, 2003)

Mesmo após a Carta de 1215, os reis, advindos da alta nobreza, juntamente ao Clero
detinham o poder monárquico em grande escala na Europa. Entretanto, a burguesia cresceu a
partir do final da Idade Média com a adoção do mercantilismo e do livre comércio e começou
a ocupar os espaços do parlamento e iniciar reivindicações, possibilitando as condições para
as revoluções liberais europeias, bem como as revoluções industriais dos séculos XVIII e
XIX. Por assim dizer, a Magna Carta de 1215 inicia o processo que culmina na Revolução
Inglesa no século XVII, quando há a instauração da monarquia parlamentarista. (TORRES,
1989)

A Revolução Puritana, de 1640, inicia as revoluções liberais na Europa. Durante o


início do século XVII, a dinastia dos Stuarts, seguintes à dinastia dos Tudors (final do século
XV e XVI), sofreram com a divisão da burguesia britânica, uma vez que Jaime I, sucessor de
Elizabeth I, última descendente da dinastia dos Tudors, tomou medidas contrárias àquelas
tomadas em tempos de progresso, descontentando a alta burguesia. (TORRES, 1989)

No período da dinastia Tudor, o país adotou o Anglicanismo, consistindo em um


grande instrumento do Estado, unificando a Inglaterra e fazendo a economia prosperar,
sobretudo, com o descobrimento de novas colônias. De outra forma, após Jaime I assumir o
cargo de monarca, os burgueses menos abastados começaram a reivindicar a livre-
32

concorrência no mercado. Assim, a alta burguesia utilizou a alta dos valores imobiliários da
época, especialmente, de terras em zonas rurais para expandir seus negócios comprando e
desapropriando terras para a produção, dentre tantas coisas, de lã, o que seria utilizado mais
tarde para servir de matéria prima da revolução industrial inglesa. (TORRES, 1989)

Diante da ilegal cobrança de tributos e detenções de mercadorias, quando Jaime I


morreu, em 1628, seu filho Carlos I assumiu o poder, mas o parlamento Inglês votou uma
Petição de Direitos para limitar o monarca de realizar tais atos contra as classes menos
abastadas no comércio. O rei, insatisfeito, dissolve o parlamento e o reabre em 1640 e 1653.
Dentro desse período, ocorre uma guerra civil, entre os parlamentares e a realeza Inglesa.
(TORRES, 1989)

Passados alguns anos de lutas o rei foi obrigado e se retirar para a Escócia, onde tinha
muitos inimigos. Acaba preso e vendido ao parlamento Inglês, vindo a ser executado. Então,
assume o Poder Oliver Cromwell, líder parlamentarista, o qual manteve o apoio dos militares
e da burguesia após a execução de Jaime I.

Ocorreram diversas disputas do poder real até o ano de 1689, com a proclamação do
Bill os Rights, quando foi estabulado direitos e garantias individuais aos súditos, bem como a
sucessão da Coroa e os direitos do Parlamento, sendo o primeiro documento permissivo em
relação à participação do povo, ainda que representados, para a implementação de cobranças
de tributos, por exemplo. Essa carta ficou conhecida por ser a mais importante carta de
direitos após o Magna Carta de João Sem Terra, servindo como base para as cartas de direitos
subsequentes na Inglaterra. (TORRES, 1989)

De certo modo, a crise existente nas instituições como a Igreja e a instabilidade


política deram causa às mudanças de pensamento determinantes à consolidação da monarquia
parlamentarista, a qual estabeleceu para além do rei o poder do parlamento como uma espécie
de conselho, ocasião esta em que o Estado começa a respeitar diversas cartas de direitos.

Durante os séculos XIV e XV, a Inglaterra vivenciou a deposição de cinco reis


ingleses, com derramamento de sangue e grandes batalhas por territórios. Por conseguinte,
havia a carência de unidade política, objeto de acordo da Paz de Westefália (1648), em que a
33

unidade política passa a ser observada pela soberania estatal, delimitada por um território de
determinado povo. (CANOTILHO, 2003)

Além disso, a Inglaterra passou a ser parte do movimento constitucional na


modernidade, o qual foi acompanhado por mais países como veremos a seguir. (TORRES,
1989). Antes, porém, cabe referimos ao papel do parlamento, o qual atuava, inicialmente, em
casos de restrição ao poder de tributar e participava, quando necessário, na atividade
legislativa. Com o tempo, além de dessas atribuições o parlamento passou a fiscalizar os
gastos da Coroa Inglesa. Ocorre que, em alguns momentos, o parlamento foi praticamente
vendido ao rei, em escândalos de corrupção e demonstrações do poder monárquico em relação
ao parlamento. Nesse sentido, com algumas exceções, o parlamento passou a se subordinar,
após o século XII, quase inteiramente às decisões do rei, o que durou até a consolidação da
tripartição dos poderes proposta por Charles de Montesquieu, mas de fato, passou a ser um
novo centro dinástico de poder, composto por barões, condes, prelados e pela comunidade do
reino. (TORRES, 1989)

Nos Estados Unidos da América (EUA), inicialmente habitada por nativos da América
do Norte e posteriormente colônia Inglesa, a Declaração de Direitos de Virgínia, em 16 de
junho 1776, alguns dias antes da Declaração de Independência dos EUA, em 04 de julho de
1776, estabeleceu, por meio de um documento escrito, leis e princípios norteadores da
organização político-jurídica do povo da Virgínia. A Declaração de Independência, por sua
vez, foi um documento que declarou a independências das treze colônias americanas do
domínio da Grã-Bretanha. (CANOTILHO, 2003)

Logo, o Estado Constitucional dos EUA teve sua legitimidade popular na criação
desses documentos, condizentes com uma lei suprema e fundamental para o povo, escrita, de
forma a estabelecer os esquemas essenciais de governo, os respectivos limites de ação do
poder político arbitrário, gerados em uma república, incluindo-se, mais uma vez, os direitos e
garantias individuais de cada cidadão. Além disso, o governo submeter-se-ia à lei, sendo
possível justificar o governo quando este cumprisse sua obrigação jurídico-constitucional,
segundo os princípios de unidade, publicidade, durabilidade e antecedência. (CANOTILHO,
2003)
34

Para o povo dos EUA não bastou a elaboração de um instrumento normativo qualquer,
baseado, por exemplo, na iluminação divina de um monarca, por mais bem intencionado que
este fosse. Ocorre que as normas, isto é, as leis deveriam ser elaboradas de acordo com a
razão pública para que estas se tornassem as razões do governo. (CANOTILHO, 2003).
Assim sendo, o governo passou a se subordinar à lei, ou seja, à constituição, a qual seria um
composto de direitos e justiça, legitimados pela ideia de soberania dos indivíduos, em que a
autoridade pertencesse ao povo e, consequentemente, dele emanaria o poder.

Ainda, a justiça seria judicializada por juízes agentes do povo, os quais controlariam
as ações do governo com base no enunciado constitucional, exercendo a justiça em nome do
povo, justamente por estarem os juízes condensados ao poder popular. (CANOTILHO, 2003)

Igualmente, a França passou de forma mais acentuada por momentos de revoltas e


lutas em prol do reconhecimento e respeito aos direitos do homem, as quais deram condições
a mais uma revolução liberal, talvez a mais importante e significativa para o ocidente.

Em 4 de agosto de 1789, ocorre a queda do regime feudal, em que há a renúncia de


privilégios por parte da nobreza. Mais adiante, adveio a aprovação da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1789, marcando o fim de uma época e o início
de uma nova era para o pensamento político e humanitário ocidental, após um período de sete
dias de discussões, marcando o fim do antigo regime. Possuía ideais de liberdade, igualdade e
soberania popular, os quais caracterizavam as reivindicações, sobretudo, inspiradas em Jean
Jacques Rousseau, autor já estudado neste trabalho. (BOBBIO, 1992)

O atendimento a esses princípios consagrou a os pilares da constituição que viria a


seguir, em 03 de setembro de 1789, pulverizando toda uma era de repressão, medo e de poder
absoluto de um soberano, o monarca. Um novo Estado surgiu ao avesso daquele em que o
poder estava nas mãos de um rei, o soberano, de tal modo que possuía algumas características
como a descentralização do poder político, uma vez que os cidadãos estavam livres para
buscar a felicidade. Cabe ainda ressaltar, a liberdade advinda de uma sociedade desigual,
fragilizando a prática desse discurso teórico de liberdade para todos os cidadãos. Por isso mais
tarde o Estado volta a se preocupar em garantir e proteger os direitos básicos aos seus
indivíduos. (BOBBIO, 1992)
35

Assim, como a revolução Inglesa, a revolução francesa reservou um lugar propício aos
ensinamentos de John Locke, que erigiu em primeiro lugar a proteção da propriedade, a qual
por meio de um contrato, juntamente à liberdade, a segurança e a resistência a opressão,
tornaram-se os fundamentos inegáveis desse novo Estado artificial. Tais fundamentos foram
positivados no art.2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e desde lá estão
elencados nas mais diversas constituições nacionais, inclusive, de âmbito internacional.

