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O ÊXTASE DA INTIMIDADE

Ontologia do amor humano


em Tomás de Aquino
Juan Cruz Cruz

O ÊXTASE DA INTIMIDADE
Ontologia do amor humano
em Tomás de Aquino

Tradução:
Carlos Nougué

2 0 11 - R i o d e J a n e i r o
© 2011, Sétimo Selo Editora Ltda.
www.edsetimoselo.com.br - (21) 2242 7634

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Título original
El éxtasis de la intimidad : ontología del amor humano en Tomás de Aquino

Tradução
Carlos Nougué

Revisão
Sidney Silveira

Produção gráfica e design


Sol Tavares

Coordenação editorial
Octacílio Freire e Sidney Silveira

ISBN 978-85-99255-12-4

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C961e

Cruz Cruz, Juan


O êxtase da intimidade : ontologia do amor humano em Tómas de Aquino
Juan Cruz Cruz ; tradução Carlos Nougué. - Rio de Janeiro : Sétimo Selo,
2011.
250p.
Tradução de: El éxtasis de la intimidad : ontología del amor humano en
Tomás de Aquino
Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-99255-12-4

1. Tomás, de Aquino, Santo,


1225?-1274. 2. Amor - Filosofia. I. Título..

11-0330.
CDD: 128.46
CDU: 177.61

18.01.11 21.01.11 023995
Sumário
Introdução .............................................................................................. 1

1.  O amor humano como tema de estudo filosófico


2.  Inflexões etimológicas e idiomáticas
a) Amor
b) Intimidade
c) Êxtase
3.  O realismo do amor

Primeira Parte : Intimidade, Êxtase E Amor

I.  Pessoa E A mor ...................................................................................... 19

1.  Concepção física e concepção personalista do amor


2.  Articulação psicológica das tendências “naturais”
a) Inclinação, apetite e vontade
b) Amor e perfeição própria
c) A afetividade e o amor espiritual
d) O físico no pessoal
3.  Sentido primário do amor: a pessoa
4.  Personalidade e intimidade
a) A abertura da intimidade

b) O amor como união afetiva

II. A mor E Intimidade ............................................................................... 55


1.  Intimidade e consciência
2.  A intimidade na profundidade do amor
3.  Intimidade e inconsciente
4.  Gratuidade da intimidade como qualidade relacional
5. A ilha da intimidade

III.  Êxtase E A mor .................................................................................... 89


1.  O amor como êxtase
2.  Amor perfeito e êxtase perfeito3.  O êxtase unificante
4.  O amor de si e o êxtase amoroso
IV. O A mor Íntimo ................................................................................. 105

1.  Tipologia do amor perfeito


a) Amor benevolente
b) Amor íntimo
2.  O amor de amizade
3.  O amor esponsalício
4.  O amor paterno-filial

V. Doação E Posse .................................................................................. 137

1.  Dialética do amor humano perfeito


a) A posse na doação
b) Amar e ser amado
2.  Os motivos no amor
a) A pureza de motivos
b) A mescla de motivos
c) Hierarquização de motivos
3.  Interesse e desinteresse no amor

Segunda Parte : Essência, Causa E Efeitos Do Amor

VI. O A mor Sensível ............................................................................... 161

1.  A ordem do apetite sensível: imediatez e mediação


2.  Respostas afetivas sensíveis
3.  O amor sensível

VII. O A mor Espiritual ........................................................................... 181

1.  Fenomenologia e ontologia do amor


2.  Constituição volitiva do amor espiritual
3.  Volições e sentimentos. Meios e fins
4.  Retroversão volitiva como ato para a objetividade

VIII. A Causa Do A mor .......................................................................... 197

1.  A distância do outro


2.  O bem como causa específica do amor: fim e valor
3.  O conhecimento como condição necessária do amor
a) Anterioridade principial do conhecimento
b) A objetividade do amor
4.  A semelhança como raiz do amor
a) A semelhança do amado com o amante
b) Semelhança perfeita e imperfeita. O amor perfeito ou quiescente.
c) A dessemelhança, causa incidental do amor
d) A índole absoluta do outro e o amor perfeito
5.  Hierarquização causal das respostas afetivas
a) Precedência ontológica do amor
b) Causas subliminais do amor

IX. Efeitos Do A mor ............................................................................... 231

1.  A união efetiva


a) A união no amor quiescente e no itinerante
b) Unidade e união amorosa. O amor de si mesmo
c) A união amorosa e o conhecimento
2.  A interpenetração no amor
3.  A alteridade no amor
a) Amor quiescente e êxtase perfeito
b) Saída de si e amor de si
c) Intensificação da alteridade. Os zelos, o zelo
4.  O ódio sob o amor
a) O amor, causa universal
b) A estrutura do ódio
c) Há ódio de si absoluto?
d) A inveja como raiz do ódio
5.  O amor como causa exemplar. Amor e matrimônio
a) Etiologia do matrimônio
b) O amor esponsalício, causa ou efeito do matrimônio?
c) A mais antropológica das causas
d) O influxo do amor como causa exemplar
Introdução

1. O amor humano como tema de estudo filosófico

1. Posso descobrir o amor de modos muito diferentes. Pri-


meiro, quando amo alguém: trata-se de uma experiência ativa
e imediata, sendo o objeto direto do amor propriamente o ou-
tro. Segundo, quando observo o amor em outras pessoas que
se amam: é uma experiência mediata. Terceiro, quando sou
amado: esta é uma experiência passiva e imediata, ainda que
especialíssima, porque o objeto do amor sou aqui eu mesmo; ao
ser tocado pelo amor de outra pessoa, percebo que o conteúdo
do amor se aproxima de mim de modo único; já sinto um sopro
alentador pelo simples fato de ser dirigido a mim. Todas essas
experiências ajudam a compreender o que é o amor: afirmação
afetiva ou comprazida que um ser humano faz da existência de
outro.
Desde a baixa Idade Média até o Renascimento, foi fre-
quente tratar o tema do amor distinguindo nele três questões:
sua essência, sua causa e seus efeitos. Sua essência consiste na
afirmação comprazida que o amante faz do amado. Sua causa
é a índole boa do amado. Seus efeitos são fundamentalmente
a saída de si ou êxtase (do grego, , pôr para fora) e a
efetiva união real com o amado.
Talvez possa parecer chocante que no título de uma inves-
tigação filosófica sobre o amor não figure o nome de sua essên-
cia, mas o de um de seus efeitos, a saída de si ou êxtase. Mas
há razões de peso — em especial de índole histórica, como as
esgrimidas pelo solipsismo, pelo subjetivismo e pelo idealismo
— que aconselham este proceder, como se irá vendo. Isso per-
mitirá delinear a essência e as causas do amor; e até o sentido
do mesmo amor como causa. Deve ficar claro também se tal
saída é apenas uma concomitância acidental ou se, pelo con-
trário, é um elemento necessário do ato afetivo amoroso.
2. Não é estranho ao clima intelectual contemporâneo o
uso do termo êxtase, ou de um sinônimo seu, para ilustrar as-
pectos fundamentais do ser humano. Por exemplo, Heidegger

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 1


sublinhou com particular acento metafísico a natureza extá-
tica do homem: em Was ist Metaphysik?, ele explica que a
consciência humana já pressupõe uma existência extática (Ek-
sistenz), que é o modo como o homem desdobra sua essência
enquanto homem; estar extático, fora de si, na verdade do ser,
é o próprio de um sujeito não puro nem encapsulado em si
mesmo. Essa idéia heideggeriana se assemelha à exposta por
vários autores contemporâneos em chave antropológica, como
Plessner e Gehlen. Em contraposição à índole fechada do com-
portamento animal, Plessner indicou a posição excêntrica do
homem, e Gehlen a abertura de suas tendências. Exzentrische
Position, Offenheit, Ek-sistenz são determinações paralelas à
caracterização do comportamento afetivo humano feita pelo
Aquinate mediante o termo êxtase,1 o que indica um traço
normal do projeto existencial do homem, da atualização de
sua natureza específica.

2. Inflexões etimológicas e idiomáticas

a) Amor

1. O amor cumpre o destino, ao mesmo tempo extático


e unitivo, marcado em sua origem etimológica. Para uns
deriva do grego , semelhante, pois os que se amam são
semelhantes; para outros provém de  , desejar vivamen-
te: amar implica um querer intenso e ardente; e para outros
de , que significa ligar, conectar, pois o próprio do
amor é juntar os amantes. Presente, em todo o caso, está a
raiz .
O nome do sentimento contraposto ao amor, o ódio,
pode vir do verbo grego   , que significa ter aversão
a ou irritação contra alguém; ou de   , que significa
afligir e causar dor. Em todo o caso, da raiz grega   surge a

1 - S. Th., I-II, 28, 3; II-II, 175, 2; III Sent., d. 27, q. 1 a. 1 ad 4; De div. nom., 4,
10.

2 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


idéia de devorar e roer. Todas essas dimensões semânticas
estão implicadas no ódio, enquanto resposta afetiva contrá-
ria à do amor. Pois, como o mal se contrapõe ao bem, sendo
este o objeto próprio do amor, o objeto do ódio é o mal.
Não é fácil pôr em correspondência a palavra “amor” com
um só termo grego que expresse sua riqueza semântica. Para
indicar parte de seus conteúdos, os gregos dispunham de vá-
rios vocábulos:   e  Este último
termo, que equivale a amar com ternura, é próprio do amor
filial, .2
Referindo-se ao amor passional ou sexual, os latinos ante-
punham à palavra amor a preposição ad para indicar sua incoa­­
ção (adamare), ou o prefixo de para significar sua intensidade e
veemência (deamare). Responde este significado ao grego  
(donde ,,).3 O amor erótico ou sexual é, para
um latino, deamatorium. Mas acima deste amor, que quer al-
guém por indigência ou buscando alguma utilidade, ao menos
a do prazer, existe outro, que quer para o outro os maiores bens,
ainda que disso não redunde nada em proveito próprio. A signi-
ficação do termo “amor” não se reduz, pois, originariamente aos
efeitos lúbricos. Quando o amor sincero e honesto já se tornou
hábito em alguém, diz-se que ele ama como amigo. A amicitia,
, é o estado habitual que relaciona os amigos.
Um modo de amor não sensitivo e passional, mas com in-
teligência e juízo, é expresso pelo termo latino dilectio, que
traduz o  grego, referindo-se ademais não a qualquer
bem, mas a bens superiores ou ótimos.

2 - Uma análise detida desses termos pode ser consultada em Carl Abel,
Über den Begriff der Liebe in einigen alten und neuen Sprachen.
3 - No que se refere a  , Hesíodo explica em sua Teogonia (120) que é
“o mais belo entre os deuses imortais”; mas Platão o concebe como um
daimon, um ser intermediário entre os deuses e os homens (Symposium 204
c; Phaidros 250 d), dando-lhe um sentido dinâmico totalizador e, ao mesmo
tempo, ascensional:  se inflama diante do corporalmente belo, com-
prometendo a força vital do sujeito, sua paixão, mas ascende em seguida a
formas mais puras de beleza, chegando à contemplação do divino. Razão
por que  reúne o mais baixo e o mais alto, o sensual e o espiritual,
o natural e o ético. E, assim,  impede a desintegração do homem, o
isolamento de suas partes: tudo deve estar unido.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 3


Amor abarca também o espectro semântico do termo cari-
dade, que significou inicialmente entre os latinos o que o ter-
mo espanhol carestía [falta, escassez, carestia]4 expressa, situa-
ção em que se carece de algo necessário. Por metonímia passou
caridade, primeiro, a significar as coisas de grande apreço ou
estima e depois o mesmo amor por essas coisas e por pessoas
muito apreciadas (como os pais, a pátria e Deus), cuja esti-
ma se antepõe a todas as outras, e isso com um afeto máximo
que não responde a utilidade própria. Também se aplicou por
extensão a seus signos e efeitos, como às obras de beneficên-
cia, com que se guarda e aumenta esse amor especial que é a
caridade. O idioma espanhol incorporou esse significado em
expressões, já em desuso, como “dilecto y caro amigo” [dileto
e caro amigo]; e também o utiliza em geral referido a obras
humanitárias ou de ajuda ao necessitado. Com só uma palavra,
amor, dirigimos de diversas maneiras nosso afeto a Deus, aos
homens e ao mundo.
2. Quanto aos termos gregos referentes ao amor,  não
é uma palavra que se encontre com freqüência no Antigo Tes-
tamento; e, naturalmente, não aparece no Novo, que prefere
 e  Pois bem, não se pode amar os inimigos em
forma de  , mas de  , razão por que a Vulgata op-
tou por traduzir por diligere (por dilectio ou
caritas)5 e   (e ) por amare. Por sua vez, o latino
caritas não é sinônimo de amor: aos deuses, aos pais, à pátria,
aos sábios se professava caritas, porque é um afeto nobre; ao
esposo, aos filhos, aos irmãos e familiares se tinha amor, por-
que implica certa sensualidade. Por isso, tanto os gregos como
os latinos possuíam um termo para o, chamemo-lo assim, amor
vertical ( , dilectio, caritas) e outro para o amor horizon-
tal ( , amare). Em arcaica e acadêmica se converte, em
castelhano, a palavra dilección [dileção], cujo núcleo signifi-
cativo entra nos aspectos semânticos de amor, como acontece

4 - Será do tradutor tudo quanto no corpo do texto estiver entre chaves.


[N. do T.]
5 - C. Spicq, Agape dans le Nouveau Testaments. Analyse des textes.

4 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


também no idioma latino usado pelo Aquinate: “O amor é cer-
ta quiescência (quietatio); e, assim como o apetite se encontra
tanto na parte sensitiva como na intelectiva, assim também
o amor. Mas o que pertence ao apetite sensitivo se transfere
para o intelectivo, como os nomes das paixões. O próprio do
apetite intelectivo não convém ao apetite sensitivo, como o
nome de vontade. Dado que o amor se encontra em ambos os
tipos de apetite, na medida em que se acha no apetite sensitivo
se chama amor em sentido próprio, por comportar paixão; mas
enquanto se acha na parte intelectiva se chama dileção (di-
lectio), que inclui uma escolha (electio) pertencente ao ape-
tite intelectivo. Ademais, o nome amor se transfere ao apetite
superior, ainda que o nome dileção jamais se transfira para o
apetite inferior. Todos os demais nomes que parecem perten-
cer ao amor ou são assumidos por estes, ou os incluem como se
acrescentassem algo à dileção e ao amor”.6

b) Intimidade

1. O ato mais alto do amor é a aprovação que uma intimi-


dade faz da intimidade do outro. A análise de sua raiz semânti-

6 - III Sent., dist. 27, q. II, a. 1. É de lamentar que este enfoque amplo e
integrador do Aquinate não tenha sido levado em consideração por muitos
tratadistas posteriores. Até o próprio Dictionnaire de spiritualité ascétique et
mystique (Paris, 1937-1995) restringe arbitrariamente o amor ao âmbito do
apetite sensível. “A amizade e o amor têm algo em comum, a saber, são
movimentos afetivos que provêm, ambos, do apetite. Mas diferem em que
o amor surge do apetite sensitivo, enquanto a amizade nasce do apetite
racional. O amor é, pois, de ordem inferior, orgânica: nasce da sensação e
tende aos prazeres sensíveis ou sensuais; em si mesmo é cego, brutal, in-
quieto, facilmente violento, naturalmente egoísta. Quando tem por objeto
pessoas de sexo diferente e tende à união dos corpos para a conservação
da espécie, toma a forma de amor sexual. A amizade, como tal, é de or-
dem superior, ideal; é espiritual e, por conseguinte, calma e serena. A
simpatia preside seu nascimento, a razão a fixa e a rege; ela paira sobre
o espaço e o tempo. Em uma palavra, o amor é material, a amizade é
espiritual” (t. I, verbete Amitié, p. 507). É verdade que não se podem pedir
aos textos do Aquinate as matizações fenomenológicas que, por exemplo,
Scheler (Wesen und Formen der Sympathie) ou Pfänder (Zur Psychologie der
Gesinnungen) fizeram em torno do fato amoroso; mas tampouco foram
escritos com essa intenção.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 5


ca ajuda a entender o sentido da intimidade. Provém do grego
, que significa “dentro”; do qual deriva o latim intus, e
daí intimus.
Percebe-se em castelhano [como, mutatis mutandis, em
português] pelo menos uma dupla dialética no término “ín-
timo”: 1.ª a de exterior/interior (“estímulos íntimos”), pare-
cida com a de superficial/profundo (“amigo íntimo”, “no ín-
timo centro lá no peito”, teria dito Garcilaso em sua Égloga
segunda);7 2.ª a de público/privado (“em defesa do íntimo”,
“não publicar coisas tão íntimas”).
Nas obras do Aquinate aparece também esta dupla dialé-
tica no termo intimus ou, no plural, intima (as profundida-
des, os interiores, as entranhas de uma coisa), segundo o nível
ontológico do que é tratado. Por exemplo, os bens espirituais
são o íntimo, intima, em contraposição aos sensíveis.8 Com
freqüên­cia o plural é acompanhado do genitivo de res: intima
rerum ou intima rei. No que concerne à vida intelectual, por
exemplo, a inteligência conhece intima rei;9 ou o conheci-
mento passa ad intima rei.10 E, no referente à vida afetiva, o

7 - Entre os clássicos castelhanos — assim como em Santo Tomás e São Bo-


aventura — era freqüente designar como “íntimas” aquelas entidades que,
por estarem no vértice dos graus do ser, afetam profundamente com sua
presença ou ação outros seres. Por exemplo: Deus nas criaturas, o ser no
ente, e o espírito na psique humana. Com respeito ao primeiro, expressa-se
assim Fray Luis de León: “Escusada coisa foi dar-lhe a Deus nome, o qual
está tão presente a todas as coisas, e tão lançado, como diríamos, em suas
entranhas, e tão infundido e tão íntimo como está seu ser delas mesmas”
(De los nombres de Cristo. De los nomes en general, 28.43. Para estas e outras
citações de autoridades, cf. R. J. Cuervo, Diccionario de construcción y régimen
de la lengua castellana, T. V, 731-734). Com respeito ao segundo, diz o Padre
Granada: “E, porque o ser das coisas é o mais íntimo que há nelas, segue-
se que ele está mais dentro delas do que elas estão dentro de si mesmas”
(Orac. y Consider., 2. 2. § 3). E, com respeito ao terceiro, expressa-se assim
Unamuno: “Sua cabeça brigava com seu coração, e ambos, coração e cabe-
ça, brigavam com ela com algo mais veemente, mais estranho, mais íntimo,
com algo que era como a medula dos ossos de seu espírito “ (La tía Tula,
10).
8 - Super ad Hebraeos, 4. 1,115.
9 - De Verit., 1, 12.
10 - III Sent., 35, 2, 2a.

6 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


amor perfeito ou de doação vai ad intima amati.11 Assim, inti-
mus ou íntimo pode ser considerado um termo análogo que se
refere a áreas ontológicas que excedem outras em profundida-
de, ou em elevação, ou em importância ou grandeza, sejam de
índole entitativa ou operativa.
Também intimus se opõe a público e significa secreto, fe-
chado: por isso os demônios não podem ver nossas cogitatio-
nes intimae.12
2. Para o esclarecimento do conceito de intimidade, tam-
bém é interessante recolher as indicações e sugestões psicoló-
gicas transmitidas pela tradição mística ocidental. São pautas
que exigem ser sistematizadas. E não é possível fazer aqui um
elenco de tais testemunhos.13 Basta citar um dos mais vibran-
tes, o das Moradas de Santa Teresa de Jesus: “Considerar nossa
alma como um castelo todo de um diamante ou mui claro cris-
tal, onde há muitos aposentos [...]. Mas que bens pode haver
nesta alma poucas vezes o consideramos, e assim se tem em
tão pouco procurar com todo o cuidado conservar sua beleza;
vai-se-nos tudo na grosseria do engaste ou cerca deste castelo,
que são estes corpos. Pois consideremos que este castelo tem
— como eu disse — muitas moradas, algumas no alto, outras
embaixo, outras dos lados, e no centro e meio de todas estas
tem a principalíssima, que é onde acontecem as coisas de mui-
to segredo entre Deus e a alma [...]. Pois, tornando a nosso belo
e deleitoso castelo, devemos ver como poderemos entrar nele.
Parece que digo um disparate; porque, se este castelo é a alma,
é claro que não há por que entrar, já que é ele mesmo; como

11 - S. Th., II, 28, 2. Para outras questões relacionadas com o tema na Idade
Média, podem ver-se as seguintes obras: Roberto Busa, La terminologia to-
mistica della interiorità; Carlo Giacon, Interiorità e metafisica: Aristotele, Plotino,
Agostino, Bonaventura, Tommaso, Rosmini.
12 - De Malo, 16, 8. No Index Thomisticus há uma abundância de citações a
respeito. Não aparece, em contrapartida, o termo intimitas no Aquinate.
13 - Reconhecidas, a esse respeito, são as obras de A. Gardeil, La structure
de l’âme et l’expérience mystique; M. Schmaus, Die Psychologische Trinitätslehre
des Hl. Augustinus; L. Malevez, La doctrine de l’image et de la connaissance mys-
tique chez Guillaume de Saint-Thierry; O. Karrer, Meister Eckehart, das System
seiner religiösem Lehre und Lebens-weisheit; H. Kunisch, Das Wort “Grund” in
der Sprache der deutschen Mystik des 13. und 14. Jahrhunderts.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 7


pareceria desatino dizer a alguém que entrasse numa peça es-
tando já dentro dela. Mas deveis entender que há muito de
estar a estar; que há muitas almas que ficam à volta do castelo
— que é onde estão os que o guardam — e que não se decidem
nunca a entrar nele nem sabem o que há naquele tão precioso
lugar nem quem está dentro dele nem ainda que peças tem”.14
Vertido num esquema teórico o que se expressa nessas linhas
das Moradas, conclui-se em síntese que os elementos psicoló-
gicos com que se configura a “alma” são hierarquizados — há
diferentes níveis — e orientados a um centro.
Se se integram essas indicações — que na perspectiva dos
teólogos expressam fenômenos influídos pela graça sobrenatu-
ral — num enfoque filosófico e sistemático do homem, pode-
se dizer que tais elementos psicológicos não são propriamente
“aposentos” ou “partes” da alma, mas atividades ou faculdades
orientadas ao ato. Razão por que a intimidade não é uma deter-
minação da substância da alma, mas das faculdades que surgem
naturalmente de sua essência.15 Há aqui um problema ontológi-
co que não deve passar despercebido — e é importante inclusi-
ve para o teólogo —, a saber: a distinção real16 entre a essência
da alma e suas potências de entender e querer. No ser finito, a
substância não é imediatamente operativa, mas atua através de
suas potências ou faculdades. O homem não conhece sua essência
senão refletindo sobre os próprios atos. Pois bem, nas mesmas
manifestações conscientes dessas potências se deixa entrever o
fundo de que nascem: fundo que aparece na atualidade mesma
da consciência, pois o sujeito, no mesmo ato consciente referi-
do às coisas que o rodeiam, se apercebe concomitantemente de
si mesmo. E como essas atividades — segundo o ensinamento

14 - Libro de las Moradas, Moradas Primeras, cap. 1, nn. 1, 3 e 5.


15 - “Ab essentia animae effluunt ejus potentiae, realiter ab ea et inter se
distinctae” (S. Th., I-II, 110, 4, ad 1).
16 - Outra coisa pensava São Boaventura, que, embora distinguisse as po-
tências da essência da alma, não as determinava como acidentes, como o
tinha feito Santo Tomás, mas as fazia pertencer redutivamente ao gênero
da substância: “istae potentiae sunt animae consubstantiales et sunt in eo-
dem genere per reductionem” (I Sent., 3, 2, 1, 3, Concl., t. I, 86).

8 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


dos filósofos antigos recolhido pelos místicos — têm duas
direções gerais, para as coisas temporais e para as eternas,
o fundo do sujeito (  , segundo a expressão
de Diádoco de Fotiqué)17 pode aparecer sob dupla matiza-
ção: quer presidindo ou ordenando o multifacetado edifício
psicológico vertido para as coisas temporais, quer olhando
com olho espiritual simples as coisas invisíveis, sendo nes-
te caso denominado acies mentis, ponta mental, capaz de
captar dados espirituais puros.18 Esta acies mentis, ponta es-
piritual, corresponde ao      dos gregos.19 Só
da realidade dessa ponta ou fundura pode o sujeito afirmar
outros sujeitos em sua mesma categoria de seres pessoais.
E, como o fundo da alma é também um cimo,20 só subindo
na intimidade até essa ponta espiritual e abrindo-se dela
ao outro pode o sujeito transformar-se no amado e partici-
par de sua excelência. A intimidade estréia como autoposse
consciente e se coroa como amor. Esse fundo da intimi-
dade surpreendida em seus atos, ao mesmo tempo profun-
dos e elevados, de entender e querer foi chamado também
scintilla,21 chispa, centelha espiritual, rápida e certeira ao

17 - Cem Capítulos sobre a Perfeição, PG., 65, c. 1175; texto grego editado em
Florença em 1572.
18 - Santo Agostinho, De Trin., 12, c. 14, n. 23; Conf., 7, c. 17, m. 23; Enarr. in
Ps. 41, n. 10.
19 - Este é outro modo de indicar a potência espiritual que também foi
chamada, às vezes, de animus, justamente quando se queria sublinhar
seu elemento afetivo; daí que fosse traduzida pela palavra alemã Gemüt,
que indica não só uma emoção passageira e superficial, mas um senti-
mento profundo e permanente.
20 - Assim o reconheceu São Boaventura: “In anima humana idem est
intimum et supremum, et hoc patet quia secundum supremum suum,
anima animae approximat Deo, similiter secundum intimus; unde quan-
to magis redit ad interiora, tanto magis ascendit et unitur aeternis. Et
quia solus Deus superior est mente humana, secundum sui supremum
solus Deus potest mente esse intimus, et ideo illabi spiritui rationalis
est divinae substantiae proprium” (II Sent., dist. 8, t. II, 226, b).
- Martin Grabmann, “Die Lehre des hl. Thomas von der scintilla animae
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in ihrer Bedeutung für die deutschem Mystik im Predigerorden”, Jahrb.
Phil. und spek. Theologie, 24 (1900), 413-427.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 9


mesmo tempo.22 Santa Teresa se referia a essa aguçada rea-
lidade como “uma coisa muito profunda”, cujos conteúdos
“estão no interior de sua alma, no mui muito interior”; 23
palavras que rematam a expressão paulina “homem inte-
rior”,     , que significa o eu ou a mente, o
 .24
Do acima dito depreende-se que para penetrar na intimi-
dade se necessita de uma prática, a saber, o método da interio-
ridade. Os autores medievais inspirados em Santo Agostinho,
como Hugo de São Vítor, não deixaram de indicá-lo: o su-
premo não está no vértice do céu, mas no íntimo do homem
mesmo; a realidade mais alta não é visualizada se o sujeito não
entra em si mesmo (intrare ad semetipsum) e, depois de entrar,
se transpassa a si mesmo de modo inefável no interior da alma;
não se alcança a verdade senão entrando no próprio interior e
penetrando-se intrinsecamente.25
Pouco ou nada tem que ver esta determinação da inte-
rioridade humana, como intimidade, com as predisposições
caracteriais ou temperamentais que um indivíduo tem para a
introversão em face das disposições de outro sujeito para a ex-
troversão. Jung e Rorschach, por exemplo, estudaram detida-
mente essas disposições.
Mas a intimidade é própria de todo e qualquer indivíduo,
seja introvertido, seja extrovertido. O mesmo se deve dizer, a
propósito da caracterologia de G. Heymans, sobre a diferença
22 - “Raptim et quasi sub quodam coruscaminhe scintillulae transeuntis”
(São Bernardo, Cant., 18, 6. PL., 183, c. 862). Também se pode ver esta termi-
nologia em Eckehart, Sermão 8 sobre o castelo da alma (edição de Pfeiffer,
t. II, 42-47; corrigido por Quint em Die Überlieferung der Deutschem Predig-
tem Meister Eckeharts, Bonn, 1932, 160). Igualmente em Tauler (Predigten, ed.
Vetter, 347, 9).
23 - Libro de las Moradas. Moradas séptimas, cap. 1, n. 7.
24 - Rom., 7, 17-25; II Cor., 4, 16-18; Eph., 3, 16.
25 - “In spiritualibus ergo et invisibilibus, cum aliquid supremum dici-
tur, non quasi localiter supra culmen aut verticem coeli constitutum, sed
intimum omnium significatur. Ascendere ergo ad Deum hoc est intrare
ad semetipsum, et non solum ad se intrare, sed ineffabili quodam modo in
intimis etiam seipsum transire. Qui ergo seipsum, ut ita dicam interius
intrans et intrinsecus penetrans transcendit, ille veraciter ad Deum ascen-
dit” (De vanitate mundi, 2. PL. 176, c. 715, B-C).

10 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


entre caracteres primários, que se desligam facilmente de seu
passado, e caracteres secundários, que retêm por longo tempo
os sentimentos que os paralisam. Não se deveria dizer que es-
tes têm intimidade e aqueles não. A intimidade não é questão
apenas de natureza, mas também de hábito ou atividade livre
estabilizada, como veremos.
Tampouco se deve confundir a intimidade com o reduto
que, por exemplo, um misantropo busca, quando foge do orbe
social e do mundo exterior. A isenção do mundo exterior não
é uma garantia absoluta para a floração e o alargamento da
intimidade. E o mesmo se teria de dizer dos comportamen-
tos que, por princípio, pretendem desligar-se do próprio corpo
com fins típicos de um espiritualismo exagerado ou de uma
adesão ao nirvana. Nem o vazio nem o nada são as contrapar-
tidas ao mundo externo e ao corpo próprio.26 Uma coisa é a
aniquilação, e outra a superação de obstáculos que perturbam
a existência superior.27 A intimidade implica certa espessura
de conteúdos, próprios da realidade e da vida.
3. Precisamente a primeira acepção de “intimidade”
oferecida por nossos dicionários a apresentam não como
reserva encapsulada em si mesma, mas como interioridade
relacionada, “íntima amizade”, sendo íntimo “o mais inte-
rior ou interno”; de modo que, nesta acepção, intimidade
equivale ao âmbito operativo do que Santo Tomás chama
“amor perfeito” ou de doação, o de uma amizade referida a
pessoas, em contraposição ao amor imperfeito ou de posse,
que, referido a coisas, pode obstruir a relação pessoal com
o outro. Alguns de nossos clássicos, quando têm de com-
parar as mais altas atividades intelectuais com as volitivas
ou afetivas, reservam o termo “íntimo” para designar o lado
afetivo, ao passo que preferem o termo “profundo” para o
lado teórico; e assim lemos no Padre Granada: “Mas esta
graça mais se alcança com íntima compunção que com pro-

- H. de Lubac, Aspects du bouddhisme, 156.


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- W. R. Inge, The Philosophy of Plotinus, t. 2, 159.
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O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 11


funda especulação”.28 Ou na expressão de Santa Teresa: “É no
mais íntimo da alma esta satisfação, e não sabe por onde nem
como lhe veio”.29 Daí que, neste sentido, “íntimo” se aplique
à amizade muito estreita e ao amigo com que há profunda “re-
lação” ou “familiaridade”. Portanto, em sua primeira acepção,
não parece que se deva desvincular a intimidade das respostas
afetivas. Uma coisa é dar-se bem, e outra amistar-se.
Em uma segunda acepção, os dicionários circunscrevem
a intimidade à “parte personalíssima, comumente reservada,
das questões, desígnios ou afecções de um sujeito ou de uma
família”: trata-se também de um âmbito operativo de índole
intelectual (desígnios) ou volitiva (afecções), tanto teórica
como prática (questões), âmbito reservado e muito peculiar,
que distingue a vida privada da vida pública.
4. Integrando as indicações filológicas e históricas num
contexto antropológico sistemático, a intimidade deve ser
definida do ângulo do processo de autoconstituição da perso-
nalidade, pois a personalidade se constrói, sendo a intimida-
de recorrência da personalidade; e, como a intimidade é uma
dimensão própria e formal de um ser racional, sua recorrên-
cia acontece conforme a atividade formal da razão humana,
que é ordenar e centrar: o irracional carece de centro e de
ordem. O mais íntimo é a ordem centrada da personalida-
de em suas atividades mais elevadas e profundas, as de en-
tender — intuindo e raciocinando — e querer — amando e
desejando. Quem abre sua intimidade para outro no amor
se auto-explica como ser racional. Uma personalidade des-
centrada e desordenada em suas atividades específicas mal
possui intimidade, e pouco tem que comunicar no amor.
Mas, por sua vez, na medida em que o outro me ama verda-
deiramente, me ajuda a me centrar e a me ordenar. E sem
amor tampouco conseguiria eu uma centração ordenada. O
amor que o outro verte para mim me desperta para o meu
melhor eu. E vice-versa.

- Mem. vida crist., 7.1, § 3.


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29 - Vida, 14.

12 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


Na intimidade as atividades se ordenam em torno de um
centro, o eu, conforme a índole da pessoa. Mas não se deve
confundir a intimidade com o eu. Pode haver um centro, um
eu, com pouca intimidade.

c) Êxtase

1. O êxtase é entendido por Santo Tomás em seu sentido


etimológico, como saída de si (excessum a seipso)30 ou aliena-
ção (quamdam alienationem),31 êxodo para o outro (extra se
positionem),32 para o amado (ponit amantem extra seipsum).33
Nesta caracterização — que converte em análogo o termo êx-
tase — entra uma multidão de fenômenos que, partindo do
sensível, culminam em certa elevação acima deste, seja místi-
ca ou não. Desse modo, o Aquinate se distancia de um concei-
to unívoco de êxtase.34
Quando o Aquinate usa a palavra êxtase para indicar esse
efeito do amor, assume no plano filosófico o núcleo do que na
tradição religiosa de alguns povos, e especialmente no cristia-
nismo, se entendeu substancialmente por tal fenômeno psíqui-
co: a saída das faculdades superiores do homem — inteligência
e vontade — para uma realidade boa extra-subjetiva. O Aqui-
nate fala como teólogo ao dizer que há êxtase quando “alguém
é elevado pelo espírito divino a uma esfera sobrenatural, não se
misturando nisso os sentidos”.35 Por um lado, negativamente a
alma fica separada dos sentidos, sem entrar em relação com o
mundo exterior; e, por outro lado, positivamente é elevada por

30 - S. Th., II-II, 175, 2 ad 1.


- S. Th., I-II, 28, 3 ad 1.
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32 - III Sent., d. 27, q. 1, a. 1 ad 4.
33 - In De divinis nominibus, 4, lect. 10.
34 - Como o de São Boaventura, que designa um fenômeno essencialmente
místico: “Ecstasis... est alienatio a sensibus et ab omni eo quod est extra, et
conversio ad Deum qui est intra” (São Boaventura, Sermo de Sabbato Sancto,
1, 2, t. 9, p. 269a).
35 - “Aliquis spiritu divino elevatur ad aliqua supernaturalia, cum abstrac-
tione a sensibus” (S. Th., II-II, 65, 1).

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 13


uma força divina aos bens superiores. O êxtase não é uma sim-
ples morte dos sentidos, mas uma vida mais intensa no bem.
O êxtase tampouco é o mero rapto ou concentração da
atenção ou o alheamento num tema importante ou subjugan-
te; porque nestes casos o sujeito está perto de um objeto subli-
me ou importante — o foco da consciência não é constituído
por objetos triviais, sejam externos ou internos —, mas não
num plano transobjetivo ou transcendente, como acontece no
êxtase.36
Se deixarmos de lado os efeitos “negativos” sobre o corpo
que proverbialmente foram atribuídos ao êxtase (v.g., a imo-
bilidade marmórea dos membros, a insensibilidade dos órgãos
perceptivos, a comoção alegre ou temerosa do rosto alucinado,
os eflúvios luminosos no rosto e nas mãos, o calor interior,
a leveza ou levitação corporal e, em outros casos, a peso dos
membros), fixando-nos nos efeitos que produz sobre a alma,
que são os mais importantes no nosso caso, havemos de dizer
que, segundo a tradição ocidental, o êxtase provoca um agu-
çamento da faculdade intelectual e da volitiva para penetrar
numa realidade mais elevada. Aguça-se a inteligência para
chegar, mediante uma simples visão e com evidência cabal,
sem necessidade de fatigantes raciocínios, a uma realidade
extramental inaudita — passada, presente ou futura — mas
verdadeira, adquirindo inclusive idéias antes inexistentes na
alma. Oferece-se a própria vontade à nova realidade, que se
apresenta iluminada e sustida pela inteligência. Ainda que
essa oferta seja uma obediência à idéia intuída, trata-se sempre
de um ato espiritual pelo qual a alma se eleva acima de suas

36 - Entre a extensa bibliografia sobre o fenômeno do êxtase, limito-me a ci-


tar algumas obras fundamentais que, por sua vez, contêm amplas referên-
cias bibliográficas: W. R. Inge, Christian Mysticism; Th. Achelis, Die Ekstase
in ihrer kulturellen Bedeutung, 1902; A. Saudreau, Les faits extraordinaires de la
vie spirituelle; R. A. Nicholson, Studies in Islamic Mysticism; J. Maréchal, Étu-
des sur la psychologie des mystiques; A. Mager, Mystik als seelische Wirklichkeit;
Ph. de Félice, Foules en délire. Extases collectives. Essai sur quelques formes infé-
rieures de la mystique; M. Eliade, Le chamanisme et les techniques archaïques de
l’extase; J. Lhermitte, Mystiques et faux mystiques, Paris; L. Gardet, Expérien-
ces mystiques en terres non chrétiennes; E. Arbman, Ecstasy of religious trance;
H. Cancik (ed.), Rausch-Ekstase-Mystik. Grenzformen religioser Erfahrung.

14 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


limitações para adornar-se de dons superiores, ou seja, para
fincar-se firmemente no bem.
Dos efeitos espirituais do êxtase, o mais importante, como
sublinha o Aquinate, é o concernente à vontade, que é trans-
formada pelo bem que se lhe apresenta. Assim, o êxtase sobre-
natural é explicado como um efeito da ação divina que alarga
a inteligência e provoca o amor da vontade; de modo que faz
parte da contemplação perfeita, ou seja, de um conhecimen-
to essencialmente amoroso. Nada tem de estranho que, sendo
este o efeito principal do êxtase sobrenatural, também seja as-
sinalado por Santo Tomás para determinar o efeito do amor
sobre a vontade, chamando-o igualmente êxtase, mas desta
vez filosoficamente, em sentido puramente natural e pessoal,
alheio agora a influxos ou repercussões extranaturais.
O amor é uma “saída” que o sujeito faz com sua vontade,
guiada por sua inteligência — núcleos da intimidade —, para
o amado, vislumbrado este como bem perfeito, real.

3. O realismo do amor

1. A determinação do amor como resposta da intimidade


sublinha o sentido do realismo clássico em contraposição ao
idealismo moderno. O suposto ontológico do amor é a realida-
de do outro. Se o sujeito amante fosse pura liberdade de criar
ou fingir a consistência do outro, careceria de sentido o amor
como êxtase da intimidade. Na pessoa do “outro” está o objeto
formal do amor perfeito: ama-se algo porque é bom, porque
encarna a índole do bem: “Algo é amado enquanto tem a ín-
dole de bem”.37 O que não equivale a afirmar a prioridade do
amor interessado e a subordinação do bem ao sujeito amante.
Porque o bem não é bom porque seja apetecível, mas é apete-
cível porque é bom. Afirmar que o bem é o objeto formal do
amor é fundar não só o caráter extático ou desinteressado do
amor, mas fundar o amor pura e simplesmente. E, se o suposto

37 - S. Th., II-II, 26, 2 ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 15


ontológico do amor é a realidade do outro, segue-se que a von-
tade nunca é criadora de seu objeto, mas somente capacidade
de alcançá-lo e de unir-se a ele. Se o bem é um valor em si,
exige ser querido como tal, sob pena de já não ser o bem. Mas
o bem não se dá verdadeiramente como bem senão quando
o amor o toca precisamente sob a índole de bem (sub ratio
boni), ou seja, quando há um sujeito inteligente que assim o
capta ou compreende: se o homem não tivesse inteligência
(ou razão), jamais saberia o que é o bem, e nunca apeteceria o
bem em sua própria natureza, como bem absoluto, não relativo
a um sem consciência intelectual. “O que é objeto do apetite
sensível imediato é considerado bom porque é desejado. Mas
o que é objeto para a vontade, tendência intelectual, é dese-
jado por ser bom em si mesmo.”38 E isso porque o apetecido
sensorialmente é o prazeroso para os sentidos; mas o apeteci-
do pela vontade não é considerado bom porque causa prazer,
senão que é apetecido porque é bom (quia bonum), porque
é uma realidade objetiva que vale para e por si mesma: “O
conhecimento sensível não alcança a razão comum de bem;
só alcança um bem particular, que é o deleitável. Também no
plano do apetite sensível, tal como se encontra nos animais,
as operações são buscadas pelo prazer mesmo. A inteligência,
ao contrário, capta a razão universal de bem, cuja obtenção é
seguida do gozo; assim busca ela o bem com anterioridade ao
gozo”.39 Tipos do amor despertado na vontade são o amor be-
nevolente e o amor íntimo, este último como amistoso, como
esponsalício ou como paterno e filial.
3. Tanto no amor benevolente quanto no amor íntimo o
homem encontra seu bem humano e perfeito afirmando o bem;
e isso não faz que o bem seja o bem porque é o bem do homem,
mas porque simplesmente é o bem, um absoluto, como a ver-
dade e como o ser, convertível inclusive com eles. O fato de
o sujeito humano buscar o bem não expressa uma natureza
centrípeta, dobrada sobre si mesma. O sujeito ama o bem não

38 - In Metaph, 12, 7, 2522.


39 - S. Th., I-II, 4, 2 ad 2.

16 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


por ser “seu” bem (quia suum est), mas por ser “bem” (quia bo-
num est). Esse é o sentido da tese tomista de que o bem é per
se, de si, o objeto da vontade.40 Qualificar o bem somente em
referência ao sujeito humano que o deseja é convertê-lo num
valor subjetivo e não num absoluto metafísico. Se a felicidade
de um ser consiste na realização de sua natureza, e se o próprio
da natureza espiritual do homem é ser referida ao bem como a
um absoluto, então a felicidade do homem é conseguida me-
diante o amor ao bem por si mesmo. “O amante se devota
por amor a agir conforme a exigência do amado (per amorem
ad operandum secundum exigentiam amati). E esta operação
lhe é maximamente prazerosa, como o conveniente à sua for-
ma (maxime delectabilis, quasi formae suae conveniens).”41
Quando amo verdadeiramente a mim mesmo, ou quando amo
outra pessoa, o motivo formal de tal amor é sempre o mesmo: o
absoluto do bem que cada um realiza. Eu mesmo posso ser para
mim sujeito amante e sujeito amado, olhando-me com amor
perfeito como ao melhor bem que sou para mim. Se não fizesse
assim, não amaria o verdadeiro bem, nem poderia exercer nun-
ca um amor perfeito pelo bem em si mesmo, ali onde este se
desse. É por esta óptica que se deve entender a determinação do
amor esponsalício: “O amor que alguém tem a si mesmo é o mo-
tivo do amor que se tem à esposa, a saber, segundo a índole de
bem” (dilectio quam aliquis habet ad seipsum é ratio dilectionis
quae habetur ad uxorem, secundum scilicet rationem boni).42
No entanto, o bem é apenas a ratio diligendi, a razão de amar, o
motivo ou o objeto formal, mas não o termo do amor: esse ter-
mo é um sujeito, uma pessoa; há um sujeito que exerce o amor
e outro sujeito que o recebe. Não se ama um bem abstrato, mas
um bem concreto, com nome e sobrenomes. Nem sequer são
amadas primariamente as qualidades boas do outro ou as virtu-
des louváveis que ele tem: ama-se o “outro” como sujeito de tais
qualidades, sujeito que se abre como real intimidade.

40 - II Sent., dist. 3, q. 4, ad 2.
41 - III Sent., dist. 27, q. I, art. 1.
42 - S. Th., II-II, 26, 11 ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 17


***

A primeira parte deste livro, e admitido que é o objeto


e não o sujeito o que torna ontologicamente extático e de-
sinteressado o amor, desenvolve por um duplo aspecto, feno-
menológico e ontológico,43 o sentido humano da intimidade,
do êxtase e do amor perfeito, explorado este último pelo pris-
ma da tensão entre doação e posse. Esta parte tenta dotar de
bases ontológicas clássicas as descrições fenomenológicas do
amor realizadas por alguns contemporâneos, como Scheler e
­Hildebr­and.
A segunda parte, cingida aos passos do discurso ontológico
do Aquinate sobre o amor, volta a esses temas expondo tec-
nicamente a essência, a causa e os efeitos do amor, tanto do
amor sensível como do espiritual. Assunto decisivo é saber,
nessas três questões, de que maneira o bem provoca e motiva
realmente o amor. Porque um amor que não fosse motivado
não seria, em verdade, estimulado por nada, não seria uma res-
posta e, portanto, seria impossível. Por isso o amor é, de si, um
êxtase, um êxodo da vontade para o ser bom existente. Se não
o fosse, não haveria amor.

43 - Com o fim de centrar a ontologia fenomenológica do amor, deixo de


lado reflexões de índole metafísica, próprias também do Aquinate, tais
como as referentes à confluência entre a doutrina do amor e a teoria da
participação do ser (esse) e a limitação do ato pela potência na ordem do
apetecer humano: desta perspectiva, o amor aparece como força que tende
a ultrapassar as limitações da matéria; a união afetiva do amor pode ser
explicada metafisicamente como união participativa enraizada numa mes-
ma forma. Este tipo de reflexão metafísica foi estudado, entre outros, por
Gilson, Fabro e De Finance, cuja relação bibliográfica não é deste lugar.

18 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


PRIMEIRA PARTE
INTIMIDADE, ÊXTASE E AMOR
Capítulo I
Pessoa e amor
I - Pessoa e Amor

1. Concepção física e concepção personalista do amor

Com freqüência se lê que o Aquinate tinha do amor uma


concepção física, afastada de uma visão personalista. Foi Rous-
selot quem pôs em circulação a tese de que entre os pensadores
dos séculos xii e xiii havia duas teorias, opostas, sobre o amor:
a física e a extática. Ainda que já tenham ficado bem para trás
os motivos desta polêmica, mantém-se ainda de pé o núcleo
ontológico que a animava e que percorre continuamente os
nossos dias. Por isso não é ocioso recordá-la.
1. A concepção física — chamada greco-tomista e repre-
sentada, segundo Rousselot, por Hugo de São Vítor, por São
Bernardo e pelo próprio Tomás de Aquino — fundaria “todos
os amores reais ou possíveis na necessária inclinação que os
seres naturais têm a buscar seu próprio bem. Para esses autores,
há entre o amor de Deus e o amor de si uma identidade pro-
funda, ainda que secreta, que faz deles a dupla expressão de um
mesmo apetite, o mais profundo e o mais natural de todos, ou
melhor, o único natural [...]. Santo Tomás, inspirando-se em
Aristóteles, extrai daqui o princípio fundamental, mostrando
que a unidade (e não tanto a individualidade) é a razão de ser,
a medida e o ideal do amor; restabelece, de uma só vez, a con-
tinuidade perfeita entre o amor de concupiscência e o amor
de amizade”.44 Tampouco haveria separação entre apetite e
amor. O apetite natural de cada ser por seu bem seria a forma
fundamental e única do amor, porque é o motor exclusivo da
vida afetiva. O apetite natural do homem coincidiria no fun-
do com o amor desinteressado ao bem de Deus, assim como o
amor desinteressado que alguém professa a outra pessoa, ainda
que tivesse de sofrer sacrifícios corporais, seria uma forma de
amor de si. Não é possível um amor que não seja egocêntrico:
o amor de outro se reduz ao amor de si.
A concepção física do amor terminaria, pois, numa espécie
de ex abrupto antropológico: o amor é a busca de nosso bem,
ou seja, o amor é sempre amor de si, pois tem por objeto o

44 - P. Rousselot, Pour l’histoire du problème de l’amour au moyen âge, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 21


Juan Cruz Cruz

bem próprio do sujeito; e, como o bem próprio do sujeito é a


felicidade, fim último que especifica a tendência da vontade,
então o amor de si é a medida de todos os outros amores e os
ultrapassa em tudo. E, quando Santo Tomás “parece às vezes
pôr no velle bonum a última palavra do amor, quer afirmar a
mesma coisa com outros termos, pois ‘o bem’ não pode ser des-
crito senão como o objeto dos desejos naturais: id quod omnia
desiderant”.45
2. Na concepção extática, em contrapartida — represen-
tada por alguns místicos dialéticos cistercienses e franciscanos,
inspirados em São Vítor e Abelardo —, já não é compatível
o amor desinteressado com o apetite do bem do ser amado.
Cortam-se todos os laços que parecem unir o amor de outro às
inclinações egoístas: o amor é tanto mais perfeito quanto mais
fora de si põe o sujeito. Haveria uma dualidade de amores: mas
o verdadeiro amor já não é o que todo ser natural refere neces-
sariamente a si mesmo. “O amor é ao mesmo tempo extrema-
mente violento e extremamente livre: livre, porque não tira
sua razão de ser senão de si mesmo, pois é independente dos
apetites naturais; violento, porque vai ao encontro dos apeti-
tes, os tiraniza, e não parece descansar enquanto não destrói o
sujeito amante, absorvendo-o no objeto amado. Sendo assim,
não tem outro fim além dele mesmo, sacrifica a si tudo no ho-
mem, até a felicidade e até a razão.“46 O apetite é centrípeto;
o amor, centrífugo. Ficariam, pois, separados o âmbito do ape-
tite (pelo qual todo ser é conduzido a seu bem) e o âmbito do
amor. Por apetite se designaria então o conjunto de concupis-
cências que, estando inscritas em nossa natureza e sendo tão
necessárias quanto à natureza mesma, nos levariam aos bens
que nos faltam, satisfazendo nossas ânsias de bem-estar e felici-
dade. O amor, em contrapartida, não agiria impelido por uma
natureza que, como a nossa, pretende seu acabamento: seria o
sentimento que nos invade diante de uma pessoa amada e nos
lança para ela, ocupando-se do bem do ser amado, sem ligar-

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- P. Rousselot, 9-10.
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- P. Rousselot, 4.

