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M O A C Y R S C L I A R

Sonho em movimento:
a imagem do imigrante
na literatura brasileira

Falar da imigração é falar de um fenômeno com-


plexo, que tem facetas socioeconômicas, políticas, cul-

turais e por último, mas não menos importantes, emo-


cionais. O imigrante é uma pessoa que obedece – o
mais das vezes a contragosto – ao chamado/ordem de
Jeová a Abraão: “Sai de tua terra”. É em busca da Terra

Prometida que ele vai, mas ao fazê-lo paga o preço do


desenraizamento e da frustração; e contrai, com o país
que o acolhe, uma relação ambivalente, de ódio e amor.

Por outro lado, é privilegiado o olhar que lança o re- MOACYR SCLIAR
é escritor e crítico
literário. É autor de,
cém-chegado à sua nova terra; um olhar revelador, um entre outros, Cenas da
Vida Minúscula (L&PM) e
A Majestade do Xingu
olhar capaz de perceber até aquilo que Marx denomi- (Companhia das Letras).

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nou de “poros da sociedade”. Pois é nesses o imigrante era assim um equivalente de
poros que o imigrante, muitas vezes, vai en- Caliban, símbolo de sensualidad y torpeza,
contrar a sua única forma de sobrevivência. contraposto a Ariel, genio del aire, la parte
Uma situação tão rica em emoções teria noble del espíritu (2). Apesar dessas
de necessariamente ser aproveitada pela aristrocráticas restrições, os imigrantes
literatura; sobretudo na América, o Novo continuaram chegando e logo constituíam
Mundo que sempre atraiu, como ímã, os significativa proporção da população lati-
imigrantes. Sucessivas ondas de povoa- no-americana.
dores para cá vieram desde o descobrimen- Não foi de imediato, no entanto, que as
to; mas foi no século XIX, em função de correntes migratórias geraram obras literá-
convulsões que abalaram a Europa – con- rias. É um processo que passa por três etapas
flitos nacionais afetaram a vida de milhões – por três gerações. A primeira geração é a
de pessoas, tal como acontece hoje na ex- que chega ao país; só raramente impõe sua
Iugoslávia –, que o processo migratório se marca à literatura, em primeiro lugar porque
acelerou consideravelmente. A América, está tão ocupada com a sobrevivência que
continente de vastas extensões, carecendo mal pode pensar em ficção e depois porque
de mão-de-obra e relativamente tolerante, não domina o idioma. A segunda geração,
representa uma esperança: “Dá-me os teus beneficiada pelos frutos do árduo trabalho
exaustos, os teus pobres/Tuas confusas de seus antecessores, tem acesso aos bens
massas que por ar livre anseiam”, dizem os culturais e à linguagem literária, às vezes
versos da poeta Emma Lazarus (1849-87) com requintes que surpreendem os nativos.
gravados em bronze no pedestal da Estátua Paga um preço por essa situação até certo
da Liberdade, em Ellis Island (Nova York), ponto cômoda, um preço que se expressa
lugar onde os imigrantes eram recebidos. E nos conflitos de identidade – que acabam se
Domingos Faustino Sarmiento (1811-88), transformando em matéria-prima para a li-
intelectual e político argentino: “A Améri- teratura. A terceira geração, assimilada, não
ca necessita, para sua prosperidade e en- tem esses problemas; pode sofrer do “mal-
grandecimento, atrair o maior número pos- estar da cultura” de que falava Freud, mas
sível de estrangeiros… A Argentina, um nisto não é exceção. Esta é a geração da
país capaz de comportar cem milhões de globalização, da linguagem planetária.
pessoas, não tem mais que um milhão de Pelas razões acima expostas, a literatura
habitantes. Necessitamos da indústria, da de emigração começou relativamente tarde
arte, do dinamismo e da disposição para o no Brasil. Como primeira importante obra
trabalho dos europeus” (1). Ou, como dizia no gênero, aponta-se em geral Canaã (1902)
Juan Bautista Alberdi, “governar é povo- de José Pereira da Graça Aranha (1868-
ar”. Uma opinião integralmente endossada 1931). Diplomata de carreira, como muitos
pelos governantes argentinos, mas que nem escritores latino-americanos, Graça Aranha
todos aceitavam: “El presuroso crecimiento introduziu no Brasil uma tendência domi-
de nuestras democracias por la incesante nante na prosa européia de fim de século que
agregación de una enorme multitud cos- consistia em mesclar o naturalismo de um
mopolita; por la afluencia inmigratoria que Zola com elementos simbolistas. Em seu li-
se incorpora a un nucleo aun debil para vro, a emigração, a par da descrição realista,
verificar un ativo trabajo de asimilación… é uma alegoria do Paraíso Perdido, ou da
nos expone a los peligros de la degene- Terra Prometida – daí o nome.
1 Ver Sarmiento – Coletânea ración democrática”, diz José Enrique Canaã(3) é redigido num estilo pom-
(org. Leon Pomer), São Pau-
lo, Ática, 1983, p. 70. Rodó em Ariel, e continua: “Gobernar es poso, grandiloqüente, barroco até; bem de
2 José Enrique Rodó, Ariel, poblar, asimilando en primer termino, edu- acordo com a concepção do autor, para
Buenos Aires, Austral, 1948. cando y selecionando. La multitud no es quem escrever era “cantar com a pena”. Os
3 Graça Aranha, Canaã, intro- nada por si mismo, será instrumento de personagens não dialogam, discursam, pe-
dução e notas de Dirce Cor- barbarie o de civilización, según carezca o roram, fazem pronunciamentos. Apesar dis-
tes Riedel, Rio de Janeiro,
Ediouro, s/d. no de una alta dirección moral”. Para Rodó, so é possível distinguir no choque das idéias