Como bem observa (RAMOS, 2015), podemos observar que a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, elenca alguns direitos da mesma forma como estes foram
positivados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O art.1º do seu
diploma assevera que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade.” (ONU, 2016). Dessa feita, são elencados alguns direitos inatos a cada pessoa,
isto é, direitos oriundos do jusnaturalismo, compreendidos como essenciais a todos,
indistintamente de crença ou condição social, econômica e religiosa, por exemplo. Ainda,
assumiram um caráter mais amplo e universalista.

De outro modo, a forma como esses princípios demonstraram a essência e o caráter da


Revolução Francesa de 1789 foi questionada por duas correntes de pensamentos distintas: os
socialistas e os reacionários. Os primeiros afirmavam que os interesses da burguesia eram
apenas de classe, referentes a eles próprios e a mais ninguém. Já os segundos, o clero e a
nobreza, afirmavam que ela era demasiadamente contrária aos interesses políticos de
manutenção da ordem social, econômica e religiosa. (BOBBIO, 1992)

Esse momento histórico vivido pela França já havia presenciado no ocidente outras
revoluções, como a Inglesa e a Americana, as quais tiveram importância para seus
idealizadores, ou seja, seus cidadãos, contudo, fora a francesa o grande marco para a história
contemporânea do ocidente. Como a carta foi erigida sob sólidos princípios garantidores de
direitos individuais, bem como sob a égide da vontade geral unificante do povo francês, foi
possível visualizar a inversão da relação entre governantes e governados, ao menos enquanto
garantia constitucional, porquanto, até aquele momento, apenas o rei detinha o poder político,
com raras exceções de concessões e privilégios, que de longe alteravam a configuração de um
Estado Monárquico. (BOBBIO, 1992)
36

Mais tarde, é verdade, foi possível distinguir a quem exatamente esses princípios
serviram, pois mesmo a revolução tendo melhorado e muito a vida dos cidadãos da França e
ter iniciado um novo momento político-jurídico, não modificou no mundo dos fatos as
condições materiais na sociedade, especialmente, porque viriam a seguir as revoluções
industriais, marcando ainda mais a ideia de liberalidade econômica já pleiteada antes dessas
revoluções, por alguns grupos contra hegemônicos à época das monarquias absolutistas.

Por fim, vimos os principais pontos da primeira geração de direitos, sendo estes os
direitos civis e liberdades civis clássicas, que estabelecem uma distinção entre as esferas
privada e pública, as quais se transformam nas principais características do pensamento liberal
e democrático.

2.2 Da Liberal à Social Democracia

A consolidação dos direitos civis e políticos foi vista de forma mais ampla até aqui.
Ocorre, que ao longo da modernidade, as necessidades humanas, a configuração social e o
direito foram sendo alterados.

Deste modo, o surgimento dos direitos econômicos, sociais e culturais ocorreu após a
afirmação dos direitos civis e políticos. Assim, as cartas de direitos, ao longo da modernidade,
passaram a incorporar e estabelecer direitos para além dos direitos individuais. Por assim
dizer, a afirmação do Estado de Direito e o caráter político das revoluções oitocentristas
conferiram às constituições dos Estados um forte conteúdo político, caracterizado pela
influência do movimento liberal logo no início da modernidade.

Primeiramente, o Estado de Direito possui características de estado liberal de direito,


constituindo-se com base em algumas características:

A – Separação entre Estado e Sociedade Civil mediado pelo Direito, este


visto como ideal de justiça;
B – A garantia das liberdades individuais; os direitos do homem aparecendo
como mediadores das relações entre indivíduos e o Estado;
C – A democracia surge vinculada ao ideário de soberania da nação
produzido peça Revolução Francesa, implicando a aceitação da origem
consensual do Estado, o que aponta para a ideia de representação,
posteriormente matizada por mecanismos de democracia semidireta –
37

referendum e plebiscito – bem como, pela imposição de um controle de


constitucionalidade;
D – O Estado tem um papel reduzido, apresentando-se como estado Mínimo,
assegurando, assim, a liberdade de atuação dos indivíduos. (STRECK;
BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Esse Estado liberal, consolidado a partir das revoluções liberais, semeou a liberdade
no seio da população. Consequentemente, a liberdade passou a compor o ideal das mais
distintas classes sociais, embora na prática a concretização desses direitos fosse sendo
conquistada aos poucos.

No entanto, no decorrer da modernidade, a sociedade percebeu que a promessa de


liberdade à população não aconteceu como previam os liberais. Logo, a ideia de igualdade
passou a ser incorporada nas sociedades modernas, sobremaneira, após as revoluções
industriais dos séculos XIX e início do século XX, período este de progresso econômico e
avanço da democracia. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Em decorrência da evolução dos direitos do homem durante a modernidade, enquanto


se afirmava a ideia de igualdade aparece o Estado Social de Direito. Dessa forma, o Estado
Liberal de Direito se transforma em Estado Social de Direito, especialmente, influenciado
pelas doutrinas da Revolução Russa, da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de
Weimar, na Alemanha, de 1919, as quais tratam sobre conteúdos sociais. O Estado passa a ser
devedor dos indivíduos, passa a ter obrigações para com a sociedade, sobremaneira, quanto
aos trabalhadores e indivíduos marginalizados, visando a garantia de um mínimo de igualdade
e bem-estar social. (BEDIN,2002)

Logo em seguida, há a consolidação dos direitos políticos, como direitos de segunda


geração, ou seja, os direitos ao sufrágio universal, de constituir partidos políticos, de
plebiscito, referendo e iniciativa popular. Estes direitos podem ser considerados direitos
positivos, pois obrigam o Estado a uma prestação, possibilitando, inclusive, que os indivíduos
participem ativamente no Estado. (BEDIN, 2002)

Por conseguinte, o Estado social veio preencher as lacunas deixadas pelo movimento
liberal, tendo em vista a necessidade de o Estado promover ações de garantia de direitos, não
mais apenas negando ações, mas promovendo mecanismos de defesa desses direitos.
38

A doutrina socialista se apresenta como crítica à doutrina liberal, sobretudo, pelo fato
de compreender a proteção da propriedade privada como fonte principal da desigualdade
social, ou seja, desigualdade de fato. Essa alegação, realizada por um setor auto intitulado de
esquerda, tem como pano de fundo o fato de a proteção da propriedade e da liberdade ter se
restringido a alguns grupos sociais, como para o homem burguês e não para o proletariado,
por exemplo. (BEDIN, 2002)

Não obstante, esses novos conteúdos sociais passaram a integrar a materialidade das
constituições dos Estados-Nação, gerando o Estado de Bem-Estar Social, ou seja, o Welfare
State, surgido a partir das políticas definidas depois da crise do modelo liberal econômico, em
1930, e quando da reconfiguração geopolítica no pós-segunda guerra mundial. (STRECK;
BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Emergiram, então, necessidades preeminentes de um Estado regulador, integrante dos


processos de produção, o qual passa a ser consumidor, produtor, financiador e garantidor de
direitos como a saúde, segurança, educação, previdência, saneamento e relações de trabalho.
Portanto, as exigências para a garantia desses direitos forçam o Estado a tomar medidas
distintas daquela do Estado mínimo existente até então. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS,
2010)

A criação da organização Internacional do Trabalho (OIT), no sentido de estabelecer


normas mínimas de proteção aos trabalhadores, demonstra as claras reivindicações dos
emergentes Estados sociais, especialmente, se considerarmos a massa de trabalhadores que
serviam a um sistema de produção fabril, os quais não possuíam direitos de férias, descanso
remunerado, condições dignas de vida e obtenção de renda, em suma, eram explorados,
havendo, e muitos lugares a escravidão, muitas vezes, motivada pelos Estados
industrializados, ao proporem a expansão dos seus mercados de produtos manufaturados.
(RAMOS, 2015)