22 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

se à concupiscência de nossa felicidade. Amaríamos por pura


gratuidade, livremente, sem outra razão além do nosso mesmo
amor. Nossa vida, posta a serviço do amor, deveria ser um luta
contra os apetites e o egoísmo.
É claro, assim, que a noção de um amor puramente “ex-
tático” ou desinteressado, como suscita Rousselot, se choca
frontalmente com a suposta concepção “física” do apetite em
Santo Tomás, para quem o amor de si seria o fundo de todas
as tendências naturais: um amor desinteressado não poderia
ser amor. Os que defendem a concepção extática rejeitam por
isso a identificação do amor e do apetite: “o amor vai de uma
pessoa para uma pessoa, mas violentando as inclinações inatas
e ignorando as distâncias naturais, como uma pura tarefa de
liberdade”.47 A idéia de pessoa domina aqui a idéia de nature-
za: e o amor começa ali onde termina o apetite (a natureza).
Rousselot interpreta que o amor desinteressado a Deus sai,
segundo o Aquinate, da concupiscência de nosso bem, a qual,
a título de apetite natural, seria nosso primeiro amor, a medida
de todos os outros, e dele todos os outros seriam participações
e imitações. De modo que “Santo Tomás tenta conciliar essas
duas afirmações opostas em aparência: 1.ª o amor desinteres-
sado é possível e até profundamente natural; 2.ª o amor pura-
mente extático, o amor de pura dualidade, é impossível”.48
3. Interpretações dicotômicas parecidas com a proposta por
Rousselot não foram raras no pensamento contemporâneo. Já
Max Scheler, em sua obra Vom Umsturz der Werte, indicava
que para os gregos o  era como um aspirar e necessitar, um
tender o inferior ao superior, o imperfeito ao perfeito; o amor é
só um método ou um momento destinado a desaparecer assim
que a coisa amada é possuída; de modo que a divindade não
ama, mas apenas move o mundo como primeiro motor e o as-
pira para si assim como o amado move o amante: “O amor é
aqui tão-somente o princípio dinâmico do cosmos, que anima

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- P. Rousselot, 56.
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- P. Rousselot, 14.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 23


Juan Cruz Cruz

este vasto Agon das coisas para a divindade.”49 Mas com o cris-
tianismo se inverte a direção, que agora vai do superior para o
inferior, do rico para o pobre, não para receber, mas para dar; e
Deus não só não permanece à margem do amor, mas é definido
em sua essência pelo amor: “Eis uma inovação: na concepção
cristã, o amor é um ato não da sensibilidade, mas do espírito
(não um mero estado afetivo, como para os modernos), sem
ser por isso tendência ou desejo nem, menos ainda, necessida-
de. Pois, enquanto esses atos se esgotam e se consomem com
a realização de sua tendência, o mesmo não acontece com o
amor. O amor cresce com sua ação”.50
Outra obra que defende uma interpretação dicotômica do
amor é a já famosa Eros und Agape,51 de Anders Nygren, que
se volta em tom de reprovação para aquele traço de realiza-
ção própria que, segundo Santo Tomás, o amor implica, argu-
mentando que o Aquinate tinha convertido o amor entregue
(Ágape) da mensagem bíblica em amor-próprio,52 em Eros.
Ágape é amor desinteressado e desprendido, pois age sem mo-
tivos nem causa, sendo assim independente; Eros é interessado
e age por motivações e com causa, sendo por isso dependente
e egocêntrico. Ágape parte de uma plenitude, razão por que se
dá e exclui todo e qualquer amor-próprio; Eros parte de uma
indigência, razão por que se impõe e se move por exigência de
felicidade e recompensa. Ágape arrisca e entrega a vida; Eros
quer ganhar a vida. Ágape é espontaneidade espiritual; Eros é
conveniência e arranjo. Ágape é criador de valores: ama e de-
pois constata existências; Eros pressupõe valores e é determi-
nado pelo bom e pelo belo: primeiro localiza os seres e depois
ama. O Aquinate teria introduzido o Ágape no mesmo movi-
mento do Eros, não deixando lugar para o verdadeiro amor.
Segundo Nygren, foi Lutero quem poliu a idéia de Ágape e
a pôs em circulação dentro de nossa cultura, em contraposição
49 - Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 72.
- Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 73.
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n, Eros und Agape. Gestaltwandlugen der christlichen Liebe,
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- Anders N�������
ygre���
2 vols.
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- Anders Nygren, II, 465.

24 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

a toda e qualquer entronização do Eros. Este autor chega até a


simplificar a substância do catolicismo e do protestantismo sob
os termos respectivos de Eros e Ágape.53 Nygren se apresenta-
va como um teólogo que se sentia incômodo com os conceitos
emprestados por sistemas filosóficos estranhos à teologia, e op-
tou por uma exegese cingida às fontes da Revelação. A seu ver,
não é possível integrar a idéia de Ágape numa metafísica do
ser, pela heterogeneidade intelectual em que ambas as funções
se encontram.
Não estava sozinho Nygren nessa valoração negativa do
Eros. Na mesma época, publicaram-se, entre outras, a obra
francesa de Rougemont54 e as alemãs de Scholz,55 Grünhut56 e
Brunner,57 que argumentavam em tom parecido.

2. Articulação psicológica das tendências “naturais”

a) Inclinação, apetite e vontade

1. Concorda com a doutrina do Aquinate a interpreta-


ção que Rousselot faz da concepção física do amor, mesmo
supondo que esta seja coerente? Não fica de pé, dentro
do enfoque histórico, uma questão ontológica, a que con-
cerne à idéia de apetite, tomada por Rousselot como uma
noção unívoca e fechada? Este autor deixa de lado as dis-
tinções feitas por Santo Tomás entre as diferentes formas
de apetite (natural, sensível e espiritual) e entre os tipos
de relação que unem o apetite a seu objeto, que é o bem,

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- Entre as principais réplicas documentadas à obra de Nygre, devem ser
citados os seguintes livros: J. Burnaby, Amor Dei; M. C. D’Arcy, The Mind
and Heart of Love: A Study in Eros und Agape; V. Warnach, Agape. Die Liebe als
Grundmotiv der neutestamentlichen Theologie.
- Denis de Rougemont, L’Amour et l’Ocident.
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- Heinrich Scholz, Eros und Caritas. Die platonische Liebe und die Liebe im
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Sinne des Christentums.
- L. Grünhut, Eros und Agape. Eine metaphysisch-religionsphilosophische
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Untersuchung.
- Emil Brunner, Eros und Liebe.
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O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 25


Juan Cruz Cruz

tratando como equivalentes as noções de apetite, amor e


felicidade.58
Nem as tendências nem os correspondentes afetos são en-
focados por Santo Tomás de uma óptica que hoje chamaría-
mos psicológica — convertível com o tema do aparecimento
fenomênico dos instintos, das emoções, dos sentimentos ou
das paixões, bem como de suas correspondentes intensidades;59
seu interesse por esses fatos é, em primeiro lugar, ontológico:
pergunta por sua essência ou natureza, por suas causas e efeitos
e por suas divisões categoriais.60 Traça, pois, uma ontologia re-
gional da tendência humana e seus afetos, como investigação
que deve servir necessariamente de suporte à psicologia e à
ética. Que tipo de enfoque ontológico é este?
Para Tomás de Aquino, o homem é um ser em busca per-
manente: aspira, pretende, move-se à consecução de algo. De
cada uma das camadas de seu ser brota uma correspondente
tendência. Esta emite uma resposta, que deve chamar-se afe-
tiva, ocasionada pela repercussão nela de um agente, bom ou
mau, externo ao sujeito: o afeto é um ato ou movimento da
tendência. As respostas afetivas foram chamadas em geral pai-
xões pelos medievais.61 A primeira e mais básica resposta afe-

- Louis-B. Geiger, Le problème de l’amour chez Saint Thomas d’Aquin, 28.


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- Peter Lauster, Die Liebe. Psychologie eines Phänomen; Niklas Luhmann,
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Liebe als Passion. Zur Codierung von Intimität.
60 - Para uma história filosófica do conceito de amor, pode-se ver: Michael
Theunissen, Der Andere. Studien zur Sozialontologie der Gegenwart; Bernhard
Welte, Dialektik der Liebe; Helmut Kuhn, “Liebe”. Geschichte eines Begriffs;
Georg Gebhardt/Philipp Seif (ed.), Was heißt Liebe? Também devem ser leva-
dos em consideração alguns estudos que, com interesse teológico, enfocam
historicamente o problema terminológico do amor nos textos das Sagradas
Escrituras, como o de M. Paeslack, “Zur Bedeutungsgeschichte der Wörter
Philein, Lieben, Philía, Liebe, Freundschaft, Philo, Freund in der Septuaginta
und im Neuen Testament unter Berücksichtigung ihrer Beziehungen zu
Agapan, Agape, Agapetos”, Theologia Viatorum, V, 1954, 51-142.
61 - No pensamento moderno, a “paixão” torna-se um excesso emocional
que absorve em sua manifestação quase todas as forças psíquicas, pertur-
bando até o percurso normal do pensamento. Em contrapartida, para um
medieval o nome “passio” vem do fato normal de que o homem (ou o ani-
mal), quando apetece uma coisa, se sente atraído por ela, padece um influxo
do objeto: nam pati dicitur ex eo quod aliquid trahitur ad agentem (S. Th., I-II,
22, 1). Trata-se de uma resposta psíquica à presença do objeto. No caso de
a resposta ser sensível, acompanha-se também de uma especial modificação

26 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

tiva é o amor como orientação afirmativa de um sujeito para


o objeto.
Em verdade, as efetivas tendências do homem para a rea-
lidade que o circunda são chamadas por Santo Tomás, de ma-
neira genérica, “apetites”. No uso lingüístico do Aquinate, o
termo “apetite” é tomado de três maneiras. Em sentido geral,
chama-se “apetite natural” quando expressa a relação de com-
plementaridade ontológica que todo ser busca em sua ordem
entitativa. Em sentido particular, chama-se “apetite sensível”
quando expressa na ordem operativa uma tendência guiada
pelo conhecimento sensível; ou “apetite intelectual” quando
expressa, também na ordem operativa, a tendência motivada
por um conhecimento intelectual.62
Doravante, usarei preferencialmente o termo “inclinação”
para indicar o apetite natural, chamando simplesmente “ape-
tite” ao apetite sensível, e “vontade” ao apetite intelectual.
Por sua vez, o amor segue, em Santo Tomás, o mesmo destino
lingüístico que o apetite de que é resposta afetiva: haveria, em
sentido metafórico e impróprio, um amor natural; em sentido
próprio e unívoco, um amor sensível; e em sentido próprio e
análogo, um amor espiritual.
2. Como se articula o amor nas tendências humanas, sendo
o objeto que as motiva ou excita o bem (ou o mal), em tudo
o que elas possuem de movimento e tensão? Em uma tendên-
cia qualquer, podem discernir-se três elementos: o sujeito da
tendência, o termo como bem ou fim, e a tendência mesma
que une dinamicamente o sujeito e seu bem. A existência da
tendência manifesta uma relação de complementaridade entre
o sujeito e seu fim ou bem, relação fundada no ser de ambos:
um é bem do outro porque lhe assegura sua perfeição. O que
motiva uma tendência?63

orgânica (respiração, movimento do coração, pressão arterial, etc.), o que


não acontece necessariamente nas respostas afetivas espirituais.
62 - S. Th., I, 80-81.
63 - S. Th., I-II, 26, 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 27


Juan Cruz Cruz

a) Há uma tendência que não é motivada pelo conheci-


mento do sujeito: é espontânea e inconsciente, implícita no
dinamismo deste, tendência que se chama natural; pois as coi-
sas naturais tendem ao que lhes convém segundo sua nature-
za. Tal tendência natural é uma inclinação, e tem, em grande
parte, caráter centrípeto e impessoal, por sua índole física ou
natural. É impróprio e metafórico o uso que aqui se pode fazer
do termo apetite, porque nos seres privados de conhecimento
tal apetite ou tendência se identifica com a natureza mesma
do ser, com a ordem natural à sua perfeição. Cada ser requer
e busca sua complementaridade ontológica, seu fim, seu bem,
sua perfeição, expressável ontologicamente nas relações reais
da potência ao ato, do perfectível à perfeição. O sentido do
ato e da perfeição de cada ser, ademais, não se esgota no ponto
de sua individualidade, porque com sua ação concorre para a
harmonia do universo. Por isso diz o Aquinate que na incli-
nação natural há um aspecto centrípeto e outro centrífugo,
dimensões ontológicas que não devem ser confundidas com as
direções morais do egoísmo e do altruísmo: “A inclinação de
uma coisa natural se dirige a dois termos: a mover-se e a agir
(moveri et agere). A inclinação natural orientada a mover-se
é em si mesma centrípeta (in se ipsa recurva est), assim como
o fogo se move para cima para conservar-se. Mas a inclinação
natural orientada a agir não é centrípeta em si mesma (non est
recurva in se ipsa), pois o fogo não age para gerar fogo para si
mesmo, mas para o bem do gerado, que é sua forma, e depois
para o bem comum que é a conservação da espécie. Não é ver-
dade universalmente que todo amor natural seja em si mesmo
centrípeto”.64 Os atos que brotam da inclinação, do chamado
“apetite natural”, são em parte centrífugos, quando seu objeto
é o bem da espécie; e em parte centrípetos, ordenados ao bem
da coisa individual mesma.
b) Há outra tendência, que, motivada pelo conhecimen-
to do sujeito, se desdobra com necessidade e não com livre
juízo; e tal é a tendência sensitiva nos animais, a qual, no en-

64 - Quodl. 1, a. 8, ad 3.

28 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

tanto, nos homens participa em algo da liberdade, pois não


está aqui fechada sobre si mesma e pode obedecer à razão. Essa
tendência motivada pelo conhecimento sensível é um apetite
em sentido próprio e unívoco: constitui uma dimensão onto-
lógica não entitativa, mas operativa, diferente da natureza ou
da essência. Também neste caso, os atos que brotam do apetite
são parcialmente centrípetos — por ordenar-se ao bem do in-
divíduo — e parcialmente centrífugos — pois têm por objeto
o bem da espécie.
c) Por fim, há uma terceira forma de tendência, motiva-
da pelo conhecimento do sujeito que tende segundo seu livre
juízo. Essa tendência — pertencente também à ordem opera-
tiva e não à entitativa — racionalmente motivada se chama
vontade, ou apetite em sentido próprio e análogo. Se o apetite
sensível se orienta diretamente às coisas boas, como coisas, o
apetite intelectual está submetido a uma mediação: passa pela
razão, pela ratio boni ou “índole geral de bem”, para chegar às
coisas boas como portadoras de uma significação geral de bem.
Em verdade, o conhecimento sensível não capta a essência de
uma realidade: só pelo conhecimento intelectual, de um lado,
conhecemos o que é o bem ou a ordem dos bens objetivos e, de
outro lado, tomamos consciência de nós mesmos e de nossos
estados psicológicos. “Privados deste conhecimento intelec-
tual, seríamos totalmente prisioneiros de nossa subjetividade,
incapazes de nos dar conta de nossa situação, conduzidos por
um sentimento confuso de prazer para com os objetos de que
necessitamos. Ou seja, estaríamos encerrados num duplo re-
cinto de subjetividade: primeiro, no plano psicológico, pelo
prazer; segundo, no plano objetivo, porque o único bem que
poderíamos alcançar na realidade seria o bem que esta tem
para nós, a utilidade relativa de seres referidos a nosso ser ou a
nosso bem-estar, sem alcançar seu bem próprio.”65
A distinção das duas últimas formas de apetite está direta
e essencialmente vinculada aos dois tipos de conhecimento,
sensível e intelectual. “O conhecimento não se encarrega sim-

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- Louis-B. Geiger, 50.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 29


Juan Cruz Cruz

plesmente de oferecer um objeto de qualidade diferente, sen-


sível ou espiritual, a uma afetividade que fundamentalmente
permanece a mesma, por estar sempre orientada formalmente
ao bem: modifica-a intrinsecamente, de modo que nos encon-
tramos diante de duas afetividades formalmente diferentes no
plano do amor mesmo.”66
Assim, cada potência ou faculdade do sujeito tende a seu
próprio bem com inclinação natural, a qual não se segue de um
conhecimento, sensível ou intelectual, da coisa. Mas tender
ao bem com propensão despertada pelo conhecimento sensí-
vel pertence somente ao apetite; e com propensão suscitada
pelo conhecimento intelectual, à vontade. A inclinação ou
tendência natural deriva, pois, de uma incitação espontânea;
o apetite ou tendência sensitiva pressupõe um conhecimento
sensível, uma motivação despertada na consciência sensível; e
a vontade, um conhecimento oriundo da consciência intelec-
tual. Nesta articulação de tendências, não cabe o monismo ou
a absolutização do apetite natural, da inclinação. A tendência
que os seres da natureza têm a buscar seu próprio bem não é a
mesma em cada um deles.

b) Amor e perfeição própria

Tampouco Rousselot indica claramente que, para San-


to Tomás, o chamado amor de concupiscência é imperfeito,
enquanto o de amizade é um amor perfeito, o qual pode ser
referido tanto à própria pessoa como a outra pessoa; e o fato
é que a medida exata do amor perfeito é feita com o amor de
amizade pela própria pessoa, não com o de concupiscência,
que é imperfeito.67
Por outro lado, e no que concerne à teoria “personalista”,
é preciso perguntar se é possível um amor extático sem laço

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- Louis-B. Geiger, 46.
67 - R. Garrigou-Lagrange, “Le problème de l’amour pur et la solution de S.
Thomas”, Angelicum, 9, 1929, 83-124.

30 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

algum com uma tendência natural à perfeição ou felicidade.


Em que condições poderia dar-se tal amor extático? Primeiro,
na condição de que o amor fosse um puro capricho, uma in-
venção gratuita de nosso espírito ou de nossa imaginação, sem
laço algum com o ser que somos, e, segundo, na condição de
termos nós o poder de fazer brotar os bens como num passe de
mágica. Só nestas condições — ficcionismo e criacionismo —
o amor extático seria até o negador de nossa tendência natural
à perfeição ou felicidade.
Acontece que em Santo Tomás o amor não é uma ficção
nem é puramente criador. E isso por duas razões: primeira, por-
que o amor é sempre uma resposta a um bem real, seja dada
de forma natural ou de forma sensível ou espiritual; segunda,
porque o bem não é nada mais que a atração que emana des-
se ser enquanto é perfectivo68 ou perfeito. Portanto, o amor
não poderia consistir senão na resposta de um ser ao ser ou ao
bem idêntico ao ser. “Todo movimento para o bem”, diz Gei-
ger interpretando o Aquinate, “é um movimento para o ser,
seja para adquiri-lo, seja para conservá-lo ou desenvolvê-lo,
seja para amá-lo por si mesmo em razão de sua perfeição ma-
nifestada pelo conhecimento intelectual, que capta o ser e sua
bondade. É, pois, impossível imaginar que nossa vontade possa
amar, mesmo com o amor mais puro, sem realizar ao mesmo
tempo sua própria perfeição, ou seja, sem obter pelo exercício
do amor do bem, sob sua razão formal de bem último, o aca-
bamento para o qual ela é formalmente feita e para o qual não
pode não ser feita”.69

c) A afetividade e o amor espiritual

O amor é, pois, uma resposta afetiva; e pode ser tanto sen-


sível como espiritual. Não faltaram vozes indicando o desco-

68 - Em espanhol, o termo perfectivo também se diz daquilo “que dá ou


pode dar perfeição”. [N. do T.]
69 - Louis-B. Geiger, 111-112.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 31


Juan Cruz Cruz

nhecimento que a filosofia clássica tinha da afetividade e do


amor espirituais.70 A vontade de meios e a inteligência cons-
trutiva teriam dividido entre si o domínio espiritual, anulando
nele a imediatez dos sentimentos. O “dualismo” medieval teria
de ser substituído por um trialismo facultativo: vontade, inteli-
gência e sentimento. Disse-se que aquela filosofia transformou
a afetividade em questão de apetites inferiores, de concupis-
cência, de modo que só a partir da idade contemporânea —
com autores como Scheler, Haecker, Hildebrand e outros — a
afetividade foi realçada pela análise de sentimentos superiores,
espirituais ou pessoais.
No entanto, a verdade é que a filosofia clássica não de-
fendeu propriamente uma dualidade de faculdades “reduzidas”,
mas — para além do trialismo moderno — um “quarteto” fun-
cional: o de razão e intelecto na esfera da inteligência; e o
de vontade de meios e vontade de fins na esfera da vontade.
Mediação e mediatez dividem entre si as funções em ambos
os casos. O intelecto é imediato, como função não discursiva
de princípios; a razão é mediata, dianoética, como teria dito
Platão. Mas também a vontade tem uma função de imediatez
— a de fins ou telética — e uma função de mediação — a de
meios ou bulética. “Na operação do intelecto (intellectus)
fecha-se um círculo, e o mesmo acontece na operação do
afeto (affectus). Pois o intelecto parte da certeza dos prin-
cípios, que ele afirma quietamente, e procede com o movi-
mento do raciocínio para as conclusões, nas quais se detém
quando alcança um conhecimento certo, resolvendo-as nos
primeiros princípios que estão virtualmente nelas; de igual
maneira, o afeto parte do amor do fim, que é o princípio, e
procede com movimento desiderativo para as coisas que se
ordenam ao fim, as quais contêm em si mesmas esse fim, e,
portanto, repousa ou se aquieta nelas pelo amor. E assim o
desejo se segue ao amor do fim, o qual precede ao amor das

70 - “Na filosofia tradicional, o amor foi colocado entre as atitudes volitivas


e até foi designado como um ato da vontade [...]. Na filosofia tradicional,
não se faz claramente a delimitação entre uma atitude volitiva e uma atitu-
de afetiva que responda ao valor”(D. v. Hildebrand, La esencia del amor, 75).

32 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

coisas que se ordenam ao fim.”71 A modernidade definiu a


vontade preponderantemente como função de meios, razão
por que teve de reivindicar para o sentimento os dois modos
de imediatez que a filosofia clássica assinalava: a imediatez
de fins própria da vontade e a imediatez cognoscitiva do in-
telecto. Pois bem, ainda que a filosofia clássica conhecesse
perfeitamente a afetividade espiritual, inserta na atividade
imediata da vontade de fins, jamais considerou a imediatez
cognoscitiva um sentimento.72

d) O físico no pessoal

1. Na medida em que o amor não é uma ficção artifi-


ciosa nem um fenômeno adquirido pela repetição de atos,
parece acertado chamar “física” à teoria tomista do amor,
pois ela inscreve este afeto na mesma natureza (physis) dos
seres, a qual é seu princípio. Um apetite não simulado nem
adquirido por repetição de atos é natural. Deste ponto de
vista, o amor é um dado natural e não uma fantasia sem
relação com o fim natural dos seres; e a vontade mesma é
também um apetite natural, pois se dirige naturalmente a
seu objeto natural. Sucede que o termo “natural” pode ter
dois sentidos: “Em um primeiro sentido, opõe-se a tudo o
que é adquirido. Em um segundo sentido, designa, no interior
dos apetites dados com a natureza de um ser, este apetite par-
ticular que, por um lado, é idêntico à natureza mesma, e que,
por outro lado, não exige a intervenção do conhecimento para
passar ao ato. Um apetite natural neste segundo sentido é
justamente um apetite que não é sensível nem intelectual,
ao menos quanto a seu funcionamento“.73 Trata-se, pois, de
uma noção não unívoca, aplicável a todo impulso para o
bem, “sempre que se lhe acrescentem imediatamente as di-

71 - In III. Sent., dist. 27, q. 1, art. 3 ad 1.


- Juan Cruz Cruz, Intelecto y razón, cap. IV, “Intelecto e sentimiento “.
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73 - Louis-B. Geiger, 94.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 33


Juan Cruz Cruz

ferenças ontológicas que, sustentadas pelos diferentes graus


de conhecimento, afetam sua estrutura”.74
Como Rousselot não faz esta distinção elementar, aplica ao
apetite do ser dotado de conhecimento sensível e à vontade dos
seres espirituais o que só vale para a inclinação, carente de co-
nhecimento. “O apetite e o amor se encontram então determi-
nados como um puro dinamismo pelo qual um ser tende a seu
pleno desenvolvimento e capta tudo o que pode favorecê-lo.”75
Se a vontade é um apetite natural do homem, não porque
se identifique com os fatos do mundo inanimado, mas porque
se opõe, como fato de natureza, a tudo o que em nós é efeito do
hábito adquirido, a que tende ela de modo natural, não simula-
da nem artificiosamente? Tende à objetividade real das coisas,
porque é um apetite intelectual. Só nessa direção alcança sua
felicidade. Ademais, não pode tomar uma direção contrária:
não pode escolher não ser feliz. “Por sua própria natureza, a
natureza espiritual exige ser feliz, e não pode querer não sê-
lo.”76 Isso significa também que a ordem natural da vontade
a seu objeto, ao bem, passa pelo conhecimento intelectual
deste objeto, e isso de maneira tão necessária quanto a von-
tade é vontade. Mas a vontade não é o único apetite natural
(no sentido de não artificioso) que há no homem. Conquanto
seja “o único apetite natural propriamente humano. O ho-
mem o possui na medida em que faz parte do mundo dos seres
espirituais”.77 Também o apetite sensível é natural, no sentido
de não adquirido, dado com a natureza. Essa índole natural a
têm não só as tendências operativas chamadas apetite sensível
e vontade, mas também as tendências entitativas chamadas
“inclinações“, tendências de cada uma de nossas faculdades re-
feridas a seu próprio bem, potências da vida vegetativa e facul-
dades cognoscitivas. Este apetite natural é “uma pura ordem
ontológica referida ao objeto de cada faculdade, idêntica a essa

74 - Louis-B. Geiger, 93.


75 - Louis-B. Geiger, 94-95.
76 - C. G., 4, 92.
77 - Louis-B. Geiger, 95.

34 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

faculdade, não um amor que fosse diferente dessa faculdade e


que tivesse uma realidade psicológica autônoma”.78
Em suma, nossa vontade é entitativamente uma potência
ou faculdade e tem, como tal, uma ordem natural a seu ato.
Deste ponto de vista entitativo, é um apetite natural. “Não
só nos apetites dos instintos sensitivos, mas também nos atos
espirituais do homem e, portanto, também nos de sua vontade,
há sempre um componente que está presente por força natural,
algo que se impõe a nós e se independentiza contravindo nossa
liberdade de decisão e que antes de qualquer ato consciente se-
letivo se antecipou a nós, porque está escrito, decidido e posto
como fato consumado. Ser-nos-á difícil compreendê-lo porque
estamos acostumados a imaginar o natural e o espiritual como
dois conceitos que se excluem mutuamente.”79 Pois bem, o
querer é um ato espiritual e, como tal, não está sujeito a neces-
sidade natural; mas também é um fenômeno não simulado de
nossa própria natureza. Um ato pessoal acontecido no espírito
é também um ato da natureza. Mas, na ordem operativa, o ato
desta faculdade que é o amor espiritual só nos une a nosso bem
de certa maneira, a saber, conforme a objetividade que um ser
racional pode alcançar.80
2. Por último, nos referidos escritos de Nygren, Rouge-
mont, Scholz, Grünhut e Brunner, há um evidente exagero
no modo de compreender o ser do homem, como se este não
tivesse limites e tivesse de atualizar-se em puro Ágape, como
se seu apetite já estivesse pleno de antemão e não tivesse de
desdobrar-se em atos, justamente para realizar-se. O ser huma-
no é indigente, sedento de realidades. Por isso, em seu primei-
ro ato de amor busca para si a perfeição que ele mesmo ainda
não tem. A mobilização que nosso ser faz para alcançar sua
plenitude já é uma afirmação desse mesmo ser: porque apro-
vo ou amo meu ser, movo-me a preencher o que lhe falta. O
homem “tende por natureza a seu próprio bem e própria per-

78 - Louis-B. Geiger, 96.


79 - J. Pieper, 144-145.
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- Louis-B. Geiger, 99.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 35


Juan Cruz Cruz

feição, o que quer dizer amar a si mesmo”.81 “O homem quer a


felicidade por natureza e necessariamente.”82 “O querer ser fe-
liz não é objeto de livre decisão.“83 Esse apetite natural, ínsito
em todas as faculdades, pode chamar-se Eros, ou amor-próprio,
que busca sua satisfação natural e, ao fazê-lo, enriquece a exis-
tência. “E esta é exatamente a forma como se apresenta o Eros,
desde que, é claro, por Eros se entenda a exigência de vida
total, de consecução de plenitude existencial, de felicidade e
bem-aventurança. Uma exigência que não pode ser retirada
de circulação nem suspensa em seus efeitos, e que domina e
penetra toda tendência natural e qualquer decisão conscien-
te, e sobretudo nossa inclinação amorosa para o mundo ou
para uma pessoa.”84 Entendido o Eros como amor natural, não
se pode senão considerá-lo como algo em si mesmo bom. Se
não o fosse, “tampouco poderia a caritas, e portanto o Ágape,
aperfeiçoá-lo; o Ágape teria nesse caso de suprimir o Eros e
excluí-lo por si mesmo, que é o que de fato afirma Nygren”.85
Daí que, conquanto Nygren tenha razão ao afirmar que o amor
de Ágape é o que há de original no cristianismo, por nenhum
aspecto cabe desconectá-lo do Eros, do amor natural.
Todas as nossas faculdades são impelidas por um “apetite
natural” que exige a satisfação no objeto amado. Mas o ho-
mem não é criador de valores nem torna amável o outro: o
valor e o bem são fundados no ser e na verdade do outro. E, no
caso, isso é o que o Aquinate sublinha como fundamental em
sua teoria do amor. O amor que me realiza e aperfeiçoa como
homem não é imotivado, tem causa: o bem objetivo e real da
pessoa amada.

81 - S. Th., I, 60, 3.
82 - S. Th., I, 94, 1.
83 - S. Th., I, 19, 10.
- J. Pieper, El amor, 146.
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- J. Pieper, 185.

36 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

3. Sentido primário do amor: a pessoa

Quando o Aquinate usa a palavra “amor” para designar


um acontecimento existencial — porque amar é comprazer-
se no bem que existe no outro —, abrange com um só termo
dois aspectos reais. Em primeiro lugar, o ser mesmo da pes-
soa com a individualidade que a caracteriza na ordem enti-
tativa: seu ser e seu modo de ser. Quero primariamente que
o outro exista, ainda que não seja gracioso nem atraente;
quero também que exista como gracioso e atraente, porque
é assim e enquanto é assim. Em segundo lugar, o amor pode
penetrar, ademais, no interior operativo dessa individuali-
dade pessoal, afirmando e aprovando sua intimidade, inte-
rioridade relacionada.
No que se refere ao primeiro aspecto, Santo Tomás indica
que no amor está em jogo o sentido do ser pessoal. E sua lin-
guagem, quando fala deste assunto, é personalista: “Dado que
o amante toma o amado como idêntico a si mesmo, o amante
há de comportar-se como se ele mesmo fosse a pessoa amada
(oportet ut quasi personam amati amans gerat) em todas aque-
las coisas que dizem respeito ao amado, de modo que de certo
modo o amante promove o amado na medida em que se regula
pelos mesmos termos do amado”.86
Mas o que é propriamente a pessoa e que relação tem com
a intimidade? É imprescindível, para responder a esta pergun-
ta, repassar brevemente a polêmica suscitada no pensamento
contemporâneo acerca da possível distância que a pessoa esta-
belece com respeito à natureza.

a) Pessoa e natureza

Na atualidade, o conceito de natureza humana está carre-


gado de graves interrogações, derivadas da revisão que dele

86 - In III Sent., dist. 27, q. I, art. 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 37


Juan Cruz Cruz

fizeram diferentes correntes de pensamento. Poderíamos aludir


especialmente ao naturalismo e ao culturalismo.
Por um lado, o naturalismo concebe a natureza humana
como o conjunto de tendências físicas e biológicas que exis-
tem no homem, com a particularidade de que reduz o homem
mesmo a esse conjunto de tendências; é, portanto, uma posi-
ção afim ao materialismo.
Por outro lado, a posição culturalista — influenciada pelo
existencialismo — admite a definição de natureza que o natu-
ralismo oferece, e acrescenta que o homem é mais, a saber, o
que culturalmente ele faz, com o que ele não só não se reduz à
natureza, mas antes se opõe a ela.
Por sua vez, o moderno personalismo percebe que no debate
anterior entre naturalistas e culturalistas se usa um conceito de
natureza que não coincide com o da metafísica medieval, a qual
inclui na natureza todas as tendências do homem, as físico-bioló-
gicas e as espirituais. Mas também indica que, embora o concei-
to metafísico de natureza seja, em teoria, suficientemente aberto
para escapar às críticas do culturalismo, factualmente não funcio-
nou como tal, senão que forneceu uma imagem do homem exces-
sivamente rígida e passiva, na qual o dado, a natureza, prevaleceu
sobre a liberdade, sobre o eu, sobre a cultura, sobre a história.
Para centrar o sentido do homem, esse personalismo propõe
que se passe da teleologia de cunho aristotélico à autoteleologia
de cariz personalista, entendida esta no sentido de que o homem
“é fim para si mesmo”; e, portanto, urge passar do conceito de
“natureza” para o de “pessoa”.
O problema então reside em entender corretamente, por sua
vez, o significado de pessoa. A primeira dificuldade que salta aos
olhos é se as doutrinas mencionadas explicaram cabalmente o
que a filosofia clássica entendia por natureza e por pessoa. A
segunda dificuldade está em saber em que sentido o homem é
um fim em si mesmo.

38 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

b) Os elementos essenciais da pessoa

Em meio a esse assédio de teorias, é reconfortante voltar a


ler o que os medievais entendiam realmente por pessoa huma-
na e por natureza humana. É o que farei a seguir, retomando
as explicações que Santo Tomás oferece sobre o conceito de
“pessoa”,87 segundo a definição dada por Boécio: “Pessoa é uma
substância individual de natureza racional”. A pessoa, em seu
sentido mais próprio e formal, significa o indivíduo de nature-
za racional. Apontam-se aí quatro elementos essenciais: 1º a
substância; 2º o indivíduo; 3º a natureza. 4º a razão.
1º Substância. — Na definição de pessoa, substância equi-
vale a substância primeira [hipóstase]. Seria suficiente então
dizer que pessoa é substância primeira.88 Da substância primei-
ra é excluída, de um lado, a índole do universal (e, assim, a
substância individual não é o homem); e, de outro lado, tam-
bém é excluída a índole de parte: a substância primeira não
é a mão (parte do homem), mas tampouco a alma (parte da
espécie humana).
2º Individual. — No que diz respeito ao “indivíduo”, o
Aquinate contrapõe o universal e o individual, indicando três
pontos. Primeiro, o universal e o particular se encontram em
todos os gêneros, mas o indivíduo se encontra de modo espe-

87 - III Sent., d. 5, q. 2, a. 1; S. Th., I, q. 29, a. 1; q. 3, a. 4; q. 30, a. 4; De pot. q.


9, a. 2-a. 6.
88 - No contexto dessa definição, substância se divide em primeira e se-
gunda; pessoa é equivalente a substância primeira. A natureza que aqui
se nomeia é a substância segunda, o universal como unidade capaz de
estender-se a uma pluralidade. O universal, ontologicamente considera-
do, é referido pela predicação objetiva e constitui a essência de um ser,
abstraída as diferenças individuais; este universal é a natureza. Chama-se
substância por ser um princípio explicativo da mudança das coisas. Mas
não é substância primeira, já que esta é individual e, portanto, impene-
trável pelo entendimento. O universal (substância segunda) só é real no
individual (substância primeira), que, por sua vez, é tal porque realiza o
universal. A substância segunda é, no intelecto, o universal e, no singular,
a mesma natureza concretizada da coisa. A natureza é, como substância
primeira, princípio real que emite (quod) uma operação física; e, como subs-
tância segunda, é princípio pelo qual (quo) a operação intelectual apreende
o inteligível das coisas.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 39


Juan Cruz Cruz

cial no gênero da substância. Pois a substância se individualiza


por si mesma, mas os acidentes se individualizam pelo sujeito,
que é a substância; exemplo: esta brancura é tal brancura na
medida em que está neste sujeito. Por isso também as substân-
cias individuais têm um nome especial que outras não têm:
substâncias primeiras. Segundo, por sua vez, o particular e o
indivíduo se encontram de modo muito mais específico e per-
feito nas substâncias racionais, as que dominam seus atos, pois
não só são movidas, como as demais, mas também agem livre-
mente por si mesmas. Terceiro, as ações estão nos singulares, e
por isso, dentre todas as substâncias, os singulares de natureza
racional têm um nome especial: este nome é pessoa. Por isso
o nome indivíduo entra na definição de pessoa para indicar
o modo de subsistir próprio das substâncias particulares. As-
sim, uma alma humana separada conservaria a capacidade de
união com o corpo, mas não poderia ser chamada substância
individual, que é a substância primeira, assim como tampouco
lhe corresponderia a definição nem o nome de pessoa: pode-
ria chamar-se substância de natureza racional, mas, como é
parte da espécie humana, só retém a capacidade de união, e
não pode chamar-se substância individual, que é substância
primeira.
Justifica-se assim que na definição de pessoa dada por Boé-
cio entre a substância individual, precisamente para significar
o singular no gênero da substância: a “substância individual”
significa aqui a substância primeira subsistente, o concreto.89
3º Natureza. — Na definição de pessoa, a singular no gêne-
ro de substância se acrescenta “natureza racional” para signi-
ficar o singular nas substâncias racionais. Que matizes encerra
aqui a palavra natureza? Já Aristóteles havia dito que o nome
natureza é aplicado para indicar, sobretudo, a geração dos vi-

89 - O individual, que se opõe ao universal ― porque não é multiplicável,


como este, em vários sujeitos ―, significa, no caso do homem, que ademais
a pessoa não é parte de um todo, mas é um todo ela mesma ― um todo
absolutamente separado de qualquer outro e cujo ser não é compartilhado
por outro ―, razão por que, em seu desenvolvimento, pode manter não só
independência com respeito ao meio, mas controle específico sobre ele.

40 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

ventes chamada nascimento. E, porque esta geração brota de


um princípio intrínseco, aplica-se também “natureza” para in-
dicar o mesmo princípio intrínseco de qualquer movimento.
Pois bem, este princípio é tanto a forma como a matéria, e
por isso a matéria e a forma são chamadas natureza. Por sua
vez, a forma culmina ou completa a essência de uma coisa; e
também por isso a essência de algo, indicada em sua definição,
é chamada natureza.90
Diante das críticas do personalismo atual, deve-se indicar
que a “natureza” que se põe na definição de pessoa não signi-
fica a “geração do vivente”, que certamente se pode chamar
natureza; tampouco significa o princípio intrínseco do movi-
mento e do repouso, o qual também se pode chamar natureza;
significa tão-somente a essência completa, que é significada
pela definição da coisa.91 Neste sentido, natureza é a diferença
específica que informa cada coisa. Pois a função da forma é for-
necer a diferença específica — a racionalidade — que comple-
ta a definição. Só neste último sentido a definição de pessoa,
que é o singular do gênero determinado de substância, recebe
formalmente o nome de natureza.92 Em certo sentido, natureza
e racionalidade coincidem na definição de pessoa. Mas o que
é, neste contexto, a racionalidade?
4º Racional. — Certamente o “racional” que se põe na
definição de pessoa não é a “diferença” chamada “razão dis-

90 - A natureza é a essência configurada pela forma. O termo da geração


natural é a essência da espécie, que depois se expressa na definição. A es-
sência é o que confere às coisas sua própria natureza, fazendo-as também
sujeitos ativos de movimento. Quando a essência se expressa na definição,
então se diz que a natureza é a diferença específica na escala dos seres: o
con­ceito expresso na definição.
91 - O sujeito concreto ou individual é princípio constituído (quod); a na-
tureza é princípio constituinte (quo). As ações não são da natureza (como
universal), mas do sujeito individual, que, se é de natureza inteligente, se
chama pessoa.
92 - A natureza é a estrutura racional da realidade, o núcleo inteligível e obje-
tivo das coisas. Está nas coisas e se adéqua à mente humana. Figura como a
linha de interseção entre as coisas e o pensamento: é a inteligibilidade que
o entendimento tem de extrair das coisas para comprendê-las. As coisas
são cognoscíveis, possuem certa natureza inteligível que permite a ade-
quação objetiva exigida pelo conhecimento real.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 41


Juan Cruz Cruz

cursiva” — um erro freqüente da apreciação personalista;


mas a propriedade que brota da natureza intelectual. A ra-
cionalidade não equivale aí somente à índole de um “processo
discursivo” ou dianoético, mas à própria faculdade intelectiva,
de cuja constituição espiritual pode derivar tanto a ação dis-
cursiva própria do raciocínio (a ratio estrita) quanto os atos
intuitivos imediatos de afirmação existencial ou essencial (o
intellectus) de princípios e valores, e igualmente os sentimen-
tos espirituais de amor, gozo, alegria, esperança e confiança.
Conquanto racional em tal sentido, a pessoa não se define en-
tão como “consciência atual de si”: porque, se assim fosse, nem
os adormecidos, nem os ébrios, nem os recém-nascidos seriam
pessoas. A racionalidade não é aqui uma atualidade de consci-
ência, mas uma capacidade de tê-la e exercê-la. Por meio des-
ta capacidade ou “faculdade racional”, a pessoa pode voltar-se
completamente para si mesma (reditionem completam),93 ou
seja, é capaz de autoconsciência, razão por que pode, à diferença
do animal, chamar-se “eu”. Esta volta para si se encontra tam-
bém na vontade ou na livre disposição que a pessoa exerce sobre
si mesma. Mas o primário na definição de pessoa é a racionali-
dade assim descrita — ou seja, espiritualidade intelectiva, voli-
tiva e sentimental —, de modo que o ser humano se conhece
como sujeito e tem a si mesmo como fim interno de suas pró-
prias ações: só por isso tem qualidade de pessoa, razão por que
não deve servir de mero meio para outros seres. Sem despachar
a natureza, a pessoa é, nesse sentido, autoteleológica.

c) Substantividade e subsistência da pessoa

Ao terminar este análise, pode dizer Santo Tomás que “per-


sona significat illud quod est perfectissimum in tota natura,
scilicet subsistens in rationali natura”:94 a pessoa significa o

93 - De Ver., q. 1, a. 9.
94 - S. Th., I, q. 29, a. 3.

42 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

que há de mais perfeito em toda a natureza, a saber, o subsis-


tente numa natureza racional.
O termo “subsistens” desta frase merece um pequeno co-
mentário.
a) A esta altura de nossa explicação, é claro que, ao se cha-
mar substância primeira à pessoa, o uso do termo substância
não implica uma “coisificação” da pessoa, como pensam os
personalistas modernos. É verdade que filósofos como Kant,
Scheler, Hartmann, Zubiri e Ortega insistiram em que a subs-
tância equivale a realidade estática, inerte, uma espécie de
substrato, diante de cuja imobilidade se desdobram as peripé-
cias do sujeito; por isso, alguns viram a categoria de “coisa”
inequivocamente determinada por esse substrato inerte. Dizer
que a pessoa é substância equivaleria a defini-la como coisa
inerte (Ding). Esses autores ressaltaram apenas um aspecto da
substância primeira — tal como o Aquinate a define —, a sa-
ber, que é sujeito — ou substrato — dos acidentes unidos a
ela: está por baixo (sub-stat) deles. Mas, conquanto exato, este
aspecto — de que a substância é o sujeito último do ser, sujeito
a que se unem internamente todas as determinações que per-
tencem a um ser, sem unir-se ele mesmo a nenhum outro — é
secundário com respeito à principal determinação da substân-
cia humana, o ter como propriedade (per se) o ser, à diferença
do acidente, cujo ser é emprestado (in alio). Para estes dois
aspectos da substância, os clássicos tinham dois termos pare-
cidos, mas com carga ontológica diferente: subsistere e subs-
tare. O segundo indica que a substância primeira não neces-
sita, para existir nem para operar, de nenhum outro ser, nem
pode converter-se em natureza de outro ser.95 Assim como luzir

95 - “Uma coisa subsiste quando tem em si mesma sua existência, com in-
teira indepen­dência de outro sujeito e com absoluta incomunicabilidade”
(De pot., q. 9, a. 2 ad 6). Embora a substância fosse definida por sua oposição
ao modo de existir em outro, ao acidente, não é essa determinação a que
me­lhor e mais profundamente a significa. A propriedade de existir em si
mesma era entendida pelos clássicos na consideração absoluta da coisa e
só em ordem a esta mesma: então aparece a substância como o sub­sistente,
como o que não tem necessidade de sustentar-se em outra coisa, senão que
está em si mesmo, tem o ser em próprio, é per se. Só quando o exis­tir em

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 43


Juan Cruz Cruz

(lucere), ter a luz em próprio, não é iluminar (illuminare), assim


também existir em si sem necessidade de sustentação é uma consi-
deração primária e diferente de sustentar a outro e dar-lhe o ser. Só
em ordem à coisa mesma e a seu próprio ser falamos de subsistere;
ao passo que em ordem às demais determinações que ela susten-
ta falamos de substare. Na noção de pessoa humana sublinha-se
aquele aspecto primário, e por isso aparece ontologicamente como
substância incomunicável a outro — incomunicabilidade de sub-
sistência —, ainda que social e psicologicamente tenha por ne-
cessidade de se relacio­nar com os outros. A categoria de “relação”
não define o ser da pessoa humana, apesar de alguns dos chamados
“personalistas” atuais a definirem por essa categoria. Só em Deus,
diz Tomás, são subsistentes as relações; mas no homem não.
Em resumo. Quando para definir a pessoa Santo Tomás utiliza
o termo substância, ele o faz para referir-se a um ente que é em si
mesmo (per se), sem ter um ser alheio (in alio): a atualidade ra-
dical da substância é original, independente de outro ser em que
se inserisse para existir. A pessoa expressa o modo de ser perfeito
da substância completa em si mesma, individual e racional, sendo
independente e incomunicável (aspectos todos que convergem na
expressão latina gratia sui, “em razão de si mesmo”). Dizer “pessoa”
é indicar a totalidade, a plenitude, a independência e a incomu­
nicabilidade no existir. A expressão gratia sui é muito significativa,
e marca o sentido que hão de ter os atos dirigidos propriamente à
pessoa: a pessoa deve ser tratada segundo o sentido de sua própria
independência e plenitude de existir: por exemplo, “o próprio da
amizade é que o amigo seja amado em razão de si mesmo”.96

si se entende de modo relativo, em referência a outra coisa, diziam que


sustenta no ser, é in se: não só é subsistente (subsistens), mas sus­tentador
(substans). De modo que, a propósito da substância, o exis­tir per se deve ser
tomado primária e positiva­mente como a perfeição entitativa que exclui
dependência de outra coisa; embora secundária e negativamente se tome
pela mesma negação de dependência e de co­municação com outro. A subs-
tância se define melhor na ordem absoluta de existir per se (subsistere) do
que na ordem relativa de existir sustentando (substare).
- “De ratione amicitiae est quod amicus sui gratia diligatur” (In III Sent.,
����������������
dist. 29, q. 1, art. 4).