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dos personagens principais um conflito gira em torno à figura de Noel Nutels. Emi-
transplantado da Europa para o Brasil. O grante russo, Nutels estudou medicina no
tolstoiano Milkau (que obviamente goza Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro,
da simpatia do autor) quer começar no onde conviveu com o grupo de intelectuais
Brasil uma vida nova. Já o nietzschiano de esquerda da revista Diretrizes, dirigida
Lentz acredita na força e no poder, com por Samuel Wainer e por fim dedicou-se a
uma conotação claramente sexual: “Nós cuidar dos índios na região do Xingu – um
renovaremos a nação, nos espalharemos trabalho que marcou época e que ainda hoje
sobre ela, a cobriremos com nossos corpos é considerado exemplar. Membro de um
brancos e a engrandeceremos para a eter- grupo hostilizado e perseguido, Nutels iden-
nidade… A civilização dessa terra está na tificava-se com os índios por causa, segun-
imigração dos europeus; mas é preciso que do dizia, do sofrimento destes. Nesse senti-
cada um de nós traga a vontade de governar do, é uma figura paradigmática, mostrando
e dirigir” (p. 22). Esta “vontade de dirigir”
sugere um autoritarismo próximo ao nazi-
facismo, cuja vigência, no Brasil meridio-
nal, é tema de um outro romance de imigra-
ção, Um Rio Imita o Reno (1939), de
Clodomir Viana Moog (1906-88). Diplo-
mata como o autor de Canaã – aliás, seu
livro ganhou o prêmio Graça Aranha –,Viana
Moog era um agudo observador dos confli-
tos vividos pelos imigrantes, divididos en-
tre velhas, e perigosas, lealdades e o desejo
de integração ao país em que vivem.
Dos anos 40 aos 60, o tema da emigra-
ção aparece pouco em nossa literatura. São
anos de nacionalismos, de direita ou de
esquerda, um nacionalismo não isento às
vezes de xenofobia. No entanto, com o fim
do regime militar e com a redemocratização
do país, novas vozes se fazem ouvir na li-
teratura brasileira, vozes de grupos antes
marginalizados pela intolerância, como é
o caso de mulheres, de homossexuais, de
negros. Não é de admirar, portanto, que
nos últimos anos tenham aparecido várias
obras literárias (sem falar em filmes) ten-
do como tema a emigração. Só para citar
alguns exemplos: República dos Sonhos,
de Nélida Piñon, que conta a saga dos emi-
grantes vindos da Galícia; Relato de um que o processo de integração do emigrante
Certo Oriente, de Milton Hatoum, e Amrik, à realidade social, política, cultural não é
de Ana Miranda, versando sobre a emigra- algo que ocorra passivamente mas requer
ção árabe; O Quatrilho, de José Clemente uma transformação profunda, às vezes do-
Pozenato, narrando uma história ambien- lorosa. Os sonhos do emigrante são sonhos
tada entre emigrantes italianos no Rio Gran- que mudam de acordo com as circunstânci-
Lasar Segall,
de do Sul, que vieram se juntar ao mais as históricas em que vivem; são sonhos, mas
antigo Contos do Emigrante, de Samuel sonhos em movimento. É isso que faz de sua
Navio de
Rawet. A estes, posso juntar a novela de experiência matéria-prima de primeira gran- Emigrantes,
minha autoria A Majestade do Xingu, que deza para o trabalho literário. 1939-41

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