Assim sendo, os direitos trabalhistas se enquadram na figura de direitos sociais, os


quais juntamente aos direitos econômicos buscaram instituir uma igualdade na liberdade. Em
consequência, pressupomos que democracia manifesta-se quando enriquecida de conteúdo
substancial.
39

Não é nosso enfoque englobar toda a evolução do Estado Social, mas sim, dizer que o
Estado Democrático de Direito abarca as diferentes concepções teóricas desde o início do
Estado Moderno, não se limitando, tão somente, no conteúdo das normas, mas sim no aspecto
transformador do Estado. Para isso, impossível desconsiderar as ideias liberais, as
preocupações sociais e as conquistas democráticas. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS,
2010)

Eis, a importância da afirmação dos direitos do homem, acompanhado de um projeto


de sociedade, representado em grande medida pelas constituições dirigentes, presentes nas
democracias contemporâneas, uma vez que o Estado e o Direito não representam mera
prospecção de poder e de técnica, mas diretrizes, fins e programas a serem seguidos e
concretizados pelo Estado e pela Sociedade. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Outro ponto a ser esclarecido se refere à democracia, a qual significa o respeito à


justiça em seus diversos termos e não somente em relação às leis justas, visto que estas variam
nos diferentes períodos históricos. Democracia substantiva representa a invenção e
reformulação de direitos, a convivência conflituosa na diversidade e uma sociedade civil
organizada em associações, partidos, organismos, contribuindo para um controle social do
Estado. (STRECK; BOLZAN DE MORAIS, 2010)

Formalmente, na linha de pensamento de Norberto Bobbio, podemos dizer


que democracia é um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que
estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais
procedimentos. Ou seja, a democracia significa, nesta perspectiva, a
montagem de um arcabouço de normas que definem antecipadamente os
atores e a forma do jogo, identificando-se, de regra com as questões relativas
a quem vota?, onde se vota? E com quais procedimento?, sendo que, para
cada pergunta, devemos adotar respostas compatíveis. (STRECK; BOLZAN
DE MORAIS, 2010)

Por conseguinte, a sobrevivência da democracia pressupõe a dosagem certa entre a


utilização dos meios e dos fins. Os fins devem justificar os meios, na medida em que estejam
atrelados ao bem comum, como assevera Nicolau Maquiavel (2005), contudo, os meios
também devem justificar a finalidade, por isso, é preciso haver uma correlação entre meios e
fins, de sorte a não haver a busca de reconhecimento de um direito e, ao mesmo tempo, a
40

supressão de todos os outros. Portanto, o fim deve ser o bem comum e os meios compatíveis
com essa ideia.

Por sua vez, o Liberalismo e socialismo estão presentes na modernidade, enquanto a


democracia como forma de governo é antiga. A partir do pensamento grego extraiu-se que a
democracia é a forma de governo da maioria, dos mais, dos muitos ou dos pobres, isto é,
como um governo do povo, contrariamente ao governo de uns poucos, como na oligarquia,
aristocracia ou monarquia. (BOBBIO, 1993)

Se a democracia é o governo de muitos, a principal diferença entre a democracia dos


antigos e dos modernos encontra distinção entre democracia direta e indireta, isto é, entre
democracia de um país pequeno em condições de reunir o povo para decidir sobre seu futuro
e, de outra forma, os grandes Estados-Nação, típicos da idade moderna, onde a democracia se
estabeleceu de maneira representativa.

De certo modo, há um desapontamento acerca do alcance da democracia


representativa, além da sua desenvoltura em relação à igualdade obtida pela imposição de um
poder despótico, ou seja, a igualdade na submissão e no autoritarismo. A democracia, tende a
respeitar o interesse da maioria, contudo, as preocupações surgem quando as corporações,
estamentos ou outros grupos influenciam demasiadamente a tomada das decisões, já que a
população não acompanha, em sua grande maioria, as decisões políticas tomadas.

Então, a democracia representativa consiste naquela em que o representante, quando


eleito através do sufrágio universal, se desprende do eleitor para tomar ações de interesse
geral da população, bem como aquela em que há a participação política indireta por parte do
povo. Assim:

Se por democracia moderna entende-se a democracia representativa, e se à


democracia representativa é inerente a desvinculação do representante da
nação com respeito ao singular indivíduo representante da nação com
respeito ao singular indivíduo representado e aos seus interesses
particularistas, então a democracia moderna pressupõe a atomização da
nação e a sua recomposição num nível mais elevado e ao mesmo tempo mais
restrito que é o das assembleias parlamentares. Mas tal processo de
atomização é o mesmo processo do qual nasceu a concepção do Estado
liberal, cujo fundamento deve ser buscado, como se disse, na afirmação dos
direitos naturais e invioláveis do indivíduo. (BOBBIO, 1993, p. 36)
41

Neste diapasão, é notório que a democracia visa a proteção dos direitos fundamentais
do maior número de pessoas. Portanto, se a proteção dos direitos fundamentais implica a
garantia de direitos a liberdade e a igualdade, chegamos ao seguinte enunciado: “Hoje apenas
os Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os Estado
Democráticos protegem os direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao
mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos”. (BOBBIO, 1993, p. 43)

Levando em consideração essa ideia podemos dizer que uma sociedade


predominantemente liberal é tão menos igualitária quanto uma sociedade igualitária é liberal.
Desse modo, tanto liberalismo quanto o socialismo se complementam na ideia de igualdade
na liberdade.

Embora, o socialismo complemente o liberalismo, ambas doutrinas não deixam de


existir de forma separada. Aliás, o avanço da democracia, em tese, possibilitaria o
estabelecimento de sociedades mais socialistas do que liberais, no entanto, mesmo assim,
ambas não perderiam o seu caráter de proteção aos direitos individuais.

O enunciado que segue, expõe uma consequência da democracia em relação ao


assentamento de uma sociedade mais igualitária.

[...] o processo de democratização produziria inevitavelmente, ou pelo


menos favoreceria, o advento de uma sociedade socialista, fundada na
transformação do instituto da propriedade e na coletivização pelo menos dos
principais meios de produção; em segundo lugar, apenas o advento da
sociedade socialista reforçaria e alargaria a participação política e, portanto,
tornaria possível a plena realização da democracia, entre cujas promessas –
que a democracia liberal jamais seria capaz de cumprir - estava também a de
uma distribuição igualitária (ou ao menos mais igualitária) do poder
econômico e do poder político. (BOBBIO, 1993, p.81)

Constata-se, portanto, o avanço da democracia socialista sobre a democracia liberal, já


percebendo novas perspectivas quanto à democracia moderna, sobremaneira, em seu aspecto
representativo. Vejamos o seguinte:

a) enquanto a democracia liberal – ou, polemicamente, capitalista e, do


ponto de vista do sujeito histórico que a promoveu, burguesa – nasceu como
democracia representativa na qual os representantes eleitos tomam suas
decisões sem vínculo de mandato, a democracia socialista – ou do ponto de
42

vista classista, proletária – será uma democracia direta, no duplo sentido de


democracia de todo o povo sem representantes e de democracia não de
representantes mas de delegados cujos mandatos vinculados estão sujeitos a
revogação; b) enquanto a democracia burguesa, permitiu, até o extremo
limite do sufrágio universal masculino e feminino, a participação no poder
político, central e local, apenas a democracia socialista permitirá a
participação popular também na tomada de decisões econômicas que numa
sociedade capitalistas são tomadas autocraticamente, apresentando nesse
sentido não só uma reforço da participação em intensidade, mas também
uma extensão quantitativa, como efeito da abertura de novos espaços para o
exercício da soberania popular em que consiste a essência da democracia; c)
enfim, aquilo que mais importa; enquanto na democracia liberal a atribuição
ai povo do direito de participar direta ou indiretamente das decisões políticas
não procede no mesmo passo de uma mais equânime distribuição do poder
econômico e, portanto, faz do direito de voto uma mera aparência, na
democracia socialista essa mais equânime distribuição tornando-se um dos
objetivos primários da mudança do regime econômico, transforma o poder
formal de participação em poder substancial e, ao mesmo tempo, realiza a
democracia inclusive no seu ideal último, que é o da maior igualdade entre
os homens. (BOBBIO, 1993, p. 83)

Com essas diferenciações e como a social democracia manteria, ao menos no plano


teórico, os princípios de proteção às liberdades individuais podemos dizer que ambas
concorrem juntas para se chegar a uma plenitude democrática, de forma a considerar a social
ou a liberal democracia não como um fim em si mesmo, mas formas concorrentes à finalidade
democrática. (BOBBIO, 1993)

Por isso, há na democracia a possibilidade de utilizar racionalmente as dosagens


adequadas de liberdade e igualdade, respeitados os direitos de forma recíproca. Todos os
Estados que foram radicais e negaram uma ou outra doutrina se transformaram em Estados
totalitários ou antidemocráticos, com frequentes violações de direitos do homem.