44 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

d) Pessoa, personalidade, intimidade

1. Em consonância com a doutrina do Aquinate sobre a


pessoa como substância, cabe concluir que, no caso do ho-
mem, a substância é um centro dinâmico ge­nuíno, de que bro-
tam as atividades e a que estas refluem uma vez produzidas,
justamente para cumprir o destino da natureza humana, ao
mesmo tempo animal e racional: o fim ontológico de sua ati-
vidade (ou de seus acidentes) é a própria substância. Dito de
outro modo: na medida em que as atividades brotam de meu
ser pessoal como de uma substância, posso dizer “eu sou eu”;
e, na medida em que, uma vez produzidas, tais ações refluem
na substância (prescindamos de que me façam bom ou mau),
posso dizer “eu sou meu”. Esta consideração fenomenológica
responde a dois níveis de apropriação pessoal que seriam onto-
logicamente impossíveis sem a determinação substancial. Ao
dizer “eu sou eu”, afirmo minha identidade na dimensão onto-
lógica de minha originalidade.97 E quando digo “eu sou meu”
afirmo minha identidade na dimensão ontológica de minha
mesmidade. No caso do homem, originalidade não equivale a
mesmidade, embora ambas as dimensões se devam à realidade
substancial e idêntica da pessoa: a primeira obedece ao caráter
fontal ou originante da substância; a segunda, à índole inclu-
dente e receptora ou final da mesma substância com respeito a
suas próprias atividades. Em sua identidade substancial como
princípio idêntico no tempo, mas nunca estático, adquire sen-
tido a originalidade e a mesmidade da pessoa.
Mas a originalidade e a mesmidade, que são concomitantes,
não se forjam ao acaso: são as inflexões primárias da pessoa em
sua manifestação livre; e enquanto primárias modulam toda a
atividade pessoal, ou seja, cunham a personalidade. A origina-

97 - À qualidade de “original” nas ações pontuais ou nas atitu­des dura­


dou­ras chamamos originalidade. O “original” implica a novi­dade, o fruto
da a­ção espontânea, opondo-se não só ao que é có­pia ou imitação de ou-
tra coisa — sublinhando assim a idéia de radicalidade e de nascimento
—, mas também ao comum e ge­ral — razão por que destaca a idéia de
singularidade­.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 45


Juan Cruz Cruz

lidade tem dois momentos estruturais: primeiro, é uma eclosão


da pessoa; segundo, infunde caráter e perfil a todas as maneiras
da personalidade. Também a mesmidade tem dois momentos
constitutivos: primeiro, é um retorno da atividade livre à pró-
pria substância pessoal; segundo, encontra-se na pessoa como
uma aglutinação crescente de hábitos.
De novo convém fazer uma observação que nos permita
distinguir a pessoa, a personalidade, o eu e a intimidade. Em-
bora a pessoa seja integrada por determinações ontológicas
radicais, como o são a substancialidade, a individualidade, a
racionalidade, ela só se constitui em “eu” quando a partir de
um momento impreciso de sua primeira idade age desdobran-
do suas potencialidades: estas se realizam partindo de um foco
de emissão radiante e de apropriação crescente: o feito e o por
fazer convergem num ponto atematicamente consciente, o
“eu”, que governa a conquistada riqueza da personalidade. O
núcleo mais primário e profundo dessa riqueza é justamente a
intimidade. Esta cresce com a progressão da personalidade; e
diminui com o minguamento da personalidade; não assim a
pessoa, cujo estatuto ontológico não depende do tempo.
2. A natureza humana é indeterminada, no sentido de que
é aberta, de que não “fixa” as atividades concretas da subs-
tância primeira em um só objeto. A pessoa tem de fixá-las ou
determiná-las. Um estado fixo, uma disposição estável de nos-
sa atividade num objeto só é possível por uma determinação
sobreacrescentada, porque, por tender essencialmente à ação,
a natureza exige uma determinação. Em virtude de a pessoa
ser de “natureza racional”, a tendência à ação que ela possui
desde o momento em que é consciente de si mesma deve ter
marcados os fins concretos e dirigir-se a eles, mas marcados por
escolha, não por unívoca determinação, como ocorre com os
animais. Se a natureza não está de posse de um fim concreto,
determinado por necessidade vital e moral, então a pessoa é
que deve dá-lo, porque precisamente da pessoa se originam os
atos. Por conseguinte, o estado de hábito estável e fixidez em
que se possa encontrar a natureza é um estado pessoal, vari-
ável em cada indivíduo segundo a escolha livre de cada pes-

46 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

soa. Para ter um estado de natureza, uma hábito, uma direção


concreta, é necessária uma determina­ção sobreacrescentada
pela pessoa mesma.98 Ao conjunto de hábitos estáveis ou dis-
posições fixas inseridas na substância humana pode-se cha-
mar “personalidade”.
3. Somos constituídos como “espíritos dotados das forças
e da forma de um corpo”; a pessoa individual que é cada um
de nós tem natureza determinada, uma essência, que partici-
pa da existência. Enquanto totalidade, a pessoa diz mais que
natureza, porque inclui a natureza e lhe acrescenta algo; por-
tanto, opõe-se a ela como o todo à parte. Se é isso o que que-
rem dizer os personalistas, já estava dito — e mais bem dito
— no século XIII. A natureza é o que especifica este concreto
e singular subsistente que é a pessoa, com todas as particula-
ridades próprias dos indivíduos. Em todo o caso, porém, o ser
e o agir da pessoa são especificados por sua natureza: a pessoa
humana não age com a natureza de um cavalo ou de um gato;
a natureza é para o indivíduo um princípio de unidade que o
unifica interiormente e que também o unifica externamente
com todos os seus semelhantes. Dado que a natureza deter-
mina o ser e o agir da pessoa, é ela que regula e dirige seu
comportamento, porque é sua lei, sua lei natural. Na pessoa
humana comparece o risco terrível de se subtrair por sua li-
berdade à natureza, e portanto à consciência das exigências
da natureza racional que constitui a obrigação moral. Instalar
no seio da consciência o conflito e a divisão entre natureza e
liberdade é uma das mais arriscadas aventuras a que o mundo
moderno se entregou.

98 - Mesmo em sentido teológico Santo Tomás explicava que a graça é um


dom pessoal; porque a natureza “caída” como tal não é reparada, dado que
se propaga ainda com o pecado original, e conseqüentemente apenas as
pessoas são restabelecidas na amizade de Deus; depois, por mediação da
pessoa, participa nisso a natureza do indivíduo. É fácil entender que a
pessoa não tem poder sobre a natureza como tal, mas pode indispô-la com
respeito à determinação sobrenatural que vem de Deus: a pessoa, dotada
da liberdade de escolha, pode voltar sua vontade para as criaturas, em lu-
gar de mantê-la voltada para o criador; e por essa indisposição pôde privar
a natureza do dom divino e colocá-la num estado novo, oposto ao antigo,
que é precisamente o estado da natureza caída.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 47


Juan Cruz Cruz

4. Mas a originalidade e a mesmidade são impregnações


ontológicas da pessoa na ordem operativa, ainda que sejam
sublinhadas para atender às operações que surgem da pessoa.
Ambas as dimensões possi­bilitam, no ca­so do ser pessoal —
inteligente e volente —, o aparecimento da intimidade, que é
uma categoria da or­dem ontológico-operativa, concre­tamente
da personalidade.
Caberia figurar o dito ontologicamente esboçando uma ima­
gem dupli­cada: a primeira representaria a ordem entitativa; a
se­gunda, a ordem operativa da pessoa. Ou, se quisermos reser­
var o termo pessoa para a ordem entita­tiva e o termo persona-
lidade99 para a ordem ope­rativa — porque se nasce pessoa, mas
dela forjamos uma personalidade —, é claro que a intimidade
corres­ponde ao centro da personalidade, enquanto a mesmi­
dade e a originalidade brotam da identidade da pessoa. A cate­
goria de per­sona­lidade é de ordem psico­­lógica e pode defi­nir-se
como aquela modu­lação da pessoa que consolida no tempo e
na so­ciedade sua própria ordem operativa em forma de hábitos
e tradições, na medida em que tem consciência do próprio eu e
livre dis­posi­ção de si: estamos ante um sujeito consciente de si,
estru­tu­rado em hábitos operativos (bons ou maus). Mas antes
de ser cons­ciente de si o sujeito tem de estar ontolo­gi­camente
cons­ti­tuído: a pessoa é personali­dade em potência, a qual tem
ser atualizada com atos pessoais; e a persona­lidade é a pessoa
em ato, um sujeito desdobrado em a­tos pes­soais.100 Só num
ser infinito, cuja ope­ração se iden­tificaria com seu próprio ser,
coin­cidiriam também identidade e intimidade. No ser huma-

99 - Empregado pelos modernos, o termo “personalidade” já é uma ca­


tegoria imprescindível no acervo antropológico e merece ser situada em
seu justo lugar on­tológico. Mas nego que a personalidade tenha de ser
tomada necessariamente como uma “máscara”, como um fantasma de nós
mesmos. É uma realidade psicológica em que podem encon­t rar-se tanto
evidentes mascaramentos e ocultações in­conscientes como sinceros e lúci-
dos desvelamentos.
100 - Embora pareça ocioso recordá-lo, aqui só se fala da “pessoa física”,
não da “pessoa moral”. Esta última é em verdade impropria­mente “pes-
soa”, pois consiste na união inte­lectual e volitiva das pessoas: assim, a so-
ciedade é uma pessoa moral que só por analogia com a pessoa física pode
chamar-se sujeito de direitos.

48 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

no, a intimidade é configurada pelos modos de originalidade


e mesmidade, que são impregnações ontológicas da pessoa na
ordem operativa.
Para salvar a índole necessária, abissal e assinalada da inti­
midade, não é pre­ciso identificá-la com a pessoa mesma. Basta
ad­mitir que não há pessoa “realizada” sem intimidade; ou que
a inti­midade flui fontal­mente da pessoa. Converter em relação
pura a essência do ser pessoal finito, fazer que a relação seja um
constitutivo necessário da essência pessoal humana, equivale
a estirar inabilmente o sujeito e esvaziá-lo de todo e qualquer
peso substan­cial. O sujeito seria o que é o objeto; o eu o que é
o não eu. Cada um seria primitivamente o não de si mesmo:
pura dialé­tica, primazia da negação sobre a positividade.
De resto, é sur­preendente a pouca ou nenhuma atenção
que os manuais correntes de psicologia prestam à no­ção de
intimidade.
5. E o primeiro escolho que se deve evitar é o confundir
“intimidade” com “vida privada”. O âmbito da vida privada é
determinado em muito alto grau pelo costume e pelos usos: a
vida sexual, o credo político ou o religioso, os ritmos biológi-
cos, o estado da própria economia doméstica, etc., podem ser
para algumas pessoas segredos da vida privada, enquanto para
outras podem ser matéria de autoexposição normal diante da
imprensa. O íntimo não é forçosamente o que temos por guar-
dado ou secreto. “Se o uso pode decidir sobre a vida privada,
somente a espiritualidade do indivíduo decide sobre o que será
vida íntima. Pode-se suprimir uma vida privada, impedi-la...
tornando-a simplesmente pública. Mas não se pode romper o
curso de uma vida íntima. Porque, se uma pertence ao reino
de César, a outra pertence ao ‘reino do espírito’, radicalmente
indiferente tanto às intrusões quanto à publicidade.”101
6. Para indicar, enfim, a localização ontológica da intimi-
dade, é conveniente referir-se ao alcance desse efeito do amor
que é o êxtase. A saída que de si faz o sujeito no amor é, em

- Charles Le Chevalier, La confidence et la personne humaine, 152.


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O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 49


Juan Cruz Cruz

primeiro lugar, certa divisão no sujeito mesmo. Há de dar-se


esta divisão, se o amor tende por natureza à união do amante
com o amado. De um lado, o amor busca a união transformante
de amante e amado mediante a penetração mútua e íntima.102
De outro lado, esta união mútua e íntima só se pode realizar se
o amante se separa ou divide de si mesmo, distanciando-se de
sua própria forma.103 O amante realiza um êxodo, uma saída,
uma separação de si mesmo tendendo para o amado, e por isso
o amor produz êxtase (amans a seipso separatur, in amatum
tendens, et secundum hoc dicitur amor ecstasim facere). Mas
este êxtase só pode ser o da afetividade em seu modo mais ele-
vado, o da intimidade. Como a forma de que o amante há de
se separar não pode ser de ordem entitativa — porque então
deixaria de ser —, é claro que o amor busca a transformação
na ordem operativa do afeto, que é o manancial imediato da
ordem entitativa na intimidade, interioridade relacionada pri-
mordialmente através dos hábitos operativos profundos e ten-
sionados pela liberdade.

e) O amor como união afetiva

O próprio e mais formal do amor não é a participação do


amado no amante (esta seria a causa do amor), nem a efetiva e
real conjunção do amante com o amado (esta seria o efeito do
amor), mas a união afetiva do amante com o amado.
No amor é preciso distinguir, pois, a união entitativa ou
aptitudinal que é antecedente e causa do amor; e dois tipos
de união dinâmica ou operativa, efeitos do amor: uma afetiva
e outra efetiva. É que a união do amante e do amado pode
ser entendida de três maneiras. Pois “há três classes de união

- “Amor transformat amantem in amatum, facit amantem intrare ad


����������������������������������������������������������������
interiora amati, et e contra, ut nihil amati amanti remaneat non unitum...
et ideo amans quodammodo penetrat in amatum... et similiter amatum
penetrat amantem, ad interiora eius perveniens” (III Sent., d. 27, q. 1, a. 1
ad 4).
103 - “Quia nihil potest in alterum transformari, nisi secundum quod a sua
forma quodammodo recedit” (III Sent., d. 27, q. 1, a. 1 ad 4).

50 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

com respeito ao amor. Primeira, a que é causa dele, e é uma


união substancial (unio substantialis), quanto ao amor com
que alguém ama a si mesmo; mas, quanto ao amor com que
alguém ama as outras coisas, é união de semelhança (unio
similitudi­nis). A segunda é essencialmente o amor mesmo
(ipse amor), e é união por coadaptação no afeto (secundum
coaptationem affectus), assemelhando-se à união substancial
na medida em que o amante, no amor de amizade, se ordena
ao amado como a si mesmo (ad seipsum), e, no amor de con-
cupiscência, como a algo próprio (ad aliquid sui). Há uma ter-
ceira união, que é efeito do amor: união real (unio realis) que
o amante busca com a coisa amada segundo a conveniência do
amor; porque, como refere Aristóteles, disse Aristófanes que
os amantes desejariam tornar-se de dois um só; mas, como nes-
te caso ou um ou os dois se aniquilariam, aspiram a uma união
conveniente e decorosa, quer dizer, tal que eles vivam juntos e
se falem e estejam unidos em outras coisas similares”.104
1. A união estática ou entitativa e aptitudinal é antece-
dente, porquanto o amante e o amado têm aptidão para se
amarem: trata-se da conveniência de ambos ou na mesma for-
ma substancial (identidade do sujeito consigo mesmo) ou na
forma acidental (semelhança de um sujeito com outro); e esta
união ou conveniência (coaptação, proporção, unibilidade) é
causa formal, não eficiente, do amor: é uma união causal ou
causativa: se entre o amante e o amado não houvesse certa
proporção, conveniência ou coaptação, nunca se seguiria o
amor real. A união entitativa do amante com o amado se dá,

104 - S. Th., I-II, 28, 1, ad 2. O expresso neste texto pode traduzir-se num
diagrama:

união entitativa 1 amante união operativa afetiva 2 amor amado 3 união


operativa efetiva

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 51


Juan Cruz Cruz

pois, em ato primeiro ou aptitudinal, e pode por sua vez assu-


mir três modalidades: as duas primeiras são a união substancial
e a união de semelhança perfeita, as quais figuram como causa
formal do amor perfeito; e a terceira é a união de semelhança
imperfeita, que figura como causa formal do amor imperfeito.
Em resumo: a união que é causa do amor, união antecedente,
que é entitativa ou em ato primeiro, pode ser dupla:
a) Uma, perfeita, que existe ou por identidade real subs-
tancial — tal como cada um se relaciona consigo mesmo — ou
por semelhança perfeita do amante com o amado; e esta união
é causa do amor perfeito, que é o íntimo, tanto o amistoso
como o esponsalício.
b) A outra é imperfeita, união por semelhança imperfeita
entre o amante e o amado, porquanto o amante não possui em
ato a forma e perfeição do amado; e esta união é causa do amor
imperfeito, que foi chamado de concupiscência.
2. Outra união é dinâmica, operativa, atual, porquanto o
amante expressamente e com certo conhecimento se orienta
para o amado; e esta união pode ser, em primeiro lugar, con-
comitante. Tal é a união propriamente afetiva, porquanto a
unidade entitativa real ou ideal, ou seja, a mesma união apti-
tudinal, entre o amante e o amado, conhecida e apresentada
às tendências do amante, as excita, dispondo-as afetivamen-
te para o amado (intenção unitiva). Esta união, coaptação
ou consonância do afeto do amante com o amado, como com
algo bom e conveniente para si, é formalmente o próprio
amor. A união afetiva é uma conveniência do afeto pela qual
o amante se converte afetivamente no próprio objeto ou na
pessoa amada. Esta união é efeito formal primário do amor
e, por isso, é essencialmente o próprio amor; dito de outro
modo, o próprio amor é tal união ou nexo. Em suma: a união
que é essencialmente o próprio amor se dá por adaptação e
conveniência do afeto, assemelhando-se à união substancial,
pois o amante, no amor perfeito, se ordena ao amado como
a si mesmo, e no amor imperfeito como a algo próprio. Esta
união pertence ao amor na medida em que, pela complacên-
cia do apetite ou da vontade, o que ama se refere ao objeto

52 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


I - Pessoa e Amor

amado como a si mesmo ou como a algo próprio (sicut ad


seipsum vel ad aliquid sui).105
Tal união concomitante, que é já dinâmica e constitutiva
do amor, que é a própria união afetiva do amante com o ama-
do — essencialmente o próprio amor —, se comporta, pois, de
diverso modo, ora como amor perfeito, ora como amor imper-
feito. Pois, como amor perfeito, o amante se torna afetivamen-
te — no coração, na intimidade — o próprio amado de modo
completo, segundo todo o seu ser, porque se refere ao amado
como ad seipsum totum, à totalidade de si mesmo — é um
êxtase da intimidade —, e por isso corresponde e se assemelha
à união perfeita substancial — união por identidade — que
alguém tem consigo mesmo. Isso explica que o que é amado
com amor perfeito se chame “outro eu” (alter ipse, alter ego):
pois a alma do amante se encontra mais onde ama que onde
anima, conseguindo uma união permanente, habitual, profun-
da, persistente e íntima. Mas, como amor imperfeito, o amante
se torna afetivamente o amado de modo incompleto — não se
opera nele um êxtase puro da intimidade —, porquanto se re-
laciona com o amado como com algo de si mesmo e não como
com um todo íntegro, e por essa razão corresponde à união
de semelhança imperfeita, que é sua causa: só consegue uma
união transitória, frágil, temporal, superficial.
Mas em cada categoria de amor perfeito (como veremos:
benevolente ou íntimo, amistoso ou esponsalício, paternal ou
filial) se encontra a intenção unitiva de determinada forma.
3. A última união, também dinâmica e atual, é conseguin-
te: união efetiva ou real e exterior, porquanto o amante se diri-
ge ao amado com movimento real para unir-se a ele de maneira

105 - “A união afetiva, pela qual o amante é informado pelo amado e se


transforma afetivamente nele, e até se torna afetivamente uma mesma
coisa com ele, é efeito formal do amor, que é essencialmente o nexo mesmo,
o aglutinante, o laço afetivo de ambos, e, portanto, tal união não difere
realmente do próprio amor; há somente distinção de razão. Neste senti-
do, assemelha-se à união substancial do amante consigo mesmo amado,
enquanto o amante toma o amado como outro eu ou como algo seu, que
pertence a seu bem-estar, e assim se dá ao amado como a si mesmo ou
como a algo seu” (Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 360).

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 53


Juan Cruz Cruz

existencial e efetiva, possuindo-o realmente, convivendo com


ele, formando uma ativa comunidade de vida com ele; e esta
união é efeito do amor. Trata-se do efeito propriamente dito
de uma causa eficiente, união real, que se dá com a presença da
pessoa amada, e tal união pertence formalmente ao gozo. Essa
união real e exterior do amante com o amado é efeito do amor
propriamente dito, no gênero da causa eficiente.106 Porque não
só o amor possui uma intenção unitiva, mas nele se realiza a
união ao menos do lado do amante.107
A união afetiva, propriamente o amor, é a melhor atalaia
para divisar a constituição e o desdobramento da intimidade
pessoal, como se irá vendo.

106 - “Daí que esta união real e física do amante e do amado seja, com
respeito à união afetiva, como o fim na execução com respeito ao fim na
intenção. Pois o fim na intenção, que é a própria causalidade da causa fi-
nal, move o agente a obter e conseguir na realidade o bem mesmo ou a
perfeição que, enquanto estava na intenção, o movia a agir e a mover-se
para obtê-lo na realidade: e assim o fim na realidade ou consecução real
do fim é o último no gênero da causa eficiente, por ser efeito do mesmo
agente. E, de modo semelhante, a união real e física do amante e do amado,
pela presença real e posse dele, é como a união real ou na execução, e é,
portanto, efeito do amor, ou do amante mediante o amor, no gênero da
causa eficiente. O amante se refere ao amado como o sujeito ao objeto e
como o agente ao fim. É claro que a união efetiva e real está com respeito à
união meramente afetiva e cordial na relação do perfeito e consumado ao
imperfeito e incoado” (Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 360-361).
107 - “A união real só acontece quando o amor é correspondido e o amado
se apressa igualmente para mim como eu para ele. Mas, em todo o caso, o
meu amor já é um fator essencial na constituição da unidade. O amor não
só tem uma intenção unitiva, mas é também uma força unitiva. Aspira à união
que só nos pode ser dada pela correspondência ao amor, mas, na medida
em que está em seu poder, o amor já constitui algo dessa união. Este duplo
aspecto do amor é de grande importancia” (D. von Hildebrand, La esencia
del amor, 86).

54 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


Capítulo II
Amor e Intensidade
II - Amor e Intensidade

1. Intimidade e consciência

1. O caminho para a intimidade foi conhecido e proposto


de diversas maneiras pelos pensadores antigos como um per-
curso que vai de fora para dentro e de baixo para cima. Por
exemplo, Plotino distingue três planos do ser humano:  ,
,  ; por sua vez, cada um de nós pode estabelecer-se em
um desses níveis, fazendo-se homem sensível, homem racional
ou psíquico ou homem inteligível (    ). O
caminho da interioridade exige superar primeiro o homem
sensível, para ultrapassar depois o homem racional e chegar
ao que na alma já não é alma, o  . A este ponto se che-
ga não tanto pelo esforço psicológico dedicado a consegui-lo
quanto pela realidade objetiva que de dentro está convocando
o ser humano: esta realidade é um princípio chamado o “uno”,
o qual é visto pelo ápice do  , pela intuição espiritual, o
 , a “ponta da inteligência”. A imersão na intimi-
dade não se justifica senão pela realidade que a ultrapassa inte-
riormente (  ). E, por sua vez, o âmbito da intimi-
dade mesma não descerra seu véu se o homem não se aproxima
dela com um esforço adequado para alcançá-la: mas ela não
aparece como uma conquista, e sim como uma gratuidade que
se outorga ao empenho dedicado a consegui-la. A gratuidade
da intimidade corresponde à gratuidade da realidade do supre-
mo princípio real e único: o semelhante se une ao semelhante
(    ).108 Este caminho gratificante para a
interioridade foi sublinhado por sua vez pelos pensadores cris-
tãos, tendo em Santo Agostinho seu expositor mais insigne, o
qual põe na origem da alma não um princípio impessoal, mas a
Deus mesmo. Se a alma não se volta para si mesma, não pode
chegar à visão de Deus nem ao conhecimento de sua subs-
tância imutável.109 A alma deve recolher-se a seu fundo inte-

108 - René Arnou, Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, 191 ss; 218 ss.
109 - “Nisi ipsa anima super se se effundat, non pervenit ad visionem Dei et
ad cognitionem substantiae illius incommutabilis. Nam modo, cum adhuc
in carne est, dicitur ei: ubi est Deus tuus? Sed intus est Deus ejus, et spiritu-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 57


Juan Cruz Cruz

rior para conseguir as alturas transcendentes. Este fundo tem o


modo da autoconsciência, da autoposse que é habitualmente
consciente de si, modo que Santo Agostinho chama memória:
“Penetrei no mesmo assento de meu espírito, o que existe em
minha memória, porque o espírito tem consciência recordati-
va de si”.110 Este fundo íntimo não vive à expensas de nenhum
ato ou comportamento, mas do comportamento que assente à
verdade. Não há autêntica intimidade sem a presença da ver-
dade objetiva e, por sua vez, sem o princípio iluminante da
verdade no espírito: “Onde encontrei a verdade, ali encontrei
a Deus, a própria verdade“.111 Deus me é o mais interiormen-
te íntimo (interior intimo meo).112 E o Santo de Hipona não
hesita em recorrer às expressões que indicam a auto-referência
consciente que preside a intimidade.113
Essas indicações históricas sobre o caminho da intimida-
de têm, como no caso de Santo Agostinho, um considerável
componente teológico; mas são extraordinariamente ilustra-
tivas e convidam a reelaborá-las num enfoque antropológico
sistemático.
2. Ainda que a intimidade não se identifique com os
diferentes atos da consciência, ela se forja na direção da
consciência. Ademais, a intimidade se sublinha mais na
região ontológica do hábito que na do ato. Mas precisa-
mente a consciência é da ordem do ato: tanto do ato da
vivência elementar como dos atos da consciência temática
e da consciência tética, inseridas as três na autoconsciência
concomitante.
a) O conceito de vivência ou consciência elementar in-

aliter intus est, et spiritualiter excelsus est: nec pervenit anima ut contingat
eum, nisi transierit se” (Enarrationes in Psalmos, In Psal. 130, n. 12).
110 - “Intravi in ipsius animi mei sedem, quae illi est in memoria mea,
quoniam sui quoque meminit animus” (De Trin. 10., 10, c. 25, n. 36).
111 - “Ubi enim inveni veritatem, ibi inveni Deum meum ipsam veritatem”
(Conf., 10, c.24, n. 35).
112 - Conf., 3, c. 6, n. 11.
113 - “Ad interiorem mentis memoriam qua sui meminit, et interiorem in-
telligentiam qua se intelligit, et interiorem voluntatem qua se diligit” (De
Trin., 14, c. 7, n. 19).

58 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

troduz no de “vida” um matiz especial; a vida é uma realida-


de muito mais ampla que a vivência. Aos signos essenciais da
vida (autodesenvolvimento, totalidade, estrutura e integra-
ção, auto-sustentação e adaptação), acrescenta-se aqui o fato
de que na vivência a vida alcança certo estado de vigília; nela
é como se a vida começasse a iluminar-se de dentro, ganhando
com isso uma nova dimensão.
Pois bem, este “dar-se conta”, próprio da vivência, já é um
conhecimento intencional, ainda que “confuso”, de objetos,
uma descoberta de partes difusas do ambiente; pode identifi-
car-se com o conceito de “consciência sensível”, cujos objetos
não se acham defrontados com o sujeito com a total precisão
de coisas originalmente reais: não se mostram como coisas em
si reais, mas como coisas para a vida sensível.
Esta vivência não é típica apenas do âmbito cognoscitivo
elementar, mas também do conativo dos estados sentimentais.
Para captar uma coisa com clareza, é preciso estar explicita-
mente orientado para um objeto; toda consciência clara deve
ser necessariamente consciência de uma coisa abertamente
defrontada. Pois bem, no plano da vivência, há apenas uma
intencionalidade global. Por exemplo, ainda que haja muitos
sentimentos claramente intencionais, há outros que só com-
portam uma orientação vaga a um pólo objetivo: não são cons-
ciência-de explícita; referimo-nos aos humores, aos “estados
de espírito”. Se me sinto abatido, melancólico ou alegre, posso
às vezes dar razões disso, mas outras vezes sou incapaz de fazê-
lo: este último caso é o dos humores. O humor não me reenvia,
enquanto tal, nitidamente a um objeto intencional individual.
Minha melancolia não se refere a um acontecimento concre-
to que a provoque; mas tampouco é exclusivamente “minha”
melancolia, porque alguma referência vaga existe a significa-
dos do mundo não plenamente definidos; é uma consciência
de mim mesmo e do estado em que me encontro, a qual tem
algum tipo de relação com algo global.
O humor é um estado intencional difuso que não é diferen-
ciado, nem está completamente descolado do sujeito nem tem
ainda contorno ou ordem; mas justamente este humor vago e

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 59


Juan Cruz Cruz

impreciso colore ou tinge os diversos atos intencionais níti-


dos. O humor puro não é ainda uma consciência intencional
clara em sentido estrito. Isso não quer dizer que o sentimento
do humor coincida simplesmente com meu eu, ou seja, que a
vivência intencional confusa se confunda com minha auto-
presença (ou autoconsciência consectária), que é inobjetiva
ou inintencional.
b) Podemos falar de consciência “nítida” quando na vi-
vência aparecem separados claramente dois pólos; quer dizer,
quando o homem refere suas vivências a essa fonte comum
que é seu eu como diferente do mundo, do não-eu. Estamos,
pois, no domínio da intencionalidade nítida. “Consciência”,
neste aspecto preciso, é ao mesmo tempo consciência do eu e
consciência do não-eu. Em contrapartida, falamos de “vivên-
cia elementar”, mas não de consciência estrita, na criança re-
cém-nascida: esta vivência é difusamente intencional, porque
não contém incisivamente tal separação (entre o eu e o que
o cerca). A vivência elementar não é conscientização objeti-
vante disto ou daquilo. Precisamente a esta última consciência
identificadora chamamos “consciência temática”.
c) Dá-se nítida consciência reflexiva, posicional ou téti-
ca (instância ajuizante que toma posições) quando o eu não
só identifica suas vivências, mas toma uma posição ou atitude
crítica com respeito a elas; nela se manifesta o homem ex-
plicitamente relacionado consigo mesmo e com o mundo em
volta. Tal é o caso da recordação voluntária, do processo do
pensamento consciente e dirigido, da atenção voluntária no
autodomínio e da ação dirigida a um fim, do amor em que nos
entregamos. A consciência tética se contrapõe à consciência
ingênua, que é a que não toma posição, a que não adota uma
atitude crítica ante as vivências. De modo que a finalidade
da consciência tética é dirigir explicitamente nosso compor-
tamento.
A primeira coisa que aparece no homem é a vivência ou
consciência elementar; a segunda, a consciência identifica-
dora ou temática; e, por último, a consciência reflexiva ou
tética. No entanto, não há um hiato ontológico nesta evolu-

60 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

ção, mas uma progressão de sentido, um desdobramento ou


gênese da consciência,114 em cuja direção se estrutura tam-
bém a intimidade.
Quando dizemos que há consciência tética? Quando po-
demos fazer de um objeto, em sua qualidade de “ser”, ter-
mo de atos afirmativos explícitos. A orientação para o ser
penetra sempre com seus raios o nível consciente da vida
humana. É consciente, no sentido estrito do termo, o que
assume explicitamente posição com respeito à realidade
“sob a razão de ser”.115
A consciência de ser é consciência de uma direção. Na me-
dida em que expressamos esta orientação por atos téticos, agimos
de modo completamente consciente. Pois a tomada de posição
do “assim é“ é parte essencial do juízo, e, se não tem lugar, o juízo
não se efetua plenamente. Assim, sempre que um sujeito defronta
explicitamente o que é (por juízo ou por amor), manifesta por isso
que, estando presente para si mesmo, está diante do ser.
Mesmo dormindo e sonhando estou orientado ao ser e pre-
sente para mim mesmo: minha espiritualidade primordial está
implícita nesses estados. Inversamente, minhas idéias claras e
diferentes não são outra coisa senão o último desdobramen-
to da mesma situação ontológica originária, o dinamismo do
eu.116 E nesse movimento, que é ao mesmo tempo real e moral,
se constitui minha intimidade.
Para que a intimidade alcance sua plenitude, tem de rea-
lizar-se progressivamente na linha desta direção fundamental
da consciência. Pois a consciência sensível, tanto no animal
como no homem, jamais toma explicitamente posição em face
das realidades como realidades em si mesmas.117

114 - Sobre a fenomenologia da consciência, cf.: Aron Gurwitsch, Théorie du


champ de la conscience, Paris, 1957; H. Ey, La consciencia, Madri, 1967; Igor A.
Caruso, Bios, Psique, Persona, Madri, 1965.
115 - Esta argumentação é a dada por S. Strasser em Seele und Beseeltes,
182-192.
116 - S. Strasser, Seele und Beseeltes, 190.
117 - É o que se pode dizer do “sentire” escolástico: não se pode fazer entrar
neste âmbito inferior a captação de entes como entes.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 61


Juan Cruz Cruz

2. A intimidade é atravessada pelas formas intencionais e


pontuais da consciência. Mas ela se constitui a partir da auto-
presença inintencional ou mera conotação do eu por si mesmo
nos hábitos e em todo ato heterorreferencial, seja a intenciona-
lidade deste explícita e clara (como nos sentimentos objetivos)
ou implícita e vaga (como no estado sentimental ou humor):
a autopresença inobjetiva ou autoconsciência concomitante
acompanha, como a sombra ao corpo, tanto os hábitos e os es-
tados quanto a consciência temática e tética. Esta unidade da
autoconsciência não tem caracteres de primitividade — como a
de um bloco — ou de pobreza — como a de um ponto. Aí está
tudo referido a um só ato que se recolhe em si mesmo: trata-se
da presença ativa para si mesmo, que é a caracterização do es-
pírito. Enquanto ser espiritual não sou exterior a mim, mas in-
terno a mim, traço essencial da intimidade. Esta autopresença,
esta primordial “volta completa” em que se unifica a intimidade,
carece de extremos externos e internos: “voltar à própria essên-
cia (redire ad essentiam suam) não é nada mais que subsistir em
si mesmo (rem subsistere in se ipsam)”. Ou seja, esta “curvatura”
não implica um desdobramento de si em sujeito e objeto: não é
uma ação de refletir-se ou uma consciência espelho. Santo To-
más diz que a alma, “percebendo seu ato, entende-se a si mesma
(se ipsam intelligit) sempre que entende algo (quandocumque
aliquid intelligit)”. Trata-se de que em um só ato de apercebi-
mento há dois pólos: por um lado, o ato é autopresença enquan-
to se refere ao “se ipsam” e, por outro lado, é conhecimento ob-
jetivo intencional (tético ou atemático) enquanto se refere ao
“aliquid”. O ser consciente de si não se olha num espelho, mas
se autopossui. No entender ou querer algo, pelo contrário, estou
orientado como sujeito a um objeto: dá-se a relação intencio-
nal. A autopresença (ou autoconsciência inobjetiva) não é um
ato ulterior fundado num ato precedente; ou seja, não é um ato
diferente justaposto ao conhecimento direto; é antes o mesmo
conhecimento direto enquanto transparente para si mesmo.118

118 - À diferença da autoconsciência primordial, o conhecimento reflexivo


de si já não tem por objeto o sujeito pensante, mas o sujeito pensado. Ele só

62 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

Pois bem, por constituir-se a partir da autoconsciência, a


intimidade é interioridade; e, por ficar vertida na intencio-
nalidade de seus atos, hábitos e estados, é uma interioridade
relacionada.
O ponto para o qual se curvam e convergem todos os pro-
cessos de minha intimidade jamais se dá a mim como um ob-
jeto. Pode-se comparar com o sol: eu vejo graças à sua luz,
mas não posso olhá-lo. A fonte espiritual de minha intimidade
é invisível não porque seja tenebrosa, mas precisamente pelo
contrário. Isso não me impede de saber que existe o sol nem de
saber sua localização: basta seguir a direção dos raios lumino-
sos; ali onde já não posso ver porque a abundância de luz me
cega, ali se encontra o sol. Do mesmo modo, a autoconsciên-
cia tem na consciência tética a plenitude finalizante de todo
o desenvolvimento humano. Ou seja, ainda que eu não possa
conceber-me como a um objeto, posso aperceber-me de mim
mesmo como a um centro, do qual irradiam todas as minhas
dações de sentido. Nesta consciência de uma direção reside a
autopresença envolvida em cada processo da intimidade.
3. A unidade persistente do eu está na base de toda a inti-
midade, tanto em seus aspectos cognoscitivos quanto em seus
aspectos volitivos. Na vida cognoscitiva persiste o eu em meio
à mudança de seus estados, atos e conteúdos. Não se dissolve na
corrente das vivências, porque se assim fosse não poderiam tais
vivências ser atribuídas a um mesmo sujeito. Impõe-se como
unidade contra o diluente curso da consciência. A unidade
da apercepção — empírica ou transcendental, não importa
aqui — é a primeira condição da unidade das representações,
as quais abarcam uma multiplicidade de dados submetidos ao

tem lugar quando certos atos da consciência passam do estado de atuali-


dade exercida ao de atualidade objetivada, ou seja, mantida e defrontada
na consciência. Há, pois, uma consciência intencional (elementar, temática
e tética) tanto se se volta objetivamente para si mesma como se se orienta
objetivamente para algo exterior. É reflexivamente consciente de si o que
volta à sua própria existência, à sua natureza e ao seu estado ou os faz
objeto de atos intencionais. Mas também há consciência de objetos reais
ou possíveis alheios ao eu. Cf. A. Millán Puelles, La estructura de la subjeti-
vidade, 320-377.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 63


Juan Cruz Cruz

tempo, referidos em seu presente ao experimentado anterior-


mente. Também a função da memória supõe a permanência do
eu idêntico: porque a recordação não é um simples armazena-
mento, mas é levada por uma tração unitária. Para conceber
o eu, é preciso excluir especialmente uma metáfora espacial: a
de uma camada profunda. Seria preferível usar a do ponto de
referência, a do polo de tensões ou contrastes ou a do centro
de raios. O eu é a unidade que abarca tudo. E pelo eu o todo
da consciência permanece idêntico. Especialmente, torna-se
lúcido nos graus superiores da consciência, na afirmação e no
reconhecimento de si mesmo.
Na vida volitiva ou no exercício da liberdade localiza-se
também a identidade do eu, ainda que mudem as circunstân-
cias: aceitando ou renegando a si mesmo, responsabilizando-
se ou recusando uma obrigação aceita, comprometendo-se
ou ficando à margem de exigências pessoais ou sociais. Pelo
exercício de sua liberdade vai configurando a “personalidade”,
que não é propriamente um estático “identificar-se consigo
mesmo”, mas uma obra de auto-identificação, obra que exige
ao mesmo tempo desdobramento e brio; é um “ativo fazer-se
idêntico”. Nesta dimensão fundamenta-se a intimidade; e des-
tes impulsos vive seu segredo, sendo ela capaz de responder
por si e de ser fiadora de si mesma. A intimidade não cai para
o homem como um fruto maduro, mas como um poder que se
confere ao conquistá-lo. Na medida em que a intimidade é
vivida, mediante a força de identificação, como própria e apro-
priada, não se desfaz na fugacidade dos acontecimentos.
Poder-se-ia até pensar numa pessoa plenamente constituí-
da, mas com uma intimidade reduzida. A intimidade é a cul-
minação da identidade. Mediante o amor, a intimidade se abre
e se potencia.
4. A intimidade, o mundo interior psíquico e moral do
homem, inclui a autoconsciência — em princípio a conco-
mitante —, ainda que nem tudo o que lhe pertence passe à
atualidade da consciência de si propriamente reflexiva. Mas
mesmo grande parte do que transcorre em suas profundidades
pode tornar-se lúcida por meio de uma atitude dinâmica da

64 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

consciência reflexiva e mediata. A intimidade inclui o aper-


cebimento consectário do arraigamento das múltiplas relações
em que o eu está com o mundo (ou seja, do arraigamento dos
hábitos). Tais relações são as de amar e odiar, esperar e temer,
querer e obrar, ambicionar e repudiar, gozar e afligir-se, irar-se
e enternecer-se; enfim, todas as que se compreendem na vida
afetiva. Nelas se incluem, por um lado, as relações de adap-
tação ao mundo de coisas e de pessoas e, por outro lado, as
referências ao valor moral que tais relações envolvem. Tanto
umas como outras são o modo como a intimidade se constitui a
partir do eu. Ou seja, constitui-se relacionando-se fundamen-
talmente com as pessoas e com o orbe moral: a consciência
atualiza-se pelo exterior ao sujeito, pelas pessoas que o cercam
e pelos valores que a chamam. Mas, ainda que a consciência
humana dependa, em sua atualização, do mundo transcenden-
te a ela, nem por isso cai interiormente no vazio. Desde que
nasce, firma-se interiormente nos conteúdos arraigados ou há-
bitos, vividos todos como fatos de liberdade transcendental
(de humana nudez) e experimentados alguns, ademais, como
fatos de liberdade de arbítrio. Esta vivência de liberdade, con-
quanto seja limitada, centra e hierarquiza a intimidade, pois a
liberdade tem de decidir nas múltiplas situações da vida pes-
soal. A intimidade é, assim, uma categoria ao mesmo tempo
psicológica e ética. Pois nela se articula a vida psíquica como
antecipação (no conhecimento e na vontade) e como resposta
a valores individuais ou coletivos. Intimidade que transcende
(não se esgota) a si mesma em cada um dos atos, podendo-se
oferecer como única, mediante o amor, à resposta do outro.
5. A intimidade, interioridade relacionada, se forma ou
forja no curso da vida pessoal — o homem começa a descobrir
a intimidade em uma etapa de sua vida —,119 e podemos con-

- J. J. López Ibor, El descubrimiento de la intimidad y otros ensayos. Este


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au-
tor assinala com algumas frases aparentemente felizes o que poderia ser a
intimidade, frases, porém, que em verdade não se referem a nada concreto.
Um exemplo: a intimidade, “reduto mais entranhável de nossa existência”
(24). John W. Flesey, Intimacy and Spiritual Development: a Study of the Dynam-
ics of Authentic Intimacy. Sobre as modificações contemporâneas do con-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 65


Juan Cruz Cruz

tribuir para formá-la em outro: mais ainda, ela não se aprofun-


da nem amplia sem o contato com o outro.
6. Uma intimidade é forte na mesma medida em que tem
capacidade de compartilhar e de relacionar-se criativamen-
te.120 Por esta constituição insondável, a intimidade, embora
pertença ao nível operativo, não é completamente reabsorvida
na ordem intencional dos atos, e menos ainda na daqueles atos
que se cristalizaram em simples costumes e usos, moldando au-
tomaticamente muitos aspectos de nossa vida. A intimidade é
a formação operativa que se mantém ligada de maneira ime-
diata e viva ao manancial de onde brotam os atos. Chamamos
íntimas às ordens operativas por sua radicação (atos e hábitos)
ou por sua difusão (estados sentimentais ou humores) nesse
manancial. À intimidade comparecem, por um lado, os esta-
dos (v. g., os humores sentimentais), que não dependem em
sua constituição de atos intencionais explícitos com referente
concreto, e, por outro lado, muito principalmente os hábitos
profundos radicados na liberdade, em especial os intelectivos e
volitivos (v. g., o amor pessoal), entendidos por certas corren-
tes psicológicas como “inconscientes”.

2. A intimidade na profundidade do amor

1. O hábito que melhor define a intimidade é o amor per-


feito. Como aquilo que se ama pode ser ou último ou interme-
diário, o amor espiritual perfeito se refere ao termo último, que
é a pessoa; enquanto o amor espiritual imperfeito só se refere
ao termo intermediário. De modo que pode ser duplo o termo
do amor espiritual: ou a pessoa própria ou a alheia para a qual
queremos algo bom; ou a própria coisa boa que queremos para
a pessoa — seja a própria, seja a alheia. Ao bem que se quer
para a pessoa tem-se amor imperfeito, e àquele para quem se

ceito psicológico de intimidade, ver Anthony Giddens, La transformación de


la intimidade.
- Jerry Greenwald, Creative Intimacy, 205.
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66 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

quer o bem tem-se amor perfeito.121 O termo final e principal


é a pessoa; o secundário e intermediário é a coisa medial boa,
que é querida para a pessoa, fim último. O amor à coisa medial
boa, que é imperfeito, implica movimento e mediação: não
é puramente quiescente; em contrapartida, o amor à pessoa
(tanto no amor benevolente como no amistoso e no espon-
salício) não é propriamente ato, mas hábito, é algo perfeito,
final e permanente: é um amor propriamente quiescente. Este
é outro modo de classificar o amor espiritual: não por seu ter-
mo ou objeto (pessoas ou coisas), mas pela índole de sua ação
(quiescente ou itinerante).
O acima expresso é outro modo de dizer que, para o Aquinate,
há um “amor de pessoas” e um “amor de coisas“, ou, o que é o
mesmo, um amor perfeito ou quiescente e um amor imperfeito
ou itinerante. Trata-se de amor espiritual nos dois casos, amor
que pode ser ou imperfeito ou perfeito. Buscamos com amor
imperfeito o que queremos para nós como puro objeto de gozo
ou prazer: não buscamos o bem que cremos amar, mas o gozo
mesmo, ou melhor, este gozo é o bem que buscamos, porque
dele provém a atração que nos seduz. Ao passo que chamamos
“amado” àquele para quem queremos algum bem.122
Não se pense, pois, que o amor imperfeito pertence ao
apetite sensível: não é um afeto sensível; tampouco o amor
espiritual coincide em sua totalidade com o amor perfeito.
Trata-se de fazer uma subdivisão do amor espiritual. “Há
um duplo amor: um imperfeito, outro perfeito. No amor im-
perfeito, não queremos o bem para alguém em si mesmo,
mas queremos o bem dele para nós mesmos. E este amor é
o que alguns chamam de concupiscência, v. g., amamos o
vinho para alcançar suas delícias, ou amamos um homem
para nossa utilidade e prazer. O outro, em contrapartida, é
o amor perfeito, pelo qual se ama o bem de alguém em si
mesmo, v. g., amando uma pessoa quero que ela tenha esse
bem, ainda que eu nada ganhe com isso; e assim é o amor

121 - S. Th., I-II, 26, 4.


122 - S. Th., I-II, 26, 4, ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 67


Juan Cruz Cruz

perfeito, pelo qual alguém ama a outro da mesma maneira


que ama a si mesmo.”123
Vê-se, pois, que os modos de amor espiritual se diversifi-
cam não só pela índole dos seres amados (pessoas ou coisas),
mas pela direção desse amor (para o outro ou para mim). Pois
bem, também se pode dizer que há amor de doação quando se
ama a pessoa do outro por si mesma; e que há amor de posse
quando as pessoas e as coisas são amadas não por si mesmas,
mas por nosso próprio bem.
Esta qualificação de “perfeito” e “imperfeito”, aplicada ao
amor, é de índole não só moral, mas ontológica. E tem co-
nexão com as descrições fenomenológicas feitas por autores
como Buber, Marcel, Scheler, Hildebrand e outros.
2. Tanto o amor perfeito quanto o imperfeito respondem à
índole espiritual e livre da pessoa amante. O primeiro aconte-
ce através da objetivação pessoal do outro, dentro da relação
livre do “eu ao tu”, onde cada um se afirma no nível mais radi-
cal de sua constituição: na intimidade surgida de uma identi-
dade/mesmidade substancial que é ao mesmo tempo inteligen-
te e livre. O segundo surge através da redução que, de maneira
também livre, se faz do outro mediante uma objetivação pos-
sessiva, na relação do “eu ao ele”.
Em verdade, para amar o outro não posso prescindir de
minha função cognoscitiva, que se refere a um objeto real:
ela realiza objetivações, ou seja, re-(a)presentações do outro.
Acontece porém que a objetivação pode ser redutiva ou uni-
lateral; por meio dela se realiza uma forma de amor imperfei-
to, só possessivo e itinerante. Essa redução operada na obje-
tivação não é efeito do mero conhecimento, mas da vontade
livre que dirige e propicia um enfoque parcial ou unilateral
do conhecimento mesmo: não há ninguém mais cego que
aquele que não quer ver, diz o provérbio. Em contrapartida,
o amor perfeito é levado por uma vontade de conhecimento
ampliativo, não redutivo: conhecer tudo o que o sujeito é e
sente, e cada vez melhor, define o talante do amor perfeito.

123 - De Spe, a. 3, c. fine.

68 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

a) A relação de objetivação “reificante” é impulsionada


pela decisão livre de tratar o outro como coisa inerte e quan-
tificável. Inerte, suscetível de ser esgotado por um questioná-
rio que abarque todas as suas propriedades e estruturas; nesse
sentido é tratado como algo acabado ou sido, de modo que
mesmo seu futuro figura como algo incluído no presente, e este
como algo que já não dá mais de si. Quantificável, porquanto
as próprias estruturas qualitativas aparecem como dimensões
quantitativas, alinhadas em adição numérica: o outro vem a
ser um número que internamente se mede com o esquema do
mais ou do menos (alto, inteligente, enérgico) e externamente
se soma homogeneamente aos demais para fabricar estatísticas
de comportamentos econômicos, sexuais ou de outra índole.
Por essa óptica, o outro se torna indiferente; e, mesmo quando
sua vida se acaba, dizemos que “morre” na indiferença de seu
ser, mas não “nos morre”, implicando-nos em sua biografia.
Esse amor que só tem a índole do imperfeito e possessivo,
do referido unicamente às coisas, vivido como processo itine-
rante, é chamado pelos medievais amor concupiscentiae.
b) A relação de objetivação pessoal ou de intimidade ple-
na é movida pela decisão livre de tratar o outro como pessoa
objetiva, sublinhando sua índole dinâmica e qualitativa. Di-
nâmica significa aberta e inacabada, criadora, projetada para
o futuro, tanto para desenvolver suas potências (sua vontade,
sua inteligência, sua imaginação, etc.) quanto para desdobrar
suas possibilidades históricas (os hábitos adquiridos e as pautas
da tradição que o possibilitam).
Qualitativa significa inquantificável, expressão de uma in-
terioridade inesgotável, não consignada jamais por um núme-
ro ou por um índice que expressa o mais e o menos, mas por
um nome — o seu próprio nome —, que é o símbolo de uma
realidade livre e criadora. Essa realidade pessoal jamais me é
revelada na indiferença de uma coisa inerte, mas na convi-
vência de sua liberdade, na afirmação única de sua intimidade.
Este amor é um hábito, uma dinâmica quiescente.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 69


Juan Cruz Cruz

3. Intimidade e inconsciente

1. A caracterização do amor perfeito nos leva a precisar


sua índole profunda e permanente, que não é outra senão
a de um hábito, ainda que não a de um elemento incons-
ciente. Por contraposição à zona atual da consciência, é
“inconsciente” tudo o que não figura como pólo de uma
orientação explícita interior, seja intencional, seja inin-
tencional. Evidentemente, a consciência objetiva e explí-
cita de si é um caso particular da consciência intencional
em geral.
Pois bem, não conhecemos um objeto chamado “o in-
consciente”, nem podemos indicar um objeto chamado “o
consciente”; mas percebemos a direção que dá sentido, a
partir da plena presença espiritual de si, tanto a disposições,
tendências e instintos estabelecidos no eu quanto às con-
figurações persistentes realizadas pelo eu. As disposições e
as tendências, por exemplo, formam o reino da virtualidade
subatual; as configurações persistentes, a esfera da virtuali-
dade sobreatual, que não é outra senão a dos hábitos.
Mas, conquanto não possuídos explicitamente, os hábitos
configuram a grande riqueza da personalidade, vividos pela
intimidade (em sua autoconsciência primordial) como pode-
res apropriados, sendo este tesouro a virtualidade sobreatual.
E o primeiro valor deste capital é o amor perfeito.
2. O hábito é primariamente uma qualidade, que, em
linguagem clássica, é a atuação ou determinação da poten-
cialidade de uma substância, preenchendo suas virtualida-
des realizáveis, suas possibilidades de ser. A qualidade equi-
vale a um ato que determina uma potência. E este ato foi
chamado até de “modulação da substância”, determinação
intrínseca da substância, promotor da substância. Por esta
sua índole realizadora intrínseca, distingue-se das demais
determinações ou categorias que afetam a substância. Por
exemplo, distingue-se da quantidade, que não informa nem
dispõe em si mesma a substância, mas só a estende em suas
partes materiais. As demais categorias — como a relação

70 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

— tampouco determinam em si mesmas a substância, só em


ordem a algo exterior e dependentemente deste.
Pois bem, à intimidade pertence de modo muito princi-
pal a ordem vivida do hábito, da qualidade. Recordemos tão-
somente que o hábito, enquanto determinação acidental, se
distingue da forma específica (a racionalidade), que é o que
determina que o homem seja substância. O hábito é uma qua-
lidade que, como determinação, dispõe bem ou mal a substân-
cia; trata-se de uma disposição imediata da natureza humana
em si mesma. E não se deve confundir o hábito qualidade com
o simples adestramento ou o costume que os animais adqui-
rem. Só há hábitos quando o sujeito mostra em suas faculdades
uma amplitude transcendental e não está coarctado a um só
objeto, ou seja, quando há espírito. Por isso adverte o Aquina-
te que por três motivos o hábito é necessário a essas faculdades
integralmente abertas: para que tenha uniformidade, facilida-
de e prazer em seus atos.124 Não é vão, portanto, repisar que o
hábito qualitativo não é simplesmente algo que o sujeito tem
externamente: só há hábito quando o sujeito “se há” em si
mesmo, em seu interior, bem ou mal, do que a intimidade se
apercebe.
Por sua vez, todos os hábitos são intencionais e implicam
uma ordem à ação. Porque, se o ato primeiro da natureza se or-
dena ao ato segundo (à operação), o mesmo hábito incide para
prepará-la para sua atividade posterior. Sucede apenas que a

124 - Q. Disp. De Virt. in communi, q. un. a. 1 c. E, conquanto haja dois ti-


pos de hábitos, os entitativos — os propriamente corporais que dispõem a
substância em si mesma, como a saúde ou a doença, o vigor ou a fraqueza,
a beleza ou a deformidade — e os operativos — que dispõem as faculdades
—, em ambos os casos o mais próprio e primário do hábito é determinar
imediatamente a natureza humana, seja a natureza da substância, seja a natu-
reza da faculdade. A ordem à natureza é, no hábito, mais eminente que a
ordem à operação. Este arraigamento na natureza é de índole diversa: só
quando é estável e dificilmente mudável no sujeito se chama hábito (  ).
Se, em contrapartida, é instável e muda facilmente, estamos diante de uma
mera disposição (). Do enraizamento determinativo na natureza se
segue que o hábito é uma disposição boa ou má: por ser uma disposição
imediata da natureza, sucede que há de dispô-la ou bem ou mal. Tanto
os hábitos entitativos quanto os operativos são realizadores da natureza
mesma. E podem ser bons ou maus.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 71


Juan Cruz Cruz

ordenação à ação é secundária no hábito entitativo (a saúde


do corpo dispõe bem ou habilita para o trabalho), mas é primá-
ria no hábito operativo, que aparece em faculdades que, como
a inteligência e a vontade, são de si princípios de ação. Nesta
referência à operação funda-se uma relação interna do hábito a
seus objetos ou, em seu caso, às pessoas mesmas.
3. Se a intimidade vive principalmente do hábito, nem por
isso deve ser confundida com a esfera psicológica que a psicaná-
lise descreve como “inconsciente”.125
O inconsciente deve ser definido com respeito ao conjunto
do psiquismo. Com efeito, quando falamos de fatos psíquicos,
entendemos por tais os atos produzidos por uma das potências
psíquicas; mas as realidades que não são nada mais que puras vir-
tualidades subatuais, inferiores como tais ao nível do fato ou do
ato, devem justamente ser chamadas inconscientes em sentido
primordial. Aí se encontram as tendências, os instintos e as dis-
posições inatas.126 Quando surgem, podem ser vividos somente
como próprios, mas não necessariamente como apropriados e
assumidos por um ato livre; embora esse conjunto pertença à in-
timidade a título do próprio e apropriável, assumível assim que
começa a brotar e dar-se a conhecer no campo da consciência.
Há outras virtualidades sobreatuais, como as recordações e
os hábitos, que se formaram mediando já os atos e vivem de-
pois no interior destes, potenciando-os. São vividas na cons-
ciência atemática como disponibilidades já apropriadas, e não
como suportadas.

125 - Este aspecto não foi suficientemente sublinhado por López Ibor em
seu livro sobre El descubrimiento de la intimidad.
126 - A este âmbito pertence a maior parte dos conteúdos atribuídos por
Freud ao inconsciente. Para Freud o consciente é o conjunto de idéias,
noções, imagens, recordações, representações que o indivíduo é capaz de
evocar voluntariamente, e que por isso pode controlar, reanimar, fazer
aparecer e desaparecer. O inconsciente é — abaixo das idéias claras e dos
atos controlados — o mundo de forças obscuras, poderosos instintos insa-
tisfeitos ou desviados de seu fim, energias fundamentais. Contém as forças
que nunca foram conscientes, ou que talvez em certo tempo o tenham sido,
mas depois foram empurradas para essa zona. O homem não pode evocar
voluntariamente esses conteúdos. Freud considera que a consciência perde
importância diante desta grande descoberta. O inconsciente se converte
até em gestor da unidade psíquica do homem.

72 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

a) As tendências não são atos psicológicos, mas princípios


de atividade. Como tais, não têm outra realidade além da vir-
tual e só podem ser conhecidas por seus efeitos, que são ao
mesmo tempo os afetos que os manifestam e os atos que os
põem em obra. A tendência, como tal, é inconsciente, por
estar abaixo do ato.
Também o instinto é uma organização inata e inconsciente
de imagens, de propensões e de emoções que se expressa me-
diante mecanismos específicos: é e dirige uma organização e se
define muito mais por seu caráter formal que por sua matéria;127
não obstante, é preciso distingui-lo claramente dos fatos de
atividade mental, dos quais é apenas o princípio, como forma
permanente e inconsciente do psiquismo.
No que diz respeito às disposições inatas, ainda não vividas,
deve-se aceitar que já se encontram preparadas em nós como
possibilidades. A este inconsciente disposicional pode reduzir-
se o “inconsciente coletivo” de Jung.128 Quando este autor afir-
ma que a libido submerge no mais profundo do inconsciente

127 - Não é correta a posição de alguns antropólogos, como Gehlen, que


postulam a Instinktlosigkeit (ausência de instintos) no homem. Isso é exato
somente no nível do ato, mas não no da virtualidade.
128 - Tanto para Freud como para Jung existe um inconsciente e um cons-
ciente diferentes e até opostos que se articulam num conjunto. A primeira
estrutura da psique é o consciente, que tem como função ajudar o indivíduo
a adaptar-se à realidade; o eu se situa em seu centro: é o “sujeito” do cons-
ciente. A segunda grande estrutura da psique é o inconsciente, para Jung
com duas grandes flexões: o pessoal e o coletivo. O inconsciente pessoal
é algo que se faz progressivamente, como aquisição individual. Abarca
os conteúdos psíquicos que não puderam ser captados e assimilados pelo
sobrecarregado consciente e, ademais, os processos esquecidos ou repri-
midos. O inconsciente coletivo contém processos não pessoais do indivíduo
e que não foram adquiridos por ele. Provém de uma transmissão herdada,
étnica, de recordações e comportamentos típicos. Não se trata de uma he-
rança de idéias como tais, mas de potencialidades dessas idéias. Enquanto
o inconsciente pessoal tem caráter ontogenético, o coletivo o tem filoge-
nético. Em Jung, a parte reprimida perde importância, pois ele acentua
os conteúdos herdados do inconsciente coletivo. Os conteúdos do incons-
ciente são indiferenciados e representam potencialidades não estruturadas,
reações universais, que correspondem às origens e à evolução do ser hu-
mano e de seu meio. Portanto, a consciência é uma função completamente
individualizada, que opera de modo pessoal em cada indivíduo, em sua
adaptação ao mundo. Em contrapartida, o inconsciente não está ligado ao
mundo exterior e só obedece a suas próprias leis internas. C. G. Jung, El yo
y el inconsciente, 70-80.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 73


Juan Cruz Cruz

e reanima ali o que dormitava desde os tempos mais remotos,


está usando uma imagem inadequada e inútil. Em verdade, a
libido não dormita em mim, porque evidentemente eu não sou
tão antigo: tenho os anos correspondentes à minha idade cro-
nológica. No máximo, Jung poderá dizer que há em mim ten-
sões que atuam hoje exatamente como atuavam nos homens
primitivos. Interpretado o “arcaico” e o “arquétipo” como o
virtual humano, evita-se o véu misterioso com que Jung reco-
bre toda a sua psicologia. Nada há de fantástico ou misterioso
no fato de muitos processos do homem atual serem como eram
em tempos antigos. O “inconsciente coletivo” deve significar
unicamente esta igualdade no modo de se realizarem os pro-
cessos da vida em todos os homens. Mas não é um “estrato”
que vive simetricamente sua vida junto a meu eu consciente.
Também Karus, Klages e Palagyi coisificaram a dimensão
do inconsciente, conferindo-lhe caráter supra-individual,
como vida geral que se difunde no cosmos, e no qual deita
suas raízes toda vida individual. O individual não seria nada
mais que uma manifestação de sua essência; ele é a origem e
o termo onde se submerge definitivamente a vida individual
após a morte e, praticamente, no sono. Esta doutrina omite
que explicar o comportamento individual tão-somente pelos
processos individuais não é uma pauta arbitrária, mas se funda
no fato de que a única coisa que se oferece à nossa observação
é o indivíduo. Outra explicação é pura fantasia.
Este inconsciente existe, mas não em ato, e sim em potên-
cia ou de forma virtual. A dificuldade de fazer uma idéia precisa
destas virtualidades reside em seu próprio estatuto ontológico
potencial: só é possível fazer uma idéia precisa do ato ou do ser.
Em razão porém de o virtual não ser ato, mas potência e prin-
cípio, ele não pode ser concebido em si mesmo, mas apenas em
referência aos efeitos e aos atos que dele dimanam.
b) Não se deve confundir o reino do inconsciente ou da
virtualidade subatual com o âmbito da virtualidade sobrea-
tual, a que se conserva possibilitando e aperfeiçoando o de-
senvolvimento dos atos: como as recordações e as atitudes
morais básicas.

74 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

No que diz respeito às recordações, o que se conserva não


são, propriamente falando, as imagens nem os mecanismos,
mas a aptidão ou poder de reproduzir as imagens dos objetos
anteriormente percebidos. Não existe uma espécie de “sede
das imagens”, porque as imagens não são coisas. As vivências
“armazenadas” não são objetos ou seres vivos que, da morada
iluminada das vivências conscientes, fossem acantoadas num
obscuro porão; seriam então vivências atuais por vivenciar, o
que é contraditório. Antes, as vivências pretéritas entram a
formar parte do homem, entranhadas na vida, temporalizadas
com ela. O material recordativo jaz no sujeito assim como a
faísca está potencialmente na pedra ou o som no instrumento.
Se a imagem não é uma coisa, não existe realmente quando
não está formada em ato. Só se pode dizer que está em potên-
cia, ou seja, no e pelo poder que temos de formá-la. A conser-
vação das imagens não é nada fora deste poder, de modo que
reproduzir uma imagem nunca é fazer renascer uma imagem
antiga, existente num obscuro canto do psiquismo, mas formar
uma imagem nova e inédita a partir do hábito que a possibilita.
Também as atitudes morais básicas pertencem ao âmbito
da virtualidade sobreatual, do hábito. Este implica desenvol-
vimento de atividade e é princípio de atividade, mas não cria
uma atividade especial: aplica-se a todas para dar-lhes um fun-
cionamento mais fácil e regular. O hábito é uma estrutura que
figura como fator de continuidade, na medida em que por ele
o presente está unido ao passado que se incorpora, e prepara
o futuro. Sem a estrutura do hábito, a atividade psíquica se-
ria totalmente determinada pelas estimulações do momento e
não teria continuidade nem unidade. O hábito funciona como
um novo princípio de operação acrescentado às necessidades e
tendências naturais.
As virtualidades permanentes opõem-se aos atos psíqui-
cos, que são sucessivos e conscientes. Por serem habilidades,
não as conhecemos tematicamente, mas por indução a partir
dos atos.
c) O domínio do inconsciente consta primeiramente de vir-
tualidades subatuais, as quais têm um raio de projeção imenso:

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 75


Juan Cruz Cruz

compreendem, em primeiro lugar, as tendências e disposições


inatas, antes aludidas, que formam o inconsciente biológico
e o inconsciente psicológico. Mas também inclui o conjunto
de estados sentimentais, de fixações no comportamento, de
evocações, que, mesmo tendo sido originalmente apropriadas
(como atos e virtualidades sobreatuais), se foram cristalizando
fora da direção e do domínio da consciência e se assimilaram
às virtualidades subatuais, mantendo-se como poderes — mui-
tas vezes de repressão e impedimento — à margem da cons-
ciência, no domínio do inconsciente psicológico. A atenção
ao presente ou a acomodação à vida pode impedir que aflo-
rem diretamente as tensões implícitas dessas virtualidades. O
sono ou a hipnose afrouxam esta disciplina de acomodação, de
modo que então pode desatar-se o dinamismo próprio de tais
energias do inconsciente. Esse inconsciente pertence à inti-
midade só lateralmente, como possibilidade de apropriação,
positiva ou negativa.
Um exemplo eloqüente de virtualidade sobreatual é o amor,
que, quando não enche tematicamente em certo momento
nossa consciência atual, continua a pertencer à virtualidade
sobreatual e contrasta com o subconsciente ou reprimido, que
joga na penumbra. As vivências sobreatuais funcionam como
um fundo completamente aberto. “Enquanto o subconscien-
te ou o reprimido perturba o curso normalizado das vivências
atuais, tornando-o irracional, ou podendo fazê-lo, o sobreatual,
em contrapartida, não perturba de modo algum o curso normal
das vivências atuais, e nem se oculta atrás nem se mescla em
sua própria lógica, senão que, no caso do amor, permanece
como fundo benfazejo e vivificante.”129 A “perturbação” do
curso atual das vivências só poderia dever-se à modulação das
respostas ao amado, mas não à essência mesma do amor.
4. A intimidade vive em sua mais alta medida do senhorio
do hábito. O que não quer dizer que a intimidade seja mais um
hábito; é antes a unidade vivida de todos os hábitos, unidade
vista de dentro, em próprio e apropriadamente, presidida pelo

- D. von Hildebrand, La esencia del amor, 81.


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76 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

eu no modo da consciência concomitante, e já não da objeti-


vamente reflexiva e discursiva. Repitamos que os hábitos não
só são vividos como passivamente “próprios” ou tidos pelo su-
jeito, mas como ativamente “apropriados” ou conseguidos a
partir da liberdade do sujeito. Nesta apropriação ativa — nesse
ser conseguido por mim — reside o mais secreto da intimi-
dade. Esta unidade vivida é possibilitada pela identidade da
substância que comparece como originalidade e mesmidade.
A intimidade não é precisamente um novo hábito, mas a uni-
dade consciente do arraigamento existencial e da orientação
objetiva dos hábitos e de seus respectivos atos na natureza hu-
mana, na medida em que a dispõem bem ou mal. Unidade,
pois, penetrada pelo eu.
A intimidade não é o interior de uma rede que possa ser
concebida a partir de seus elementos. Tampouco é a unidade
do organismo vivo que se regula por si mesmo. Ainda que a
intimidade possua complexidade de atos e autodeterminação
ativa, seu interior é uma forma categorial própria que abarca
tudo. À diferença da natureza espaciomaterial e das organiza-
ções temporais orgânicas, possui a índole do inespacial, ima-
terial e único: a intimidade de cada ser humano é um “para si”
que não se transvasa para a vida psíquica alheia, e que só se
deixa descobrir e potenciar através da resposta entrecruzada
do amor.
5. O hábito propriamente dito enraíza-se em nossa facul-
dade, adquirindo uma peculiar forma de persistência. Não a
persistência própria de uma verdade objetiva, de uma fórmula
matemática, da beleza de uma tela. Mas a persistência da li-
berdade curtida e consolidada: perduração de modo completa-
mente real do ato mesmo na profundidade da substância. Nesse
sentido, o amor quiescente à pessoa, como hábito, possui uma
sobreatualidade precisa: tanto acima — por seu referente que
é a pessoa — como abaixo, por seu enraizamento substancial.
Em outras palavras: “O novo aqui é que não só as ‘palavras’
ditas no amor perduram em sua validade, não só se fixa uma
posição permanente diante do outro, mas essa atitude perdura
como tal em nossa alma colorindo e modificando todas as nos-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 77


Juan Cruz Cruz

sas situações. Esta atitude, como concreta realidade psicoespi-


ritual idêntica, continua totalmente viva na alma, e modifica
o estado integral de nossas vivências. Se deixa de existir, tudo
o que vivenciamos atualmente se modifica completamente
[...]. Ademais, mediante esta existência real, completamente
sobreatual, tem tal atitude caráter tanto de prelúdio com res-
peito a todo o realizado de modo atual quanto de fundo sobre o
que tudo o mais se encena”.130 O amor quiescente, em virtude
de sua profundidade constitutiva, não só estende sua validade
para além da realização atual, mas forma um plano estrutural-
mente profundo em nossa alma, a intimidade, e ali perdura em
plena realidade e identidade, irradiando sobre todo o atual-
mente vivido.
Também pode ser amor perfeito, portanto, o fato de se
ter a si mesmo como pessoa, e nunca como coisa. “Parece-
me decisivo levar em conta que, na afirmação amorosa a nós
mesmos, nos estamos vendo antes de tudo como a pessoas,
quer dizer, como a seres que têm em si mesmos a justificação
de sua própria existência. Mesmo quando estamos repre-
endendo a nós mesmos, pensamos e valoramos a partir das
tendências, temores e finalidades que pertencem à essência
de nosso ser mais íntimo. E isso é precisamente o que não
estamos fazendo quando, impelidos pelo desejo de possuir,
olhamos o outro como a um objeto para satisfazer nosso
apetite, como a um simples portador de certos encantos,
como a um meio para o fim.”131

4. Gratuidade da intimidade como qualidade relacional

1. Ainda que a relacionalidade pura não se conforme bem


com a índole substancial da pessoa, concorda, porém, com a
condição da intimidade. Se a pessoa é da ordem da substân-
cia, a intimidade é da ordem da qualidade e da relação. A

- D. von Hildebrand, La esencia del amor, 80.


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131 - J. Pieper, 153.

78 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

intimidade, como se disse, é o centro da ordem operativa do


ser humano e, portanto, núcleo da personalidade.
a) A intimidade não é um “reduto”, um espaço fechado ou
um lugar isolado na obscuridade interior, mas um centro de
relações, um núcleo qualitativo de referências: une por dentro
as pessoas, enquanto estas não se consideram entre si como
coisas inertes e quantificáveis. Entrar na própria intimidade
não é fechar-se ao outro pessoal, mas abrir-se ao seu nível mais
alto. A intimidade não é o que nos fecha, mas o que nos abre
como pessoas: não há outro modo de abertura pessoal total
além da realizada na intimidade. O que esta expressa é o ser
mesmo, em sua identidade e mesmidade, ou seja, no que tem
de insubstituível ou próprio. Por isso, é a personalidade mesma
— não uma parte sua ou uma dimensão computável — o que
se dá e se recebe na relação de amor perfeito.
b) Ainda que a intimidade seja o que há de mais interior,
centro do autodesdobramento, também é o mais elevadamen-
te relacional, pois se constitui justamente afirmando o ser pes-
soal do outro: quando a relação entre seres humanos se de-
grada em meras formas de objetivação itinerante, é anulado
o eu pessoal, a intimidade, não só a do amado, mas também
a do amante. Poder-se-ia dizer que só na medida em que um
ser humano se volta para outro em afirmação pessoal é que a
intimidade de um e de outro se faz presente pela vez primeira
vez. Sem a afirmação pessoal que o outro faz sobre mim — ao
menos a feita inicialmente pela mãe ou pelo pai —, careceria
eu de uma intimidade rematada, que cresce na medida em que
as relações pessoais depuram as objetivações itinerantes que
com freqüência acompanham o nosso trato com os demais.
Se a originalidade e a mesmidade são perfis que estruturam
internamente a personalidade, a intimidade é um centro de
relações pessoais que reage à dimensão social e psicológica dos
seres humanos. Quantas possibilidades de amor e ternura ín-
timos permaneceriam em nós inéditas se o outro não viesse
despertá-las! A intimidade é feita, não é trazida da origem: é
a refluência psicológica de uma pessoa constituída ontologi-
camente como originalidade e mesmidade. À pessoa não lhe

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 79


Juan Cruz Cruz

cabem os qualificativos morais de bom ou mau; em contrapar-


tida, à personalidade, sim.132
c) O amor perfeito não se dirige tanto às qualidades, apti-
dões e funções do outro ser humano quanto à eclosão de seu
ser mesmo: à intimidade, expressável ou pelo nome próprio de
cada um ou pelos termos eu e tu. Na intimidade os seres hu-
manos se relacionam de dentro e de sua totalidade unificada,
de modo que essa relação interior não tende a perder ou obs-
curecer a pessoa do outro — mediante uma objetivação alea-
tória —, mas a salvá-la e enriquecê-la. Os seres humanos que
chegam a essa relação interior realizam a forma mais perfeita
de coexistência, pois, além de não perderem nada do que são,
encontram em sua união o meio exato de realização própria.
Dizer, pois, “intimidade” é dizer também relação. O amor, no
que tem de mais próprio, é saída, êxtase: a mais alta e, ao mes-
mo tempo, profunda saída que a personalidade realiza.
2. Se a intimidade é a culminação da identidade, e se,
por sua vez, a identidade pessoal se expressa como origina-
lidade e mesmidade nos atos que fluem do sujeito, segue-se
que a intimidade há de ser um centro vivo de novidade, de
distinção e particularidade. Nela se expressa a beleza inte-
gral da pessoa.133
3. Em virtude de que para entrar na intimidade do outro
não posso eu coagi-lo nem tratá-lo mediante uma técnica
como a uma coisa numerável e quantificável — nem sequer

132 - Quando às vezes dizemos que alguém “é uma má pessoa”, em verda-


de aplicamos essa expressão à pessoa desdobrada como personalidade, à
pessoa enquanto fixou seu comportamento em hábitos moralmente maus,
e da qual, pela constância do hábito, devemos esperar maus comportamen-
tos sucessivos.
133 - E, nesse sentido, não só o bem, mas a beleza, é causa do amor. “Porque
a beleza é a mesma coisa que a bondade, diferindo apenas em seus concei-
tos. Sendo o bem o que todos apetecem, o próprio de sua natureza é que o
apetite descanse nele; por sua vez, o próprio da beleza é que, à sua visão ou
conhecimento, se aquiete o apetite; razão por que percebem principalmen-
te a beleza aqueles sentidos que são mais cognoscitivos, como a visão e o
ouvido a serviço da razão. Dizemos visões belas e belos sons. Fica assim
evidente que a beleza acrescenta ao bem certa ordem à faculdade cognosci-
tiva, de tal modo que se chama bem a tudo o que compraz absolutamente o
apetite, e belo àquilo cuja apreensão nos compraz” (S. Th., I-II, 27, 1 ad 3).

80 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

mediante uma técnica psicológica —, é preciso advertir a


completa gratuidade da intimidade. Não se pode produzir a
intimidade por meio de um artifício, nem exigir a penetração
nela com atitudes de enervamento psíquico. Ainda que esteja
sob o olhar do outro pessoal, a intimidade se produz por si
mesma: nela os seres humanos não se relacionam como coisas,
mas como pessoas. E o único veículo que nos abre à intimidade
do outro é o amor. Em que relação se acham a intimidade e o
amor? Daremos resposta a esta pergunta depois de, em outro
capítulo, expor os aspectos fundamentais da saída de si (êxta-
se) que o ato amoroso faz.

5. A ilha da intimidade

1. Falar da “ilha da intimidade” é pôr em circulação uma


metáfora inadequada, mas útil. Certamente poderíamos pen-
sar que a esfera da intimidade é como uma ilha que emerge no
meio da corrente total das vivências do sujeito. Embora essas
vivências estejam impregnadas de alteridade, de afã de con-
tatos sociais, a verdade é que ninguém alheio pode pôr os pés
nesta ilha. Pois bem, o campo destas vivências está submetido
a dois tipos de influxos: um que vai de baixo para cima — in-
fluxo das águas subterrâneas da própria natureza humana que
regolfam na terra da ilha; outro que vai de fora para dentro
— influxo das correntes de ar que silenciosamente também
sopram sobre a esfera íntima da ilha. Lá desta ilha posso falar
com outros homens, posso entrar em contato psíquico e espiri-
tual com eles, mas sem nunca poder ir embora da ilha. Do que
se acaba de dizer resulta compreensível que eu não possa aban-
donar a ilha nem possa permitir que ninguém entre nela. Pois
bem, eu olho para outros homens e para meus contatos vividos
com eles dentro de uma perspectiva própria ou individual, que
não compartilho com ninguém.
2. Realmente na intimidade se expressam os traços da “in-
dividualidade”: porque todo homem é em si originariamente
diferente de qualquer outro. Esta tese foi negada sistematica-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 81


Juan Cruz Cruz

mente pelas teorias que consideraram o fundo mais próprio


do sujeito humano, o eu, como uma alteração pura: esse su-
jeito viria a ser o que a sociedade faz dele. Mas a verdade
é que o eu humano possui uma individualidade que não é
meramente impessoal ou física — como pode ser a de uma
estátua —, mas pessoal, inderivável sociogênica ou aditi-
vamente: não é uma soma de propriedades ou caracteres
empíricos. “O íntimo da alma”, explica Edith Stein, “o que
esta tem de mais próprio e de mais espiritual, não é algo
incolor e amorfo, mas algo de índole muito particular: a
alma o sente quando está ‘consigo mesma’, ‘recolhida em si
mesma’. Isto não se deixa apreender de modo que possa ser
designado por um nome geral, assim como tampouco pode
ser comparado com outros. Não pode ser analisado e disso-
ciado em qualidades, traços de caráter, etc., já que se acha
num nível mais profundo: é o como do ser mesmo, que por
seu lado imprime seu selo a todo traço de caráter e a todo
comportamento do homem.”134
Mas da individualidade brota também a “originalidade”,
ou seja, o modo próprio de vencer os obstáculos, a maneira
particular de conter e ultrapassar livremente o princípio mate-
rial de nosso ser. Assim o explica atinadamente Max Scheler:
“Quanto mais conheçamos pessoas em que o princípio espiri-
tual age livre e independentemente de necessidades vitais e
de instintos ou, dito com outras palavras, alcança esse exce-
dente de caráter para dominar a vida e suas necessidades que
constitui o caráter destacável do gênio, tanto mais individual,
singular e característica será nossa imagem do homem […].
Também em cada homem a pessoa espiritual enquanto pessoa
espiritual é individual em si mesma, e que para nós apareça
como menos individual, como mero exemplar de algo univer-
sal, depende unicamente do fato de ficar um tanto presa pela
maneira menos livre de atuar, como também por nossa falta de
interesse e de amor.”135

- Edith Stein, Endliches und ewiges Sein, 1950, p. 458.


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- Max Scheler, Vom Ewigen in Menschen, Berna, 1954, p. 135.
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82 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

E, com a originalidade, expressa-se na intimidade a “in-


derivabilidade”. Com grande acerto didático indica-o Edith
Stein: “Naturalmente, pode haver pessoas tão semelhantes
entre si, que constantemente sejam confundidas por outros
(por exemplo, os gêmeos). Mas as pessoas que tratam com
eles de perto sabem distingui-los muito bem. E eles mesmos
se sentem tão diferentes — conquanto ao mesmo tempo se
sintam unidos entre si como com ninguém mais no mundo
—, que mal lhes parece possível a confusão. O que nesse caso
importa não é o que de fato haja uma pequena diferença na
forma do nariz ou que varie um pouco a cor dos olhos — o que
pode ser descoberto por quem observa de fora e pode usá-lo
como distintivo —, nem o fato de em um determinada disposi-
ção se destaque um pouco mais que no outro: cada um se sente
no mais íntimo de seu ser como algo ‘próprio’ e particular, e
como tal é considerado por quem o captou realmente”.136
3. Mas tão importante quanto a individualidade é tam-
bém, na intimidade, sua “relação de alteridade”. Em todo
ser humano dão-se de forma primigênia determinadas ten-
dências espirituais que apontam para outras pessoas, e que
expressam uma consciência de alteridade, em forma de
apercebimento imediato do outro. Há que sublinhar isso
em face das teorias do ensimesmamento puro: as que afir-
mam que o homem carece de relações reais com o mundo
e com os outros.
Sublinhar a relação de alteridade não é afirmar que
existe no eu, inicialmente, um atual intercâmbio espiritual
com os outros; nem que ele tem uma correlação com seu
ambiente físico e humano; nem que por sua indigência ou
precariedade orgânica e psíquica depende dos demais e que
por isso é um ser social — como reiteradamente foi inter-
pretada a relação de alteridade, com uma falta total de críti-
ca antropológica. O verdadeiramente radical é que o sujeito
humano é chamado em sua interioridade a viver interpesso-

- Edith Stein, Endliches und ewiges Sein, Herder, 1950, p. 459.


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O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 83


Juan Cruz Cruz

almente. As indigências, os vínculos orgânicos, etc., devem


ser explicados por esta condição ontológica prévia.
Ou seja, esta condição interpessoal não exclui a consciên-
cia da procedência corporal, nem a consciência da indigência
corporal que requer o cuidado de outro sujeito humano, nem a
consciência da orientação sexual para outros, nem a consciên-
cia do desenvolvimento das faculdades espirituais com o auxílio
de outros. O que ocorre é que a relação interpessoal, baseada
nas faculdades intelectivas e apetitivas puramente espirituais,
congênitas ao homem, se daria sem a consciência da procedên-
cia corporal, sem a consciência da indigência física e psíquica.
Assim o explica Max Scheler: “Mesmo um ser imaginário com-
posto de corpo e alma que nunca nem em nenhum lugar tivesse
encontrado um semelhante teria consciência positiva da insa-
tisfação de toda uma série de tendências espirituais pertencentes
à sua natureza essencial, como o amor em todas as suas formas
fundamentais (amor a Deus, amor ao próximo, etc.), o simpa-
tizar, o prometer, o pedir, o agradecer, o obedecer, o servir, o
dominar, etc., e por esta consciência de insatisfação teria certeza
de ser membro de uma comunidade e de fazer parte dela. Assim,
tal ser imaginário não diria: ‘Estou sozinho — sozinho no espaço
e no tempo sem fim —, estou sozinho no mundo ou sozinho no
ser em geral; não pertenço a nenhuma comunidade’, senão que
diria simplesmente isto: ‘Não conheço a comunidade factual a
que sei que pertenço — tenho de procurá-la; o que, sim, eu sei é
que pertenço a alguma’. Isto e não precisamente a trivialidade,
que ademais só é verdade em parte, de que os homens costumam
viver formando povos, Estados, etc., é o que quer dizer a grande
sentença do Estagirita: anthropos zoon politikón (o homem é
um animal político). O homem, isto é, o sujeito dotado de alma
racional, é um ser social. Tão certo como eu sou, somos nós,
ou seja, eu faço parte de um nós”.137 Um nós, é claro, que não é
uma substância, mas uma ordem relacional. O sujeito humano
é substancialmente pessoa, mas relacionalmente personalidade.
Assim o explicamos em páginas anteriores.

- Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, Berna, 1954, p. 372.


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84 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

Precisamente, a “intimidade” é a atualização original e


constante da pessoa que se desdobra como personalidade. E,
mesmo dotada de uma relação interpessoal primária, cada pes-
soa humana possui, por sua individualidade original, uma es-
fera absoluta de intimidade que se subtrai a toda intervenção
direta de outras pessoas.
4. Sob os traços da individualidade e da interpessoalidade
explica-se um caráter especial da intimidade: a incomunicabi-
lidade. Na corrente da atividade psíquica, podemos encontrar
vivências comunicáveis e outras que não o são.138 Comunicá-
veis podem ser não somente as vivências de alteridade dirigi-
das a outros sujeitos, mas também as vivências solitárias (não
dirigidas conscientemente a outros). Um exemplo de vivên-
cias solitárias que por comunicáveis não são íntimas, temo-lo
num problema de aritmética: é uma vivência solitária acessí-
vel a outros e diretamente contrastável. Mas, ao contrário, há
vivências solitárias de alteridade que não são comunicáveis:
por exemplo, algumas vivências religiosas, que são especial-
mente íntimas; e igualmente, se eu odeio uma pessoa de uma
forma que não posso comunicar a ninguém, é uma vivência de
alteridade, mas é uma vivência íntima.
Nem por isso, neste último caso, um olhar alheio penetra
na esfera da intimidade, nem pode saltar nesta ilha. Posso eu

138 - Certamente, na intimidade encontramos dois tipos de vivências: as de


alteridade e as de mesmidade. Por um lado, há ali vivências referidas a outros
sujeitos humanos: algumas destas vivências têm necessidade de ser perce-
bidas por outros, como perguntar e aprender; outras vivências, sendo de
alteridade, não têm essa necessidade de ser percebidas, como odiar. Por
outro lado, há ali vivências não referidas a outros sujeitos humanos: são as
vivências solitárias, que não estão orientadas a pessoas estranhas, e podem
referir-se a conteúdos materiais ou mentais, nos quais os outros sujeitos
não desempenham nenhum papel (um problema de aritmética, um inven-
to técnico, uma lei natural), ou ao próprio sujeito (por exemplo, às minhas
disposições), ou também a sujeitos não humanos (por exemplo, à minha
relação com Deus). As vivências perceptíveis de alteridade podem ser
ou absolutamente comunicáveis a todos os homens (vivências sociais em
sentido estrito) ou relativamente comunicáveis, ou seja, adequadamente
apenas a determinado círculo de pessoas. Em contrapartida, as vivências
de mesmidade estrita são absolutamente íntimas: não são comunicáveis ade-
quadamente a nenhuma pessoa, e são refratárias a todo e qualquer influxo
direto vindo de outros; são acessíveis apenas a Deus.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 85


Juan Cruz Cruz

pensar em outros, e ter uma vivência dirigida a outros sujeitos;


e nem por isso aquele âmbito deixa de ser a esfera íntima. Mais
ainda, meus atos dirigidos a outros sujeitos levam consigo
algo individual meu e têm o caráter de atos meus dirigidos
a outros.
Todas as vivências estão enraizadas no fundo comum do
eu. O que significa que no eu particular há uma conexão entre
atos solitários e atos dirigidos a outras pessoas, entre vivências
absolutamente íntimas e vivências comunicáveis; e, por sua
vez, há conexão entre as vivências de diferentes pessoas que
diretamente ou indiretamente entram em contato psíquico e
espiritual. Por isso, todo o eu, com toda a sua vida psíquica e
espiritual, até em sua parte mais íntima, está vinculado a um
grande complexo de influências e repercussões psíquicas que
também constituem um indicativo de deveres morais e de res-
ponsabilidade, como direi a seguir.
5. Pelo que foi dito, compreende-se que a “ilha” da in-
timidade está muito longe de parecer um estrato mais ou
menos espacial. Melhor seria avaliá-la com qualificações
tomadas dos sentidos externos: viria a ser uma cor, um sa-
bor, um cheiro aderido a meus atos psíquicos e espirituais,
incluindo os dirigidos a outros. Mas, uma vez passados os
atos, ficam habitualizadas no eu suas intenções, cujo nú-
cleo mais altamente intelectivo e volitivo constitui o ápice
da intimidade.
Por sua vez, não é possível reduzir o eu a um ponto: ele é um
centro referencial, mas não um ponto, pois sempre abarca um
“campo”, um “âmbito”. No centro desse campo brilha sempre
um núcleo ou conteúdo intencional que dá um sentido único
a todo o campo, cruzado continuamente por muitos elementos
opacos e por alguns conteúdos mais claros, que são objeto da
atenção atual. Contemplado tudo isso de um ponto de vista
dinâmico, cada ato ou cada vivência é em parte configurada
também pelo ato precedente. As vivências da intimidade do
eu nunca estão totalmente desconectadas de todo influxo co-
munitário, em virtude da unidade da corrente vivencial. Há

86 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


II - Amor e Intensidade

certamente uma esfera absolutamente intima; mas isso no sig-


nifica que exista uma vivência absolutamente isenta de toda
influência comuni­tária, como, por exemplo, a pergunta: pois
perguntar é um ato de diálogo, o do homem com outros ho-
mens, ou do homem consigo mesmo.
Ao contrário, nem sequer os contatos sociais que sur-
gem do eu em linha reta ao eu particular alheio deixam
de ter correspondência: vão de um eu a outro eu e retor-
nam depois ao primeiro eu. E nesses atos que se dirigem a
outros homens entra também, indiretamente, a vivência
solitária e absolutamente íntima do eu próprio. De modo
que os atos dirigidos a outras pessoas são precisamente in-
fluenciados por nossos atos vivenciais não dirigidos a ou-
tras pessoas; estes atos dão àqueles certa forma e coloração.
Razão por que poderíamos dizer que este fato primitivo de
reciprocidade é regido por um “princípio de cofluxão”; em
primeiro lugar, de cofluxão interna, pois, como diz Husserl,
“as vivências de cada pessoa formam uma corrente viven-
cial, cujas interrupções causadas por estados inconscientes
são constantemente salvas pela consciência que desperta
e serve de enlace”;139 de modo que, pela unidade da corrente
vivencial, toda vivência de um sujeito é modelada em parte
por suas vivências anteriores. E, em segundo lugar, de cofluxão
externa, pois um eu, com seu comportamento inteiro, se acha
dentro de um complexo de influências psicofísicas, juntamen-
te com incontáveis sujeitos nos quais influi ou pelos quais é
influída através de comunicações sociais. Mas a intimidade
mesma não é algo totalmente comunicável; e, até, só a mim
está reservado isso que faz que minhas vivências sociais sejam
precisamente vivências de meu eu. Como diz Litt: “refiro-me
a esse indizível algo que é humor, tonalidade, significado espe-
cial, graças ao qual também tais vivências, apesar de sua ten-
dência centrífuga, se situam na perspectiva de meu eu”.140

- Husserl, Ideen, 1913, § 81-83.


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- Thedor Litt, Individuum und Gemeinschaft, Leipzig-Berlim, 1926, p.
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213.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 87


Juan Cruz Cruz

O princípio de cofluxão vivencial também permite ver em


perspectiva moral — acabamos de indicá-lo — o campo de
todas as vivências. Pois, como notou admiravelmente Scheler,
“não há moção moral, por menor que seja, que não vá desen-
volvendo em torno de si, qual pedra caída na água, círculos
sem fim, os quais acabam por tornar-se imperceptíveis a um
olhar comum desprovido de outros recursos. O físico já pode
segui-los mais longe, e não digamos até onde pode alcançá-los
o olhar de Deus onisciente. O amor de A a B não só suscita —
se não houver razão que o impeça — uma resposta de amor de
B a A, mas, além disso, faz necessariamente que no coração de
B, que responde com amor, se intensifique naturalmente sua
tendência afetiva a excitar, a suscitar vida, em uma palavra,
seu amor a C, a D...; e, assim, no universo moral se propaga
a corrente de C a D, de E a F, ao infinito. E o mesmo se pode
dizer do ódio, da injustiça, da impureza, de todas as classes
de pecado. Cada um de nós participou ativamente de certa
quantidade de coisas boas e más das quais não tinha a menor
idéia, e nem sequer podia tê-la, e pelas quais, não obstante, é
responsável diante de Deus”.141
A intimidade pode ser efetivamente imaginada como uma
ilha, mas ilha situada num imenso arquipélago.

- Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, Berna, 1954, p. 376. Na mesma


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página: “De forma totalmente primigênia e originária, todos — conquanto
não vejamos com clareza a medida e magnitude de nossa cooperação — te-
mos diante do Deus vivo nossa parte de responsabilidade, entendendo-se
tal em toda ascensão e queda da situação moral e religiosa do conjunto do
mundo moral, como uma unidade solidária.”

88 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


Capítulo III
Êxtase e Amor
III - Êxtase e Amor

1. O amor como êxtase

1. O amor sai de si para unir-se à outra pessoa. O êxtase


tem uma intenção unitiva. Ter-se-ia de distinguir neste ponto,
e no modo do amor perfeito, próprio da tendência chamada
vontade, uma intenção unitiva para a pessoa (solidariedade) e
uma intenção unitiva para a personalidade (intimidade).
a) A primeira é mais ampla e genérica, coincidindo com o
amor de benevolência. “A intenção benevolente consiste no
desejo de fazer feliz o outro; é, sobretudo, o interesse real por
sua felicidade, por seu bem-estar, por sua saúde. É a peculia-
ríssima participação na pessoa do outro, em sua felicidade, em
seu destino: participação que reside no amor [...]. De alguma
forma a intenção benevolente é um traço essencial de todo
amor. A solidariedade é um fruto do amor; mas não é algo se-
parado do amor ou produzido pelo amor, mas algo que se cons-
titui no amor, que habita em seu mesmo interior. Justamente
este interesse pela felicidade do outro não deve ser separado
do amor. Mas a intenção benevolente ainda é algo mais que o
desejo de fazer feliz o outro, algo mais que o profundo interesse
por seu bem-estar e felicidade. É a boa intenção para com o
outro, o sopro da bondade no amor mesmo.”142 É a solidarieda-
de profunda com o outro, é um interesse profundo pelo outro
e seu bem-estar, é uma preocupação por ele, é um como fazê-lo
algo nosso.
b) Ao reconhecer a beleza integral da pessoa amada, seu
ser bom, sou profundamente afetado e dou uma resposta a essa
beleza, apressando-me espiritualmente para ela, ansiando par-
ticipar de sua vida. Se, ademais, não se trata de um mero amor
benevolente, mas íntimo, abro minha intimidade para abraçar
a intimidade da pessoa amada. Aqui a intenção unitiva — e
não meramente a união real nem a felicidade que desta resulta
— é um momento essencial do amor mesmo, do caráter que
tem de entrega e de presente para a pessoa amada. O aman-
te aspira não só à presença do amado, não só a saber de sua

- D. von Hildebrand, La esencia del amor, 86-87.


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O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 91


Juan Cruz Cruz

vida, mas antes de tudo a unir-se cordialmente, intimamente


a ele. “O maior presente que uma pessoa pode dar-nos é dese-
jar a união conosco, anelar que seu amor seja correspondido.
Enquanto for somente bondosa e benevolente conosco, mas
sem dar importância à nossa presença nem desejar a união co-
nosco, não experimentaremos, apesar do agradecimento que
sintamos por sua bondade, o peculiar e insubstituível gozo que
nos proporciona seu amor e a intenção unitiva que nele se
encerra.”143 O que a intenção unitiva pretende é a união real
e o gozo que surge dela. Se a intenção unitiva só aspirasse à
união sem felicidade, seria inumana. O amor íntimo se dirige
como um dom ao amado, como uma dádiva que de si deseja
ser reconhecida e gozada pelo amado. Mas a intenção unitiva
não pretende a união como puro meio para o próprio gozo, fe-
licidade egoísta que seria mera satisfação ou mero prazer; nem
enfoca o amado como um meio para conseguir o fim do pró-
prio gozo. A felicidade do amado no amor tem aqui primazia
sobre o gozo que nos pode proporcionar a união com ele. Isso
significa que a união da reciprocidade de amor supõe o gozo da
união para os dois amantes; sendo anelada a união essencial-
mente como fonte tanto da felicidade própria como da alheia,
e primordialmente desta. O que comporta necessariamente o
êxtase da intimidade.

2. Amor perfeito e êxtase perfeito

A união afetiva íntima entre o amante e o amado, que é o


amor, supõe a saída do amante de si mesmo e sua persistência
afetiva no amado, o êxtase. Este termo — como já se disse
— não implica, na linguagem do Aquinate, um movimento
excepcional ou estranho, reservado a certos místicos ou a pes-
soas dotadas de um poder carismático. Significa algo normal e
ordinário, que acontece a todo amante. Alguém padece êxtase

- D. von Hildebrand, La esencia del amor, 173.


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92 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

quando se põe fora de si.144 O amante se põe tanto mais fora


de si quanto mais intenso e veemente é o amor. Sempre que
algo é amado, diz Scheler, isso “quer dizer que o homem sai de
si mesmo, de seu centro pessoal como unidade corpórea, e co-
opera por meio desta ação para afirmar, para impulsionar, para
bendizer esta tendência à sua peculiar perfeição que existe nos
objetos que o rodeiam”.145 As faculdades que da intimidade
“saem“ de si para dirigir-se ao objeto amado são, para o Aqui-
nate, tanto o conhecimento quanto a vontade. Pois para o
amor concorrem tanto o conhecimento, de maneira pressupo-
sitiva, quanto a vontade, de maneira formal e perfectiva.146
a) Só de modo dispositivo o amor produz no amante
o êxtase da inteligência. Pois, quanto ao conhecimento,
“alguém se põe fora de si quando se situa fora do conhe-
cimento que lhe é próprio”, tanto quanto ao objeto do co-
nhecimento como quanto ao modo de conhecer. Quanto ao
objeto, pensando de maneira contínua e profunda no ama-
do e não pensando totalmente em si mesmo, absorvendo-se
no pensamento intenso do objeto amado. Quanto ao modo,
porquanto, impelido pelo amor, ascende a um nível supe-
rior ou desce a um nível inferior: a) ou porque “se eleva a
um conhecimento superior, e assim um homem em êxtase
compreende o que excede o sentido e a razão, na medida
em que se encontra fora da conatural apreensão da razão
e do sentido”; b) ou porque “se rebaixa a algo que lhe é
inferior, e assim alguém sofre êxtase quando cai em frenesi
ou mania“.147 Veremos esse rebaixamento mais adiante, a
propósito do êxtase unificante.
Estes modos de êxtase são produzidos pelo amor dispo-
sitivamente, no sentido de que faz meditar sobre o objeto
amado, e de que a meditação intensa de uma coisa prescin-
de das outras.

144 - S. Th., I-II, 28, 3.