Neste diapasão, na prática, o liberalismo sem a igualdade na liberdade obteve


resultados de ampliação das desigualdades sociais, enquanto as sociedades pautadas na ideia
de igualdade com limitações a liberdade individual, como as sociedades comunistas deram
causa a alguns regimes totalitários e antidemocráticos. Nesse sentido, as lutas existentes entre
ambas as correntes, muitas vezes, buscaram negar completamente a outra. Um exemplo
concreto dessa dicotomia pode ser observado com a Guerra Fria, promovida entre Estados
Unidos e União Soviética, em embates entre capitalismo e comunismo, desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, até o início da década de 90, do século XX.
43

Evidentemente, os Estados com tendências a uma ou outra corrente apenas se tornaram


violadores de direitos do homem quando desrespeitaram direitos fundamentais, os quais
embutidos na ideia de democracia, podem ser violados quando ocorrerem ações de
intolerância e violência. Por conseguinte, a democracia, nos Estados-Nação em que tem sido
respeitada, tem conseguido manter um equilíbrio político, social, jurídico, etc., sobretudo,
trazendo avanços positivos nas condições de vida da população.

Dessa forma, a democracia enquanto potência de transformação social necessita da


alteração das condições pessoais reais de cada indivíduo, isto é, precisa da participação social
efetiva, dentro da perspectiva imaginada pelos teóricos liberais clássicos.

Nesse sentido, percebemos uma divergência entre liberais e socialistas quanto ao


conteúdo das normas fundamentais, a qual varia de acordo com os períodos históricos.
Portanto, sustentamos a ideia de um Estado de Direito como um instrumento de garantias, o
qual por meio da democracia parece racionalizar a utilização desse instrumento impondo
barreiras às violações dos direitos do homem, possibilitando a sobrevivência de diferentes
correntes de pensamento.

2.3 Os direitos humanos e o Estado Constitucional: universalidade e reciprocidade

O constitucionalismo como vimos até agora mostrou-se estritamente pautado na ideia


de Estados nacionais. Assim, as Constituições, no início da modernidade, restringiram-se ao
âmbito de cada país, protegendo o interesse interno de cada sociedade. Aos poucos, essa
abertura vai acontecendo e as Constituições passam a regular o interesse da comunidade
externa, a qual os Estados passam a fazer parte. Desse modo, o Constitucionalismo vai
ganhando novas perspectivas e consagra, em seu seio, o princípio da abertura internacional.
(CANOTILHO, 2003)

Isto significa a aceitação das dimensões fáticas e jurídicas da interdependência


internacional, o reconhecimento do direito internacional como direito interno de cada Estado,
a assimilação de princípios ou regras como medida de justiça ou complemento das normas
internas, além da ativa participação dos agentes públicos e instituições na solução de
problemas internacionais. (CANOTILHO, 2003)
44

Por último, a abertura internacional pressupõe direitos comuns e válidos em todas as


sociedades. Surge, então, a defesa dos direitos fundamentais e a interpretação favorável aos
direitos do homem no plano internacional, feita por organismos, Estados, ONGs, entidades e
instituições, objetivando, sobremaneira, resguardar a defesa da paz e segurança internacionais,
a defesa dos direitos do homem e a prevalência da dignidade da pessoa humana.

Tais enunciados soam de forma abstrata, residindo em uma crítica a essa abertura. No
entanto, é exatamente essa ideia abstrata que possibilita a fundamentação dos direitos do
homem no plano internacional, ainda que existam limites a essa abertura constitucional, como
o princípio da igualdade entre os Estados, a independência nacional, a não ingerência nos
assuntos internos de outros países e a resolução pacífica dos conflitos. (CANOTILHO, 2003)

Da mesma forma como surgiram cartas de direitos em níveis nacionais, surgiram


declarações, tratados internacionais e resoluções, por exemplo, como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada em Assembleia Geral da Organização das
Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, sendo esta a declaração que retoma, no
pós-segunda guerra mundial, as tentativas de internacionalização e universalização dos
direitos do homem, consistido em uma das mais importantes cartas de direito da história.

Em seu preâmbulo se encontra a seguinte passagem:

A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos


Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de
que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no
espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses
direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e
internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto
entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios
colocados sob a sua jurisdição. (ONU, 1948)

Deste modo, o reconhecimento e a aplicação desses direitos e liberdades, concebidos


de forma universal, demonstram a proposta de transpor as barreiras dos Estados nacionais.
Representam, ainda, o compromisso de promover medidas de desenvolvimento e
concretização dos enunciados teóricos tidos como ideais ao interesse comum dos povos.

Nessa perspectiva, os Direitos do Homem transcendem os direitos do cidadão


enunciados na declaração Francesa de 1789. Passam a ser considerados universais e
45

recíprocos, não abrangendo somente os cidadãos inseridos no bojo dos Estados, mas também
os excluídos, em suma, englobam todas as pessoas. Enxergam o ser humano como parte
integrante do mundo, responsável pelo futuro das próximas gerações, transpondo a barreira da
soberania estatal. (BOBBIO, 1992)

A resposta dada ao conflito armado da segunda grande guerra (1939-1945) expôs a


fragilidade da proteção dada apenas no âmbito dos Estados nacionais, uma vez que os Estados
totalitários e antidemocráticos praticaram reiteradas violações de direitos do homem, tanto e
nível nacional como internacional.

Alguns Estados já adotavam os direitos humanos em sua prática constitucional.


Outros, porém, aderiram aos pactos firmados no pós-guerra para influenciar a organização
interna das outras sociedades, ou, como no caso do Brasil, país sem tradição democrática,
ainda em pleno Estado Novo do ditador Getúlio Vargas, acreditava-se que as normas de
direitos humanos seriam meramente programáticas e sem efeitos práticos nas sociedades
locais. (RAMOS, 2015)

A DUDH consiste no desfecho de todo o estudo desse trabalho, ao menos no que tange
à construção teórico dos direitos do homem.

Nos seus trinta artigos, são enumerados os chamados direitos políticos e liberdades
civis (artigos I a XXI), assim como os direitos econômicos, sociais e culturais
(artigos XXII a XXVII).
Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o
direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e expressão e à liberdade de
reunião.
Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à segurança social, ao
trabalho, à livre escolha da profissão e à educação, bem como o direito a um padrão
de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis (direito ao mínimo existencial – artigo XXV). (RAMOS, 2015)

De outro modo, a positivação dos direitos do homem a nível internacional demonstra o


seu caráter racional, vez que estão garantidos institucionalmente nas cartas de direito
internacional. Neste diapasão, o reconhecimento dos direitos do homem não significa, como
já dissemos anteriormente, a transformação social e a concretização desses direitos.
46

Partindo da perspectiva contratualista, Norberto Bobbio afirma que o problema da


fundamentação dos direitos do homem se encontra resolvido com a DUDH, sendo necessário,
em decorrência desse reconhecimento, concretizar os direitos fundamentais. Além disso, nega
a existência de uma norma fundamental universal, a qual serviria de base para o direito em
todos os tempos históricos. Para ele, o Direito modifica-se no decorrer da história,
obedecendo a necessidade de cada sociedade. Sendo assim, o Direito não possui uma norma
fundamental vigente para todos os tempos, nem mesmo os direitos do homem aqui abordados,
justamente, porque todas as normas fundamentais são fundamentais por um determinado
momento histórico. (BOBBIO, 1992)

O mesmo autor sustenta que a fundamentação unívoca dos direitos do homem não
seria possível, porquanto, existem divergências até quanto ao conjunto de direitos humanos e
sua definição concreta. Também, essa evolução do rol de direitos humanos foi sendo alterada,
na medida em que um direito hoje considerado direito humano, amanhã pode não ser.
Considerando a complexidade e as frequentes divergências, delimitar a fundamentação dos
direitos do homem impediria a sua evolução. (BOBBIO, 1992)

De outro modo, existem aqueles que negam a possibilidade de fundamentação racional


dos direitos humanos, porque baseiam-se na ideia de que os direitos do homem são
consagrados pelos sentimentos morais, a partir de juízos de valor, não podendo ser
justificadas ou comprovadas, mas aceitas por íntima convicção. (RAMOS, 2015)

Se por um lado os contratualistas afirmam que apenas os direitos positivados são


aqueles que possuem validade, os direitos humanos, enquanto exigências éticas, se encontram
acima do ordenamento jurídico, apto a sobrepor e preencher lacunas na ausência de normas
explícitas por parte do Estado.

A fundamentação moral dos direitos humanos, assume notória relevância, pois


segundo Dworkin (2005), versa sobre direitos subjetivos existentes independentemente de leis
previamente estabelecidas ou existentes. Esse mesmo autor afirma que a moralidade se insere
no ordenamento jurídico por meio de princípios, ainda que não estejam positivados. Estes
princípios, por sua vez, baseiam-se em exigências de justiça, de equidade ou de qualquer outra
dimensão moral.
47

Portanto, a fundamentação dos direitos humanos enquanto direitos morais perpassa a


correlação entre direitos positivados no ordenamento jurídico, bem como os direitos humanos
entendidos como exigências éticas ou valores intrínsecos à sociedade.

Essa ideia de universalidade, adquirida como vimos, através da abertura constitucional


ao direito internacional provém de alguns fatores e normas estabelecidas em virtude de
acontecimentos e lutas históricas pelo reconhecimento de direitos em âmbito internacional.
São exemplos dessas lutas, o combate à escravidão, a busca pela proteção de direitos dos
estrangeiros, a proteção de feridos e envolvidos em conflitos armados, o reconhecimento aos
direitos das minorias e a proteção dos direitos sociais pela Organização internacional do
Trabalho. (RAMOS, 2015)

Tais lutas em prol dos direitos do homem fizeram surgir respostas institucionais, as
quais ao longo do tempo, ampliaram o alcance das normas e a sua vigência para além dos
Estados nacionais, o que caracteriza o Estado na pós-modernidade. Por fim, a consolidação
dos Estados Democráticos constitucionais consumou a ideia de igualdade na liberdade,
servindo de base para a existência de normas de caráter universal e de reciprocidade, mas que
seriam incapazes de sozinhas transformar a realidade social.
48

3 OS DESAFIOS PARA UM ESTADO NA PÓS-MODERNIDADE: A IDEIA DE


JUSTIÇA

No capítulo anterior abordamos a consolidação do constitucionalismo e a passagem do


Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito. Em consonância, a democracia
moderna e o caráter universal dos direitos humanos, sobretudo, a partir da relação
internacional entre os Estados nacionais. Após a criação da ONU, os limites geopolíticos
passaram a ser relativizados, pois os Estados passaram a elaborar cartas de direitos a nível
supranacional, necessitando de direitos válidos no plano universal.

Outrossim, tratamos também da necessidade de transformação social e concretização


dos direitos já positivados. Nesse mesmo sentido, devemos agora abordar a ideia de
transformação social, partindo do pressuposto básico da justiça, a qual será explorada neste
tópico por John Rawls e no seguinte, por Amartya Sen.

3.1 Justiça como princípio do Estado Democrático de Direito em John Rawls

Partindo de pressupostos básicos, John Rawls pensa a justiça com um viés igualitário,
ancorado no que ele considerou nominar de liberalismo igualitário. O primeiro se refere à
ideia de que a igualdade deve residir na garantia das liberdades civis e políticas, de forma a
transformar as liberdades formais em liberdades substanciais dentro de um Estado, portanto,
pensado como uma comunidade fechada, com suas próprias regras e princípios de justiça. De
outro modo, as desigualdades econômicas e sociais devem ser ajustadas para serem as
menores possíveis, além de servirem para o maior benefício possível dos membros menos
favorecidos da sociedade. (RAWLS, 1997)

Apresenta um conceito de justiça que pretende ampliar o nível de abstração da teoria


do contrato social. Pensa hipoteticamente na possibilidade de reunirem-se todas as pessoas,
desde que apresentem capacidade política, para de forma razoável e racional, estabelecerem
uma carta fundamental à sociedade.

A capacidade política caracteriza-se em considerar os cidadãos pessoas livres e iguais,


pois concebem os outros e a si próprios como pessoas livres, capazes de discernimento, em
outras palavras, são detentores da faculdade moral que lhes possibilita possuir uma concepção
49

do bem. Essencial também, que esse cidadão considere-se no direito de exigir das instituições
a promoção da sua concepção do bem, tendo como condição preponderante a concepção
pública de justiça. Nesse diapasão, um escravo não é dotado de qualidades que o permita
assumir deveres e obrigações, considerando a falta de uma concepção particular de justiça,
visto que não detém a liberdade em decorrência das suas faculdades morais, mas sim responde
às ordens de seu proprietário. Assim, a impossibilidade de assumir responsabilidades pelos
seus fins afeta a validade da exigência recíproca de bem e de justiça. (SEN, 2009)

Por conseguinte, nem todas as pessoas podem ser consideradas livres e iguais, mas
todos os que possuem essas faculdades podem ser considerados cidadãos e participar da
posição original, anterior ao contrato social. Assim, estariam todos em pé de igualdade no
momento de decidir sobre os princípios regentes de um Estado Democrático de Direito. Neste
caso, as pessoas não conheceriam a desigualdade e as diferentes distinções criadas pelo
mundo da cultura, da mesma forma como não obteriam vantagens ou desvantagens do mundo
da natureza.

A partir do momento em que todos se posicionam da mesma forma, ninguém seria


capaz de fazer uma escolha que favoreça sua própria posição particular, e os
princípios de justiça seriam o resultado de um acordo ou barganha equitativa.
Estabelecidas as circunstancias da posição original, há uma simetria entre as
relações de um para outro, esta posição inicial é boa entre indivíduos morais, isto é,
agindo como seres racionais com seus próprios fins e, supõe-se, com a capacidade
de atuar dentro de um sentido de justiça. Poder-se-ia dizer que a posição original é
um status quo apropriado, e que então, desta forma, os acordos a que se chegam,
nesta situação, são equitativos. (RAWLS, 1981, p.34)

Ante o exposto, podemos pensar que a justiça como equidade apenas pode ser
concretizada quando a sociedade deixa de admitir desigualdades injustas, por ocasião de que
cada indivíduo, nas suas particularidades, jamais abdicaria da sua quota parte de direitos,
expectativas e projetos de vida, para viver de forma miserável, ainda que em benefício da
maioria.

Essa posição inicial se esconde atrás de um véu da ignorância, sobretudo, de acordo


com o seguinte:

[...] Antes de mais nada, ninguém conhece seu lugar na sociedade, sua posição de
classe ou status social; nem sabe sua fortuna na distribuição de dotes e habilidades
naturais, sua inteligência e força, e assim por diante. [...] Além disso, presumo que
as partes não conhecem as circunstâncias especiais de sua própria sociedade, isto é,
não sabem a situação econômica ou política, ou o nível de civilização e cultura que
50

foram capazes de atingir. As pessoas na posição original não têm informação sobre
qual geração pertencem. [...] Precisam escolher princípios, com cujas consequências
estejam preparadas a conviver, qualquer que seja a geração a que resultem pertencer.
(RAWLS, 1981, p. 119)

Portanto, se ninguém pode se colocar em posição superior ou inferior, todos podem


imaginar as consequências da escolha de princípios injustos, pois podem ser os destinatários
desse ordenamento. Ainda, a ideia de John Rawls não reside em impedir o exercício das
faculdades humanas, oriundas do mundo da natureza, o qual para o autor consiste quase em
um sorteio e não deve ser considerado justo do ponto de vista da moral. Assim, a justiça leva
em conta a racionalidade, assim como a utilização dos mesmos princípios em todos os casos,
no intuito de oportunizar a todos um sistema de oportunidades diferentes daquele originário
do mundo da natureza. (RAWLS, c1981)

Podemos ir mais longe e afirmar que os dois pressupostos básicos do liberalismo


igualitário, expressos anteriormente, devem ser vistos de forma hipotética, visto que o marco
inicial do contrato social já ocorreu e a realidade fática rejeitou ambos os pressupostos.
Talvez, neste ponto resida a parte mais importante da teoria da justiça, pois ela expõe a
privação dos indivíduos de serem livres e iguais pelo fato da existência de desigualdades.
Assim sendo, o fundamento do contrato social, juntamente à persecução da justiça objetiva a
retomada desses direitos aos cidadãos, representando a tentativa de conserto dessa situação de
desigualdade e, por conseguinte, injusta.