- Max Scheler, Ordo Amoris, 128.
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- Para perfectiva, cf. nota 68. [N. do T.]
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147 - S. Th., I-II, 28, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 93


Juan Cruz Cruz

b) Quanto à vontade, “alguém padece êxtase quando sua


tendência se dirige a outro, saindo de certo modo de si mes-
ma”. Este modo de êxtase é produzido pelo amor direta ou ab-
solutamente, se o amor é perfeito, ou relativamente, se é mero
amor imperfeito.148
No amor perfeito, o afeto sai absolutamente de si, por-
quanto quer e faz ao amigo o bem, introduzindo-se de algum
modo nos cuidados e solicitudes do amado.149 Seu movimento
de saída termina no amigo amado, sem voltar para si: eu amo
então o amigo por ele mesmo. Portanto, o amor perfeito pro-
duz o êxtase de maneira perfeita e absoluta, tanto da parte do
apetite e vontade como da parte da inteligência; o amor im-
perfeito, em contrapartida, o produz de maneira imperfeita e
relativa nas duas faculdades.
Mas o amado com amor perfeito pode ser triplo: ou infe-
rior, ou igual ou superior ao amante. Mais se sai de si quanto
mais desigual é o termo a que se chega. Por isso, o êxtase é
mais perfeito quando se ama algo desigual e superior. “Quando
alguém ama com amor perfeito, então o afeto é levado à coi-
sa amada, mas sem voltar, porque quer o bem para o mesmo
amado; este amor põe o amante fora de si mesmo. E isto acon-
tece de três maneiras, de acordo com o bem substancial que o
afeto enfoca. Primeira, quando esse bem é mais perfeito que
o próprio amante, este se relaciona com aquele como a parte
com o todo, porque o perfeito se expressa como totalidade, e o
imperfeito como parte; em conformidade com isto, o amante
é algo do amado. Segunda, quando o bem amado é da mesma
ordem que o amante. Terceira, quando o amante é mais per-
feito que a coisa amada, e então o amor do amante se orienta
ao amado como a algo seu. E assim, quando o afeto do amante
é levado ao amado superior, cujo termo recíproco é o mesmo
amante, então o amante ordena ao amado o próprio bem seu;
assim como, se a mão amasse o homem de que faz parte, se or-
denaria ao todo: por isso se poria totalmente fora de si, porque

148 - S. Th., I-II, 28, 3.


149 - S. Th., I-II, 28, 3.

94 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

não deixaria nada para si, senão que ordenaria tudo ao amado.
Isso não acontece quando alguém ama a quem lhe é igual ou
inferior. Se uma mão amasse a outra mão, não se ordenaria em
sua totalidade à outra; nem o homem que ama sua mão ordena
todo o seu bem ao bem da mão.”150
No amor imperfeito, o amante é levado de certo modo para
fora de si, mas não para permanecer no outro — pois o outro
não figura como termo desse movimento —, e sim para voltar
imediatamente para si mesmo como termo: eu amo então o
outro não por ele mesmo, mas por mim mesmo como amante,
e, não contente com gozar do bem que possuo em mim mesmo,
procuro desfrutar para mim do que me é exterior. Mas, porque
pretendo ter para mim esse bem extrínseco, não saio de ma-
neira total de mim, senão que tal afecção, em definitivo, me
encerra dentro de mim mesmo. “No amor imperfeito, o afeto
do amante se dirige à coisa amada por um ato da vontade,
mas volta para si mesmo pela intenção do afeto; pois, quando
apeteço a justiça ou o vinho, meu afeto se inclina para um dos
dois, mas voltando para si mesmo, porque se dirige a essas coi-
sas para alcançar um bem; portanto, este amor, quanto ao fim
da intenção, não põe o amante fora de si.”151

3. O êxtase unificante

Indicou-se que o amor é uma “saída” que o sujeito faz com


sua vontade, guiada por sua inteligência, para o amado como
bem perfeito e real. Mas o êxtase não foi entendido sempre
desta maneira, tanto no uso cotidiano como em certos contex-
tos, filosóficos ou religiosos.
Uma das drogas que, como alternativa à cocaína ou à hero-
ína, circulam em certas parcelas de nossa sociedade chama-se
precisamente êxtase, nome que certamente lhe foi dado em
razão dos efeitos corporais e psíquicos que, em geral, produzem

150 - De div. nom., cap. 4, lect. 10.


151 - De div. nom., cap. 4, lect. 10.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 95


Juan Cruz Cruz

certas substâncias estimulantes e enervantes: insensibilizam os


membros, o cérebro deixa de associar coerentemente os pen-
samentos, surgem alucinações e fantasias oníricas, a vontade é
anulada e cessam os atos de livre escolha; em uma palavra, o
núcleo mais pessoal de autodomínio e autoconsciência cai em
poder da vida inferior, das paixões e da esfiapada imaginação,
que dança de maneiras grotescas ou disparatadas; e a esta saída
ou êxodo que o sujeito faz de si mesmo se chama êxtase. Não
há aqui uma vontade forte, mas uma vontade debilitada, in-
constante, fugidia, presa das paixões.
Trata-se de uma “saída de si” para baixo, promovida até
por idéias filosóficas que não são alheias à idéia de que o
êxtase do amor, com sua intenção unitiva, é uma busca de
fusão entre amante e amado. Os amantes viriam a ser algo
assim como duas bolas de metal que por seu desejo de união
se fundiriam numa só peça, com o perigo de cada um perder
sua identidade.
Na óptica do pensamento clássico, a unidade mais alta
não é a da fusão, mas a da dualidade de intimidades que se
entregam amorosamente sem se anular. Quanto mais alta é
a entrega de uma intimidade a outra, tanto mais alter ipse
é cada uma. E, se aqui não há fusão, tampouco há a alteri-
dade de duas coisas errabundas que se unem por uma rela-
ção aleatória. Mas há, sim, a alteridade de duas intimidades
que por se afirmarem em alteridade se constituem cada vez
com mais profundidade e riqueza. Como, ademais, na re-
lação transcendental que as faz conviver cada uma possui
consciência dessa união pretendida, sucede que a intenção
unitiva, própria do amor, é a mais alta (por consciente)
e a mais profunda (por alteridade de intimidades). Cada
pessoa continua a ser indivíduo idêntico, mas num sentido
completamente novo: ambas não renunciam nem perdem
sua própria existência individual, mas fazem destacar-se
na intimidade sua plena e autêntica existência de pessoas,
vivendo-a, além do mais, conscientemente.

96 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

4. O amor de si e o êxtase amoroso

1. Determinadas religiões estimulam entre seus adeptos a


observância de um método para chegar a um êxtase que seja
anulador da própria pessoa. Por exemplo, o hinduísmo promo-
ve um estado extático, chamado nirvana, no qual a pessoa se
concentra imóvel em si mesma e, solitariamente, olhando fixa-
mente para um ponto de seu corpo, busca triunfar sobre sua na-
tureza inferior, até encontrar os fatos que nenhum sentimento
nem inteligência podem conhecer, com prévio despojamento
do eu, do desejo, da impaciência, das necessidades corporais e
dos objetos cotidianos que entram na vida do homem. Trata-se
de uma “saída de si” para uma esfera nebulosa. Outras religiões,
como o budismo, promovem também um manual operatório
que conduz ao desaparecimento de todo e qualquer afeto — in-
cluído o sentimento íntimo de si mesmo — e à impassibilidade
ou indiferença total com respeito a tudo o que cerca o homem,
seja externo ou interno — de modo que nem sequer o juízo re-
flexivo permanece: não existindo sequer a obscura consciência
de si mesmo.152 Há uma “saída de si” sem referencial algum, nem
sequer nebuloso.

152 - Em certas correntes do islamismo, ensinou-se a praticar metodicamen-


te alguns exercícios corporais — do silêncio ao jejum — que predispõem a
conseguir o êxtase da alma; embora alguns pensem que tais exercícios só
contribuem para a eclosão desse estado, que se produz realmente median-
te uma graça divina: após repetir incansavelmente a palavra Alá, os lábios
deixam de mover-se, perder-se-á a imagem mesma da palavra, e a idéia
significada por ela ficará apenas bruxuleando no coração (M. Asín Pala-
cios, “La philosophie de l’extase chez deux grands mystiques musulmans”,
em Cultura española, fevereiro, 1906). Trata-se de uma “saída de si” de um eu
cotidiano para uma inconsciente intimidade que é o mais sublime da pró-
pria pessoa, conquanto alheia à consciência, ao mundo externo, ao mundo
psíquico e à própria existência efetiva.
Na história religiosa do cristianismo, apareceram individualidades
eminentemente tocadas pelo êxtase: Santa Hildegarda, Santa Catarina
de Siena, São Pedro de Alcântara, São José de Cupertino ou Santa Teresa
d’Ávila. Entram num estado que não depende de nenhum tipo de método
ou preparação; nele desaparecem as envolturas das coisas externas e se
ouvem vozes divinas, misteriosas e sublimes, que nem sequer têm timbre
ou entonação humana. Mas não se perde a consciência íntima. Mais ainda,
Santa Teresa d’Ávila observava que não entram em êxtase as pessoas que,
entregando-se assiduamente à penitência e à oração ou sendo simplesmen-
te de compleição fraca, perdem a consciência na oração e depois não se

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 97


Juan Cruz Cruz

Acontece justamente o contrário no êxtase do amor: quan-


do eu amo outra pessoa, saio para uma realidade concreta, com
nome e sobrenomes. O amor é uma afirmação de si na afirmada
intimidade do outro. Mais ainda, o amor perfeito pelo outro
tem a mesma envergadura que o “amar a si mesmo”. Não corre
esta expressão o risco de ser confundida com o egoísmo ou até
com o solipsismo? A interpretação do amor depende da forma
de entender o ser humano. O Aquinate lembra que há dois
elementos substantivos no homem: o espiritual e o corporal.
Pois bem, o homem ama a si mesmo se se ama segundo sua
natureza espiritual. Egoísmo refinado, então? Com respeito às
coisas que o rodeiam, deve o homem amar mais a si mesmo
que a qualquer outro. E isso é assim pelo motivo153 mesmo do
amor. Isso significa que o homem ama autenticamente a si
mesmo se tem presente objetivamente, cognoscitivamente, a
verdade de seu próprio bem. “Se se quer falar do bem deste ser
particular que é o homem dotado de uma vontade, é preciso
dizer que esse bem é certamente, como para qualquer outro
ser, a existência a título fundamental; mas a título último é sua
ação e, por sua ação, a união com seu fim. A ação da vontade,
porém, é o amor do bem sob a luz da verdade. Para esse ato se
inclina por natureza a nossa vontade. À luz da verdade, amarei
o que é bom, incluído eu mesmo em minha própria categoria,
como bem. Eu amar a mim mesmo não é, pois, desejar para
mim os bens que seriam coisas boas por conseguir. É, principal-
mente, orientar-me para meu acabamento natural. Mas meu
acabamento natural, enquanto homem, enquanto ser dotado
de vontade, é amar todas as coisas segundo a verdade do bem.

lembram de nada: estas devem ser tratadas mediante uma boa dieta, sendo
obrigadas a descansar e dormir.
153 - II-II, 26, 4. Esse motivo tem, ademais, em Tomás de Aquino, resso-
nâncias teológicas. Pois, ainda que Deus seja amado como princípio do bem
sobre o qual se funda o amor, o homem ama a si mesmo em razão de ser
partícipe de tal bem enquanto ama o próximo por causa de sua associação a
este bem. A associação motiva o amor enquanto implica certa união em
ordem a Deus. Por isso, assim como a unidade é superior à união, assim
também é maior incentivo de amor o homem participar do bem divino do
que outro associar-se a ele nessa participação; e, por conseguinte, o homem
deve amar mais a si mesmo que ao próximo.

98 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

Aí está, pois, o bem para o qual me oriento naturalmente. Amar a


si mesmo é, para o homem, essencialmente querer amar segundo
a verdade, ou ‘ser segundo a razão’. Toda e qualquer outra maneira
de amar-se não só não é natural, mas é contrária à natureza.”154
Por essa passagem se entende a tese de Santo Tomás segun-
do a qual o amor de si é a medida de todos os demais amores.
“Sejam quais forem as outras formas de apetite, isso significa
unicamente que pela vontade tendemos a nosso bem e nos-
sa perfeição. Mas nossa perfeição natural, enquanto homens,
consiste num amor conforme a reta razão. Não podemos, pois,
fazer outra coisa senão perseguir naturalmente nossa perfeição
ou nosso bem no amor ordenado do bem mesmo. A busca natu-
ral de nosso bem e o amor desinteressado do bem se encontram
indissoluvelmente ligados. A busca natural de nosso bem não
exclui o amor desinteressado e não o torna impossível, porque
o compreende naturalmente cada vez que nos encontramos
diante de bens que mereçam tal amor. E o amor desinteressado
não contradiz a realização de nosso bem, dado que é integral-
mente o amor que convém ao bem absoluto e a perfeição que
nos convém naturalmente como a criaturas espirituais [...]. A
vontade se define, segundo sua natureza, como um amor que,
graças ao conhecimento intelectual, é um amor objetivo do
bem e um amor desinteressado do bem em si mesmo quando se
encontra diante de um bem absoluto, finito ou infinito. Então
o meu bem, quer dizer, a atividade conforme com a essência da
faculdade que a natureza me deu, consiste justamente em amar
o bem e em amá-lo em verdade segundo os diferentes valores
que implica.”155 A incapacidade de nos entregarmos ao bem é
uma verdadeira doença ontológica da alma.
Se alguém amar a si mesmo (amare seipsum), amar o que
tem como seu próprio ser (id quod seipsum esse aestimat), é,
em um sentido, comum a todos, importa então tornar a per-
guntar qual é o elemento do próprio ser sobre o qual objetiva-
mente se há de polarizar o amor a si mesmo.

154 - Louis-B. Geiger, 96.


155 - Louis-B. Geiger, 102-103.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 99


Juan Cruz Cruz

a) Porque o homem é, em primeiro lugar, substância e na-


tureza. Quanto a isto, todos se estimam pelo que são, com-
postos de corpo e alma; assim se amam todos os homens, por
desejar a conservação de si mesmos,156 de sua identidade em
originalidade e mesmidade.
b) Em segundo lugar, o principal da essência humana é a
alma racional (o homem interior), e o secundário a natureza
sensível e corporal (o homem exterior). Os que principalmen-
te apreciam em si mesmos a natureza racional ou o homem
interior, e se estimam por isso, amam-se verdadeiramente, e
deste amor surge a intimidade cabal; mas os que têm por prin-
cipal a natureza sensível e corporal, ou o homem exterior, não
se amam verdadeiramente, nem têm uma intimidade plena.
Daí que, por não se conhecerem retamente, não amam em
verdade a si mesmos, mas amam o que crêem que são,157 amam
aparências. O desinteresse “objetivo” da vontade — desvin-
culado do interesse subjetivo do apetite sensível — define a
índole originariamente extática do amor. Não fica deformado
o meu amor se eu quero as coisas para mim, para alegrar-me
nelas, para enriquecer o meu conteúdo vital com elas. Mais
ainda, a raiz de todos os meus amores é eu alcançar uma per-
feita existência para mim. O homem não pode querer natural-
mente não ser feliz. Não há nada mau nem desordenado em

156 - S. Th., II-II, 25, 7.


157 - Com respeito à amizade que a pessoa pode manter consigo mesma,
aplica o Aquinate as cinco notas que são próprias da amizade. “Em primei-
ro lugar, o amigo quer que seu amigo seja e viva (esse et vivere); segundo,
quer bens para ele; terceiro, porta-se bem com ele; quarto, convive com ele
gozosamente; quinto, coincide com seus sentimentos, contristando-se ou
deleitando-se com ele. Conforme isso, os que amam a si mesmos verdadei-
ramente fazem-no segundo o homem interior, pois o querem conservar em
sua inteireza e lhe desejam seus bens, que são os bens espirituais; e traba-
lham para alcançá-los e gozosamente se voltam para seu coração, porque
ali encontram bons pensamentos no presente e a lembrança de bens passa-
dos e a esperança dos futuros, com que também recebem prazer. Do mes-
mo modo, não sofrem as rebeldias da vontade, pois que toda a sua alma
tende a só uma coisa. Pelo contrário, os que não se amam verdadeiramen-
te não querem conservar a integridade do homem interior, nem anelam
seus bens, nem trabalham por alcançá-los, nem lhes é deleitável conviver
consigo, voltando-se para o coração, pois nele acham maldades presentes,
passadas e futuras, que aborrecem, e nem sequer consigo mesmos estão em
paz por causa dos remorsos da consciência” (S. Th., I-II, 25, 7).

100 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

eu amar o meu próprio bem, dado que sou feito naturalmente


para amar todo e qualquer bem, incluído o meu. A desordem
estaria em preferir o meu bem, enquanto meu, a um bem supe-
rior ou mais geral.158
Só o amor-próprio que se opõe ao bem universal pode ser
chamado egoísmo, que é um encerrar-se em si mesmo, em opo-
sição ao bem geral.
2. Se o amor perfeito pode ser tanto por si mesmo como por
outro, imediatamente há que perguntar: têm os dois a mesma
radicalidade? De modo algum. O amor perfeito por si mesmo
é mais radical, e até ontologicamente primário: expressa nada
menos que a “unidade” ontológica da pessoa e não meramen-
te, como o amor por outro, união psicológica de afetos. Mas há
de fato diferença entre “unidade” e “união” amorosa? Unitas
potior est quam unio,159 diz o Aquinate: a unidade é mais no-
bre que a união. Considerando o aspecto comum de amizade,
lembra o Aquinate a doutrina de Dionísio (em De div. nom.,
c. 4, § 12) e afirma que ninguém tem amizade consigo mesmo,
mas algo mais que amizade: a amizade diz união, pois o amor
é força unitiva (vis unitiva); mas cada um tem em si unidade,
que é superior à união (unicuique autem ad seipsum est unitas,
quae est potior unione). Como a unidade (ontológica) é prin-
cípio da união (psicológica), assim o amor com que alguém
ama a si mesmo é forma e raiz da amizade (unde sicut unitas
est principium unionis, ita amor quo quis diligit seipsum, est
forma et radix amicitiae). Isso quer dizer que o amor perfeito
por si mesmo é o exemplar metafísico, o modelo objetivo de
qualquer forma de amor; pois temos amizade com os demais na
medida em que com eles nos relacionamos (psicologicamen-
te) como com nós mesmos (ontologicamente): toda a amizade
com outro provém da amizade com nós mesmos.160 Quem vir
nesta afirmação solipsismo ou subjetivismo não compreendeu
o sentido ontológico da causa exemplar: quando amo com

158 - S. Th., I, 60, 5; II-II, 19, 6.


159 - S. Th., II-II, 26, 4.
160 - S. Th., II-II, 25, 4. Louis-B. Geiger, 59-60.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 101


Juan Cruz Cruz

amor perfeito, ponho em dúvida minha própria identidade —


minha originalidade e mesmidade — se não afirmo com a mes-
ma radicalidade a originalidade e mesmidade do outro.
O verdadeiro amor a si mesmo não tem nada que ver com a
ilusão, nem com a vaidade ou a cobiça. Como diria Max Scheler,
“nele nosso olhar espiritual e o raio de sua intenção estão fixa-
dos num centro espiritual supramundano. Vemos a nós por uma
espécie de olho divino, e isso quer dizer, em primeiro lugar, que
nos vemos de maneira completamente objetiva, e, em segundo
lugar, que nos vemos como membros do universo inteiro. Cer-
tamente continuamos a nos amar, mas somente na medida em
que pudermos existir diante de semelhante olho onividente”.161
3. Na linguagem de Santo Tomás, a complacentia boni,
a aprovação da existência boa, é afirmada primariamente
de mim mesmo. O amor que alguém sente por outro “pro-
cede do amor que sente pela própria pessoa”.162 Este amor
de si não procede de seres completamente autônomos, in-
dependentes e sem indigências: porque, mais que isso, nós,
os homens, nos encontramos com nosso ser como com algo
dado e não posto livremente por nós. Há em nosso ser um
impulso para a felicidade do qual não podemos dispor, pre-
cisamente porque não o temos, senão que o somos na ordem
entitativa. E, por isso mesmo, o sujeito “ama a si mesmo
mais que aos demais”.163 Porque desde que somos gerados
somos lançados à própria plenitude, à realização de tudo o
que em germe contemos. Sobre esta raiz do natural que bus-
ca sua felicidade, nasce a liberdade de nossas decisões. Esta
exigência de plenitude existencial que age em nós por natu-
reza — comenta Pieper — é “amor-próprio”, o que significa
tão-somente exigência de felicidade, tendência à plenitude
própria. É a forma de amor primária, a que fundamenta e
torna tudo possível, e, ao mesmo tempo, a que nos é mais
familiar e querida. Esse amor com que amamos a nós mes-

161 - Max Scheler, Ordo Amoris, 123.


162 - S. Th., III, 28, 1, 6.
163 - S. Th., I-II, 27, 3.

102 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


III - Êxtase e Amor

mos é a medida de todo amor. No amor a si mesmo pode-se


aprender, como num paradigma, o que é todo amor. Não
amamos a nós mesmos como amamos o amigo, senão que a
amizade é o reflexo e a cópia, enquanto o amor a si mesmo
é o modelo primário.164
O chamado “amor de si” ou “amor-próprio” tem, portan-
to, uma precedência ontológica. “O amor com que amamos
a nós mesmos”, diz Geiger, “já não está subordinado, ao me-
nos à primeira vista, a nenhum outro amor. Buscamos nosso
bem, quer dizer, nosso ser e nosso completo desenvolvimen-
to, e portanto a felicidade mesma, sem outra razão além de
sua mesma bondade, ou seja, porque essas realidades exer-
cem sobre nós uma atração que não parece exigir justifica-
ção alguma. O amor que fazemos recair sobre elas se basta
a si mesmo. Implica uma misteriosa e, ademais, imperiosa
gratuidade, como se em nós um bem mais profundo que nós
mesmos pedisse e recebesse um amor que tem todos os tra-
ços de puro dom, sem que possamos, por outro lado, dis-
tinguir realmente entre o autor e o beneficiário desse dom.
Está inscrito em nossa natureza. Não poderíamos suprimi-lo
sem nos suprimir a nós mesmos. Não é sua existência o pro-
testo mais eloqüente contra toda tentativa de reduzir nossa
existência ao jogo absurdo de um acaso cego? Nosso amor
se dirige aqui a um bem por si mesmo. Tem os traços já não
da concupiscência, mas da amizade. E esta última, que nos
faz amar naturalmente por si mesmo nosso ser e nosso pleno
desenvolvimento, é com efeito o princípio das concupis-
cências pelas quais amamos para nós o que pode favorecer
nosso ser, nosso desenvolvimento e nossa felicidade.”165

164 - J. Pieper, 147-150.


165 - Louis-B. Geiger, 59-60.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 103


Capítulo IV
O Amor Íntimo
IV - O Amor Íntimo

1. Tipologia do amor perfeito

a) Amor benevolente

Já se indicou que o amor perfeito, enquanto dirigido a pes-


soas, pode ser ou de benevolência ordenada à pessoa em seu
caráter de tal, ou íntimo, orientado à personalidade em sua
concreção biográfica. Este último foi chamado por Santo To-
más de modo muito geral amor amicitiae, o qual exige intimi-
dade profunda, pois, como explica João de Santo Tomás, “o
mais próprio da amizade (amicabilis) acrescenta ao bem con-
siderado absolutamente o mais próprio da comunicação (com-
municativi); de outro modo, se não fosse comunicativo, o ou-
tro não nos amaria em reciprocidade (redamaret nos) e, por
conseguinte, não se uniria a nós como amigo”.166 Neste “amor
de amizade” seria preciso incluir diversas categorias de amor,
não só o de amigos em sentido estrito, mas o dos pais pelos fi-
lhos e o dos esposos entre si. Assim, o amor perfeito — enten-
dido pelos medievais como amor amicitiae em contraposição
ao amor concupiscentiae ou itinerante — tem dois modos de
se realizar: como amor benevolente à pessoa enquanto tal, ou
como amor íntimo à personalidade biográfica do outro. Esse
amor íntimo pode desdobrar-se sem exercer tematicamente
as exigências da constituição sexual de cada ser humano: é o
amor amistoso em sentido estrito, no qual se inclui a categoria
do amor paterno e do amor filial; ou com o exercício temático
de tal constituição sexuada: é o amor esponsalício.
O amor íntimo — sejam quais forem suas categorias — tem
a qualidade do perfeito e é vivido como amor quiescente à
pessoa,167 pois, por exemplo, “o próprio da amizade é o amigo
ser amado por si mesmo (sui gratia); donde o amigo não ter
na amizade caráter de prêmio, falando com propriedade, con-

166 - João de Santo Tomás, Cursus Theologicus, In II-II, “De caritate”, disp. 14,
art. 1, n. 3 (Lugduni, 1663).
167 - III Sent., dist. 27, q. 3, art. 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 107


Juan Cruz Cruz

quanto o que em nós resulta do amigo possa ter essa índole de


prêmio ou mercê, como o gozo e as utilidades que dele consiga
o amante”.168 O amor de amizade é sempre íntimo: “Em vir-
tude de o amor transformar o amante no amado, ele faz que
o amante entre nas interioridades do amado, e vice-versa; de
modo que, com respeito ao amante, nada do amado fique de-
sunido: assim como a forma chega ao íntimo do informado, e
vice-versa. Portanto, o amante penetra de certo modo no ama-
do, e por isso o amor se chama agudo, pois o próprio do agudo é
chegar cortando o íntimo das coisas; e, similarmente, o amado
penetra no amante, chegando a suas interioridades”.169
Do amor perfeito benevolente — ainda não íntimo — fala
a parábola do Samaritano, cujo bom coração, ou seja, amor
ao homem, salva um desconhecido que, apaleado e ferido,
encontrou no caminho, enquanto outros homens que por ali
passaram não lhe deram atenção alguma. O que inicialmente
o Samaritano ama é a condição humana daquele ser a quem
ajuda e alenta. Este amor é merecido por todo homem por ser
pessoa, seja bom ou mau em sua personalidade. E todo ser hu-
mano, antes de desenvolver uma personalidade, já é pessoa.170

168 - III Sent., dist. 29, q. I, art. 4.


169 - “Ex hoc enim quod amor transformat amantem in amatum facit
amantem intrare ad interiora amati et e contra; ut nihil amati amanti re-
maneat non unitum; sicut forma pervenit ad intima formati, et e converso;
et ideo amans quodammodo penetrat in amatum, et secundum hoc amor
dicitur acutus, acuti enim est dividendo ad intima rei devenire; et similiter
amatum penetrat amantem, ad interiora ejus perveniens” (III Sent., dist.
27, q. 1, art. 1, ad 4).
170 - A benevolência, que comporta uma disposição para socorrer ou pres-
tar ajuda, não tem como referencial a intimidade da personalidade, mas o
caráter geral de pessoa que o outro tem: quer um bem para a pessoa sem
pretender ter intimidade com ela. 1. Pode referir-se a pessoas que nos são
desconhecidas de vista, ainda que sejam conhecidas confusamente e em
universal; e não é necessário que elas estejam conscientes de nossa bene-
volência. 2. Costuma surgir espontânea e repentinamente ao encontrar-
mos pessoas que necessitam de socorro ou ajuda. 3. Às vezes é despertada
como um afeto ligeiro e superficial. 4. Mas não é um afeto sensitivo: é uma
resposta da vontade humana, conquanto possa redundar ou repercutir no
apetite sensível. Em todo o caso, a direção racional é nela primária e radi-
cal. Deste ponto de vista, difere do amor, que se acha tanto no apetite como
na vontade. a) À diferença do amor do apetite, que supõe a visão freqüente
e prolongada da coisa amada, razão por que se expressa às vezes de ma-
neira veemente e impetuosa, a benevolência é plácida e tranqüila. b) O ato

108 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

O amor benevolente, por ser amor, também inclui uma inten-


ção unitiva, na forma de uma relação peculiar com a pessoa do
outro. “Enquanto eu respondo exclusivamente sub specie de
valor — dou ao necessitado, por exemplo, uma esmola porque
quero obedecer ao mandamento moral ou porque a pobreza
extrema de um homem representa um contravalor —, falta um
elemento de calor, essa forma de beleza moral profunda e rele-
vante. Falta o amor, que inclui, precisamente, considerar algo
não só sub specie de valor objetivo, mas também sub specie
de bem objetivo para o outro. O amor supõe, igualmente, que
o bem objetivo para o outro seja suficiente para nos mover e
levar a fazer algo por ele. Este ‘por’ ele — entendido não como
ceder ou deixar-se influenciar pelo outro, mas como considerar
algo relevante para mim por sê-lo para ele —, o conceder ao
outro o papel que cada um desempenha por si mesmo de acor-
do com sua natureza, é um presente considerável que o amor
lhe dá.”171 E, conquanto no amor benevolente o outro não seja
enfocado como fonte de minha felicidade nem objetivo de mi-
nha intenção unitiva, não fico indiferente diante do fato de
sua saúde ou de seu crescimento moral, bens que considero
ubérrimos para ele.
A benevolência — a do Bom Samaritano — é o ato da
vontade pelo qual queremos um bem para outro. Usando uma
comparação ontológica da psicologia clássica, pode-se dizer
que, na ordem da vontade, a benevolência está para o amor
íntimo assim como, na ordem do entendimento, a simples
apreensão está para o juízo: a) assim como a verdade está in-
coativa e imperfeitamente na simples apreensão, mas formal e
perfeitamente no juízo, assim também o amor se encontra de
modo incompleto e imperfeito na simples benevolência, mas
de maneira perfeita no amor íntimo; b) assim como o juízo
inclui a simples apreensão e a aperfeiçoa, acrescentando-lhe a
comparação, assim também o amor íntimo inclui a benevolên-

de amor íntimo, que é próprio da vontade, exige desde o princípio a união


afetiva com o amado, enquanto a benevolência não requer esta união.
171 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 204.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 109


Juan Cruz Cruz

cia, acrescentando-lhe a comparação, a seleção e a união afeti-


va; c) e, assim como o juízo inclui a cópula com que uma coisa
é afirmada ou negada de outra, assim também o amor inclui
necessariamente a união afetiva com que se unem o amante
e o amado. “A simples benevolência surge espontaneamente
diante da presença ou noticia da pessoa para a qual queremos o
bem, sem supor discernimento ou comparação com nenhuma
outra, enquanto a dileção [amor íntimo] pressupõe tal compa-
ração ou discrição, como revela seu próprio nome. Daí que a
dileção seja um ato psicológico mais perfeito e mais conscien-
te que a mera benevolência, com respeito à qual se comporta
como o juízo com respeito à simples apreensão.”172
A solidariedade do amor benevolente é completamente di-
ferente, por seu fundamento, por sua qualidade e por sua espe-
cial singularidade, da solidariedade consigo mesmo, do amor-
próprio. “No caso do amor, minha participação no outro não
se deve a eu ver nele um prolongamento de meu próprio eu,
mas ao contrário: por amá-lo, o outro não é um prolongamen-
to de meu eu, mas outro eu, alter ego. Minha participação nele
é conseqüência do amor, não seu fundamento.”173
Como se pode ver, o amor perfeito — tanto o benevolente
como o íntimo — é uma “afirmação” comprazida do bem real
que o outro é. É uma afirmação pessoal, livre e presta.
Que tal amor seja pessoal significa, em primeiro lugar, que
não se dirige a uma coisa, a algumas qualidades ou proprieda-
des de um sujeito, mas à sua dignidade de ser pessoa. Amar é,
assim, afirmar o valor absoluto de um sujeito. Mas a linguagem
do amor não é, em sentido primordial, da ordem do ser, mas
da do bem. Seu tema é teleológico: fala de ternura, de calor,
de plenificação, de apoteose. Naturalmente, o amor perfeito
é vontade de que o outro seja, mas contribuindo para a re-
alização boa do ser pessoal, próprio e alheio. Esta afirmação
pessoal do amor deve ser sublinhada em face da mentalidade
que considera o ser humano não como pessoa, mas como coi-

172 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 334.


173 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 205.

110 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

sa, como objeto de troca. O Aquinate chama a atenção para


a modalização entitativa do amor: “Para a dileção concorrem
três coisas, a saber, o amante, o amor e o amado; e a cada uma
destas coisas responde seu próprio modo ou medida. A coisa
amada tem o modo pelo qual é amável; o amante tem o modo
pelo qual é amante, isto é, capaz de amar; mas o modo do amor
é atendido pela comparação do amante com o amado, já que o
amor medeia entre os dois entes”.174 O modo do ser pessoal do
homem, o absoluto mundano por excelência, é a medida pela
qual cada indivíduo mede seu amor mais profundo. Pode-se
dizer que, do ângulo do objeto amado — a pessoa — o amor
perfeito não tem essencialmente (per se) medida; ainda que
de modo acidental (per accidens), do ângulo das condições do
sujeito amante, pode dar-se medida no amor pela maneira de
exercer os atos e segundo as circunstâncias da vida. O amor
perfeito é, em segundo lugar, livre. Só ama quem é dono de
si mesmo e não está dominado por seus próprios caprichos e
apetites. O fracasso do amor acontece quando alguém não é
livre e se deixa vencer pelo instinto, pelo entusiasmo, pelo
orgulho ou pelo egoísmo (pelo prolongamento avassalador
do próprio eu). Neste caso, o outro é visto como objeto coi-
sificado, despersonalizado.175 No livre amor à pessoa, há um
“mais” que não se encontra em outras respostas afetivas, dado
que pomos em ação não só nossa vontade de meios, mas tam-
bém nossa vontade de fins, ou, dito de outro modo, nosso ser
pessoal inteiro.
O amor perfeito é uma afirmação comprazida e presta da
pessoa do outro. Com sua simples presença, o outro nos urge
a responder. A atitude de resposta há de ser pronta e rápida.
Ainda que a resposta amorosa não seja de índole reativa —
como o choque das bolas de bilhar —, o atraso calculado ou a
demora indolente em responder são atitudes que não se coa-
dunam com a essência do amor. A demora no amor infecta o
amor. O que não significa que o amor tenha de ser cego. Ele

174 - III Sent., dist. 27, q. 3, art. 2.


175 - V. Frankl, 107.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 111


Juan Cruz Cruz

é guiado a todo o momento pela inteligência. Mas, uma vez


vista a realidade do outro, sua dignidade pessoal, já não cabe
postergar o afirmá-lo (ampará-lo, acompanhá-lo, cuidar dele).
A benevolência, como ato da vontade, difere não só do
amor íntimo que radica na vontade, mas do amor que provém
do apetite sensitivo.
a) A benevolência difere do amor íntimo, em qualquer de
suas formas, porque este traz consigo uma união afetuosa do
amante e do amado, de modo que o amante considera o amado
como um com ele (unum sibi) ou como que lhe pertencendo,
razão por que se move para ele. Mas a benevolência é um mero
ato da vontade pelo qual desejamos um bem para outro, sem
pressupor tal afetuosa união íntima com ele.176 Não é a mesma
coisa amar intimamente a outro e querer o bem para outro,
embora esse querer tenha traços da peculiaridade do outro.
Ainda que não haja amor íntimo sem querer o bem para ou-
tro, pode-se querer o bem para outro sem que haja esse amor
íntimo. A simples benevolência tampouco implica redamatio,
correspondência amorosa. O que já não cabe no limite mais
baixo da benevolência é tratar de um moribundo com os mais
sofisticados aparelhos de reanimação e, ao mesmo tempo, com
a mais fria assepsia, sob um controle rigorosamente técnico
de sua atividade cardíaca e de sua respiração, sem nenhuma
palavra de alento. Quando exercemos o amor benevolente,
tomamos parte de algum modo da estreita relação do bem e
do mal objetivos para o outro, pois sua situação e seu desti-
no nos afetam como se fossem os nossos. E quando amamos
intimamente nos comprazemos, naturalmente, no bem, mas
com intenção unitiva, tendo em mira estar e identificar-se
com o talante mais profundo do outro. Ainda que a união
efetiva não seja a essência desse amor, é, porém, seu efeito
necessário. Em suma, o amor íntimo é ato da vontade que
tende ao bem, pretendendo certa união íntima com o ama-
do, nota que a benevolência não tem.177β

176 - S. Th., II-II, 27, 2.


177 - S. Th., II-II, 27, 2, ad 2.

112 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

b) Do amor sensível, a benevolência difere, ademais, em


duas notas fundamentais: 1ª. O amor sensível é uma resposta
afetiva que inclina para seu objeto com certo ímpeto (quodam
impetu); a benevolência, em contrapartida, carece de convul-
são (distensionem) e de apetite; ou seja, não é uma inclinação
compulsiva, pois tão-só por juízo da razão o homem deseja um
bem para outro. 2ª. O amor sensível não nasce subitamente,
mas da perseverante permanência na coisa amada: brota de
um costume (ex quadam consuetudine); e a benevolência, em
contrapartida, repentinamente (repentino), como nos acon-
tece com os pugilistas que lutam, quando queremos que um de
eles vença.
Enfim, não é infreqüente que a atitude ordinária do
amor na benevolência se transforme, pelo trato freqüente,
em amor íntimo. Aristóteles chamou à benevolência prin-
cípio da amizade,  , pois “quando o homem per-
dura na benevolência”, explica o Aquinate, “e se acostuma
a querer bem a alguém, seu espírito se reafirma em querer
o bem, de modo que sua vontade não permanecerá ociosa,
mas se tornará eficaz”.178 Então quererá para o outro o bem
como para si mesmo, fazendo tudo o que estiver ao seu al-
cance para consegui-lo.

b) Amor íntimo

O amor íntimo se desdobra propriamente no âmbito da


personalidade — suposto sempre aquele amor pessoal bene-
volente — e pode ser ou amistoso em sentido estrito, sem que
medeie relação sexual, ou esponsalício, no qual se entrecruzam
os motivos do eros e do enamoramento.
O amor íntimo contém os traços gerais do amor perfeito,
participados no benevolente (que é pessoal, livre e presto),
mas implica outros registros que se dão igualmente no amor
amistoso e no amor esponsalício.

178 - In IX Ethicorum, lec. 5, n. 1825.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 113


Juan Cruz Cruz

1. O amor íntimo é, como todo amor, uma “afirmação”


comprazida do bem real que o outro é: não se trata de mera
resposta existencial, de uma afirmação do puro ser fáctico do
outro; mas uma resposta ao ser “bom” do amado: não é uma
réplica fria e distanciada, unida ao princípio de identidade
ou de contradição (“és ou existes assim”), mas uma resposta
cálida e fervorosa, vinculada à perfeição que o amante parti-
cipa do amado (“és bom, e sem ti o mundo não é totalmente
bom”). O bem complexo da personalidade amada, enquanto
forma um feixe articulado ou harmônico de relações objetivas,
pode chamar-se “beleza integral”.179 Pois beleza significa or-
dem, harmonia e perfeição irradiante, vistos como deleitáveis
(quae visa placent, segundo a fórmula medieval). Aqui a visão
do belo não é puramente de ordem sensorial, mas sobretudo
de ordem espiritual. A pessoa é visualizada pelo amante como
beleza integral. E, ainda assim, a realidade do amado — com
seu encanto e sua bondade — captada pela inteligência será
sempre o princípio, e a resposta do amante o principiado. Esta
mediação intelectual impede que a “resposta” afetiva do amor
se identifique com a do apetite ou amor sensível. A índole
objetiva, a realidade supra-sensível da pessoa amada, é sempre
o “tema” mesmo do amor íntimo.
Tanto na amizade como na esponsalidade, o amor é um
êxtase da intimidade e, por isso, afirmativo originariamente da
pessoa e de sua intimidade. “Dado que nenhum ser pode trans-
formar-se em outro se não se separa antes, de certo modo, de
sua própria forma, porque a forma é única em cada um, por isso
à divisão de penetração precede outra divisão, por cuja virtude
o amante se separa de si mesmo tendendo para o amado; e por
este motivo se diz que o amor produz êxtase e ferve (dicitur
amor extasim facere, et fervere), pois o que está fervendo ebu-
le e alenta fora de si.”180 Neste êxtase, o amante não se per-
de em pura exteriorização; muito pelo contrário: porque nesse
perfeito amor ele encontra a si mesmo no outro. Só na auto-

179 - S. Th., II-II, 27, 1, ad 3.


180 - III Sent., dist. 27, q. I, art. 1 ad 4.

114 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

transcendência no outro, efetuada pelo verdadeiro e perfeito


amor, se esclarece para si mesmo o eu como pessoa espiritual.
Se o homem não chegasse, sequer por breves lapsos de tempo,
a amar perfeitamente a outro, jamais poderia conhecer-se a si
mesmo em sua intimidade: especialmente, jamais conheceria
o que é capaz de dar de si mesmo.
2. A resposta afirmativa e comprazida do outro comporta
uma “intenção unitiva”, aspecto que não é sublinhado tema-
ticamente no simples amor benevolente (ainda que também
neste exista uma ampla intenção unitiva para a pessoa do ou-
tro, por sua dignidade de pessoa): pretende temática e con-
cretamente a união real com a pessoa do amado. Recordemos
que há três tipos de união. Em primeiro — e um realista terá
de levá-lo em conta —, há a união suscitada pelo amado no
amante: trata-se da assimilação, da conformação, da adaptação
feita pelo amado no amante; é o ferimento de amor produzido
pela flecha espontânea que o outro atira num sujeito. Há, em
segundo lugar, a união afetiva, própria da resposta que é essen-
cialmente o amor. E há, finalmente, a união efetiva ou gozo
com o amado, surgido como efeito da anterior. Esta última não
é o amor, mas uma conseqüência sua.
O que aqui nos interessa sublinhar é a índole da “intenção
unitiva” própria da resposta afetiva que é o amor.
a) Deve-se descartar, em primeiro lugar, que essa intenção
unitiva provenha de uma necessidade psíquica ou, menos ainda,
biológica. Foi Platão quem, em seu diálogo sobre o amor, inti-
tulado O Banquete, pôs em circulação a idéia de que amar é um
desejo de crescer mediante a participação nas qualidades boas
do outro. O amor nasceria de uma indigência: filho da riqueza
(Poros) e da indigência (Penia), supõe em seu início a imperfei-
ção do amante, o qual necessita completar-se participando das
qualidades do amado. Aqui o amor é uma resposta, lançada de
uma necessidade, à beleza do amado, um desejo de aperfeiçoa-
mento da própria pessoa: a intenção unitiva não surge de uma
plenitude espiritual da intimidade, mas de um apetite sensível.
O movimento interno do amor não é visto como resposta à rea-
lidade objetiva do amado, o qual seria seu verdadeiro princípio,

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 115


Juan Cruz Cruz

nem como uma entrega de si que possui caráter transcendente,


“e sim como algo que, efetivamente, acende a beleza, mas no
qual o interesse pela pessoa amada se fundamenta, em última
instância, no anseio imanente de perfeição”.181
b) Tampouco é suficiente interpretar essa intenção uniti-
va como o interesse que se tem pela outra pessoa como meio
para nossa felicidade. O amor não seria então uma autêntica
resposta ao reclamo objetivo, mas uma pergunta. O nobre de-
sejo de perfeição e de ser elevado é substituído pelo anseio de
felicidade, o qual degrada a outra pessoa à condição de meio
para isso. Feita esta substituição, pretendeu-se contrapor a
tal amor (Eros), definido como egoísta, o amor desinteressa-
do (Ágape) e de entrega, fruto da intenção meramente be-
nevolente. E até, no caso do amor esponsalício, se pretendeu
ver essa contraposição na relação que se costuma fazer entre
enamoramento e amor, não se reparando em que todo amor
traz uma intenção unitiva.182
c) Tanto num caso como no outro não se viu que a inten-
ção unitiva, longe de ter caráter egoísta ou de ser um simples
anseio de felicidade, é um traço orgânico de todo amor que
responde à beleza integral da pessoa e vê a união efetiva como
especificamente gozosa; mais ainda, vê a pessoa amada como
particularmente gozosa diante do amado. A intenção unitiva
deixaria de ser uma entrega assim que a pessoa amada fosse
vista apenas como meio para a felicidade do amante.
d) Tal união pretendida nada tem que ver com a união uni-
lateral que uma pessoa pode estabelecer com uma qualidade
ou uma entidade elevada, como a de uma bela paisagem ou a
de uma obra de arte. A intenção unitiva do amor pretende a
“reciprocidade” de dois sujeitos que se olham na relação de um
eu a um tu (e não na de um eu a um ele): então dois atos cons-
cientes se enlaçam e se respondem conscientemente. Só me-
diante a “mútua resposta“ se pode constituir um amor íntimo.
De modo que a profundidade do amor dependerá da qualidade

181 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 163.


182 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 164.

116 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

das intimidades pessoais que a estabeleçam. “A união que se


anseia, a união a que tende a intenção unitiva, só pode reali-
zar-se na reciprocidade do amor ou, o que é o mesmo: o amor
recíproco é o único caminho possível para a união de duas
pessoas. Enquanto a pessoa amada não corresponder a nosso
amor, não poderemos alcançar jamais a união ansiada.”183 Na
resposta do amor, abro, em primeiro lugar, a face de meu ser e,
em segundo lugar, viro-me para o outro; mas, em terceiro lu-
gar, só alcanço a pessoa amada se ela corresponde a meu amor.
Pelos dois primeiros aspectos eu só preparo um âmbito de en-
contro; mas, ao responder-me, ela realiza ou torna consistente
esse âmbito: só então nós dois nos encontramos num âmbito
comum, tornado possível por nossas livres e pessoais respostas.
A resposta que a outra pessoa me dirige tem por sua vez dois
momentos: no primeiro, faz-me sentir que meu amor penetra
gozosamente em sua intimidade; no segundo, ela corresponde
a meu amor afluindo em minha intimidade. Todos estes mo-
mentos se apresentam em qualquer categoria de amor íntimo;
embora, no caso do amor esponsalício, se anseie uma união
que excede à pretendida nas demais categorias de amor.
3. A resposta que o amante dá ao amado não é uma simples
ação reflexa ou reativa à beleza integral do amado, pois encerra
um “dom” muito especial, a saber, “o melhor” de nós mesmos
orientado ao amado: por não surgir exclusivamente da beleza da
pessoa amada, em muitos aspectos depende mais da natureza do
amante que da do amado. Encerra uma decisão, uma espécie de
entrega que não é exigida no âmbito de outras respostas afetivas:
a dádiva da intimidade. E, conquanto eu possa conhecer muitas
pessoas que estão num nível superior, só com algumas poucas
me relaciono com amor íntimo, estando consciente de que essas
pessoas merecem ainda mais do que meu amor lhes dá como
amor. “A dádiva do amor só vai além da resposta espiritual de-
vida ou exigida quando subjetivamente existe a consciência de
que não correspondemos à exigência.”184

183 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 168.


184 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 118.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 117


Juan Cruz Cruz

4. A intenção do amor se dirige sempre a uma pessoa indi-


vidual considerada como totalidade. Ainda que as belas e har-
mônicas qualidades desta individualidade tenham acendido o
amor, no ato do amor estou completamente dirigido à pessoa
mesma como totalidade. Amo a pessoa mesma através de sua
harmonia e beleza.
Portanto, deve distinguir-se o que motiva o amor (as qua-
lidades) daquilo a que ele se dirige (a pessoa). Em primeiro
lugar, o amor se dirige certamente a algumas qualidades, mas
enquanto realizadas numa pessoa: só à pessoa, em sua beleza
integral e individual, oferecemos nosso amor. Mas não só isso.
Em segundo lugar, não amo essa pessoa enquanto portadora e
sustentadora de tais qualidades boas, mas enquanto centro di-
nâmico prévio que as totaliza. “O amor responde não somente
ao amado em razão de sua beleza integral: abarca sua pessoa real
como tal. O amante entrega à pessoa amada seu coração, deci-
de-se por ela como um todo. A dádiva de calor, de bondade, de
interesse último, de solidariedade refere-se completamente a
esta pessoa real; aqui seria impossível ver essa pessoa somente
como portadora de valores típicos, como o valor moral, o es-
tético, o vital; seria impossível alegrar-se primariamente com
a realização desses valores.”185 Não a amo porque ela encarna
uma qualidade valiosa, mas porque é centro totalizante dessa e
de outras qualidades ainda não realizadas; e porque igualmente
é centro subjetivo que responde, um sujeito que, à diferença de
qualquer outro ente do mundo, pode acolher e compreender
por princípio nossa resposta a seu ser pessoal, pode ser afetado
pelo conteúdo dessa resposta.186 A “dádiva” do amor, o dom da

185 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 113.