Por isso, a ideia de posição inicial do contrato social deve ser considerada fundamental
para pensarmos uma concepção política de justiça, acreditando ser o marco da sociedade
contratual um sistema intergeracional de cooperação entre os cidadãos considerados como
livres e iguais. (RAWLS, 1997)

Além disso, justiça pode ser considerada uma virtude das instituições sociais, as quais
se referem às constituições políticas e os principais entendimentos econômicos e sociais,
sobretudo, porque se uma instituição for injusta deverá ser abolida ou reformulada, de forma a
atender aos princípios da justiça. Estes, por sua vez, para validarem a ideia de justiça, devem
determinar os ajustes sociais, de modo a assegurar um acordo de partilha correta das
vantagens e encargos estabelecidos na sociedade. (RAWLS, c1981)
51

Uma distribuição justa deve oportunizar a todos possuírem propriedade e capital. A


cobrança justa e proporcional de impostos deve atender a gradual e continua distribuição da
riqueza, a fim de evitar sua concentração em monopólios prejudiciais à equitativa distribuição
de valores como a liberdade política e a equitativa igualdade de oportunidades. (RAWLS,
c1981)

Devemos, ainda, considerar a justiça inserida sob a ótica das sociedades democráticas
modernas, observando que em qualquer dessas sociedades a cultura política será caracterizada
pela diversidade de doutrinas, sejam elas, políticas, religiosas, filosóficas e morais,
concebidas de forma oposta e irreconciliável. Deste modo, as concepções de bem, de justo ou
injusto variam em diferentes doutrinas, distinguindo-se da idade Clássica, em que as
diferentes percepções de bem não eram aceitas. (RAWLS, 1997)

Podemos nos perguntar como a ideia de universalidade e de direitos comuns se


mantém com base nas distintas doutrinas concebidas em um Estado Democrático. Tal
pergunta evidencia a necessidade de pensar a concepção política de justiça. Esta, se diferencia
das concepções morais, por delimitar o seu objeto à seara política, mesmo que se utilize em
parte dessa doutrina moral mais abrangente e genérica. Essa concepção política se volta para
as instituições políticas, sociais e econômicas, simplesmente, pela necessidade desse consenso
público incorporar os princípios de justiça política, tendo por substancia as ideias
fundamentais baseadas no Estado constitucional, de forma distinta daquelas concebidas no
munda da natureza. (RAWLS, 1997)

Igualmente, pode ser considerada de modo independente das demais concepções de


justiça, como acontece com a concepção individual de justiça, em que cada indivíduo pode ter
as suas convicções sobre o significado de justiça, desde que as noções de arbitrariedade e
equilíbrio estejam abertas a interpretação subjetiva de cada um. Ocorre que esse debate se
restringe a qual ou quais dos princípios da justiça são considerados por cada indivíduo, não
encerrando, propriamente, a questão. (RAWLS, 1981)

Nessa perspectiva, se pensarmos a justiça como equidade pensaremos naquela


partilhada por todos os cidadãos, com base em um acordo político pensado, informado, ou
seja, pautado em razões públicas. Tal acordo, pautado na doutrina contratualista, pressupõe a
publicidade de todos os direitos e deveres a que gozam todos os membros de uma sociedade,
52

concebendo a ideia de que ninguém é obrigado a viver em determinada comunidade se não


aceita as regras impostas por esta mesma sociedade, invocando, assim a ideia de
reciprocidade, já observada anteriormente.

Nesse sentido, esses problemas apenas podem ser enfrentados se levarem em


consideração a justiça como finalidade, contudo, não a justiça individual, mas sim a justiça
social ou política, aqui concebida como um conjunto de princípios e valores morais.

Ocorre, que limitaremos nossa concepção de justiça à justiça política, a qual expressa
um consenso de sobreposição, isto é, uma doutrina que sustenta de forma abrangente suas
concepções, sem utilizar o Estado para dominar ou sobrepor-se a essas doutrinas. Propõe uma
aceitação da doutrina política por parte das demais, indicando os valores da justiça política na
seguinte transcrição:

[...] estes valores regulam a estrutura básica da vida social – a própria base da nossa
existência – e especificam os termos fundamentais da cooperação política e social.
Na justiça como equidade alguns destes importantes valores – os valores da justiça –
são expressos pelos princípios da justiça para a estrutura básica: entre eles, os
valores da igual liberdade política e civil; a igualdade equitativa de oportunidades;
os valores da reciprocidade económica; as bases sociais do respeito mútuo entre os
cidadãos. (RAWLS, 1997, p. 146)

Esses princípios expressam uma sociedade bem ordenada, referindo-se a valores


essenciais para a sociedade, os quais são amplamente aceitos. Mais além, apresentam o
conjunto de valores relativos ao domínio político, deixando a faculdade, no plano individual,
de cada cidadão relacioná-los a sua maneira com outros valores.

Formula a justiça como a correlação do justo e do bem, de forma que ambos não
podem ser considerados separadamente para que se efetive a justiça. O bem, segundo Rawls,
enquanto ideal tende a não ser convergente em uma sociedade democrática, porquanto o uso
da razão humana resulta em maiores divergências de pontos de vista e de significados de bem.
Este, por sua vez, significa a busca de cada indivíduo por propriedade, liberdade, poder,
riqueza e reciprocidade. (RAWLS, 1997)

Rawls afirma existir a democracia em um Estado, cuja razão transcende a razão


individual, exclusiva de alguns grupos, passando a razão pública, justamente, porque os
53

regimes autoritários e autocráticos possuem como o bem da sociedade a utilização de uma


razão individual no lugar da razão pública.

Assim,

A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão dos seus


cidadãos, daqueles que partilham o estatuto da igual cidadania. O objeto da razão
dos cidadãos é o bem da esfera pública (do povo em geral): o que a concepção
política da justiça requer da estrutura básica de instituições da sociedade e dos
propósitos e fins que essas instituições devem servir. Assim, a razão pública é
pública em três sentidos: enquanto razão típica dos cidadãos, é a razão da esfera
pública. O seu objeto é o bem do domínio público e as questões de justiça
fundamental. A sua natureza e o seu conteúdo são públicos, dado que são
estipulados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de justiça política
eleita pela sociedade, sendo administrados abertamente nessa base. (RAWLS, 1997,
p.209)

Com isso, observamos que a razão pública deve ser respeitada, ainda que a razão
individual entre em conflito, uma vez que a sociedade política e o poder público pressupõem
cidadãos livres e iguais como corpo coletivo. Caso contrário, em que houvesse a
preponderância da razão individual, não estaríamos respeitando o ideal de justiça estabelecido
pelos cidadãos democráticos, mas sim por aqueles intolerantes, indiferentes e irracionais,
voltando a um Estado anterior à sociedade política democrática ou saindo dos seus limites.

Quanto à importância da razão pública e de um Estado Democrático de Direito:

A combinação do dever de civilidade com os elevados valores do político produz o


ideal de cidadãos que se orientam e governam a si próprios segundo preceitos que
cada um acredita que os outros podem razoavelmente aceitar; e, por sua vez, este
ideal é favorecido pelas doutrinas abrangentes que as pessoas razoáveis defendem.
Os cidadãos afirmam o ideal da razão pública não em resultado de um compromisso
político, como sucede num modus vivendi, mas a partir - de dentro – das suas
próprias doutrinas razoáveis. (RAWLS, 1997, p.214)

Ante o exposto, os valores assimilados por um regime constitucional bem ordenado,


com base no significado do autor, de respeito aos direitos civis e políticos, bem como a ideia
de igualdade na liberdade, são muito altos, portanto, se cada cidadão compreende a razão
pública de ser de um Estado, nestes termos, e age com base nos deveres e direitos inerentes a
esse ordenamento, a consequência são cidadãos livres e iguais, ordenados e governados por si
próprios.
54

Por fim, para Rawls a liberdade é fundamental e deve ser assegurada para cada
indivíduo, mas a ética e os valores morais devem ser válidos de forma universal, isto é, para
todos. Dessa maneira, propõe a justiça como um ideal a ser alcançado por todo cidadão livre e
igual com os seus concidadãos, pautando princípios comuns para todos dentro de uma
concepção política de justiça.