186 - “Esta tematicidade da pessoa como algo único, irrepetível, aparece
de maneira muito nítida quando refletimos no seguinte. Suponhamos que
duas pessoas tivessem valores muito parecidos, possuíssem a mesma bon-
dade e pureza. Começamos primeiro a por conhecer uma dessas pessoas; e
sua bondade e pureza inflamam nosso coração. Amamo-la e entregamos-
lhe nosso coração. Depois começamos a conhecer a segunda pessoa e cons-
tatamos que é muito semelhante à amada e ficamos impressionados com
sua bondade e pureza. Mas só amamos a primeira com amor esponsalício:
amamos esse indivíduo único, determinado, inintercambiável. Não nos
ocorre pensar que pudéssemos amar igualmente a outra porque se asse-

118 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

intimidade, transcende tudo o que é devido como resposta a


qualidades. E este dom se cumpre como tal quando o amante
tem consciência de que a pessoa amada merece ainda mais do
que nosso amor lhe dá, e de que não correspondemos nunca
devidamente à exigência de seu ser pessoal.
5. Se a beleza integral e irradiante do amado acende em nós o
amor, é porque o feixe de relações dessa beleza total, sua estrutu-
ração individual, já se está realizando antes de nosso amor. Mas
na afirmação do amante está contida uma co-realização pessoal
dessa estruturação. O amor perfeito, como diria Max Scheler, “é
o ato que tenta levar cada coisa à perfeição de valor que lhe é
peculiar — e a leva efetivamente, desde não se interponha nada
que o impeça”.187 O amor não cria os valores, mas os promove.
Essa co-realização se manifesta como uma entronização do ama-
do, em sua índole integral de pessoa, “independentemente das
faltas que possa ter; no amor ele não só é achado valioso como
totalidade, mas também é explicado como valioso”.188 Explica-
do não principalmente na ordem teórica, mas na da ação prática
relacionada com o afeto: se a palavra latina “plica” dá lugar ao
castelhano “plegar” [dobrar], o amor dá lugar ao “despliegue”
[desdobramento] de faculdades e relações contidas ou implica-
das na riqueza pessoal do outro. O amante introduz-se em todos
“os pliegues” [pregas, dobras] ou recônditos do outro. Não atra-
vés de um juízo teórico, mas de um acolhimento afetivo. Pois
bem, este não faz que o trono em que o amado é posto seja arbi-
trário, pois a “beleza integral da outra pessoa há de irradiar para
mim para despertar em mim a resposta do amor; e esta beleza
não é somente um valor expresso, mas também um valor espe-
cificamente deleitável, um valor que me arrebata”.189 O amor
se caracteriza essencialmente pelo fato de que a beleza integral
de uma individualidade é expressa e especificamente regalada,

melha muito a ela, ou porque possui a mesma bondade e pureza” (Dietrich


von Hildebrand, La esencia del amor, 115).
187 - Max Scheler, Ordo Amoris, 127.
188 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103.
189 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 119


Juan Cruz Cruz

gozosa. A beleza integral conhecida é “confirmada” pelo amor:


o outro fica numa relação pessoal comigo que afeta a mim e à
minha vida íntima biograficamente.
6. Esta afirmação amorosa é, de si, inadequada. O amor,
como “expressão” ou “resposta” pessoal ao amado, encerra
um conteúdo próprio e de novidade que não se deve exclu-
sivamente à presença participada do amado no amante. À
realidade supra-sensível do amado participada no amante,
acrescenta o sujeito uma configuração categorialmente dife-
rente: seu peculiar desdobramento para o amado, seu próprio
florescer pessoal no ato de “responder“. Tal específica con-
tribuição do sujeito na resposta surge de um nível antropo-
lógico elevado: o da “intimidade”, e desdobra-se como uma
“dádiva” do amante.
Na “dádiva” amorosa está implicada a personalidade inte-
gral do amante, com seus elementos temperamentais, “carac-
teriais”, intelectuais e volitivos, fazendo unidade biográfica na
forma da intimidade. O amor pressupõe não só a orientação
à pessoa amada, mas a profundidade biográfica do amante,
qualidade que o capacita tanto para ser afetado por essa pes-
soa e não por outra quanto para responder a ela e não a ou-
tra. Supostas a qualidade da intimidade, a realidade do ama-
do e a resposta afirmativa do amante, pode-se observar no
ato de amar a “inadequação” da resposta amorosa. Isto não
acontece em outras respostas de índole pessoal. Por exem-
plo, quando alguém se entusiasma por algo que não merece
objetivamente arrebatamento algum, não só não responde
autenticamente a um valor objetivo, senão que o valor da
atitude própria é prejudicado, dado que não foi realmente
visto e acolhido o bem em questão, sua importância e seu
valor objetivo. Mas o amor inadequado não suprime neces-
sariamente, ou seja, pela inadequação mesma, o valor do
amor e sua autenticidade, mesmo no caso de poderem dar-
se erros, enganos ou equivocações com o amado. Quando
uma pessoa ama profundamente outra, ainda que em muitos
traços biográficos esta outra se ache abaixo daquela, pode-se
dizer que o amado não vale este amor, mas o amor mesmo não

120 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

perde elevação por isso. Também há, é verdade, casos em que a


inadequação do amor lesa a qualidade do amor mesmo, a saber,
quando esse amor coisifica a si mesmo ou coisifica a pessoa do
outro como no orgulho, na amplificação do eu e na servidão
ou escravização. Mas o amor ultrapassa a mera resposta factual
ou suscitada reativamente, e a contribuição do amante supera
a motivação objetiva: primeiro, entronizando o amado; segun-
do, dando-lhe um crédito fiduciário; terceiro, interpretando-o
na alta.190
7. Efetivamente, no amor se expressa o crédito que o
amante dá ao amado, pelas qualidades que seu ser tem e que
ainda não foram vistas em sua totalidade e potencialidades. O
amor divisa, em primeiro lugar, a linha da beleza e riqueza do
ser individual em todos os seus traços individuais observados;
e vislumbra também a linha daquelas qualidades que, estando
no reino da virtualidade, ainda não puderam ser comprova-
das como tais. “O amor crê também no melhor do amado; e,
quando ouve contar algo negativo dele, de saída não crerá
imediatamente que isso seja verdade, ou pelo menos que seja
interpretado adequadamente. É a fé no outro, a interpretação
positiva e a aceitação de que todo ele é bom, enquanto não se
constate inequivocamente uma falta.”191 De modo que o enca-
deamento de fatores relativos ao amor é o seguinte: há primeiro
no amado, e anteriormente ao amor mesmo, um feixe objetivo
de valores constituintes da beleza de sua individualidade, o que
é afirmado comprazidamente pelo amante; há, em segundo lugar,
pelo lado do amante, uma confirmação subjetiva dessa ordem re-
lacional, a entronização, pela qual o amor nota a linha de beleza
atual. E há, em terceiro lugar, o crédito que se dá ao amado, cré-
dito que transcende o que se possa constatar nele, dirigindo-se ao
virtual em todos os seus pormenores e situações. “Por isso, há em
todo amor um elemento de fé. Até o que ainda não se viu em sua
beleza é crido em virtude da beleza que já se conhece.”192

190 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 103-109.


191 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 104.
192 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 105.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 121


Juan Cruz Cruz

8. O amor, igualmente, realiza uma “interpretação na alta”


do amado: não só penetra na existência atual do outro confir-
mando-a, não só entroniza o outro, não só lhe dá um crédito
como puro presente de amor, mas interpreta na alta e posi-
tivamente tudo o que há no amado: “tudo, enquanto não se
mostre inequivocamente como negativo”.193
Que o amante dê ao amado um crédito de confiança, inter-
pretando-o inclusive na alta, nada tem que ver com a atitude
idealizante do homem exaltado, do visionário que confunde
com o amor a necessidade de experimentar o prazer de en-
contrar gente maravilhosa, entregando-se a este gozo median-
te uma idealização infundada e degustando o próprio delírio
como tal, sendo a pessoa idealizada somente uma ocasião de
poder delirar e não uma realidade temática. No amoroso cré-
dito de confiança pressupõe-se, sempre, um bem real corres-
pondente, a pessoa efetiva do amado, a qual dá sentido a todos
os registros do amor. Se a realidade da pessoa amada é vista
em sua integridade, então não pode senão ser reconhecida sua
“fragilidade”, o risco que corre até em sua nobreza. O crédito
de confiança “conta com a possibilidade de que, ali onde se
supõe que tudo seja positivo, também haja um defeito; defeito
que não muda nada no amor e que é visto como algo inautên-
tico e passageiro”.194
9. Conseqüência do crédito fiduciário é a invalidação psi-
cológica — conquanto não moral — dos defeitos do amado. Só
as qualidades valiosas são tratadas como algo autêntico. Não
são negados os defeitos, mas são considerados como deslealda-
de ou traição ao próprio ser autêntico. Só quem não ama vê
os defeitos do outro no mesmo nível de autenticidade que as
boas qualidades; mais ainda, tais defeitos o irritam e revoltam,
porque são vistos isoladamente, fora de sua referência à beleza
integral da pessoa. Mas o amor enfoca o negativo do amado
como algo não característico, e o desvio como ato provisório;
o amor não se irrita com os defeitos do outro, ainda que não o

193 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 105.


194 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 106.

122 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

façam feliz; e expressa-se da seguinte maneira: “mas ele não é


assim”, “não é essa a sua essência”. O amor não é neutro. Toma
sempre parte decisiva na promoção positiva do amado, ainda
que veja com clareza todos os seus defeitos e nem sequer tente
dissimulá-los. O amor não é cego, mas vidente. “O que nos
faz cegos é o orgulho que às vezes se une ao amor. A mãe que
considera o filho como seu ego ampliado não crê que seu filho
possa ter defeitos.”195 O que o amor pretende é que o amado
seja fiel a seu autêntico ser, que o desdobre em seus melhores
valores e qualidades.

2. O amor de amizade

Para esclarecer a essência do amor amistoso em sentido


estrito, Santo Tomás se vale da doutrina aristotélica e distin-
gue três espécies de amizade, segundo os três tipos de bens que
podem ser queridos: o honesto, o útil e o deleitável. O bem
honesto é considerado perfeito, completo e absoluto; o útil
e o deleitável, em contrapartida, são considerados meios ou
termos secundários. Na amizade útil e deleitável, quer-se um
bem para o amigo, e por este aspecto se salva aqui o próprio da
amizade. Mas, como em definitivo esse bem se refere ao deleite
e à utilidade própria, a amizade útil e deleitável, enquanto está
ordenada ao gozo próprio, é um amor imperfeito ou itineran-
te, não uma verdadeira amizade, que só se realiza na amizade
honesta,196 aquela que se dirige ao outro como a uma pessoa
racional e só por ser tal. Assim, se o amor espiritual recai pre-
ferencialmente sobre o objeto material do amor sensível —
que é o bem deleitável e útil —, chama-se amor imperfeito,
sempre itinerante; mas, quando se eleva ao bem honesto e
próprio da pessoa enquanto tal, chama-se amor perfeito (ou de
amizade perfeita). O amor perfeito deseja o bem para o amigo
pelo amigo mesmo: trata-se do surgimento conjugado de duas

195 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 108.


196 - S. Th., I-II, 26, 4, ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 123


Juan Cruz Cruz

liberdades pessoais que se afirmam a si mesmas afirmando-se


reciprocamente. De fato, Santo Tomás indica que não se
pode ter amizade senão com os seres racionais, os únicos
em que pode haver correspondência ao amor e comunica-
ção nas obras de vida, e os únicos também que os acasos
da fortuna podem fazer ditosos ou desventurados, razão por
que, a rigor, só com respeito a eles cabe a amizade. Os seres
irracionais, em contrapartida, não podem ser elevados ao
amor estrito; não é possível amar as coisas irracionais com
amor perfeito, mas apenas com amor imperfeito, porquan-
to elas são subordinadas aos seres racionais e também à
própria pessoa.197
Enquanto prolongada, fixa e estável, a amizade não é um
simples ato pontual, mas uma atitude ou hábito que tem por
objeto as ações para com os demais, ainda que por uma pers-
pectiva diferente da justiça, já que esta as vê pelo aspecto de
débito legal, e a amizade sob o signo de uma gratuidade.198
Enquanto hábito humano, não se trata de uma afecção passi-
va, mas de uma dimensão operativa da alma, que exige esco-
lha e, ademais, firmeza e continuidade. O amigo quer que o
outro seja ou viva e, além disso, alcance seu bem (ordem do
ser); e, ademais, o amigo faz o que é bom para o outro, crian-
do com ele um âmbito de diálogo e compreensão (ordem do
operar). Não se ama intimamente outra pessoa por nada que
se lhe deva, mas porque é pessoa: um novum ontológico ir-
redutível a tudo o mais e, portanto, sempre aberto: o amigo
descobre o outro para além do que este conta de si mesmo, a
partir de sua vocação.
A primeira nota da amizade é que se trata de um amor
que entranha benevolência, isto é, amamos alguém de tal
maneira, que queremos para ele o bem. Se, pois, para as
coisas amadas não queremos o bem, mas apetecemos seu
bem em ordem a nós, assim como dizemos que gostamos de
chocolate, do cão, etc., já não há amor perfeito, mas certo

197 - S. Th., I, 20, 2 ad 3.


198 - S. Th., II-II, 23, 3.

124 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

amor de concupiscência. E não cabe, em sentido estrito,


falar de amizade com os animais ou com os doces.
Mas, para que exista amizade, não basta a benevolência.
Precisa-se de uma segunda nota: um ato recíproco de amor
(mutua amatio), pois o amigo é amigo para o amigo. Esta be-
nevolência correspondida se funda em alguma comunicação
de um com o outro.199
Assim se compreende que as criaturas irracionais não
sejam objeto de amor perfeito, porquanto neste compare-
cem tanto o amor do amigo (fator pessoal) com quem se
tem amizade quanto os bens desejados para o amigo (fa-
tor eudemonológico). Pelo fator pessoal, não se pode amar
nenhuma criatura irracional. Em primeiro lugar, porque a
amizade é entabulada com aquele para quem queremos o
bem, sabendo que fará um uso racional dele; e não podemos
propriamente querer o bem para a criatura irracional, pois
não é peculiar desta possuí-lo, sendo-o somente da criatura
racional, enquanto esta é senhora de usar o bem que tem
pelo livre-arbítrio. Só por uma vaga analogia ou metafori-
camente podemos dizer que a tais seres irracionais sucede
algo bom ou mau. Em segundo lugar, porque toda amizade
se funda numa comunicação de vida: o próprio da amizade
é conviver; e as criaturas irracionais não podem ter comu-
nicação na vida humana, que é conforme a razão. Portanto,
não se pode ter nenhuma amizade com ela senão metafo-
ricamente. As criaturas irracionais, não obstante, podem
ser amadas pela amizade com que queremos o bem para os
demais, porquanto desejamos que se conservem para o bem
e utilidade dos homens.200

199 - S. Th., II-II, 23, 1. “Ainda que para a simples benevolência, pela qual
desejamos o bem para uma pessoa por simples complacência para com ela,
baste a bondade da pessoa que nos é grata por si mesma, para a amizade,
porém, a qual é benevolência mútua e não simples, requer-se que se veja a
pessoa não precisamente como boa e complacente em si mesma, mas tam-
bém como boa e complacente na comunicação” (João de Santo Tomás, Cur-
sus Theologicus, In II-II, “De caritate”, disp. 14, art. 1, n. 3 [Lugduni 1663]).
200 - S. Th., II-II, 25, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 125


Juan Cruz Cruz

3. O amor esponsalício

O amor esponsalício — algumas vezes súbita e fervente fle-


chada, outras lento e pacífico enamoramento — acontece en-
tre seres sexuados. O sexo, além de garantir a função biológica
generativa, impregna e qualifica muitas das atividades do ser
humano, orgânicas e inorgânicas, sejam estas sensíveis, sejam
intelectuais ou volitivas. O enamoramento surge às vezes de
uma sentida indigência ou precariedade corporal e psicológica
que busca plenificar-se com outra pessoa sexuada em união es-
piritual e física, de modo que a biografia de um indivíduo fique
enlaçada também com a presença física e espiritual de outro.
Vários traços definem este amor.
Coincide com todo amor íntimo em ser pessoal e livre.
Tal amor é, em primeiro lugar, pessoal. Não se dirige a uma
coisa, a algumas qualidades ou propriedades de um sujeito, mas
à intimidade, expressão do ser mesmo desse sujeito. Nisso se
distingue da simples flechada, que permanece presa às quali-
dades (rosto, figura, graça) do outro. No amor esponsalício,
amamos também as qualidades do outro, mas passando por sua
pessoa.201 Desejamos que ele tenha qualidades, no caso de não
possuí-las, e na medida em que as puder ter. Amar é, assim,
afirmar o valor absoluto de um sujeito. Valor que, entre outros,
Kant indicou ao dizer que “a pessoa humana jamais deve ser
tratada, nem em ti nem em outro, como simples meio, mas
como fim em si”. Trato ou afirmação pessoal que há de cum-
prir-se também no amor esponsalício. Enquanto valor absolu-
to, o outro é, para o amante, insubstituível: ninguém pode su-
plantá-lo. Afirmá-lo como valor absoluto significa considerá-
lo bom, pois é bom que exista. Para o amante, o mundo seria
inimaginável, não seria bom, sem a existência do outro.202 No
caso do amor erótico, a união buscada não deve deixar separa-
dos aqueles aspectos que em cada um dos amantes fazem parte

201 - G. Marcel, 1957: “Nada mais falso que identificar o tu com um conte-
údo limitado, circunscrito, esgotável” (161).
202 - J. Pieper, 59. Sobre o caráter existencial do amor, ver: D. Wilhelmsen,
108.

126 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

necessariamente de seu perfil pessoal psíquico e biológico; caso


contrário, objetivamente não haveria união, mas contato, por
mais profunda que fosse a satisfação subjetiva que tal contato
produzisse. Se, por exemplo, a sexualidade é exercida no puro
isolamento genital, forçosamente há de bloquear o amor, pois
coisificará a pessoa. Dito de outra maneira: as pessoas exercem
então uma atividade pela qual se rebaixam ao estado de coisas.
A união exige totalidade do ser que se une, de corpo e alma.
Este amor requer duas coisas: primeira, que as qualidades do
amado (v. g., beleza, graça e vida exuberante) não sejam redu-
zidas a mero objeto deleitável ou de agrado para o amante, mas
sejam reconhecidas como valiosas em si mesmas; segunda, que
tais qualidades objetivas estejam reunidas em torno de um nú-
cleo pessoal, justamente o da intimidade, de modo que o amor
se dirija a esse núcleo interior, mas objetivo, através também
das qualidades objetivas do outro. Ambos os requisitos são
marginalizados por um Don Juan: “O tipo dom-juanesco não
entende como valor a beleza da graça, do encanto feminino.
Vê-a tão-somente como algo que o atrai e de que gosta, como
algo que lhe apraz subjetivamente. Por isso, sua resposta é um
querer-possuir, um querer-gozar, sem entrega alguma de si. Não
olha para o outro como para algo valioso em si mesmo, não
compreende que a beleza, a graça e o encanto feminino são
valores. Ademais, este tipo isola tais qualidades. Estas não são
para ele expressões de uma personalidade integral; ele não vê
a mulher como nobre, boa, mas como algo excitante por sua
beleza física e por sua graça: a pessoa não desempenha, em sua
totalidade, papel algum para ele”.203
O amor esponsalício é, em segundo lugar, livre. Só ama
quem é dono de si mesmo, quem não está, como sujeito, domi-
nado por um objeto, nem sequer pelo âmbito objetivo de seus
próprios instintos. Um sujeito só pode ser afirmado por outro
sujeito que se autopossua. Autopossuir-se é condição de dar: só
quem se possui livremente ama, porque é plenamente sujeito.
O amor fracassa quando não é livre, quando, por exemplo, se

203 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 84.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 127


Juan Cruz Cruz

deixa vencer pelo sexo, desarraigando a sexualidade humana


de sua referência à pessoa. Neste caso, o outro é visto como
objeto de prazer, é coisificado, despersonalizado. É então que
o amor se torna intolerável, vazio e frustrante.204 Que o amor
seja livre significa, ademais, que seja objetivo, que responda
tanto às estruturas subjetivas do outro como aos fins objetivos
que suas tendências reclamam. Na relação esponsalícia, não
basta que dois seres humanos se ponham de acordo, sem se
referirem a um bem comum; os contraentes não se comportam
como contratantes, como comprador e vendedor de um pro-
duto. As duas pessoas se subordinam a um bem comum, a uma
idéia que se pretende realizar. Os contraentes não desejam
compensar o bem de cada um numa tensão: eu te dou para que
tu me dês, eu te dou algo para que tu me dês mais; tensão entre
rivais, entre dois negócios, que seria equilibrada por meio de
um laço jurídico entre os contratantes. No amor esponsalício
não há tensão de rivalidade: não é o caso de um jogar na baixa
e o outro na alta, não há dois rivais nem dois seres que façam
cada um seu negócio; porque os dois fazem juntos uma mesma
coisa: há um consórcio de vida, uma comunidade de destino,
onde o primário não é o acordo de vontades, mas o fim comum
pelo qual que se unem livremente.
Este é pleno se é recíproco. “Por mais importante que pos-
sam ser para a união muitas outras coisas — a presença da
pessoa amada, a possibilidade de falar com ela de viva voz, a
participação em seu pensamento e em sua vida —, nada disso
conduz à unidade ansiada, à verdadeira união, se a pessoa ama-
da não corresponde ao nosso amor. A identificação da vida
exterior no matrimônio, as carícias, a mesma união corporal,
nada disso constitui a verdadeira união pessoal íntima quando
falta o olhar entrelaçado do amor.”205
Este amor é, em terceiro lugar, sexuado, não meramente
genital. A correspondência no amor é mútua doação biográ-
fica, na qual o elemento sexual tonaliza a intimidade de cada

204 - V. Frankl, 107.


205 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 172.

128 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

um. O tom erótico é integrado no amor abarcador. 1.º Entre


duas pessoas de sexo oposto há esta característica especial:
sua constituição sexuada tem uma finalidade objetiva que
o amante não pode eliminar angelicamente nem subverter
bestialmente. Este respeito à própria natureza é essencial no
amor esponsalício. Porque o amor humano dirigido à pessoa
do outro sexo não é puramente espiritual nem puramente bio-
lógico, mas afeta o núcleo íntimo da personalidade humana
enquanto tal. 2.º Na união amorosa entre homem e mulher
“vê-se, da forma mais autêntica e legítima de quantas possam
dar-se no mundo, que o ser humano não quer ser amado de-
sinteressadamente. É natural que não queira ver-se desejado
como portador de determinadas faculdades ou aptidões, mas
ser afirmado e amado como pessoa: como o que é. Mas também
se trata nele de que o outro tenha seu proveito, de que se sir-
va dele; e ademais ele deseja muito seriamente aparecer como
desejável e apetecível, e em nenhum caso como o objeto de
um amor ‘imotivado’, ‘indiferenciado’, ou como que dado de
presente, que são as características, segundo Nygren, do amor
de Ágape”.206 A doação física total significa então signo e fruto
de uma doação em que está presente a pessoa toda, inclusive
em sua dimensão temporal. Este amor é expressão da unidade
de corpo e espírito: é entrega a um ser, a um sujeito, mas a
um sujeito sexuado.207 3.º Por amor, dois realizam uma mesma
obra, uma idéia, um projeto de vida. Dizia Saint-Exupéry que
tal amor não consiste tanto em se olharem um ao outro quanto
em olharem os dois juntos em uma direção. Esse projeto de
vida não é arbitrário, senão que se funda na constituição hu-
mana de que brota o amor. Nós não nos fazemos sexualmente
complementares; e, por já sermos sexualmente complementa-
res, podemos livremente projetar uma comunidade de ajuda
mútua; este é um elemento integrante desse projeto de vida.
Ademais, nós não nos fizemos fisicamente aptos para procriar;

206 - J. Pieper, 168.


207 - B. Welte, Auf der Spur des Ewigen, 93-94; e H. E. Henstenberg, Philoso-
phische Anthropologie, 76-77.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 129


Juan Cruz Cruz

por isso assumimos o projeto, desenhado pela natureza, de fe-


cundidade nos filhos. 4.º O matrimônio aparece então como
uma idéia organizada por um amor esponsalício, ou seja, livre
e fundado na constituição humana.208
Esse amor é, em quarto lugar, total. Não é um acesso quan-
titativo a outro, não vai ao outro pouco a pouco, escalando
cada uma de suas propriedades. É um acesso qualitativo e on-
tológico a um tu, é afirmação absoluta do sujeito: é uma entra-
da imediata no sujeito; ou se dá ou não se dá. Isto exige que o
valor absoluto do outro seja respondido com o valor absoluto
do próprio ser pessoal. Absoluto, quer dizer, não repartido, ex-
clusivo. Assim o exige o ser pessoal do amor: um com uma.
O amor esponsalício ou é um ou não é amor. Repartir esse
amor com várias pessoas equivale a tratar o sujeito como a
um objeto, é coisificá-lo, quantificá-lo, dando só uma parte ali
onde se demanda um todo.209 O núcleo desta idéia é recolhi-
do por Santo Tomás nestas palavras: “Amizade consiste em
certa igualdade (amicitia in quadam aequalitate consistit). Se
fosse permitido ao homem ter muitas mulheres, não caberia
amizade liberal entre mulher e homem, mas servil (non esset
liberalis amicitia uxoris ad virum, sed quasi servilis). Não se
tem amizade intensa com muitos. De modo que, se a mulher
tem um só homem e este tem muitas mulheres, não é igual a
amizade das duas partes (non erit aqualis amicitia ex utraque
parte). Nem haveria amizade liberal, mas de certa maneira ser-
vil (quodammodo servilis)”.210
Esse amor é, em quinto lugar, incondicional. Precisamente
porque não se dirige a um objeto, a uma coisa, mas a um sujei-
to, não pode estar submetido a condições coisificantes, como,
por exemplo, os limites temporais. O sujeito é eterno por seu
espírito. Sua entrega exige duração e, do ponto de vista tem-
poral, indissolubilidade. A união é marcada, também em seu
aspecto temporal, pela qualidade ontológica dos seres que se

208 - E. De Lestapis, 81-87.


209 - M. Nédoncelle, 15-21, 41-48.
210 - C. G., III, 124.

130 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

unem. No caso do amor erótico, há no homem uma qualidade


espiritual (supramaterial e supratemporal) que exige a pere-
nidade da entrega. Uma aventura passageira, tomada como
objetivo de vida, desintegra a estrutura psicológica da pessoa.
Daí que o divórcio seja a subordinação da pessoa à coisa, às
qualidades ou propriedades que se têm, mas não ao ser que se é.
Por isso, muitas vezes a “questão do divórcio” foi mal enfocada
por uns e por outros. Nesta questão só se debate um tema: se o
homem é pessoa espiritual ou se é um simples primata evoluí-
do. Se é um sujeito espiritual ou se é um objeto refinado. Se é
capaz de amor e entrega incondicional ou se é condicionado
completamente por seus instintos. Brevemente, se é homem
ou não. Refutar o divórcio apenas por razões utilitárias —
com o argumento de que o divórcio é um transtorno para
a sociedade ou de que cria dificuldades para a educação dos
filhos — é cair numa armadilha: porque assim se perde o que
é substantivo na questão.211
Tal amor é, em sexto lugar, leal. Precisamente porque o
amor não brota de uma coisa quantitativa ou de um objeto
ferreamente construído, não perdura por simples inércia: e o
tempo pode ser seu aliado ou seu inimigo. Há estados espon-
tâneos que o podem fazer perigar, do ponto de vista subjetivo,
e condições externas que o podem asfixiar, do ponto de vista
objetivo e social. A vontade deve conduzi-lo, ratificá-lo, não
só num contrato público,212 mas em sinais tangíveis de ena-
moramento permanente. A fidelidade é a arte de enamorar o
outro ao longo do tempo. A fidelidade não é apenas de ordem

211 - A indissolubilidade deve-se a razões supra-utilitárias, a motivos on-


tológicos, ou seja, deve-se à natureza da comunhão de amor. Somente por
este enfoque se compreende que as dificuldades que ameaçam a convivên-
cia conjugal, por mais fortes que sejam, só podem ser motivos de separação
temporal, nunca de divórcio, ou seja, de rompimento do vínculo. Nunca
podem ser causa de destruição do homem como pessoa.
212 - Desse modo, subjetivamente o amor se consolida no vínculo do con-
trato, e objetivamente a sociedade responde a esse amor com uma vontade
de proteção, oferecendo as condições para que os esposos possam reiterar
o amor e fomentá-lo. Uma legislação social que não inclua a proteção e
defesa do contrato matrimonial indissolúvel não terá alcançado o nível do
autenticamente pessoal.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 131


Juan Cruz Cruz

sexual: a que guarda o corpo e o coração para o cônjuge. Pois


não basta não entregar o coração a uma terceira pessoa. Em
verdade, há dos tipos de fidelidade: a estática ou mumificada,
e a dinâmica e imaginativa. A primeira é ancilosada, esclerosada,
atrofiada, raquítica. A segunda é viva, diligente e enérgica. A fi-
delidade imaginativa é uma arte que há de atender, por exemplo,
à necessidade de ternura sentida pela esposa. Carece de arte e de
talento a ternura que brota apenas em manifestações circunstan-
ciais (no momento da união), estereotipadas (frases feitas), dis-
traídas (deixando passar ocasiões propícias) e obrigatórias (como
uma concessão ao dever). A esposa sentir-se-á ignorada. O homem
e a mulher que deixam dormir seu coração já estão muito perto
da infidelidade. Em contrapartida, transborda de gênio e finura
a ternura que brota para o companheiro de maneira espontânea
(sem estereótipos da palavra, do gesto e do olhar), gratuita (como
uma dádiva, nunca como um prêmio), imprevista (com surpresa,
quando menos se espera). Se a fidelidade é a arte de enamorar,
a união esponsalícia não acaba com o enamoramento: ela o ins-
titui. Porque ser fiel ao amado significa, em primeiro lugar, não
traí-lo; mas isto é o mínimo: significa, em segundo lugar, cumular
o coração; e, em terceiro lugar, amá-lo cada vez mais. Para isso é
preciso não só velar pelo amor, mas renovar o amor: fazer renascer
a cada instante o que nasceu um dia, fazer que frutifique no tempo
a semente de eternidade. Ser fiel ao amor no tempo é justamente
a arte de enamorar.
Enfim, este amor é, em sétimo lugar, criador. Criador
porque colabora no sentido esponsalício de entrega, cuja
finalidade objetiva está no filho. Criador também porque
colabora no conhecimento paulatino do outro e em sua
realização progressiva, abrindo um âmbito adequado onde
o amado possa fazer progredir suas melhores virtualidades.
O amor mesmo não varia; ou se dá ou não se dá: só varia a
descoberta crescente da intimidade do outro.
O amor esponsalício se mostra, assim, como amor per-
feito que, com uma riqueza de valores, repleta a intimidade
de exigências de totalidade, unicidade, fidelidade e criati-
vidade. Só do ângulo desta estrutura ideal personalista do

132 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

amor é possível compreender o grau de “satisfação” ontoló-


gica que cada matrimônio pode ter.213

4. O amor paterno-filial

A intenção unitiva própria do amor paterno e do filial tem


atrás de si outra unidade, dada de antemão e que, de si, não se
constitui pelo amor recíproco, mas pelo fato de os pais terem
gerado o filho. Já durante a gravidez, aguardam a chegada do
filho, independentemente da resposta que dêem a seu valor
como pessoa individual. O fato da simples paternidade bio-
lógica não prova que o pai tenha unidade com o filho porque
o ama e porque este amor é uma resposta a seu valor (até há
pais que não querem ter filhos e aguardam contrariados o nas-
cimento). O problema do fundamento do amor paterno e do
filial é mais complexo. Neste aspecto, distingue-se das outras
categorias de amor íntimo, como o de amizade ou o esponsalí-
cio. Os pais são objetivamente os pais do filho — seja qual for
a atitude e a consciência deste —, e o filho é objetivamente
o filho dos pais, à margem da resposta que estes dêem a seu
valor e independentemente do amor que lhe professem. A in-
tenção unitiva dos pais supõe, assim, uma prévia coordenação
objetiva ou natural, paralela ao amor, mas não fundada nele,

213 - Por esta óptica, aclara-se a distinção que se pode fazer entre união
esponsalícia e união conjugal. Esta última resulta do consenso no matrimônio
e é chamada em si mesma a ser uma realização da união esponsalícia; mas
também pode seguir existindo limitadamente quando falta a união espon-
salícia; então não se fundamenta na mútua resposta do amor, na intenção
unitiva recíproca, mas em algum ponto de vista prático, derivado de um
ato social. Quando o consenso, como simples ato social, não realiza a
união pretendida no amor esponsalício — como no chamado matrimônio
de conveniência —, nem por isso perde o matrimônio sua validade nem
sua eficácia formal, ainda que fique desprovido de interioridade. Também
essa mera união conjugal implica, por exemplo na mulher, obrigações para
com o compaheiro, responsabilidade por seu bem-estar, e respeito a seus
direitos: compaheiro com que tem uma vida em comum e com que man-
tém obrigacões; e reciprocamente. Pode-se compreender, assim, por que
mesmo o homem que não ama sua mulher com o requerido para a plena
união esponsalícia se sinta ofendido quando outro se conduz com ela sem
a devida consideração.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 133


Juan Cruz Cruz

ainda que se una organicamente a ele e tenda a uma realização


através do amor.
O que, sim, se pode dizer é que o amor íntimo dos pais pelo
filho é vivido como um prolongamento do mesmo amor que os
pais se professam entre si. Mas esse prolongamento se alimenta
também de outros motivos, como o respeito à coordenação
objetiva dos processos biológicos naturais, a confiança essen-
cial na própria natureza, a homenagem ao valor da humani-
dade nua do filho. Como quer que seja, o amor dos esposos
arde como uma só chama dentro do lar. Ele luz como um fogo
com dois pavios. É uma chama que ilumina e se estende com
exigência de fecundidade, destinada a dar vida pessoal, a do
filho. Desde a sua geração, o filho tem um direito inalienável a
esse lar que vive com uma só e potenciada luz. O lar, que não
é toca nem cova, afigura-se para o filho como um âmbito de
amor pessoal que lhe oferece segurança e equilíbrio individual.
Se se rompe a unidade do amor, a unidade desse fogo, rompe-
se também a unidade do lar, desse espaço em que o filho tem
o direito de nascer, crescer e educar-se. O amor ao filho e o
amor ao cônjuge formam, assim, uma misteriosa unidade. Por
isso, quem diz amar o filho enquanto é infiel ao cônjuge tem a
dupla condição de falaz e de espoliador. Falaz porque represen-
ta diante dos filhos uma comédia de amor. Espoliador porque
subtrai a paz a seu lar, às crianças, que mais cedo ou mais tarde
assistirão impotentes ao drama da infidelidade.
O amor que aparece normalmente nos pais assim que es-
peram ter um filho é a resposta a um triplo fato: a estarem
constituídos para participar na procriação de um novo ser; a
ele ter-lhes sido confiado de modo tão misterioso; e a ser ele o
fruto do amor recíproco. E, uma vez acontecido o nascimento,
o amor antecipado se converte em resposta ao valor da beleza
integral do recém-nascido. “A preciosidade de um ser huma-
no, ainda em branco e ‘nu’, o valor de sua vida é ‘dirigido’, por
assim dizer, de modo especial aos pais. Quando se percebe que
o filho vê a luz do mundo por meio deles, que ele lhes foi con-
fiado de modo misterioso, que lhe abriu um espaço no coração,
a preciosidade da pessoa humana resplandece de modo espe-

134 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IV - O Amor Íntimo

cial. Daí que este amor, já antes de converter-se em resposta


de valor à peculiar beleza da individualidade do filho, desde o
princípio seja uma resposta ao valor.”214
O sentido objetivo da vinculação natural é diferente tam-
bém do sentido da união fundada no amor, o que já se pode
perceber no fato de que continua mesmo quando não se dê
nenhuma espécie de amor. Pode suceder, especialmente quan-
do os filhos já são maiores, que não exista amor entre pais e
filhos. Contudo, continua a ser uma vivência de união que é
expressão da vinculação objetiva. E, ainda que o sentido da
vinculação paterno-filial fundada na coordenação natural ob-
jetiva não seja o fundamento do amor dos pais, e ainda que
tampouco o verdadeiro amor íntimo filial seja motivado pelo
sentido objetivo dessa vinculação natural, sucede que no amor
paterno-filial o sentido objetivo da união natural e o sentido
objetivo da união fundamentada no amor estão originaria-
mente entrelaçados, correm parelhos desde o princípio, à dife-
rença do que sucede com o sentido da união real dos esposos,
nos quais o prévio sentido esponsalício da união fundada no
amor é o que conduz, no caso do matrimônio, ao sentido da
vinculação conjugal; ou seja, o sentido conjugal da vinculação
do matrimônio é uma realização do sentido esponsalício da
união do amor.

214 - Dietrich von Hildebrand, La esencia del amor, 244.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 135


Capítulo V
Doação E Posse
V - Doação e Posse

1. Dialética do amor humano perfeito

a) A posse na doação

1. O amor perfeito é, primordialmente, um amor de doação;


mas secundariamente pode incluir um amor de posse. “Posse”
e “doação” não expressam aqui uma caracterização dos atos
respectivos da tendência sensível ou apetite e da tendência
espiritual ou vontade (assunto que se tratou no primeiro ca-
pítulo), mas uma caracterização dos atos que podem surgir no
seio mesmo da vontade: atos de amor imperfeito e de amor
perfeito, de amor concupiscentiae e de amor amicitiae. Igual-
mente, ao falarmos aqui de “posse”, não nos estamos referindo
à conexão que só se pode dar objetivamente entre uma pes-
soa e um ser não pessoal: neste caso, dizemos que a pessoa é
proprietária de algo, e que só uma realidade impessoal pode
ser possuída como propriedade:215 a união que produz tal posse
encerra uma posição preeminente do possuidor com respeito
ao possuído. Assim, em sentido estrito, a união que o amor
pretende essencialmente não pode ser tal “posse” do amado.
Nem sequer os filhos pertencem aos pais nesse sentido. Ao
amar, entrego-me ao outro, e nesse mesmo ato me oponho ter-
minantemente à propriedade; porque tampouco me entrego

215 - A idéia de posse tem, na verdade, um campo de aplicação muito am-


plo. Enquanto indica de modo geral uma vinculação ou pertença, é preciso
distinguir cuidadosamente entre vinculação física, vinculação psicológica,
vinculação moral e vinculação jurídica. Pela primeira indico, por exemplo,
que me pertence não só minha alma ou meu corpo (partes essenciais), mi-
nha inteligência e minha vontade (faculdades), mas também minhas idéias
e meus quereres (atos). Trata-se, neste caso, de uma relação necessária que
estes elementos guardam comigo mesmo, antes até do exercício da liber-
dade de arbítrio. Pela segunda — que se refere à relação que um objeto ou
uma pessoa têm, por exemplo, com a vontade ou com o eu — pode dizer-se
que tal objeto vem a ser ou um prolongamento do eu ou algo que é um bem
objetivo com especial afinidade comigo; e assim digo, v. g. que possuo o
amado; e aqui já se exerce a liberdade, como é o caso do amor. Pela terceira
— que é uma coordenação hierarquizada entre seres livres — digo que
tenho um chefe ou que tenho um subordinado. Aqui aparece a liberdade
também com seu campo de ação. Pela quarta, que é um enlace coativo,
expresso que possuo coisas impessoais, como casa ou cavalo, e que posso
exigi-las diante da lei ou das autoridades: trata-se da relação de proprieda-
de, em sentido jurídico e econômico, com coisas e não com pessoas.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 139


Juan Cruz Cruz

ao outro para que ele seja proprietário de meu ser. A doação


que faço de mim mesmo busca uma relação inteiramente dife-
rente da de ser possuído como algo impessoal. E, no entanto,
continuo a expressar com um “sou teu” minha relação com a
outra pessoa. Há uma forma, mais profunda que a impessoal,
de possuir e de ser possuído, na qual a intenção unitiva flui
organicamente da essência do amor, da especial afirmação da
pessoa amada, como entrega que supera a posse de uma pro-
priedade e se insere no ponto mais elevado de interesse pelo
amado. Por seu valor e sua especial afinidade comigo, o amado
transforma-se em bem objetivo para mim e ingressa em minha
vida individual. Neste sentido, eu o possuo. Mas o amado não
adquire relevância porque eu o possuo, senão que eu o possuo
porque, devido a seu valor, eu o amo ou respondo a seu valor.
A relação de posse que se estabelece no amor não tem de
si determinantes jurídicos nem econômicos, nem psicológi-
cos espontâneos, mas livres. E exibe dois aspectos. Primeiro,
mediante o amor íntimo (amistoso ou esponsalício) possuo a
pessoa amada, por ter-se convertido ela, justamente por sua
qualidade valiosa, num bem real para mim, a cujo valor res-
pondo; e sucede então que, para além de minha resposta ao
valor, se estabelece uma relação pessoal, instalando-se a pessoa
amada em minha alma: mas eu só a possuo, ela só se conver-
te em “minha” na medida em que eu me entrego dizendo-lhe
“sou teu”. E esta posse, que procede da entrega ao outro, nada
tem que ver com a posse vivida como prolongamento egoísta
do próprio eu, ou como fruto de um ato social, ou da condição
de ser parte de algo. Segundo, surge uma nova possibilidade de
união entre pessoas assim que se desdobra o amor recíproco.
Por esta reciprocidade, posso dizer que possuo a outra pessoa
por ter-lhe dito “sou teu”; e, por sua vez, a outra pessoa pode
dizer que me possui por ter-me expressado “sou tua”. Só quan-
do a doação se insere no interior da posse é que surge um sen-
tido mútuo de posse inteiramente novo. Porque: a) só existe
entre pessoas; b) pode surgir exclusivamente da reciprocidade
da resposta amorosa; c) o gozo que produz transcende o âmbito
do prolongamento do próprio eu e procede do amor mesmo: a

140 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

união é profundamente gozosa porque amo outra pessoa, e só


por isso.
Agora se trata de dar forma categorial-ontológica a esta
relação de posse implicada na doação amorosa.
Nem todo amor de posse é imperfeito. No caso do ser
humano, não se pode prescindir da necessária e legítima “re-
compensa“ que o bem pessoal do outro significa para o aman-
te, para sua vontade amorosa. Santo Tomás afirma que “cada
amizade inclui concupiscência ou desejo e acrescenta algo a
ela”.216 De modo que no homem não encontramos um amor
quiescente de doação “pura”. E isso é lógico. Porque, estando
o espírito humano a informar substancialmente um corpo,
não é possível que as tendências de um ser corpóreo-espiri-
tual estejam desagregadas em compartimentos estanques. O
que o processo amoroso perfeito exige é que não se chegue
à coisificação do outro. A questão está em resolver de modo
personalista a implicação da posse na doação, do itinerante
no quiescente.
O amor de doação puramente gratuita é o principal ato de
amor que o homem pode fazer, amando a pessoa por si mesma
e acima das coisas que a rodeiam. E, ainda que busque “ter”
o outro, ele não põe nisso uma intenção de uso: quer tê-lo
presente e conviver com ele, para amá-lo mais e não só para
receber prazer, compreensão ou estímulo.
Se o motivo principal do amor de doação vem da pessoa
amada, o motivo secundário desse mesmo amor procede do su-
jeito amante. Como em face da pessoa amada o motivo formal
e especificativo de meu amor não pode ser mais que um, a saber,
o próprio ser pessoal do outro, é claro que o motivo secundá-
rio — a tração do amor itinerante ou de posse — há de estar
informado ou atuado pelo motivo primário e formal: assim o
amor itinerante se incorpora ao quiescente num mesmo amor,
e lhe pertence de maneira própria. O amor perfeito não ama à
outra pessoa porque dela derive uma felicidade psicológica para
o amante; se assim fosse, a pessoa do amado ficaria subordinada

216 - III Sent., dist. 27, q. 2, art. 1 ad 1, n. 109; S. Th., II-I, 26, 3 ad 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 141


Juan Cruz Cruz

à do amante: este seria o fim, aquela o meio. Mas, em outro


sentido, poder-se-ia dizer perfeitamente: “porque te amo
sou feliz”. Aqui, a conjunção “porque” se refere à causa
dispositiva que é a aspiração mesma do amante, a tensão
de sua vontade; e só neste sentido cabe dizer que o amor
perfeito ama à outra pessoa porque esta confere certa feli-
cidade ao amante e é boa para o amante.
Deve-se, pois, distinguir um duplo fim no amor hu-
mano perfeito: um referido ao amado; o outro referido ao
amante. Em virtude desse duplo fim, a índole formal do
objeto de tal amor pode ser considerada de dois modos:
um, pelo lado da pessoa que é amada principalmente por
tal amor e à qual tende principalmente seu ato; e, desse
modo, o caráter formal do objeto do amor é o bem da pes-
soa amada, ou o bem de sua felicidade ou, se se quiser, sua
plenitude existencial pessoal; outro, pelo lado da potência
volitiva do amante que ama essa pessoa; e, desse modo, o
caráter formal do objeto do amor perfeito é o outro como
princípio da felicidade do amante, ou o outro na medida
em que produz felicidade. “Quando te amo perfeitamente,
sou feliz, e isso eu não posso evitar.“ Tal seria a linguagem
do verdadeiro amor humano. O objeto formal do amor, do
ângulo do ser amado, é o bem mesmo deste, sua índole pes-
soal plena. O aspecto formal do amor do ângulo do amante
é que o outro figura como princípio de felicidade ou comu-
nica felicidade; não no sentido de que o outro seja amado
por tal motivo (só porque produz felicidade), como se isso
fosse o verdadeiro fim, senão que esse motivo está antes na
faculdade do amante mesmo, causa material ou dispositi-
va. A índole perfeita de amabilidade do outro, por parte
do amado, age no gênero da causa formal ou final, e não é
uma comparação do amado com o amante: é a própria per-
feição, bondade e plenitude pessoal do amado. Mas a ama-
bilidade do amado, do ângulo do amante, age no gênero da
causa material, na disposição do amante para amar o outro,
e inclui a comparação ou relação com o amante: “porque
nenhum amante ama senão o que é bom e conveniente

142 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

para ele e o aperfeiçoa; e é claro que tudo isso implica uma


relação comparativa”.217
Isso explica que todo amor imperfeito e coisificante seja
itinerante; ainda que nem todo amor itinerante e possessivo
seja coisificante. Amar as coisas da pessoa do outro, seus bens
temporais — psíquicos ou corporais —, por amor dessa mesma
pessoa não é um ato de coisificação. E se, ademais, satisfaz as
ânsias de felicidade do amante, integra um perfeito amor hu-
mano. Este amor itinerante, fundado na dignidade da pessoa,
não busca o interesse próprio, mas o bem do outro. É errô-
neo considerar a ausência de intenção unitiva no amor como
a fonte de elevação moral e pessoal. “No amor esponsalício,
fazer algo exclusivamente ‘pelo outro’ e excluir minha pró-
pria pessoa não seria seu cume. Ao contrário, o marido que
dissesse à mulher ‘quero casar-me contigo por tua felicidade,
para que sejas feliz, minha própria felicidade não influi nem
minimamente na decisão’ não a amaria, evidentemente, com
amor esponsalício. Com essa atitude, a esposa ficaria privada
da singular dádiva do amor, o mais gozoso para o amado. [...]
Esta dádiva é, precisamente, a intenção unitiva, o fato de eu
não desejar o matrimônio só pelo amado e sua felicidade, mas
também por mim mesmo, porque nessa união descubro a fonte
maior de minha felicidade na terra. A intenção unitiva e a
felicidade que emana dela fazem parte do sentido e do tema do
amor esponsalício.”218
O amor coisificante se curva sobre si mesmo, busca o outro
e suas coisas pelo interesse próprio, e só por isso. O amor que
coisifica é puramente itinerante: movido de maneira egocên-
trica, unicamente pelos bens que se podem receber, não cessa
de reclamar a posse.
De modo que não é coisificante o amor que busca simulta-
neamente o interesse próprio e a afirmação da pessoa do outro,
mas com uma ordem de prioridade: antes a pessoa do outro e,

217 - Capreolo, III Sent., dist. 27-30, q. única, art. 3, ad arg. Scoti contra
secundam conclusionem, t. V, pp. 364b-366a.
218 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 182.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 143


Juan Cruz Cruz

em segundo lugar, o interesse próprio, se é que o proveito pró-


prio aparece sem perturbar ou perverter a relação pessoal origi-
nal; não põe no proveito próprio o fim do amado nem do amor.
Buscar os bens espirituais conaturais ao amor íntimo, não cer-
tamente como o mais amado, mas como o mais desejado, não
é coisificante, desde que não sejam desejados principalmente
e separadamente da pessoa do outro, mas nessa pessoa e por
essa pessoa principalmente, a fim de gozar deles para elevar e
potenciar o próprio âmbito espiritual, potenciação que por sua
vez fará mais fácil e profunda essa relação com o outro. Não
estamos diante de dois fins na realidade, mas diante de um
mesmo fim considerado em si e aplicado a outro, como um fim
sob o fim e com o fim. A pessoa mesma é o fim ultimamente
buscado; mas a fruição, o gozo de sua presença, é como a con-
secução desse fim último. A pessoa do outro e a fruição que
dele se tem não são fins diferentes.
Outro exemplo. Quando o amor de amizade perfeito é mo-
tivado formalmente pela afirmação do outro em seu ser pes-
soal, o amor de posse itinerante com respeito a esse mesmo
bem não só não cessa, mas se aperfeiçoa e é informado pelo
amor de doação quiescente, sendo, com respeito a ele, como
que uma redundância e como que certa propriedade sua. Nisso
consiste o verdadeiro amor de si mesmo, pelo qual alguém quer
os bens verdadeiros, os espirituais e eternos, para conseguir um
âmbito mais profundo e elevado de relação amorosa; tal amor
não se opõe ao amor quiescente e perfeito, senão que é antes
exigido por ele e a ele corresponde. “Quem quer para sua alma
o que é bom absolutamente, absolutamente a ama [...]. Pois
bem, os bens absolutos da alma são aqueles pelos quais a alma
se torna boa.”219 Quem quer para sua alma o bem espiritual a
ama absolutamente. “Os bons amam a si mesmos quanto ao
homem interior, porque querem que seja conservado em sua
integridade, e lhe desejam seus bens, que são os bens espiritu-
ais, e trabalham por consegui-los, e retornam gozosamente a
seu próprio coração, porque ali encontram os bons pensamen-

219 - In Ioannem, cap. 12, 25, lect. 4.

144 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

tos do presente, a memória dos bens passados e a esperança


dos bens futuros, donde resulta o gozo; e, de modo semelhante,
não toleram em si mesmos a dissensão da vontade, porque sua
alma tende toda à unidade.”220
2. Recordando os dois planos — o entitativo e o operativo
— em que se pode falar da vontade, a saber, como potência e
como ato, convém sublinhar que só no nível do ato ou hábito
(ação de amar) se aplica a denominação de amor imperfeito e
de amor perfeito, não no plano entitativo da faculdade mes-
ma como potência, a qual não deixa de ser um apetite natural
dirigido a seu ato e a seu objeto. Não se pode dizer que o ape-
tite natural, não simulado nem artificioso, da vontade seja um
amor imperfeito ou de posse. Porque a tendência natural de
uma potência a seu ato último é um amor de benevolência ou
de complacência, como todo amor de um ser por seu bem final;
o amor imperfeito, a posse, só concerne aos bens que alguém
ama visando ao próprio bem.
Levando-se em consideração esta precisão, pode-se enten-
der a interpretação que De Finance faz da doutrina do Aqui-
nate sobre o amor imperfeito ou de posse como uma relação
da potência ao ato; e sobre o amor de doação como uma re-
lação do ato ao ato. Sem necessidade de identificar o amor
de posse com o amor natural ou apetite natural da vontade
— que guarda, enquanto faculdade ou potência natural, uma
tensão ontológica a seu ato —, De Finance explica que a re-
lação intencional do querer com o fim pode ser entendida de
duas maneiras. Primeira : “O sujeito encontra na posse do fim
sua perfeição, a satisfação de suas tendências, a atualização de
suas virtualidades, etc. Considerado deste ponto de vista, o fim
é o objeto [...] de um amor de concupiscência, digamos, num
vocabulário ao mesmo tempo mais antigo e mais moderno, de
eros. O amor de concupiscência (amor concupiscentiae) não
é o desejo: é esta complacência no bem que se desenvolve em
desejo quando o bem faz sentir sua ausência. Mas trata-se de
uma complacência centrada no sujeito para quem o objeto

220 - S. Th. II-I, 27.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 145


Juan Cruz Cruz

aparece como a perfeição. A partir daí, o fim projetado só é no


fundo a mediação temática de um fim mais secreto: o sujeito
mesmo [...]. Esta relação do sujeito com o fim se fundamenta,
ontologicamente, na relação da potência com o ato. Pois a po-
tência, como tal, está naturalmente ordenada e como tendida
para o ato do qual é sua capacidade e esperança. Chamaremos,
para abreviá-la, a esta classe de relação, relação de tipo p g a”.
Segunda: “O sujeito relaciona-se com o fim não para receber
dele um enriquecimento, um aperfeiçoamento, uma atuação
de suas potencialidades, etc., mas por ele mesmo, por causa
de sua excelência e de sua amabilidade intrínsecas. O sujeito
já não está na atitude do mendigo [...], simplesmente o ama e
se compraz nele, com uma complacência totalmente diferente
da que se dá no eros, já que está despojada de toda referência
interessada [...]. Por este aspecto, é querido como objeto de
amor, no sentido mais puro da palavra: objeto de um amor de
amizade. [...]. Ontologicamente, esta relação se funda na se-
melhança ou, para empregar um termo mais geral, na relação
do ato com o ato, que chamaremos relação de tipo a g a”.221
Embora pareça aceitável essa explicação de De Finance,
ela obriga a recordar que a distinção entre os dois tipos de
amor — de posse e de doação — não se refere à ordem enti-
tativa e à operativa, mas a duas dimensões da mesma ordem
operativa. O ato de amor espiritual que é naturalmente um
amor objetivo, que tende também naturalmente a ser um amor
reto, pode ser ou um amor perfeito e desinteressado, quando se
encontra diante de um bem que merece tal amor, ou um amor
imperfeito, se se dirige a bens que devem servir efetivamente a
um bem querido por si mesmo. Portanto, seria um erro definir a
tendência natural da vontade à sua própria plenificação como
um amor imperfeito, pois “é um apetite natural num senti-
do especial, próprio do mundo espiritual. Seu objeto é o bem
como tal. Seu ato é o nosso bem, a nossa perfeição ou a nossa
felicidade, precisamente porque a ele se deve que nos unamos
diretamente ao bem por um amor do bem mesmo, e não por

221 - Joseph de Finance, Ensayo sobre el obrar humano, 75-76.

146 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

uma concupiscência que só poderia alcançar o seu objeto sob


a razão formal de meu bem”.222
Em suma: o objeto direto do amor perfeito é a pessoa ama-
da; o objeto indireto são as coisas desejadas por amor. O ato
principal refere-se ao objeto direto, que é a pessoa, sem que se
exclua o mesmo ato sobre o objeto direto secundário, enquan-
to referido ao principal.

b) Amar e ser amado

O que convém primeiro e mais propriamente ao amor é o


amar e não o ser amado; questão que Aristóteles já tinha enfo-
cado com respeito ao ato de amizade. Porque ao amor íntimo
corresponde tanto amar quanto ser amado, ser sujeito ativo e
passivo de amor: por exemplo, os amigos ou os cônjuges amam
e são amados. Mas o importante é que são amigos enquanto
amantes (cada um deles) ou enquanto princípio de amor, não
enquanto são amados, porque então são termo ou objeto de
amor. O amor íntimo — tanto o amistoso quanto o esponsalício
— é mais hábito que ato, é mais quiescente que itinerante: sendo
um hábito operativo, ordena-se imediatamente e de modo essen-
cial à sua operação; em contrapartida, o ser termo ou objeto da
operação de outro lhe convém na medida em que é ser ou bem.
Por outro lado, o querer amar corresponde ao amor de
doação quiescente, enquanto o querer ser amado pertence ao
amor de posse itinerante.
O que não impede que o ser amado por outro seja o indutor
mais enérgico da correspondência amorosa, ainda que não seja
o motivo formal desta. “Amor atrai amor”, diz acertadamente
o provérbio: a alma inativa se excita ao sentir-se amada. Ou
“amor com amor se paga”: pois o que já ama se acende mais ao
sentir-se correspondido no amor. “Nada há que provoque tan-
to o amor”, diz Santo Tomás, “quanto o saber-se amado.”223

222 - Louis-B. Geiger, 100-101.


223 - De rationibus fidei, cap. 5, ed. Vives, t. 27, 132-133.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 147


Juan Cruz Cruz

Por fim, esse amor de posse referido às coisas, que é o amor


itinerante, pode subordinar-se a seu ato principal, ordenando-
se positivamente a seus objetos diretos, as pessoas. Não se trata
então de um amor coisificante, já que subordina o bem natural
das coisas à pessoa amada, para a qual deseja finalmente todos
os bens. O amor perfeito não se dissolve no ato itinerante para
as coisas boas, senão que resolve este ato no amor íntimo, em
virtude do qual deseja e ordena as coisas para si e para o outro.
No entanto, a subordinação do amor de posse itinerante ao
amor de doação quiescente e sua informação por este último
não destroem aquele amor nem o absorvem em amor de do-
ação, mas o afirmam, o supõem e o aperfeiçoam. Do contrá-
rio, o próprio amor amistoso ou esponsalício seria estéril e se
converteria em mera benevolência, ao excluir todo amor de
posse itinerante. Porque, como diz Santo Tomás, “as dileções
guardam entre si a relação que guardam os bens que são seus
objetos”.224 Se se dá o amor na vontade como vontade, en-
tão ele invade, informa, domina e eleva imediatamente sua
atividade volitiva e, portanto, é capaz de elevar todos os seus
amores moralmente aceitáveis.

2. Os motivos no amor

A já indicada distinção — que tem caráter formal ou geral


— entre amor de pessoas e amor de coisas (na ordem objeti-
va), paralela também a outra, a que se dá entre amor de doação
quiescente e amor de posse itinerante (na ordem subjetiva),
suscitou a questão acerca de qual é o amor humano perfeito,
questão que foi enfocada historicamente por duas posições ex-
tremas. Para uma, maximalista, tal amor exige um excesso de
pureza e altura em seus motivos. A outra, minimalista, consen-
te um defeito de pureza nesses motivos.

224 - De caritate, art. 7.

148 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

a) A pureza de motivos

1. Para a primeira teoria — representada entre os medie-


vais por Abelardo —, o motivo formal do amor é unicamente
a bondade ontológica da pessoa amada em si mesma (a pessoa
considerada como um bem em si e para si), enquanto é própria
dela e incomunicável, de modo que, excluindo qualquer outro
bem ou interesse do amante, deixa também fora de considera-
ção seu proveito ou utilidade. A pessoa do outro deve ser ama-
da por si mesma, ainda que disso não obtenhamos nenhum
bem, ou ainda que dela só recebamos males. O amor perfeito
do homem é o amor de doação, sem mescla de intenção de
posse. Esse amor tem em seu próprio ato a remuneração: quem
assim obra nem sequer o faz com essa intenção se ama perfei-
tamente; do contrário, buscaria ganhar o seu e seria como um
mercenário, ainda que de coisas espirituais. Não é perfeito o
meu amor quando amo o outro por mim mesmo, isto é, por
minha utilidade e pela felicidade que espero encontrar nele.
“Tal é o verdadeiro afeto do amor paterno pelo filho, ou da es-
posa casta pelo marido, aos quais amam mais, mesmo que lhes
sejam inúteis, que a quaisquer outros que lhes pudessem ser
mais úteis; ainda que sofram por eles, nenhuma incomodidade
pode diminuir o amor, porque subsiste íntegra a causa do amor
naqueles a quem amam, enquanto os têm, não nas vantagens
que têm por meio deles.”225
Esta posição extrema — que põe o motivo do amor hu-
mano perfeito unicamente na bondade ontológica do amado,
como boa somente para o amado, não para mim — foi mitiga-
da por Scot e Suárez, não excluindo positivamente a bondade
ontológica relativa, ainda que sem incluí-la formalmente no
motivo do amor perfeito, e prescindindo da relação a nós.
Duns Scot fez parcialmente sua essa doutrina, explicando
que o amor perfeito se ordena ao bem ontológico do outro em
si mesmo e por si mesmo, enquanto o amor imperfeito enfoca
essa bondade como boa para o que deseja possuí-la. O amor

225 - Abelardo, Expositio in Epistolam ad Romanos, lib. II, ML. 178, 891-892B.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 149


Juan Cruz Cruz

perfeito é como uma doação quiescente; o amor de posse é


como um ato imperfeito ou itinerante. De novo comparece
aqui a bondade do outro em si mesma, sem referência alguma
ao amante, como motivo formal do amor perfeito, amor que
tende ao amado enquanto é bem em si: tende ao objeto em si
mesmo, ainda que seja despojado de utilidade para o amante.
“Há na vontade duas afecções, uma de retidão e a outra de
utilidade. É mais nobre a afecção de retidão, entendendo por
tal não só a adquirida e a infusa, mas também a inata, que é
a liberdade congênita, segundo a qual alguém pode querer al-
gum bem sem o referir a si mesmo. Em contrapartida, segundo
a afecção de utilidade, ninguém pode querer o bem senão em
ordem a si mesmo.”226 O amor perfeito reside na vontade na
medida em que é animado por afecção de retidão. Em con-
trapartida, o amor de posse faz que a vontade deseje o bem
alheio para si.227
Também para Francisco Suárez — que se expressa em ter-
mos parecidos — uma coisa é o amor perfeito ao amado e outra
o amor com que se ama ao amado como bem do que ama, ou
seja, em proveito do próprio amante: só o amor de posse ama
o outro como bem do amante, enquanto o amor perfeito ama
o outro por si mesmo.228 Para evitar uma oposição excluden-
te entre estes “dois amores”, Suárez indica que o motivo for-
mal do amor perfeito é a mesma bondade absoluta do amado
tomada “precisivamente”, ou seja, sem se enfrentar ao amor
interessado, pois não inclui nem exclui a bondade do amado
enquanto boa para mim.
Além da posição mitigada de Scot e Suárez, apareceram
enfoques mais rígidos que excluíam positivamente a bondade
relativa a nós.
Autores protestantes, por exemplo, excluíram “positiva-
mente” do amor perfeito toda bondade relativa do amado; as-

226 - J. Duns Scot, III Sent., dist. 26, n. 17, ed. Vives, t. 15, p. 340b.
227 - Ibidem, n. 25, p. 348b.
228 - Francisco Suárez, De Caritate, disp. 1, sect. 2, n. 1, ed. Vives, t. 12, p.
637a.

150 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

sim, amar o outro porque se obtém uma felicidade ou um gozo


é não amá-lo de verdade. Quem ama o outro faz tudo pelo
amado mesmo; amor imperfeito e possessivo seria aquele com
que amamos a nós mesmos, desejando a felicidade ou uma re-
compensa gozosa pelo ato de amor. Visar à recompensa não é
só uma imperfeição, mas até um ato abjeto.229
Fénelon formulou brilhantemente — na França do final
do século XVII —, em sua Explication des maximes de Saints
sur la vie interieure (1697), cinco tipos de amor, segundo os
níveis de motivação, simples ou composta: 1. O amor pura-
mente servil, que tem um só motivo: ama o outro pelos bens
materiais que dele podem provir. 2. O amor de pura posse, que
também tem um só motivo: deseja o bem espiritual que o outro
tem enquanto é causa da felicidade do amante. 3. O amor de
esperança, que já tem dois motivos: ama o outro primariamen-

229 - No âmbito religioso, era comum essa doutrina entre os protestantes:


“A contrição”, diz Lutero, “torna o homem hipócrita, e mais pecador do que
é, porque procede somente pelo temor do preceito e pela dor do dano. Os
que assim procedem, indignamente são absolvidos e admitidos na comu-
nhão” (M. Lutero, “Sermão sobre a penitência” (1518), em Werke, ed. Wei-
mar, t. I, p. 1319). Em estrita posição protestante, não haveria meio-termo
entre amor de doação e amor imperfeito — meio-termo que poderia ser o
amor de felicidade. Tal doutrina do “só é puro amor de doação” — tudo o
mais é imperfeito — aparece também no quietismo, nos movimentos baixo-
medievais de beguinos e nos alumbrados renacentistas, os deixados nas mãos
do amor divino: quando a alma é absorvida no puro amor, já prescinde
das virtudes e das obras, as quais — boas ou más — seriam indiferentes
para a perfeição humana. Um expoente espanhol desta postura, no último
terço do século XVII, é o Guia Espiritual de Miguel de Molinos, no qual se
exige o cessamento total de todas as operações anímicas (entendimento,
vontade, memória, imaginação e demais sentidos) que pretendessem re-
presentar as coisas divinas, sem o esforço por rejeitar tentações e maus
pensamentos: basta o só e contínuo olhar para Deus, ato que é produzido
por Deus mesmo em nós, sem esforço algum de nossa parte: “Hás de saber
que em só dois princípios está fundada toda esta fábrica de aniquilamento.
O primeiro é ter em baixa estima a si mesmo e a todas as coisas do mundo,
de onde há de nascer o pôr em prática a nudez e renúncia de si mesmo e de
todas as coisas com uma santa resolução, com o afeto e a obra. O segundo
princípio há de ser uma grande estima de Deus para amá-lo, adorá-lo e
segui-lo sem nenhum gênero de interesse próprio, ainda que seja o mais
santo. Destes dois princípios há de nascer uma plena conformidade com
a divina vontade. Esta eficaz e prática conformidade com a divina vonta-
de em todas as coisas conduz a alma à aniquilação e transformação com
Deus” (Miguel de Molinos, Guía espiritual, livro II, cap. 19, nn. 179-180, ed. J.
de Entrambas asaguas, Madri, Aguilar, s.a., 228).

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 151


Juan Cruz Cruz

te como bem ou felicidade do amante, e secundariamente por


ser ele quem é. 4. O amor de doação imperfeita também tem
dois motivos: seu motivo primário é a bondade do outro em si
mesmo; seu motivo secundário é o interesse próprio na partici-
pação dos bens do outro. 5. O amor de doação perfeita ou pur
amour, que só tem um motivo — o amor exclusivo do outro
por si mesmo —, o qual exclui toda mescla do bem ou interes-
se próprio. Para chegar a este último ponto, Fénelon supõe que
pode dar-se um estado habitual de amor de doação sem mescla
do interesse próprio — un amour independant du motif de la
recompense —, sem motivo de temor e esperança, estado em
que o sujeito se torna indiferente com respeito a todos os bens
e males, e até indiferente com respeito à sua própria perfeição
espiritual.
O problema ontológico e antropológico suscitado por esta
posição — rígida em uns, flexível em outros — é que toma o
objeto do amor perfeito como motivo de uma mera benevo-
lência, dado que a bondade do outro é aí considerada e amada
como boa apenas para o amado precisiva e exclusivamente,
negando qualquer comunicação ou comunicabilidade com o
amante. Mas por que é reduzido o amor perfeito a mera bene-
volência? Por acaso não importa essencialmente, como amor,
certa união afetiva do amante com o amado mesmo, em razão
da qual a mesma bondade do outro é de algum modo comum
a ambos os amigos, quer dizer, ao amado e ao amante?230 A
tese maximalista é contrária à própria índole do amor perfei-
to como amor, pois elimina o objeto próprio do amor, que é
o bem relacionado com o sujeito amante. “Se se considera o
movimento da vontade do ângulo do objeto que determina
o ato da vontade a querer isto ou aquilo, deve-se levar em
conta que o objeto que move a vontade é o bem conveniente
conhecido; daí que, se se propuser algum bem que se conhe-
ce sob a razão de bem, mas não sob a razão de conveniente,
ele não moverá a vontade.”231 O que significa que o amor não

230 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251.


231 - De Malo, q. 6, art. único, corpus.

152 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

pode ser despertado no sujeito se o objeto não for adaptado à


sua faculdade ou ato — pela proporção que deve haver entre a
causa e o efeito, entre o objeto e o ato. Adaptação que, como já
se disse, recebe vários nomes:232 convenientia, consonantia, con-
naturalitas, aptitudo, coaptatio, correspondentia, relatio. Donde
o Aquinate advertir que, se o outro não fosse um bem para mim,
não teria eu motivo para amá-lo.233 Para explicar o amor perfei-
to, não é suficiente aduzir a índole abstrata e absoluta de bem: é
preciso indicar a conveniência ou proporção com o amante. À
índole abstrata e absoluta do bem amado, que é bem só do amado,
é preciso acrescentar o caráter de bem proporcionado ao nosso
amor, de modo que este possa ser movido e aquele bem ser alcan-
çado como objeto próprio e conveniente à nossa vontade de seres
que amam. Quando Fénelon afirmava que um amour désintéressé
nada tem que ver com a intenção unitiva do amor, pensava er-
roneamente que a intenção unitiva ou o anseio de união com a
pessoa amada não pertence essencialmente ao amor íntimo. A
entrega definitiva, inteiramente pessoal, inclui anelar com toda
a alma a unidade com o amado e desejar que esta unidade seja a
fonte maior de nossa felicidade. Quando se tenta excluir do amor
íntimo a intenção unitiva, não se alcança o desinteresse do amor
ao próximo, mas o tornar errática a própria pessoa. Um amour dé-
sintéressé pela pessoa do amado é, na verdade, um déficit de amor,
pois a supressão da intenção unitiva pelas palavras “não importa
a minha felicidade” não significaria somente, como no caso do
amor esponsalício, ficar fora com o próprio eu e a vida individu-
al, não dar-se realmente, mas também uma obturação da própria
vida. Tratando-se da felicidade profunda, minha indiferença com
respeito à união com o outro incluiria a míngua de mim mesmo, o
alquebramento de minha própria existência pessoal, sem apreciar
sequer a dádiva que o outro me pode fazer de seu amor, máxime se
o outro quer essa união comigo.234

232 - H. D. Simonin, “Autour de la solution thomiste du problème de


l’amour”, 191.
233 - S. Th. II-I, 26, 13 ad 3.
234 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 153


Juan Cruz Cruz

b) A mescla de motivos

Para a segunda posição, minimalista — representada pelo


medieval Simon de Tournai —, o motivo formal do amor é a
bondade do outro enquanto boa para mim (bondade relativa
do outro), participável por mim, da qual posso gozar. Amar
o outro significa querer gozar dele. Há um só movimento do
amor perfeito,235 o qual se refere ao outro para gozar dele.
Tanto o medieval Simon de Tournai como alguns moder-
nos, entre os quais se encontra Bossuet opondo-se a Fénelon,
incluíram o outro enquanto bom e benéfico no motivo ne-
cessário e verdadeiro do amor perfeito. O decisivo é que se
trata de um motivo necessário desse amor. De modo que, por
sua própria natureza, o amor perfeito vê necessariamente o ou-
tro como bem do amante, como objeto de amor de posse. O
amor perfeito deve consistir no desejo de gozar do amado e de
possuí-lo como objeto de felicidade humana permanente do
amante.236 O ato de amor perfeito se expressa dizendo-se ao
amado: “eu te amo porque és o meu bem e a minha felicidade”.
Que o outro seja bom em si mesmo não é o motivo do amor
perfeito. Supõe-se aqui que o único motivo a mover o homem
a agir é o amor-próprio, amor de posse, entendido como desejo
do próprio bem e da própria felicidade. Os objetos com que
depara o homem ou levam à felicidade (e então são apetecidos
com um ato chamado amor) ou são contrários a ela (e então
são evitados com um ato chamado ódio). Os atos de amor se
reduzem ao querer possessivo.
O problema ontológico mais grave desta posição é que a
comunicação do bem do outro é entendida como participável
por nós, de modo que esse bem vem a ser motivo formal de
amor de pura posse. Esta posição não torna impossível e absur-
do o amor íntimo? Mas por acaso o amor perfeito é mera posse?
Não é, em verdade, algo mais alto, isto é, um amar amistoso?

235 - Simon de Tournai, Disputationes, disp. 54, q. 1, ed. J. Varichez, Louvai-


na, 1932, p. 155.
236 - Vincenzo Bolgeni, S.J., Della carità o amor di Dio, 2 vols., Roma 1788, I
P., cap. 1, n. 2.

154 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

Não é seu referencial a pessoa, e não as coisas? Não é o amor


perfeito pelo outro um amor de intimidade, um amor quies-
cente, pois quando o outro aparece diante mim como pessoa
exige de mim que eu não o coisifique, que o ame por si mesmo
em forma de doação? Se tal comunicação deve ser necessaria-
mente íntima, há de sê-lo num objeto e num bem diretamente
e de si amável com amor íntimo, e tal é a bondade do outro
como fonte de felicidade objetiva, que é uma e a mesma para
ele mesmo e para mim.237

c) Hierarquização de motivos

Acima dos extremos indicados está a posição de Santo To-


más, para quem o motivo do amor humano perfeito é a pró-
pria bondade ontológica do outro, na medida em que é boa
ao mesmo tempo para ele e para mim, ainda que com certa
hierarquia: porque o amor perfeito não é qualquer amor ao
outro, mas amor ao outro com que este é amado como objeto
de felicidade, ao qual nos ordenamos em nossos atos.238 Não só
significa um amor geral ao homem, mas também certa intimi-
dade com o amado, a qual acrescenta ao amor a correspondên-
cia (redamatio) com certa comunicação mútua.239 Em suma,
o motivo formal do amor humano perfeito é a bondade onto-
lógica do outro, que está sendo comum ao amado e ao amante,
bondade que é amável por si mesma em relação de intimidade,
de união íntima. Esta tese coincide com a de outros pensadores
medievais, como Santo Alberto Magno e São Boaventura, para
os quais a simples bondade ontológica do outro, enquanto boa
ao mesmo tempo para o outro e para mim, é o motivo formal
do amor perfeito, não como por justaposição e mera soma dos
motivos das outras posições extremas, mas num sentido mais

237 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251.


238 - S. Th. I-I, 65, 5 ad 1.
239 - S. Th. I-I, 65, 5.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 155


Juan Cruz Cruz

alto, por elevação a um motivo superior.240 O bem ontológico


do outro não é o objeto do amor perfeito se for considerado so-
litariamente em si e enquanto é bom para ele mesmo somente,
mas sim enquanto é objeto de sua felicidade e da minha.241
A pessoa, como bem ontológico do outro, só entra como
motivo formal do amor perfeito enquanto é bem “amoroso”,
quer dizer, na medida em que é um grande bem para o amante
e para o amado, pois o amor íntimo tem por objeto o bem que
é comum ou comunicável a ambos, e não somente o bem que
é tal para um e não para o outro. Se o grande bem pessoal é
considerado solitariamente em si, independentemente de ge-
rar felicidade e ser objeto de gozo, então é bem unicamente
para o próprio amado, não para o amante. Só enquanto objeto
da felicidade do amado e do amante é que o bem é comunicá-
vel a ambos os amigos. O amor perfeito ama o outro enquanto
este é objeto de amor íntimo mútuo: um bem comunicável “ad
intra” (para si) e “ad extra” (para mim).242
O amor íntimo perfeito e verdadeiro é essencialmente
meio entre a mera benevolência e a pura posse, ambas as quais

240 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 250. Assim, o motivo da


caridade é “a própria bondade divina, na medida em que é boa ao mesmo
tempo para Deus e para nós, ainda que não por igual, mas segundo uma
ordem de prioridade e posterioridade, isto é, primeiro e principalmente
para Deus mesmo, secundariamente, depois de Deus, para Deus, por Deus
e em Deus, para nós, a modo de conotação e de condição indispensável”
(Ibidem, 255).
241 - José de Ribas, O.P., Relectiones complutenses de Fide, Spe et Caritate,
Compluti 1743, tract. II, disp. 1, dub. 1, § 3, n. 6, p. 363.
242 - Doutrina que é de Santo Tomás, na Suma Teológica, I, 60, 5 ad 2, cujo
texto comenta Ribas, aplicado ao amor do homem a Deus: “Quando dize-
mos que amamos a Deus enquanto Ele é objeto de sua bem-aventurança e
da nossa, a expressão ‘enquanto’, com respeito ao nosso amor, não significa
fim do amor; pois não amamos a Deus para nosso proveito; senão que ex-
pressa a razão do amor por parte do amante, neste sentido: não haveria na
natureza do homem possibilidade de amar a Deus amigavelmente se não
fosse porque cada homem depende do sumo bem que é Deus. Daí que, se se
simulasse o caso hipotético, como faz Mástrio, de que os bens de natureza
e de graça procedessem de um princípio que não fosse Deus, então Deus
seria sem dúvida sumamente amável, porque nele se daria o sumo bem,
que a vontade ama naturalmente; mas em nós não haveria razão alguma
para amá-lo amigavelmente, e então não haveria a mútua comunicação de
bens entre Deus e os homens, que a amizade comporta essencialmente”
(José de Ribas, O.P., op. cit., n. 14, pp. 366-367.)

156 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

são superadas por ele ao mesmo tempo essencialmente, sendo


mais próximo da benevolência que da posse.243 Se a posição de
Abelardo, de Scot, de Suárez e dos quietistas — tanto os rígi-
dos como os moderados — afirmava que a bondade ontológica
da pessoa amada deve ser considerada como fechada absolu-
tamente em si mesma e comunicável objetivamente apenas
ao próprio ser amado, a posição do Aquinate a considera ne-
cessariamente como aberta e comunicável objetivamente ao
amante, pois seria contraditório pôr na bondade ontológica
do outro o motivo formal objetivo do amor perfeito e negar ao
mesmo tempo toda comunicação dela a tal amor e, por con-
seguinte, ao sujeito que a possui, “dado que precisamente não
move quanto à especificação senão comunicando-se objetiva-
mente, pois a causa formal causa imediatamente por si mesma,
quer dizer, dando-se ou comunicando-se”.244 Que produz esta
comunicação objetiva e especificativa? Ela enseja a coaptação
subjetiva (conveniência, concerto, conformação, conjunção,
conaturalidade, complacência) com que o objeto e o sujeito
se completam e estreitam mutuamente. No amor de uma pes-
soa humana por outra, não basta considerar somente o obje-
to (amado), descuidando da correlação do sujeito (a potência
do amante), nem basta atender apenas à potência volitiva do
sujeito (amante), descuidando da coordenação com o objeto
amado, senão que é preciso ver o objeto e o sujeito em corres-
pondência mútua — porque o objeto é conveniente ao sujeito,
e vice-versa: a comunicação objetiva e especificativa do amor
na pessoa humana leva consigo “a união afetiva e amistosa do
amante e do amado, que é como o efeito formal, ou antes, o
mesmo amor essencialmente”.245
Por aí se vê que na doutrina de Fénelon o amor íntimo
careceria de um caráter transcendente de entrega; seria uma
mera aspiração imanente a um objeto, o amado, que se abre
para mim como mero bem real de que eu posso desfrutar. A

243 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 251.


244 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 282.
245 - Santiago Ramírez, La esencia de la caridad, 282.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 157


Juan Cruz Cruz

pessoa amada não estaria diante mim como alguém objetiva-


mente valioso, precioso e belo, nem sua importância intrínse-
ca fundamentaria e despertaria o amor; acontece tão-somente
que a outra pessoa tem para mim o caráter de bem real: de
modo que a unidade com a pessoa amada não é bem real para
mim por sua preciosidade, mas porque pode aplacar meu ape-
tite. O amor íntimo ao outro é considerado conseqüência do
anseio imanente de perfeição e prazer; e a intenção unitiva é
privada de sua autêntica natureza, quer dizer, de seu caráter de
entrega e de sua transcendência. O que Fénelon nega realmen-
te é a realidade profunda do amor íntimo, substituindo-a pelo
mero amor benevolente. Crê erroneamente que a supressão da
intenção unitiva empresta ao amor seu caráter elevado e tenta
consequentemente alcançar no amor ao outro algo análogo
ao amour désintéressé. Mas “isso não conduz à suprema entre-
ga heróica, e sim a um amor internamente contraditório e a
um pseudo-heroísmo. Corrigir essa concepção do amor íntimo
exige sublinhar a verdadeira natureza da intenção unitiva. E
isso não pode ser levado a efeito tentando libertar o amor de
uma suposta imanência ou de seus traços egoístas mediante a
omissão da intenção unitiva, que é algo que faz parte do tema
de todas as categorias de amor”.246

3. Interesse e desinteresse no amor

O amor espiritual é objetivo quando é especificado pelo


conhecimento intelectual: orienta-se então ao bem em si
mesmo, seja qual for o modo (deleitável, útil ou honesto)
desse bem.
Resta ver quando o amor objetivo é, ademais, desinteressa-
do ou interessado, levando-se em conta duas coisas: primeira, a
falta de objetividade e verdade não só elimina o interesse ou o
desinteresse objetivos do amor, mas faz que o amor não seja es-
piritual; segunda, o amor interessado não significa, pura e sim-

246 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175.

158 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


V - Doação e Posse

plesmente, amor centrípeto. “Este amor objetivo é ao mesmo


tempo verdadeiro quando está ordenado, quer dizer, quando se
respeitam, na qualidade de seu movimento para o bem, o peso,
o número e a medida que regem e definem de algum modo o
bem. Este amor objetivo pode ser desinteressado e verdadeiro
quando se encontra diante de um bem verdadeiramente abso-
luto. E será desinteressado, mas ilegítimo, quando erige abusi-
vamente em bem absoluto ou um bem útil ou um bem que de
si deveria permanecer subordinado a outros bens.”247
1º O amor espiritual é objetivo, bom e desinteressado
“quando se encontra diante de um bem cujo valor absoluto
exige tal amor. Poderá ser verdadeiramente desinteressado
não só porque, tomado no interior da concupiscência de nosso
próprio bem, podemos ocasionalmente sacrificar este último
ao bem do todo ou ao bem de Deus, que, é claro, desejamos
igualmente, mas porque o amor em si mesmo, objetivo e ver-
dadeiro, é um amor propriamente dito, que pode dar ao bem,
captado em seu valor absoluto, a resposta igualmente absolu-
ta, a pura homenagem de nosso coração que ele merece. Esta
homenagem se matizará, não obstante, segundo os bens que
lhe é dado encontrar. Será de um modo diante de valores im-
pessoais, tais como a verdade, o bem, a beleza; será de outro
modo diante desse bem que é o amor que uma pessoa tem ao
nosso verdadeiro bem; e será, enfim, de outro modo e tomará
uma forma única diante do bem que não só tem valor absoluto,
mas é o mesmo Absoluto do bem, fonte de todo bem e de todo
amor, também do nosso”.248
2º O amor será objetivo, verdadeiro, bom e centrípeto
“quando recair sobre o bem próprio do sujeito, porque este
bem é um bem verdadeiro. Ainda que o amor do nosso bem
próprio seja, na ordem natural, o amor mais intenso e mais
fundamental depois do amor de Deus, seria falso dizer que a
vontade tem por objeto o nosso bem próprio, se se deixasse
de acrescentar que esse objeto deve ser necessariamente com-

247 - Louis-B. Geiger, 87.


248 - Louis-B. Geiger, 90-91.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 159


Juan Cruz Cruz

preendido sob o objeto formal que é o bem como tal e que


naturalmente é conforme com a verdade do bem. É também
inexato chamar a este amor uma concupiscência, porque em
verdade se trata de um amor de benevolência”.249 É um amor
perfeito ou quiescente.
3º O amor espiritual pode ser objetivo, bom e interessado
“quando se encontra diante de bens que por natureza devem
servir a outros bens e, claramente, ao nosso próprio bem. Não
se deve confundir o amor interessado, que não pode faltar em
nenhuma criatura, e o egoísmo, que é a hipertrofia monstruosa
do bem próprio, erigido em bem absoluto. Produz-se quando o
homem, em vez de amar-se segundo a verdade, como se exige
naturalmente no amor espiritual, identifica inaturalmente o
seu bem total e último com um bem finito, ao qual todos os
outros bens, compreendidos os que têm valor absoluto, se en-
contram ordenados a título de meios”.250

249 - Louis-B. Geiger, 88-89.


250 - Louis-B. Geiger, 89-90.

160 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


SEGUNDA PARTE:

ESSÊNCIA, CAUSA E
EFEITOS DO AMOR

Capítulo VI
O Amor Sensível
VI - O Amor Sensível

1. A ordem do apetite sensível: imediatez e mediação

Para Tomás de Aquino o amor é um termo análogo, cujo


analogado principal ou direto é o amor sensível, sobre cuja
estrutura é preciso realizar primeiro o estudo descritivo ou fe-
nomenológico, para entrar depois nos níveis psicológicos que
essa analogia abrange.251
A tendência humana pode orientar-se ao bem sensível en-
quanto é bem, independentemente da facilidade ou dificulda-
de que implique consegui-lo; este é enfocado então absoluta-
mente, simpliciter, mostrando-se como deleitável: e, assim, é
objeto de um grupo de apetites que, em virtude da absolutida-
de com que esse bem se apresenta, podem chamar-se imedia-
tos ou primários — os medievais usavam para eles o nome de
concupiscibiles. Mas acontece que o sujeito experimenta às
vezes dificuldade e contrariedade em adquirir os bens ou em
afastar-se dos males sensíveis, porquanto isso excede ao fácil
exercício das faculdades anímicas; por isso, o mesmo bem ou
mal, enquanto tem aspecto de árduo ou difícil, é objeto de
outro grupo de apetites que podem chamar-se mediatos ou se-
cundários — irascibiles, para os medievais.252
A determinação do apetite como “imediato” ou como “me-
diato“ justifica-se tanto do ponto de vista do aspecto subjetivo

251 - Que o ato do apetite sensível seja o analogado principal ou direto do


amor é uma tese combatida explicitamente por Hildebrand em A Essência
do Amor: “Quem capta o amor como um apetite ou um impulso, quem vê
nele uma analogía, como se no espiritual houvesse instintos assim como
no corporal há sede, absolutamente não conhece a essência do amor” (62).
Hildebrand não se refere nesta crítica ao uso técnico da analogia mesma,
através da qual aparece o amor espiritual como uma resposta supra-im-
pulsiva. Para o Aquinate, o analogado principal do amor está no apetite
sensível — e não na inclinação natural — porque tal apetite expressa pa-
tentemente, no caso do homem, a sutura ontológica da alma ao corpo. A
analogia não é uma técnica de meras coincidências, mas especialmente de
diferenças.
252 - Em seu belo livro sobre o sentimento, Strasser prefere chamá-los,
respectivamente, primários e secundários (Stephan Strasser, Das Gemüt.
Grundgedanken zu einer phänomenologischen Philosophie und Theorie des mens-
chlichen Gefühlslebens, 128-160). Estou convencido de que a denominação de
imediatos e mediatos responde melhor à intenção ontológica da análise feita
pelo Aquinate.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 163


Juan Cruz Cruz

do apetite mesmo quanto do ponto de vista de seu objeto. Se-


gundo a perspectiva do sujeito, o apetite dirige-se ou a receber
o que pretende, unindo-se a ele, ou a agir para vencer e superar
o que lhe é contrário e nocivo: receber e agir são dimensões on-
tológicas subjetivas que exigem duas potências ou faculdades
apetitivas.253 Segundo a perspectiva do objeto, há um apetite
orientado ao bem em si mesmo, e há um apetite que se dirige
ao bem enquanto árduo ou difícil. Trata-se de uma diferença
essencial, entre o imediato e o mediato.
Uma observação lingüística: a qualificação das tendências
sensíveis como “imediatas” e “mediatas” é tão genérica, que se
pode aplicar a muitos aspectos da vida individual e coletiva;
essa qualificação é necessária, mas também insuficiente. Por
isso, exige-se uma qualificação estritamente antropológica: as
tendências imediatas são na verdade impulsos de aquisição (ex-
pressão que traduz o que os medievais chamavam de appetitus
concupiscibilis), enquanto as tendências mediatas são impul-
sos de resistência (expressão que traduz o appetitus irascibilis).
Hoje, os termos “concupiscibilis” e “irascibilis”, tolhidos num
contexto cultural já decaído, não significam realmente algo
preciso em espanhol nem em nenhum outro idioma. Mas é de
admirar a finíssima análise fenomenológica que encerram.
Santo Tomás explicava que o apetite sensitivo é uma fa-
culdade genérica dividida em duas faculdades específicas, a
saber, o que acabo de chamar impulso de aquisição e impulso
de resistência. Verdadeiramente, nos seres naturais afetados de
finitude e matéria, não só deve haver tendência a adquirir o
conveniente e evitar o prejudicial, mas também deve haver
tendência a resistir ao dissolvente e adverso, que são obstá-
culos para conseguir o conveniente, e também são fonte de
danos. Por sua constituição psicobiológica, o homem não só
tende por natureza a afastar-se do que lhe é contrário, mas
também tende a resistir a tudo o que o altera e obstaculiza. As-
sim, porque o apetite sensitivo é uma tendência que se segue
ao conhecimento sensorial, é necessário que na parte sensiti-

253 - De Veritate, 25, 2.

164 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

va do sujeito haja duas faculdades apetitivas. Uma, pela qual


tenda simplesmente ao que na ordem sensível lhe convém e
recuse o prejudicial: esta o impulso de aquisição. Outra, pela
qual repila tudo o que se opõe a ele na consecução do que lhe
convém e que, ademais, lhe causa dano: esta é o impulso de re-
sistência, cujo objeto é o difícil, pois tende a superar o adverso
e prevalecer sobre ele.254
Em um plano mais elevado, da óptica universal do bem,
não cabe falar de diversas tendências que a ele se dirijam: bas-
ta uma só que, como a vontade, responda com sua amplitude
de anseio a essa universalidade objetiva; mas de uma óptica
concreta e individual, própria do apetite — dirigido não a um
bem universal, mas a um bem sensível —, é preciso indicar
essa diversidade de funções.

2. Respostas afetivas sensíveis

De todo o campo tendencial dos apetites humanos brotam


respostas ao bem ou ao mal proposto; essas respostas — assina-
lou-se — podem chamar-se afetivas — paixões, segundo uma
terminologia medieval.255
1. Para apreciar a diversidade de impulsos, estes devem ser
considerados tanto do ângulo da heterogeneidade de seus ob-
jetos, que são o bem e o mal, quanto do ângulo da aproxima-
ção ou separação com respeito a um mesmo termo. Pode-se até
dizer que os impulsos têm direções opostas: algumas, em razão
da contrariedade dos objetos, que são o bem e o mal; outras,
segundo a aproximação ou separação com respeito a um mes-
mo termo. A contraposição dos impulsos, marcada pelo sinal
do positivo e do negativo, deve-se, no caso de los impulsos de
aquisição, à oposição mesma e absoluta dos objetos a que se
dirige (o bem ou o mal); nos impulsos de resistência, em con-
trapartida, deve-se tanto a essa oposição absoluta dos objetos

254 - STh I q. 81 a. 2.
255 - S. Th., I-I, 22-23; 25.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 165


Juan Cruz Cruz

quanto à oposição relativa surgida pela proximidade ou lon-


ginqüidade em que se encontram tais objetos com respeito
ao sujeito.
a) O bem, enquanto é gozável, move o impulso de aquisi-
ção; quaisquer tendências que se refiram ao bem ou ao mal em
si mesmos (bonum vel malum sensibile absolute et simpliciter
acceptum) pertencem ao impulso de aquisição: como o amor e
o ódio, ou o gozo e a tristeza. Com efeito, o objeto do impulso
de aquisição é o bem sensível ou o mal sensível considerado
em absoluto; e o bem enquanto tal não pode dar-se como ter-
mo inicial (a quo), mas só como termo final (ad quem), dado
que nenhum ser refoge o bem enquanto bem, senão que todos
tendem a ele. Da mesma maneira, nenhum ser tende ao mal
considerado como tal, senão que todos o refogem; por isso, o
mal não pode comparecer como termo final, mas unicamente
como termo inicial (a quo). Assim, no impulso de aquisição há
respostas afetivas que se orientam para o bem, como o amor,
o desejo e a alegria; e respostas afetivas que se afastam do mal,
como o ódio, a aversão e a tristeza. Daí que nas respostas afe-
tivas do impulso de aquisição não haja direções opostas por
aproximação ou desvio com respeito a um mesmo objeto.
b) Se o bem apresenta alguma dificuldade para sua conse-
cução, por esse mesmo fato tem algo que repugna aos apeti-
tes imediatos, fazendo-se assim necessárias outras tendências
que se dirijam a esse fim; e igualmente com respeito ao mal;
essas tendências configuram o apetite mediato o impulso de
resistência;256 os afetos que têm por objeto o bem ou o mal sob
o aspecto de árduo e difícil de adquirir ou evitar (bonum vel
malum sensibile sub ratione ardui) pertencem aos impulsos de
resistência, como a audácia, o temor e a esperança.257 O sujeito
é provido de impulsos de aquisição justamente para vencer os
obstáculos que o impedem de dirigir-se a seu objeto, já pela
dificuldade de obter o bem, já pela de superar o mal. Por causa
disso, as respostas afetivas do impulso de resistência têm to-

256 - S. Th., I-I, 23, 1 ad 3.


257 - S. Th., I-I, 23, 1.

166 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

das por termo as respostas afetivas do impulso de aquisição; e,


igualmente, também às respostas do impulso de resistência se
seguem o gozo e a tristeza, que brotam do impulso de aquisi-
ção.258 Assim, o objeto do impulso de resistência é o bem sen-
sível ou o mal sensível em sentido não absoluto, mas relativo:
sob o aspecto de árduo ou difícil, segundo o já dito. No bem ár-
duo ou difícil há motivo para que se tenda a ele enquanto é um
bem, o que pertence à resposta afetiva da esperança; e também
para desviar-se dele enquanto árduo e difícil, o que é próprio
da resposta afetiva da desesperação. Da mesma maneira, o mal
árduo move à repulsa dele como mal, o que pertence à resposta
afetiva do temor; mas apresenta também um motivo para a apro-
ximação, como para uma dificuldade pela qual se elude a sujeição
ao mal, e sob este aspecto tende a ele a audácia. Dão-se, portan-
to, nas respostas afetivas do apetite mediato direções contrárias
em razão do bem e do mal, como entre a esperança e o temor; e,
ademais, em razão da aproximação ou afastamento com respeito
a um mesmo termo, como entre a audácia e o temor.259
c) Pode acontecer que exista para o impulso de resistência
um mal difícil já presente, ao qual se orienta uma resposta
afetiva para contra-arrestá-lo: a ira. “O peculiar da resposta
afetiva da ira é que não pode ter direções contrárias nem
quanto à aproximação e ao afastamento nem quanto ao bem
e ao mal. Pois a ira é causada por um mal difícil já presente,
diante do qual é preciso ou que sucumbam as tendências, e então
não se sai dos limites da tristeza, que é resposta afetiva do impulso
de aquisição; ou se move para contra-arrestar o mal que o afeta,
o que pertence à ira; não restando lugar para o movimento de
fuga, pois se supõe o mal já presente ou passado. Assim, o mal já
presente se opõe ao bem conseguido, que já não pode ter razão de
árduo ou difícil. Nem depois da consecução do bem resta outro
movimento além da quietude do apetite no bem alcançado, que
pertence ao gozo”, resposta afetiva do impulso de aquisição.260

258 - S. Th., I-I, 23, 1 ad 1.


259 - S. Th., I-I, 23, 2.
260 - S. Th., I-I, 23, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 167


Juan Cruz Cruz

2. Os afetos diferem também segundo a atualidade motiva-


dora de seu objeto e não só pela espécie ou natureza do mesmo
objeto que possui essa atualidade motivadora (assim como o
fogo difere da água). A diversidade da atualidade motivadora,
quanto a seu poder de excitar ou mover, é estabelecida pelo
Aquinate, no caso dos afetos humanos, por semelhança com
os agentes naturais.261 Todo agente move ou para atrair para si
o movido ou para rejeitá-lo. Se o atrai, produz nele três efeitos,
que são comparados com fenômenos tirados da física antiga: 1º
dá-lhe a aptidão e conformação necessária para tender a ele,
assim como um corpo leve que tende a elevar-se comunica sua
leveza ao corpo que engendra, pela qual tende ou é apto para
elevar-se; 2º se o corpo engendrado se encontra fora de seu
próprio lugar, impulsiona-o para este; 3º dá-lhe o repouso após
ele ter chegado a seu lugar, dado que uma mesma é a causa pela
qual uma coisa repousa num lugar e aquela pela qual foi mo-
vida a ele. E o mesmo deve entender-se da causa da rejeição.
Conformidade e desconformidade, atração e repulsão, quietu-
de positiva e quietude negativa: aí estão as três oposições bási-
cas que configuram fenomenologicamente a tensão ontológica
do homem.
a) Concretamente, nos apetites imediatos ou de aquisi-
ção, o bem tem um poder atraente; o mal, em contrapartida,
repulsivo. O bem pode produzir três determinações na ten-
dência: 1ª certa inclinação, aptidão ou conaturalidade para
com o bem, o que é próprio da resposta afetiva do amor,
à qual corresponde como contrário, pelo lado do mal, o
ódio; 2ª se o bem que se ama ainda não é possuído, dá à
tendência o anelo de alcançá-lo, e isto é próprio da respos-
ta afetiva do desejo; e como oposto pelo lado do mal está a
aversão; 3ª quando já se conseguiu a posse do bem, produz
certa quietude da tendência nele, o que é próprio do gozo,
ao qual se opõe, pelo lado do mal, a tristeza.
b) Por sua vez, os afetos dos apetites mediatos ou de re-
sistência já pressupõem no apetite imediato ou de aquisição

261 - S. Th., I-I, 23, 4.