3.2 A democracia como razão pública em Amatya Sen

A participação política juntamente à garantia de direitos políticos e civis são


características da democracia. Esta, por sua vez, se apresenta como um conjunto de normas e
princípios próprios, além de contribuir com o seu papel instrumental, ou seja, institucional e
burocrático de um Estado de Direito. Logo, a democracia é compatível com a ideia de justiça,
isto se considerarmos a teoria proposta por Sen e brevemente explicada adiante.

Ocorre, que a conferencia de Viena no ano de 1993 estipulou a preponderância de um


mínimo de condições econômicas e materiais sobre os direitos civis e políticos, considerando
o ganho real de renda e a aquisição de bens materiais como um mínimo existencial, sem o
qual ninguém pode ter seus direitos minimamente garantidos.

Portanto, é possível dizer que os direitos econômicos e sociais passam a ser preteríveis
nesse momento em relação aos direitos políticos e civis, justamente, porque estes já estão
presentes, ao menos, formalmente em todos os Estados Democráticos. Não obstante, entende
Sen, que a real eliminação e enfrentamento das injustiças não ocorre em todas as sociedades,
enfatizando um problema de concretização dos direitos formais pré-estabelecidos.

Nesse sentido, a democracia aceita a participação política, as liberdades materiais e


formais, sem as quais democracia não tem efetividade, pois carece de participação cidadã.
Assim, democracia não sobrevive sem virtude cívica e efetividade. (SEN, 2000)

Do mesmo modo, prescinde de uma razão pública, ou seja, de diálogos de promoção


da tolerância, no intuito de respeitar as diferentes formas de justiça existentes. O resultado
prático é a formação da razão pública, já abordada por Ralws, e considerada um elemento
essencial para a democracia tanto por John Rawls quanto por Amartya Sen. Este último
55

sustenta que democracia é o governo exercido por meio do debate, isto é, um governo com
características tolerantes e não totalitárias. (SEN, 2009)

Como se viu durante praticamente todo o trabalho, os doutrinadores e teóricos são


oriundos, em sua maioria, da Europa e dos Estados Unidos. Diante desse fato, analisamos a
democracia como algo inerente ao ocidente, aliás, sendo esta uma das críticas de Sen (2009).
Para ele possuímos uma ideia básica de que democracia não serve para países não ocidentais,
embora não há dúvidas dos grandes avanços conquistados no ocidente, sobremaneira, por
consistir na estrutura institucional do exercício real da democracia no mundo moderno, em
grande medida, representada pelas experiências europeias e norte-americanas.

Amartya Sen (2009) vai sedimentando sua ideia de justiça no combate da injustiça.
Cita diversos exemplos. Afirma em um deles que a invasão realizada pelos Estados Unidos no
Iraque, em 2003, demonstrou que os piores prejuízos da guerra não aconteceram tanto pela
invasão, quanto pelo pensamento da impossibilidade da existência democrática naquele país,
causando enormes privações a população.

Ainda, o referido autor, aborda algumas consequências práticas da falta de democracia


para compreender melhor a sua importância. Quando os países asiáticos, ou melhor, os tigres
asiáticos como eram chamados alguns países em evidente crescimento econômico, como
Coreia do Sul e Indonésia, entraram em crise no final dos anos 1990 a falta da democracia foi
lembrada por aqueles que haviam perdido meios econômicos de subsistência. Assim, passou a
faltar ao povo a garantia dos direitos políticos e civis. (SEN, 2009)

Neste caminho, existem outras experiências narradas pelo autor, as quais devem ser
consideradas. Por exemplo, no caso da Grécia antiga, certamente o êxito democrático teve
influência pelas discussões públicas mais do que pela votação secreta surgida neste país, até
porque não há comprovação histórica do imediato impacto desses acontecimentos no oeste da
Grécia e de Roma, ou seja, nos países hoje em que há democracia institucional como já nos
referimos. De outro modo, após a incorporação do voto secreto e do uso da argumentação
pública algumas cidades asiáticas como Irã passaram a se utilizar desses elementos
democráticos na administração municipal, nos séculos seguintes ao florescimento da
democracia ateniense. (SEN, 2009)
56

Além disso, o príncipe budista Shotoku, em 604 d.C., 6 séculos antes à Magna Carta
de João Sem Terra, publicou a constituição dos dezessete artigos, a qual afirmava que as
decisões importantes a serem tomadas jamais devem ser feitas por apenas uma pessoa. Isso
demonstra que a democracia institucionalizada eclodiu exponencialmente, em países como a
Inglaterra, Estados Unidos e França, muito tempo depois desses documentos, além de
contrariar aqueles que enxergam apenas a democracia ocidental. (SEN, 2009)

Na época do imperador Saladino existia um filósofo judeu chamado Maimônides, o


qual obrigado a fugir de um regime muçulmano intolerante migrou para a Espanha e se
refugiou em um reino muçulmano tolerante no mundo Árabe. Enquanto esse reino lhe deu
proteção, a inquisição europeia queimou na fogueira diversos hereges, demonstrando a
intolerância e, consequentemente, a falta de um regime democrático nos países hoje tidos
como exemplos de democracia. (SEN, 2009)

Essas experiências reconhecem, de um modo geral, aspectos democráticos como a


participação política, o diálogo e a interação pública, contrárias às medidas intolerantes de
restrição das liberdades de expressão e de imprensa. Também, caso as exigências da justiça
possam ser avaliadas pela argumentação pública da mesma forma como validadas pela
democracia, então, justiça e democracia podem caminhar de forma conjunta.

Para falar de justiça Amartya Sen (2009, p. 279), demonstra as consequências da


inexistência de um regime democrático em determinados locais no mundo. A democracia
significa, para ele, o contraditório de autoritarismo, como vemos a seguir:

Os parâmetros culturais, supostamente “velhos e imutáveis’, que são com demasiada


frequência invocados para “explicar”, e até mesmo justificar, a carência de debate
público em determinado país, muitas vezes são piores em fornecer uma explicação
robusta, comparativamente à que pode ser obtida a partir de uma melhor
compreensão do funcionamento do autoritarismo moderno – que apela para a
censura, a regulamentação da imprensa, a supressão da dissidência, a proibição dos
partidos de oposição e o encarceramento (ou algo pior) dos dissidentes. A remoção
dessas barreiras não é a menor das contribuições que a ideia de democracia pode
fazer. É uma contribuição importante por si mesma, mas, além disso, se a
abordagem desenvolvida neste livro estiver certa, é centralmente importante também
para a busca da justiça.

Quanto mais temos instituições repressoras mais distante se encontra a democracia e,


consequentemente, a justiça. Quanto mais opressão à liberdade de opinião, de crença e de
expressão, menos discussões na esfera pública teremos. Por isso, se invocarmos a cultura
57

transcendental, utilizada para explicar o conformismo público em relação às injustiças, vamos


compactuar com a manutenção prática dessas injustiças.

Por fim, nos resta concluirmos a abordagem do ponto fundamental deste tópico. A
percepção de indignação quanto às injustiças do mundo leva as pessoas a criarem consensos
sobre determinados assuntos. Assim, existe uma característica, já abordada, mas que ainda
não foi elevada ao seu grau último de importância, qual seja, a razão pública. Esta, se
encontra presente em todas as democracias, sendo um de seus aspectos fundamentais, se não o
mais relevante. Transcende os aspectos do sufrágio universal na medida em que incorpora o
discurso da minoria junto ao grande corpo da maioria.

Nesse sentido,

Há, naturalmente, a visão mais antiga e mais formal da democracia que a caracteriza
principalmente com relação às eleições e à votação secreta, em vez da perspectiva
mais ampla do governo por meio do debate. Contudo, na filosofia política
contemporânea, a compreensão da democracia ampliou-se enormemente, de modo
que já não seja vista apenas com relação as demandas por exercício universal do
voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, com relação àquilo que John Ralws
chama de “exercício da razão pública”. (SEN, 2009, p.270)

Portanto, a participação política, concebida apenas pela conquista do voto secreto,


carece na democracia moderna do exercício da razão pública, uma vez que os direitos formais
não se convertem automaticamente na prática da justiça.

3.3 As críticas de Amartya Sen à Teoria da Justiça de John Rawls: ampliações da ideia
de justiça

Amartya Sen, em seu livro A Ideia de Justiça (2009), critica alguns aspectos da teoria
da justiça proposto por John Rawls, pois vê falhas graves de sustentação da mesma.

Antes, porém, aborda algumas questões. Enxerga dificuldades em obter uma


unanimidade dos conceitos de justiça e igualdade, sobretudo, em países onde não existe uma
tradição democrática. Por isso, se os indivíduos são iguais e livres antes de estabelecer o pacto
por que o estabeleceriam? Por que pensar que deveriam ser feitos incentivos em uma
sociedade pautada pela justiça como equidade, já que todos estariam exercendo sua máxima
capacidade produtiva? Como conceber a justiça no mundo globalizado, tendo em vista não
58

haver instituições plausíveis com a justiça como equidade nem sequer nos Estados nacionais?
(SEN, 2009)

Algumas dessas perguntas o autor não responde, aliás, as utiliza para afirmar a
imperfeição da teoria de Rawls. Iniciaremos considerando a posição original estabelecida por
Rawls, de que todos são livres e iguais e os princípios de justiça podem ser escolhidos de
acordo com a justiça política como equidade. Em seguida, esses princípios levam à escolha
das instituições reais para funcionarem de acordo com os princípios de justiça escolhidos.
Ocorre que Rawls estipula dois princípios obtidos na posição original. A ideia de igualdade na
liberdade e a existência apenas das chamadas desigualdades justas, de forma a obedecerem à
ordem do benefício dos membros menos favorecidos da sociedade pode não resistir às
diferenças.

Descreve Amartya Sen (2009) que ao restringir esses princípios Rawls somente
considera a escolha desses dois princípios na posição original, desconsiderando a existência
de diferentes percepções de mundo e de bem. Mesmo concebendo a justiça como equidade,
Rawls enxerga dificuldades em obter um acordo unânime sobre o conjunto de princípios de
justiça. Por isso, afirma Sen, que a Teoria de Justiça proposta por Rawls pode ser, inclusive,
abandonada para a compreensão genérica de justiça, mas serve para compreender um dos
aspectos da justiça, ou seja, a justiça como equidade.

Para Sen (2009), a liberdade foi colocada em um pedestal na teoria de Rawls, sendo a
prioridade do alcance da sua Teoria de Justiça. Entretanto, é possível a liberdade ser
considerada como prioridade, mas não absoluta, levando em conta o direito à vida e às
condições mínimas de sobrevivência, as quais podem ser mais relevantes em alguns contextos
no mundo. Nestes casos, podem ser consideradas prioritárias perante a liberdade.

De outro modo, a justiça como equidade considera a diferença do mundo da natureza,


mas desconsidera a capacidade humana de converter os bens primários em condições
melhores de vida. Dessa forma, Rawls propõe que a utilização do que chama de bens
primários levaria, se atendidos os princípios entabulados na Teoria da Justiça, sempre a
mesma concepção ideal de justiça. (SEN, 2009)
59

Para Sen (2009) é importante considerar que uma gestante deverá necessitar mais
alimento para satisfazer suas necessidades do que uma pessoa que não esteja grávida, ou,
então, que uma pessoa com deficiência possa fazer muito menos com os mesmos recursos
disponíveis em relação à outra pessoa com aptidões físicas melhores. Ainda, se alguém
utilizasse algum outro princípio na posição original e chegasse até a justiça como na doutrina
de Rawls, sua tese estaria comprometida.

Destarte, os dois princípios de justiça como equidade visam à escolha das instituições
sociais e o surgimento, em decorrência, de um comportamento real correspondente a essas
instituições. Na visão de Sen (2009), esse fato desconsidera o comportamento real das
pessoas, independentemente do fim estabelecido por uma instituição, ainda que estas se
enquadrem no modelo de justiça proposto por Rawls.

Sen (2009), concebe diferentes princípios de justiça, diferenciando o dever ser do ser,
atentando para a realidade concreta e social, não apenas ideal. Analisa a teoria da justiça de
Rawls de forma comparativa e não somente identificando a justiça como uma solução
transcendental. Assim, pretende eliminar os casos reais e urgentes de injustiça no mundo, bem
como possibilitar o surgimento de olhares divergentes ao movimento contratualista.

Por isso, justiça para Amartya Sen significa a eliminação da pobreza, pois esta
representa a privação das liberdades e capacidades individuais, portanto, é pré-requisito para a
garantia dos direitos civis e políticos, base da teoria da justiça. A democracia auxilia no
processo de eliminação das privações das liberdades e, desse modo, na ampliação das
liberdades substantivas.

De acordo com essas proposições, as pessoas não querem viver apenas num plano
ideal, porque de nada adianta um plano ideal para quem não consegue obter no plano real as
condições mínimas existenciais. Eis o aspecto transformador da teoria de justiça de Amartya
Sen (2009), pois busca na eliminação das injustiças a consagração da justiça. Afinal, se
existem divergências profundas sobre justiça, pelo menos as pessoas, do ponto de vista
prático, reconhecem uma injustiça facilmente.
60

CONCLUSÃO

Inicialmente, a abordagem da doutrina contratualista clássica, os principais


acontecimentos no período da Baixa Idade Média e as diferentes faces assumidas pelo Estado
de Direito na modernidade revelaram as intensas lutas pela divisão do poder político e a
limitação da atuação estatal na esfera individual.

O poder exercido pela Igreja e pelos Monarcas, nos diversos reinos existentes durante
a Idade Média, em várias ocasiões, não possuía limites, ocasionando atos intolerantes por
parte do Estado e atrocidades das mais diversas. Não obstante, as revoltas Baroniais do século
XII e XIII, a revolução Inglesa, no século XVII, a Americana e a Francesa, em 1776 e 1789,
respectivamente, possibilitaram o surgimento de constituições nacionais, no intuito de
proteger os direitos do homem.

Então, o Estado de Direito assume um caráter liberal, o qual se sustenta até o


fortalecimento da igualdade nas sociedades modernas, transformando o Estado Liberal de
Direito em Estado Social de Direito. Este Estado, influenciado pelas doutrinas da Revolução
Russa, da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, na Alemanha, de
1919, teve como propósito a proteção de direitos sociais, econômicos e culturais.

Ocorre, que a evolução dos direitos do homem transcendeu a perspectiva dos Estados
nacionais, intrínsecos da modernidade, possibilitando a ascensão dos direitos na esfera
internacional, como os direitos humanos, entendidos por muitos, como exigências éticas e
morais para além do positivismo jurídico.
61

Vimos também, que os diferentes Estados de Direito visaram um equilíbrio social,


através da razão humana, a qual se apresentou como principal elemento democrático, pois
possibilitou a diminuição das tensões sociais e o uso arbitrário do poder político.

No último capítulo, tratamos da justiça como equidade, partindo da doutrina liberal


igualitária proposta por John Rawls, a qual concebeu dois princípios básicos para a teoria da
justiça: a ideia de igualdade na liberdade e a existência apenas das chamadas desigualdades
justas. Além disso, abordamos algumas críticas feitas por Amartya Sen a essa teoria, uma vez
que este considera a eliminação das injustiças e privações de liberdades individuais um meio
de alcançar a justiça, não se limitando apenas aos dois princípios acima descritos.

Nesse sentido, o uso da razão, o fortalecimento dos Estados Democráticos de Direito e


a busca pela eliminação de injustiças possibilitou a resposta ao problema da pesquisa,
confirmando a hipótese inicial de que a análise histórico-jurídica poderia nos proporcionar a
compreensão da formação do Estado de Direito e a sua repercussão na filosofia política
moderna.

Assim, a consolidação dos Estado de Direito na modernidade dirigiu-se para a ideia de


democracia e tolerância, a qual só se sustentou com a utilização da razão humana, sendo esta
última, indispensável para a ideia de justiça na contemporaneidade. Ou seja, existe uma
relação de cooperação entre democracia, justiça e Estado de Direito.

Encerramos o trabalho sobre filosofia política reiterando a busca incessante da justiça


e a concretização dos direitos civis e políticos, dos direitos econômicos, sociais e culturais,
como uma reação contrária e necessária à injustiça, à insegurança, às opressões, à intolerância
e às desigualdades injustas.
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REFERÊNCIAS

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