168 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

— que se refere ao bem ou ao mal em sentido absoluto — a


aptidão ou inclinação para procurar o bem ou evitar o mal; e
daí a esperança e desesperação com respeito ao bem ainda não
conseguido, e o temor e a audácia com respeito ao mal ainda
não sofrido. Em ordem ao bem obtido, não há resposta afetiva
alguma nos apetites mediatos ou de resistência, porque o bem
já não tem caráter de árduo, segundo o dito antes; do mal pre-
sente surge a resposta afetiva da ira.
3. Os afetos do apetite imediato ou de aquisição têm
um campo de atualidade maior que os do mediato ou de
resistência;262 pois neles se apresentam tanto o movimento —
assim o desejo —, como o repouso — assim o gozo e a triste-
za: são tensões intermitentes; em contrapartida, nos afetos do
apetite mediato ou de resistência não se acha coisa alguma no
tocante ao repouso, mas só ao movimento: são tensões con-
tínuas. Por exemplo, o possuído no gozo já não é difícil ou
árduo, sendo o bem árduo o objeto do apetite mediato.263
4. Mas, considerados em sua própria essência, os afetos do
apetite mediato ou de resistência são mais elevados e perfei-
tos que os do imediato ou aquisitivo. Especialmente porque a
dignidade e a perfeição do apetite se medem pela altura das
fontes cognoscitivas que o suscitam. Tomás considera que as
duas faculdades cognoscitivas mais importantes da sensibili-
dade interna são a imaginação e a estimativa ou cogitativa:

262 - S. Th., I-I, 25,1.


263 - Suárez não admite na parte sensitiva distinção real e específica entre
o apetite imediato (concupiscível) e o apetite mediato (irascível), conside-
rando que carece de importância no caso a mediação que sua origem tem,
por exemplo, na “arduidade” ou dificuldade apresentada pelo objeto do
apetite: “Em nossa opinião, deve-se dizer que o objeto adequado do apetite
sensitivo é o bem sensível ou qualquer bem da natureza sensitiva, que pode
ser percebido como tal pelo sentido [...]. Portanto, será única a potência que
tende ao bem deleitável, seja árduo ou não árduo” (Francisco Suárez, De
Anima, lib. 5, cap. 4, n. 6.) Por sua vez, esta formulação tende, já no plano
espiritual, a reduzir a esperança ao amor; ou melhor, a esperança se torna
prolongamento do amor, mas na mesma linha ontológica deste; não é que
o amor seja mero fundamento ou base da esperança, mas sim que o amor
se prolonga entitativamente como esperança, a qual tem o mesmo objeto
formal que o amor imperfeito ou de concupiscência. Amor perfeito e espe-
rança não coincidem; mas sim amor imperfeito e esperança.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 169


Juan Cruz Cruz

a primeira capta as “intenções particulares sentidas (sensa-


tas)”, ou seja, os aspectos mais chamativamente sensíveis das
coisas que estão em contato direto com os sentidos externos;
enquanto a estimativa ou cogitativa capta as “intenções par-
ticulares sobressentidas (insensatas)”, quer dizer, os aspectos
cognoscitivos mais elevados das coisas materiais, aspectos que
certamente estão incluídos na doação sensível das coisas, mas
não são perceptíveis pelos sentidos exteriores. A estimativa é
chamada, no homem, cogitativa, que é como um incipiente
pensar (cogitare), já que participa da razão: é a razão mesma
introduzida na sensibilidade. Pois bem, a imaginação regula o
apetite imediato aquisitivo; a estimativa, o apetite mediato de
resistência: a imaginação propõe ao apetite a forma do bem
(ou do mal) sensível idônea para a sustentação orgânica; a es-
timativa propõe ao apetite a forma do bem (ou do mal) sensí-
vel idônea para defender-se do nocivo e hostil. O que o apetite
mediato de resistência pretende não é o conveniente para o
prazer sensorial, mas o útil para defender o organismo.264
5. Por sua origem, os afetos se dividem em primitivos,
como o amor e o ódio, e derivados, que são todos os demais
afetos tanto imediatos como mediatos.
a) Os afetos imediatos que implicam movimento para o
termo (desejo e aversão) são naturalmente anteriores aos me-
diatos na ordem da originação e no da realização.265 O que se

264 - III Sent., dist. 26, q. 2, art. 1: “Que o animal apeteça as coisas que
são convenientes ao sentido e lhe causam deleitação é próprio da natureza
sensitiva e pertence ao apetite imediato [potentia concupiscibilis]; mas que
tenda a algo bom que não causa deleitação nos sentidos, senão que antes é
apto para provocar tristeza em razão de sua dificuldade — por exemplo,
que o animal queira a luta com outro animal ou vencer uma dificuldade
qualquer —, é próprio do apetite sensitivo enquanto a natureza sensitiva já
toca a intelectiva, e isso é próprio do apetite mediato [potentia irascibilis]. E,
assim como a estimativa é uma faculdade diferente da imaginação, assim
também o apetite mediato é uma potência diferente do apetite imedia-
to, pois o objeto deste é o bem que é apto para provocar deleitação nos
sentidos, enquanto o apetite mediato é um bem que tem dificuldade”. (A
mesma doutrina em De Veritate, q. 25, art. 2). Pelo apetite mediato, o animal
se inclina a atacar o inimigo, sofrendo dores e ferimentos, o que repugna
ao apetite imediato: move-se, pois, contra este. E o pôr em marcha o apetite
imediato retrai a atualização do mediato.
265 - S. Th., I-I, 25, 1.

170 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

deve ao nível de objetos que especificam os afetos, pois os ob-


jetos dos afetos imediatos que implicam movimento são mais
simples ou puros. É que os afetos mediatos acrescentam ao as-
pecto do bem o da dificuldade que deve ser vencida; por isso
aqueles são naturalmente anteriores na ordem da originação e
da realização. Ademais, o apetite mediato vem depois, forte e
impetuoso, defender o imediato.
b) Os afetos imediatos que implicam quietude no termo
(gozo e tristeza) são naturalmente anteriores aos mediatos na
ordem da intenção, ainda que posteriores na ordem da reali-
zação. Especialmente porque os imediatos têm sentido de fim,
e o fim é sempre anterior na ordem intencional e posterior na
ordem real: a quietude ou descanso possui esse sentido de fim,
enquanto o movimento — próprio dos afetos mediatos — tem
sentido de meio.
6. Se se comparam entre si os afetos sensíveis imediatos,
deve-se observar que, tendo o bem razão de fim — que é ante-
rior na intenção, mas posterior na realização —, tais respostas
afetivas podem ser consideradas ou segundo a ordem da inten-
ção ou segundo a ordem da realização.
a) Na ordem da realização, é primeiro o que sucede de
modo mais imediato ao tender ao fim; e é evidente que tudo o
que tende a um fim, em primeiro lugar, há de possuir aptidão
ou adequação a esse fim, pois nada tende a um fim que lhe é
desproporcionado; em segundo lugar, há de ser movido ao fim;
e, em terceiro lugar, há de descansar nele uma vez alcançado.
Pois bem, a aptidão ou adequação da dinâmica tendencial ao
fim é o amor, que não é senão a complacência do bem (com-
placentia boni); o movimento para o bem é o desejo; e o des-
canso no bem é o gozo. Assim, segundo esta ordem, o amor
precede ao desejo e este ao gozo. Em suma, o efeito do amor,
quando já se possui o objeto amado, é o gozo; enquanto não se
possui, é o desejo.266
b) Mas na ordem da intenção dá-se o contrário; porque o
gozo intentado produz o desejo e o amor, dado que o gozo é a

266 - S. Th., I-I, 25, 2, ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 171


Juan Cruz Cruz

fruição do bem, que é de certo modo fim, como igualmente o é


o bem.267 Em síntese, o gozo causa o amor enquanto é anterior
na intenção.268
Por fim, o ódio tem, em certo aspecto, uma prioridade com
respeito ao amor: na ordem da execução é antes o separar-se
de um termo que o aproximar-se do outro; mas na ordem da
intenção sucede o contrário, pois o separar-se de um termo
é para aproximar-se do outro, e o movimento das tendências
pertence mais à ordem de intenção que à de execução, e por
isso o amor é antes que o ódio, por serem ambos movimentos
ou respostas tendenciais.269
7. Comparados os afetos sensíveis imediatos com os me-
diatos, e advertindo-se que o repouso é o fim do movimento e,
portanto, é anterior na intenção, ainda que posterior na reali-
zação, segue-se o seguinte:
a) Se se comparam os afetos mediatos com os imedia-
tos que implicam descanso no bem, evidentemente aqueles
precedem na ordem de realização aos imediatos; tal como a
esperança precede ao gozo e o causa. Mas o afeto imediato
que implica quietude no mal, quer dizer, a tristeza, está no
meio de dois afetos mediatos: segue-se ao temor, porquanto,
chegado o mal que se temia, se produz a tristeza; e precede
à ira, porque o apetite de vingança que surge por causa da
tristeza anterior pertence ao movimento da ira; e, como se
julga que é bom vingar-se do mal, uma vez conseguida a
vingança, vem o gozo. Assim, todo afeto mediato tem por
termo outro imediato referente à quietude, a saber, o gozo
ou a tristeza.
b) Se se comparam os afetos mediatos com os imediatos
que implicam movimento, então é claro que os últimos são
anteriores, pelo fato mesmo de os afetos mediatos acrescen-
tarem algo aos imediatos, assim como, igualmente, o obje-
to do apetite mediato acrescenta ao do imediato o aspecto

267 - S. Th., I-I, 25, 2.


268 - S. Th., I-I, 25, 2, ad 3.
269 - S. Th., I-I, 29, 2, ad 3.

172 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

de árduo ou difícil. A esperança acrescenta ao desejo certo


conato e elevação de ânimo para conseguir o bem difícil, e,
igualmente, o temor acrescenta à aversão certa depressão
do ânimo pela dificuldade do mal. Assim, os afetos media-
tos são intermediários entre os imediatos que comportam
movimento para o bem ou para o mal e os que implicam
repouso no bem ou no mal. E assim está claro que os afetos
mediatos têm seu princípio e seu termo nos imediatos.270
Em suma, nos apetites imediatos há três grupos de res-
postas afetivas contrapostas: amor e ódio, desejo e aversão,
gozo e tristeza; e também há três nos apetites mediatos, que
são: esperança e desesperação, temor e audácia, e a ira, à
qual não se opõe nenhuma resposta afetiva. Há, portanto,
onze respostas afetivas diferentes ontologicamente em es-
pécie: seis no apetite imediato e cinco no apetite mediato;
e sob elas se compreendem todas as demais respostas afe-
tivas do sujeito.271 Ainda que esta afirmação possa parecer
uma tese dogmática, porque declara “esgotado” com sua
análise o âmbito da afetividade, deve-se observar imedia-
tamente que se refere ao fato de que a análise categorial-
ontológica não encontra mais pontos de referência funda-
mentais — tensões, níveis e respostas objetivas —, mas
deixa aberta a possibilidade e necessidade de uma ampla
— e talvez inesgotável — descrição psicológica e fenome-
nológica (intensidades, alterações, concomitâncias, tem-
peramentos, desvios, etc.), tanto na vivência íntima como
na vida social do sujeito.

3. O amor sensível

1. Segundo o que foi dito, o amor preside a vida tendencial


e afetiva. Em cada uma das formas de tendência humana, dá-se
o nome de amor ao que é princípio do movimento orientado a

270 - S. Th., I-I, 25, 1.


271 - S. Th., I-I, 23, 4.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 173


Juan Cruz Cruz

um fim concreto.272 O bem é considerado pelo Aquinate como


se fosse um agente natural que produz dois efeitos na tendência
do sujeito: primeiro lhe dá uma forma e depois o movimento
que a ela corresponde.
a) E, no que diz respeito aos seres inanimados, a causa ge-
radora dá ao corpo — na terminologia física medieval — a
gravidade e o movimento conseguintes a ela; e a gravidade,
que é o princípio do movimento para o lugar conatural, pode
chamar-se de certo modo amor natural.273 A tendência natural
ou pré-consciente, própria da camada ontológica mais básica
de todo ser, é uma inclinação, cujo princípio de movimen-
to é a conaturalidade (connaturalitas) do sujeito com aquilo
a que tende; essa tendência “conaturalizada” recebe — com
uma denominação metafórica e geral — o nome de amor na-
tural. Por isso, Tomás de Aquino até chama de amor natural
a própria conaturalidade que um corpo pesado tem com seu
centro em virtude da gravidade. O amor natural não é uma
dimensão inferior, mas básica, que se encontra tanto nas forças
vegetativas da alma quanto em todas as potências anímicas,
em todas as partes do corpo e, em geral, em todas as coisas,
dado que cada ser tem uma inclinação conatural (um pondus
naturae, na expressiva terminologia escolástica) para o que lhe
convém segundo sua natureza.274 Trata-se da relação transcen-
dental pela qual uma entidade se ordena a outra (a essência à
existência, a matéria à forma, a potência ao ato): é algo on-
tológico e entitativo, prévio à ordem dinâmica ou operativa.
Chamar apetite a este peso inato é falar impropriamente. O
apetite é movimento para algo; mas uma mera entidade orde-
nada ou comensurada naturalmente não é um movimento, e
sim uma disposição para o movimento: é algo estático, quieto
e permanente. Visto do ângulo de sua inclinação, cada ser tem
natural conformidade ou aptidão para o que lhe é substantivo,
a qual constitui, metaforicamente falando, o amor natural; e,

272 - S. Th., I-I, 26, 1.


273 - S. Th., I-I, 26, 2. É o amor em sentido impróprio e metafórico.
274 - S. Th., I-I, 26, 1 ad 3.

174 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

igualmente, tem desconformidade natural com tudo o que lhe


é contrário e degenerativo, a qual constitui o ódio natural.
Seu sujeito não é uma faculdade ou apetite da coisa, mas a
própria essência ou entidade ordenada transcendentalmente a
seu complemento.
b) A conaturalidade, adaptação ou coaptatio da tendência
consciente (sensitiva ou intelectual) a determinado bem já é
complacência do bem (complacentia boni) e se chama amor
em sentido próprio e psicológico. Ainda não é gozo ou pos-
se alegre da coisa, mas pura complacência em sua existência,
afirmação de seu simples ser bom. Os termos mais empregados
para descrever este fenômeno são os seguintes: immutatio, in-
tentio, coaptatio e complacentia. O primeiro ressalta o obje-
to como motor; os outros designam o objeto como termo da
tendência do sujeito. Immutatio é a comoção, impressão ou
modificação que a tendência sofre pelo objeto de que depende.
Intentio expressa a direção para o objeto. Coaptatio define a
modulação da tendência que, tendo recebido a atualidade do
objeto, é configurada e volta ao objeto. O que no âmbito físico
é a gravitação e a atração universal corresponde, no âmbito
psicológico, à imantação e atração da tendência pelo objeto.275
Santo Tomás faz para a descrição do amor um uso constante da
metáfora física. Complacentia indica o estado psicológico de
gozo intencional em que a tendência fica.
O amor pode ser, correlativamente, sensitivo ou racional,
de acordo com o nível ontológico da resposta e da fonte de co-

275 - Uso seguidamente um símile da vida animal. Quando a raposa sente


fome, aproxima-se de um cercado de animais; sua estimação instintiva
lhe dita a astúcia conveniente para fazer um rodeio e evitar congêneres
que por suas capacidades pudessem prejudicá-la. Mas, quando diante dela
se apresenta a galinha, sua tendência fica comprazidamente “engalinha-
da”, alterada, coaptada e absorvida pela ave; poder-se-ia dizer que então
a raposa sente um amor irresistível por ela. É a mesma realidade objetiva
da galinha o que “engalinha” o apetite da raposa: sua tendência, uma vez
supreendida, ficou ao mesmo tempo captada e comprazida por seu objeto,
conquanto ainda não o tenha devorado. Este símile pode ajudar, de certo
modo, a compreender a essência realista do amor. A metáfora da “flechada”
também é acertada a este respeito, pois a flecha que o outro lança não só
fere a tendência do amante, mas, além disso, identifica-se com ela, fá-la sa-
borosamente conatural, constituindo então o amor em sentido essencial.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 175


Juan Cruz Cruz

nhecimento que a provoque.276 O bem é fim e, como tal, tem


poder de despertar e excitar o apetite. O poder excitante do
fim ou do bem é diferente segundo esteja realmente presente
ou ausente para o apetite; porque, como presente, faz descan-
sar nele; e, estando ausente, faz dirigir-se a ele. O bem sensí-
vel pode ser visto ou do ângulo do apetite, considerado este
como um móvel natural impelido por um agente, ou do ângu-
lo da faculdade cognoscitiva, a imaginação, que propõe esse
bem. 1º Esse móvel natural que é o apetite recebe do agente
três coisas: primeira, a forma, atualidade ou aptidão (coadapta-
tionem) ao movimento; segunda, o movimento conseguinte;
terceira, a terminação do movimento, a quietude no termo
final. A adaptação, proporção ou hábito do apetite ao bem co-
nhecido é a primeira imutação que o apetite recebe do objeto
e se chama amor, que não é outra coisa senão uma resposta de
complacência no apetecível; e desta complacência se segue o
movimento para o apetecível, que é o desejo, e, por último, a
quietude, que é o gozo. 2º O bem sensível, considerado absolu-
tamente, é captado pela imaginação e assim é proposto ao ape-
tite. De três maneiras pode ser captado pela imaginação o bem
sensível absolutamente considerado: sob o aspecto de presente
ou possuído, sob o aspecto de futuro ou não possuído, e sob o
aspecto geral de bem sensível, independentemente do caráter
presente ou futuro. E dessas três maneiras pode o bem sensível
mover o apetite imediato aquisitivo, provocando três espécies
de imutação ou resposta.277 Quando o apetite se adapta e con-
forma a esse bem, surge o amor; se o bem está ausente, atrai
para si o apetite, dando origem ao desejo; e, enquanto está pre-
sente, aquieta-o em si e causa o gozo. O amor não se dirige ao
bem nem essencialmente presente nem essencialmente futuro,

276 - S. Th., I-I, 26, 1.


277 - Pois em todo movimento real e efetivo há três elementos. Primeiro,
a orientação, adaptação ou direção ao termo final, a qual está unida ao
primeiro impulso pelo qual se abandona o termo inicial: a ela responde, no
apetite, o amor. Segundo, o movimento mesmo, enquanto é trânsito efetivo
do termo inicial ao termo final: e a ele responde o desejo. Terceiro, a mesma
consecução ou chegada ao termo final, ou seja, a quietude no termo: à qual
responde o gozo.

176 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

mas ao bem como tal (ut sic), enquanto prescinde da ausência


ou da presença. De modo que o amor é uma resposta afetiva
especificamente diferente tanto do desejo quanto do gozo.
Como no plano da consciência sensível a coisa apetecível
dá ao apetite, desde o início, certa adaptação (coaptatio) a
ela, que é a complacência na coisa, e como dessa adaptação se
segue depois o movimento para a coisa, o desejo, é claro que
o movimento do apetite se desenvolve circularmente — afir-
ma Santo Tomás recordando uma tese aristotélica: pois a coisa
apetecível move o apetite convertendo-se de algum modo na
intenção deste (faciens se quodammodo in eius intentione); e
o apetite se orienta a conseguir realmente o objeto apetecido,
de modo que o movimento termine ali onde começou.278
Em suma: o amor, como imutação do apetite pelo objeto
apetecível, é uma resposta afetiva, que reside própria e univo-
camente no apetite imediato aquisitivo e, em sentido próprio
e analógico, na vontade.279 O amor não designa o movimento
do apetite tendendo já ao objeto apetecível, e sim a imutação
ou o movimento efetuado no apetite pela coisa apetecível, de
modo que esta lhe propicia complacência.280 O amor, como
resposta afetiva, implica imutação e movimento, mas não o
movimento do apetite, o qual é próprio do desejo, mas o prin-
cípio deste mesmo movimento.
2. E, se, para usar uma metáfora musical, o amor é a con-
sonância do apetite com o captado como conveniente, o ódio
é a dissonância do apetite com o captado como repugnante
ou nocivo. Dado que todo o conveniente, enquanto tal, é
algo bom, também todo o nocivo, enquanto tal, é mau. Desse
modo, assim como o bem é o objeto do amor, o mal o é do

278 - S. Th., I-I, 26, 2.


279 - S. Th., I-I, 26, 2. Em sentido próprio e unívoco o amor se dá no apetite (S.
Th., I-I, 26, 1-2); em sentido próprio e análogo, na vontade (S. Th., I-I, 26, 3-4);
e em sentido apenas metafórico, em todas as coisas naturais.
280 - S. Th., I-I, 26, 2, ad 3. E em III Sent., dist. 27, q. 1, art. 1: “Quando o
afeto ou o apetite fica imbuído completamente pela forma do bem, que
é seu objeto, compraz-se nele e adere a ele como se estivesse fixo nele, e
então dizemos que o ama; portanto, o amor não é outra coisa senão certa
transformação do afeto na coisa amada”.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 177


Juan Cruz Cruz

ódio.281 Poder-se-ia pensar que, se tudo o que é, enquanto ser,


é bom, sendo o mal o objeto do ódio, então não haveria ódio
a ser algum, mas só à falta ou ausência de ser. Mas tal modo
de pensar é falso. Porque “o ser enquanto ser não implica in-
compatibilidade, mas conveniência — já que todas as coisas
convêm no ser; mas o ser determinado e concreto pode figurar
como incompatível com outro determinado ser singular: e por
isso um ser pode mostrar-se como odioso a outro, e mau, ainda
que não em si, mas por suas relações com ele”.282
3. Não se deve confundir o amor com o desejo nem com o
gozo ou alegria. Do amor surge o desejo; e o desejo é, de si, a
tendência ao gozo. O gozo é duplo: um, o que se dá no bem in-
teligível, que é o bem do espírito; outro, o que se acha no bem
adequado à sensibilidade. O primeiro compete unicamente à
alma espiritual; o segundo, à alma e ao corpo, pelo fato mesmo
de os sentidos serem potências em órgãos corporais; daí que o
bem adequado ao sentido seja um bem de todo o composto hu-
mano. Há, pois, uma tendência a tal gozo, um desejo, comum
à alma e ao corpo.283 Tender a algo como bem prazeroso para
os sentidos, internos ou externos, pertence ao apetite imediato
adquisitivo: é o campo dos desejos sensíveis. O bem com que
se goza e se alegra o sentido é também o objeto do apetite ime-
diato adquisitivo.
Também o desejo pode pertencer não só às tendências
sensíveis, mas também às espirituais; neste último caso, seu
ato não implica associação alguma com a sensibilidade,
como o desejo das tendências sensíveis.284

281 - S. Th., I-I, 29, 1.


282 - S. Th., I-I, 29, 1, ad 1.
283 - S. Th., I-I, 30, 2.
284 - Sendo o desejo a tendência ao bem deleitável, este pode convir ou à
natureza do animal, como a comida e a bebida e outras coisas análogas; e
a este desejo se chama natural; ou ao conhecimento do animal; assim, quan-
do algo é apreendido como bom e conveniente, ele se compraz nisso. Tal
desejo do deleitável se chama não natural. O primeiro modo de desejo, ou
seja, o natural, é comum aos homens e aos animais, dado que para uns e
para outros há algo conveniente e deleitável segundo sua natureza. Nestas
coisas todos os homens estão de acordo: Santo Tomás as chama, em clave
aristotélica, comuns e necessárias. O outro modo de desejo é próprio do ho-

178 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VI - O Amor Sensível

O amor é como um nome comum que abarca, no plano


da consciência, tanto a resposta afetiva sensível como a es-
piritual. O amor espiritual acrescenta ao amor em geral uma
escolha prévia; é claro, assim, que o amor espiritual não se
encontra nos apetites, mas somente na vontade e unicamen-
te na natureza racional.285 O amor sensível, por conseguinte,
reside na tendência sensitiva ou apetite; ademais, pertence ao
apetite imediato de aquisição, dado que se refere ao bem em
seu aspecto absoluto, não como árduo ou difícil, pois sob esta
dimensão o bem cai dentro do objeto do apetite mediato de
resistência.286 Mas o amor sensível é sempre subjetivo, porque
“seu objeto é o prazer, ou também um objeto ou uma ação en-
quanto prazerosos [...]. Por mediação do bem subjetivo que é o
gozo ou prazer, as ações conduzem o vivente a seu bem objeti-
vo, individual ou específico, obtido pelo uso de bens úteis”.287
É um erro considerar o amor que parte da vontade como uma
espécie de apetite sensível refinado, como se no espiritual hou-
vesse instintos da mesma maneira como no corporal há sede; e,
ainda que a beleza integral do amado não seja vista como sim-
ples ilusão, como um prodígio fascinante produzido pelo amor,
não pode ser reduzida falsamente à capacidade de aplacar uma
necessidade. “Em todas as necessidades [sensíveis] a exigência
é o principium e o objeto é o principiatum, enquanto em todas
as respostas [espirituais] o objeto é o principium e a atitude do

mem, a quem compete conceber como bom e conveniente algo que está fora
do que a natureza requer (S. Th., I-I, 30, 3). O desejo natural é finito em ato,
mas infinito em potência. Não pode ser infinito em ato porque tem por objeto
o que a natureza requer, e esta se dirige sempre a uma coisa finita e certa:
por isso o homem nunca deseja comida nem bebida infinita. Mas, assim
como acontece na natureza que o infinito existe em potência por sucessão,
assim também o desejo vem a ser infinito por sucessão; isto é, depois de
tomado o alimento, deseja-se tornar a tomá-lo; e igualmente nas demais
coisas de que a natureza necessita. Mas o desejo não natural é completamente
infinito, porque se segue à razão, e a esta compete ir ao infinito. Daí que
quem cobiça as riquezas possa desejá-las não até um limite determinado,
mas absolutamente, para ser tão rico quanto lhe seja possível (S. Th., I-I,
30, 4).
285 - S. Th., I-I, 26, 3.
286 - S. Th., I-I, 26, 1.
287 - Louis-B. Geiger, 52-53.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 179


homem é o principiatum. Todas as necessidades se fundam na
natureza do homem, e o objeto se torna relevante porque já
existe a necessidade, independentemente de qual seja o tipo de
relevância que o objeto possui. Sua relevância para o homem
funda-se aqui na índole que o objeto tem de poder aplacar a
necessidade. Se a necessidade, o instinto, o apetite, carecesse
de vitalidade, então o mesmo objeto que agora possui uma for-
ça atrativa não teria essa força e não se apresentaria diante de
nós como relevante. Porque temos sede, exigimos água [...]. Na
resposta ao valor, o tema é o valor do bem, enquanto no apeti-
te o tema é a satisfação da necessidade, ou o desenvolvimento
do sujeito, desenvolvimento que necessita imperiosamente de
determinada coisa.”288

288 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 62-63.


Capítulo VII
O Amor Espiritual
VII - O Amor Espiritual

1. Fenomenologia e ontologia do amor

A filosofia clássica concorda com as correntes fenomenoló-


gicas que rejeitam a redução do amor espiritual a uma causação
eficiente a partir de planos afetivos inferiores, como são as sen-
sações orgânicas ou as tendências sensíveis. Para compreender
o amor, é preciso notar — diz o fenomenologista — a primazia
da motivação sobre a mera causação.
Fazer causalmente responsável pelo amor, por exemplo, a sen-
sação corporal equivale a unificar planos ontológicos irredutíveis.
Uma sensação corporal, seja pontual (como o gosto do paladar),
seja generalizada (como a fadiga que invade todo o corpo), ainda
que não se confunda com os processos fisiológicos, sendo como é
uma experiência consciente, tem uma relação essencial com nos-
so corpo.
Deixar sem motivação própria a vida afetiva é mutilar seu
sentido ontológico. E o fato é que boa parte da psicologia mo-
derna reduziu a afetividade a puro estado subjetivo, fazendo que
a “resposta” afetiva ficasse separada do objeto, o qual deveria ter
sido seu verdadeiro “motivo”. Nessa perspectiva, afirmou-se que
o amor tem um significado em si mesmo, independentemente de
seu objeto, de seu “para quê”; ou seja, foi considerado como esta-
do afetivo imotivado. Precisamente a fenomenologia contempo-
rânea fez algo que já fizera séculos antes a filosofia clássica, a saber:
indicar que os afetos — e o amor entre eles — são respostas essen-
cialmente intencionais. Com a palavra “intencional” indica-se
que há uma relação necessária entre o centro pessoal e seu objeto;
dito de outro modo: não há afeto sem objeto; o amor, por exem-
plo, não é algo flutuante, vazio e sem controle objetivo.
Tanto a fenomenologia contemporânea quanto a filosofia
clássica procuraram evitar a este respeito quatro equívocos en-
cadeados:
1º Primeiro, reduzir o objeto ao movimento afetivo.
2º Depois, considerar o movimento afetivo como independente
do objeto, como se aquele tivesse um significado em si mesmo.
3º Em seguida, transformar em estado afetivo algo que não
está na esfera afetiva; por exemplo, reduzir esse ente moral pre-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 183


Juan Cruz Cruz

ciso que é a responsabilidade surgida do amor a um mero ente


psicológico, a saber, a um sentimento de responsabilidade.
4º Finalmente, reconduzir também os sentimentos espiri-
tuais — como o respeito, a veneração, o amor, a fidelidade
— a uma esfera psíquica mais baixa; com o que se acaba por
dessubstancializar tais sentimentos. No caso do amor, tanto
seu objeto (ente real) quanto a responsabilidade mesma (ente
moral) que suscita são considerados meramente como fenôme-
nos psíquicos originados por processos de estratos inferiores.
Algo que é realmente objetivo e exige uma existência inde-
pendente da função psíquica é substituído por uma experiên-
cia subjetiva de grau inferior. Os sentimentos acabam por ser
determinados como gesticulações no vazio, desprovidos de
significado e de objeto.
Nada tem de estranho que, contando com essas circuns-
tâncias teóricas, surja na vida normal o “sentimentalismo”, fe-
nômeno em que o indivíduo se submerge em si mesmo e, sem
enfocar o bem objetivo que o afeta ou motiva, desfruta de seu
puro estado interior: faz do objeto um instrumento cuja missão
consiste em subministrar estados sentimentais. Alguém pode
derramar lágrimas não tanto para chorar pelo amigo quanto
para dar a si mesmo uma comoção agradável. Acontece então
certa perversão antropológica. No caso do amor, a perversão
não consiste tanto em que o sentimento amoroso nos deleite e
nos faça felizes — esse é um efeito do bom amor — quanto em
que o sujeito só desfrute do próprio amor, permaneça apenas
no gozo introvertido do sentimento. E acontece às vezes que
esse sentimentalismo se converte na forma mental do filósofo,
o qual não vê que, quando o sujeito se comove, já está pola-
rizado pelo objeto, enfocado para ele, e não meramente auto-
excitado psicologicamente.
Quem ama para saborear sua própria capacidade emocio-
nal não tem um genuíno amor, pois lhe falta a atmosfera do
outro. A filosofia clássica indicara que na experiência afetiva
nos deixamos penetrar pelo objeto, por seus valores, abrindo-
nos à sua mensagem. O amor é, assim, uma autêntica respos-
ta, impossível de reduzir a um desfrute introvertido. Em ser

184 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

resposta genuína consiste a essência do amor. Mas é possível


o encontro com a “realidade“ objetiva do outro para que tal
resposta se produza?
Já advertimos que na filosofia clássica há uma decidida ati-
tude de realismo, o qual baseia na essência do outro eu real a
resposta afetiva de aceitação ou rejeição: sem esse realismo do
outro eu, não seria possível uma ontologia do amor. Por isso,
o fio condutor da investigação hão de ser as reais tendências
que se cruzam no agir afirmativo e negativo do homem com
respeito a outro homem real.

2. Constituição volitiva do amor espiritual

Convém advertir novamente que o objeto sobre o qual re-


cai imediatamente o amor sensível é o gozo sensível,289 “quer
dizer, um estado subjetivo, diferente do bem real ao qual está
ordenado o animal por natureza, e que será perseguido por um
conjunto de operações destinadas a alcançar realmente a posse
de seu bem. Entre o sujeito ordenado a certas realidades, cha-
madas seu bem — porque são suscetíveis de assegurar sua per-
feição —, e estas mesmas realidades, intercala-se um elemento
novo. De modo que nos encontramos diante de duas formas
de bem, ligadas entre si por um signo e pelo que este significa.
De um lado, um bem de ordem psicológica, o gozo; de outro
lado, o bem que pode chamar-se objetivo, o alimento, o com-
panheiro, etc. O bem subjetivo é o signo do bem objetivo,
assim como a luz verde significa caminho livre. Mas com esta
diferença essencial: o gozo também é um bem, e até um bem
absoluto em sua ordem, enquanto a luz verde não tem senão
um laço convencional com o movimento. O gozo pode assim
seduzir por si mesmo o amor sensível e até mascarar o bem que
ele deve significar”.290 O animal não é capaz de discernir os
dois momentos do bem e os persegue unitariamente; o homem

289 - In De sensu, 1, n. 12.


290 - Louis-B. Geiger, 47-48.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 185


Juan Cruz Cruz

pode persegui-los isoladamente, e até propiciar-se o gozo sem


se comprometer com as exigências reais do objeto. A verdade
é que no nível sensível do amor só é enfocado o gozo, o prazer:
se há prazer, há bem. “A afetividade sensível se encontra assim
encerrada no mundo subjetivo do prazer. Este último leva o
vivente, sem que este o saiba explicitamente, a realizar os atos
úteis sem os quais tanto sua existência individual quanto a da
espécie seriam impossíveis. De modo que o prazer se encon-
traria ligado sobretudo a ações úteis que, ademais, são em si
mesmas prazerosas. A ordem dos valores, no plano psicológico,
é o inverso da ordem objetiva. O gozo que biologicamente está
a serviço de ações úteis e proveitosas se converte psicologi-
camente no único bem, como se as ações tivessem por única
missão estimulá-lo e mantê-lo.”291
Nesses afetos sensíveis, é preciso distinguir um elemento
material — que é a comoção orgânica — e um formal, que
é o ato do apetite. Assim, por exemplo, na ira o material é o
afluxo de sangue para o coração, e o formal o desejo de vingan-
ça. O motor imediato do corpo animado, em sua constituição
psicofísica, é em nós o apetite, e daí que seu ato sempre seja
acompanhado de uma comoção orgânica (para os medievais
especialmente na região do coração, que para eles era o prin-
cípio do movimento no animal); e por isso os atos do apetite,
ou seja, suas respostas afetivas, levam anexas certas comoções
orgânicas, que não se dão nos atos da vontade.292
E mesmo por parte do elemento formal há algumas respos-
tas afetivas que incluem algo de imperfeito, como, por exem-
plo, o desejo, que se refere a um bem ausente, ou a tristeza, que
se refere a um mal presente, e diga-se o mesmo da ira, que pres-
supõe a tristeza. Outras respostas afetivas, em contrapartida,
como o amor e o gozo, não envolvem imperfeição alguma. Pois
bem, nenhuma das respostas afetivas do apetite, pelo que têm
de material, convém à vontade; mas sim, em contrapartida, as
que não envolvem imperfeição, como o amor e o gozo — que

291 - Louis-B. Geiger, 49.


292 - S. Th., I, 20, 1, ad 1.

186 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

podem significar tanto atos do apetite quanto atos da vontade


—, e inclusive as que em sua mesma forma incluem alguma
imperfeição, como o desejo e a tristeza.293
Não é possível em poucas linhas sublinhar a “modernida-
de” desta doutrina do amor espiritual. Max Scheler, que viu
a necessidade de introduzi-la em seu esquema antropológico
em contraposição às teorias modernas, indica que “o amor é
um ato ou movimento de índole espiritual que não é menos
independente, em essência, de nossa constituição corporal e
sensível que os atos do pensamento e suas leis”.294 O amor não
pode ser reduzido a uma combinação de sentimentos e tendên-
cias sensíveis.
O mesmo pensava Santo Tomás. Sucede porém que, para
este, o objeto próprio do amor espiritual não é diretamente
o ser ou o bem espiritual, mas o bem intelectual e universal
captado pela razão, pois sob esse aspecto geral de bem se apre-
senta tanto o espírito como o corpo. Este amor tem uma co-
nexão muito profunda com o conhecimento intelectual: não
porque o conhecimento engendre o amor assim como a faísca
acende o corpo inflamável, mas porque o amor espiritual não
pode produzir-se se o bem, que é seu objeto, não se faz pre-
sente para nosso espírito mediante o conhecimento intelec-
tual. “O próprio deste conhecimento não é que recaia sobre
representações gerais e abstratas, enquanto nossa imaginação
e nosso conhecimento sensorial recaem sobre representações
concretas ou individuais. A diferença que separa radicalmente
o conhecimento intelectual, seja qual for seu modo de conhe-
cer, do conhecimento sensível, incluído o esquematizado, é

293 - S. Th., I, 20, 1, ad 2. Tal é o resultado diferencial da analogia, emprega-


da em sentido técnico. Pode-se manter que o ato do apetite sensível é o ana-
logado principal ou direto do amor sem incorrer no defeito que Hildebrand
atribui ao uso da analogia n’A Essência do Amor: “Se queremos conhecer
a essência da vontade, carece de sentido partir de fenômenos análogos,
tais como as tendências instintivas do animal ou mesmo as ‘tendências’,
ainda mais afastadas e equívocas, do mundo vegetal; há que partir, em
contrapartida, do homem, e não precisamente das tendências meramente
instintivas, mas da ação em sentido pleno, onde se dá inequivocamente em
nós a vontade em sua especificidade” (34-35).
294 - Max Scheler, Vom Umsturz der Werte, 97.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 187


Juan Cruz Cruz

que por ele conhecemos ou podemos conhecer a essência de


cada objeto, enquanto no plano do conhecimento sensível só
temos representações cujo valor de ser se oculta de nós. Para o
caso do bem, isto quer dizer que sabemos ou podemos saber o
que é o bem, qual é sua natureza, em sua unidade analógica e
em cada um de seus modos. Conhecer o bem não é representar
as realidades qualificadas de boas: uma boa pessoa ou um bom
alimento, ou coisas parecidas. Tampouco é ter consciência de
um estado psicológico chamado bem-estar ou gozo ou prazer.
A bondade se manifesta formalmente pela atração que emana
de um ser, e o apetite do bem é a inclinação para o ser de que
emana essa atração: conhecer o bem é saber que um objeto
possui em si mesmo algo que suscita uma inclinação pela atra-
ção que dele emana.”295 A resposta da vontade a essa atração
é o amor espiritual, o qual requer como condição captar inte-
lectualmente no interior das coisas boas a causa e o princípio
formal da atração, que é o bem.296
Mas o amor, apesar da conexão condicionadora que tem
com o conhecimento, é obra da vontade. Não de uma von-
tade que já descansa no gozo ou posse alegre da coisa, mas
que se compraz na existência de algo, em seu simples ser bom
(complacentia boni). Quer isso dizer que, para Santo Tomás,
a atitude originária de um ser espiritual para com outro não é
de receio ou de estranheza ontológica — como se o outro fosse
295 - Louis-B. Geiger, 56-57.
296 - No que se refere ao objeto do amor, os clássicos consideravam que
há em seu âmbito dois tipos: o material e o formal (que não devem ser
confundidos com a causa material e formal respectivamente).
O objeto material é meramente terminativo (no qual termina o ato),
mas não motivo ou suscitador específico de resposta. Eles indicavam, de
um lado, um objeto material per se: o que é positivamente amado: tanto
o objeto material per se direto, que é a pessoa amada, enquanto pessoa;
quanto o objeto per se indireto, que são as coisas amadas para a pessoa a
quem amamos. De outro lado, assinalavam um objeto material per accidens,
que é o rejeitado como mau (males morais ou físicos) pelo amor.
O objeto formal pode ser ou simplesmente motivo, o que move essen-
cial e primariamente quanto à especificação do ato, e que só em ordem
a ele se constitui em sua espécie ou se define, distinguindo-se essencial-
mente de tudo o mais; ou formal terminativo e motivo ao mesmo tempo,
só que primária e essencialmente terminativo, mas secundária e essen-
cialmente motivo.

188 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

uma ameaça à sua existência —, mas de aprovação ou afirma-


ção. O amor que o outro dirige a mim confirma que minha
existência é boa. Por esse amor sinto-me justificado em minha
existência. Se ninguém me amasse, ficaria eu por confirmar,
por aprovar meu ser. “Amar algo ou alguma pessoa”, comenta
Pieper, “significa considerar bom, dizer que é bom esse algo ou
esse alguém. Pôr-se de frente para ele e dizer-lhe: ‘É bom que
existas, é bom que estejas no mundo’.“297 Esta afirmação de
existência não é de índole intelectual — é ocioso dizê-lo —,
mas volitiva: não é um acordo razoável, nem uma aprovação
feita segundo uma neutralidade teórica, mas um acendimento
volitivo (um afeto) que chega ao louvor da coisa amada. Trata-
se de um ato da vontade que quer que o outro exista. E, como
o existir não é um elemento separado do concreto humano,
aprovar a existência do outro significa afirmá-la em sua própria
unidade natural e com todos os seus planos psicológicos e bio-
lógicos naturais, incluído o de sua duração. No mesmo sentido
se expressa Max Scheler: “O amor repousa inteiramente no ser
e no modo de ser de seu objeto (Sein und Sosein ihres Gegens-
tandes); não o quer diferente de como é, e cresce à medida que
penetra mais profundamente nele”.298 Não quero apenas que
exista o espírito da outra pessoa; quero que exista toda ela em
totalidade de corpo e espírito. Ainda que o amado já existisse,
só diante do amante floresce e prospera o ser do amado. De
modo que “ser como tal” e “ser como afirmado” são dois in-
gredientes ontológicos do homem, e ambos necessários. E isso
não só pela função educativa que o amor desdobra em seu raio
de ação — como Pieper recorda acertadamente com as obser-
vações de René Spitz sobre as crianças criadas sem amor em
orfanatos —, mas pela função metafísica de afirmação cumpri-
da na ordem dos seres espirituais pelo amor: só porque eu sou
aprovado em meu ser é que me podem ser reprovadas aquelas
propriedades que não têm suficiente altura física ou moral: eu

297 - J. Pieper, 39.


298 - Max Scheler, Liebe und Erkenntnis, Die Weisem Blätter, Jahr. 2. Heft 8,
August 1915, 13.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 189


Juan Cruz Cruz

sou mais que o que tenho. Só quem não me ama confunde


minhas propriedades com meu ser, e ao rejeitar aquelas arruína
também minha constituição ontológica. Para quem não me
ama, eu não valho nada, nem sou nada. O que não significa
que quem me ama e me aceita com minhas fraquezas e defeitos
tenha de assumir também a responsabilidade que eu tenha ne-
les. Ele me ama, ainda que eu tenha fraquezas; ele me ama para
que eu as supere. Não me ama quem justifica minha fraqueza
— que é da ordem do ter — como um elemento metafísico fixo
— que é da ordem do ser: ao negar minha responsabilidade,
torna cego o amor. E um amor cego — não informado pela luz
da verdade — já nem sequer é amor.
Depois, enquanto a vontade se constitui como tendência
peculiar por ser especificada pelo conhecimento intelectual,
amar conforme a verdade do bem é o ideal do homem, que
deve perguntar em cada caso pelo fundamento de seus juízos
de valor. Quem ao negar ceticamente a ordem ontológica do
bem deposita seu amor em bens de categoria inferior, deixando
preteridos os bens superiores, está muito próximo do subjeti-
vismo; quem não ama o bem do prazer como mero signo de
atividades que nos conduzem a fins e bens objetivos se aproxi-
ma do hedonismo. A objetividade e a verdade do amor enri-
quecem nosso ser de homens, pois nos permitem dar respostas
livres; de outra maneira, não saberíamos o que temos de amar,
nem em que medida fazê-lo. Objetividade e verdade do bem
“fazem que o amor possa ser desinteressado, não somente por
essa condição exterior do sacrifício de nosso bem, mas em sua
tessitura mesma, como impulso que vai para o bem e o ama
por si mesmo, sem outra consideração que seu valor próprio. O
desinteresse do amor depende, assim, da objetividade como de
uma condição de possibilidade, pois somente um espírito que
sabe o que é o bem, e o mantém presente para seu olhar tal
como é, pode também amá-lo no que é e para o que é “.299

299 - Louis-B. Geiger, 86.

190 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

3. Volições e sentimentos. Meios e fins

Para um filósofo moderno é difícil aceitar que o amor seja


uma forma do querer ou da vontade. Ele tem na mente o tria-
lismo psicológico configurado na tradição ocidental a partir de
Kant: inteligência, vontade e sentimento.300 O amor seria de
fins, não de meios, e teria de ser forçosamente uma questão de
sentimento. A vontade, em contrapartida, seria faculdade de
meios, não de fins. Já o dissemos no início do capítulo.
Mas, para o Aquinate, só a ordem dos apetites tem dois
planos ontológicos diversos (apetite imediato e apetite media-
to); a ordem da vontade, em contrapartida, é constituída por
uma estrutura ontológica única e simples: não há nela planos,
mas momentos: o dos fins e o dos meios. Ela é tanto vontade
de fins (poder de amar o fim) quanto vontade de meios (poder
de decisão sobre os meios conducentes ao fim).301
Essa unidade e simplicidade estrutural da vontade ressalta
em face do apetite, o qual não se orienta ao aspecto “comum”
de bem, pois os sentidos não captam o universal, mas o objeto
sob um aspecto particular e concreto de bem (ou de mal); por
isso cabe distinguir nele entre o bem e o mal tomados de modo
positivo ou simples, e o bem e o mal tomados como árduos
e difíceis. De modo que, segundo sejam os diversos aspectos
particulares de bens, assim se diversificam as partes do apetite:
o imediato se orienta ao aspecto próprio de bem enquanto é
deleitável sensorialmente e conveniente naturalmente; o ape-
tite mediato se orienta ao aspecto do bem enquanto é árduo
ou difícil de conseguir.
Mas a vontade se orienta ao bem sob o aspecto comum
ou universal de bem: por isso não se diversifica interiormente,
não admite em seu seio uma dupla distinção de tendências, as
imediatas e as mediatas, ou seja, as de aquisição e as de resis-
tência: fixa-se no bem (ou no mal) independentemente tanto
da doação imediata do bem como de sua doação dificultosa ou

300 - Juan Cruz Cruz, “Intelecto y sentimiento”, cap. IV de Intelecto y razón.


301 - S. Th., I, 82, 5.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 191


Juan Cruz Cruz

mediata. A vontade não tem por objeto um bem particular,


nem o bem mesmo do sujeito, mas o bem, de modo que não se
dirige “a determinado bem, como o apetite sensível ou o ape-
tite do seres carentes de conhecimento. Afirmar o contrário é
arruinar a espiritualidade da vontade”.302 Não há uma divisão
na vontade — nem na inteligência — porque uma potência
que tem por objeto o bem ou o ser ou a verdade não poderia
ser estranha a nenhum bem nem a nenhum ser. “A ação da
vontade é o amor do bem sob a luz da verdade. Para esse ato
está inclinada por natureza a nossa vontade.”303
Sendo o bem espiritual duplo, o do fim e o dos meios, o
amor expressa algo simples e absoluto e não pode ser um ato
orientado aos meios, que é algo composto: o amor é o momen-
to original da vontade de fins.
Para Tomás de Aquino há três atos da vontade de fins:304
a simplex volitio (velle), a intentio e a fruitio, em correspon-
dência com os três afetos sensíveis imediatos: o amor, o desejo
e o gozo. Por sua vez, a vontade de meios se desdobra também
em três atos: electio, consensus, usus. Aos atos de fins cha-
mariam os modernos “sentimentos”; aos de meios, “volições”.
O amor espiritual é, segundo o Aquinate, um simples querer
(velle), embora nem todo simples querer seja um amor. No de-
sejo e no gozo espirituais começa a haver certa composição do
ato, na medida em que o amor, como mero querer, é ato sim-
ples e puro: neste nível, querer e amar se identificam. O amor
é a primeira imutação passiva da vontade provocada pelo bem
espiritual conhecido pela razão.305 Em contrapartida, a fruição

302 - Louis-B. Geiger, 95.


303 - Louis-B. Geiger, 95-96. Diz Santo Tomás: “A vontade, ainda que se
dirija às coisas singulares que estão fora da alma, orienta-se a elas segundo
uma razão universal (secundum aliquam rationem universalem), tal como o
querer algo porque é bom” (S. Th., I, 80, 2, ad 2).
304 - S. Th., I-I, 8-12.
305 - Se por vontade se entende a potência ou faculdade de querer, então ela
se estende ao fim e aos meios, pois o bem, objeto da vontade, se encontra no
fim e nos meios para o fim. Mas, se por vontade se designa não a potência,
mas o ato de querer — o amor —, então só é propriamente do fim. Este
ato simples versa sobre o que é por si mesmo objeto da faculdade, ou seja,
sobre o que é bom e querido por si mesmo, qual é o fim. Os meios não são

192 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

— aparentada com “fruto” — é a última coisa que se espera


obter e gozar: trata-se do gozo que se experimenta na última
coisa a que se aspirava, o fim. A fruição perfeita corresponde
ao fim já possuído realmente, enquanto a imperfeita não é do
fim real, mas do possuído apenas na intenção.306 E, por último,
o desejo espiritual — a intentio — significa tender a uma coi-
sa: é ato da vontade com respeito ao fim. A intentio é um ato
espiritual paralelo apenas ao desiderium sensível.
Queixa-se, com razão, Pieper de estarmos acostumados a
limitar a idéia do querer ao momento dos meios, ao “querer
fazer algo”, “decidir-se a agir sobre a base de motivações”, re-
duzindo-o a uma vontade de transformar o mundo, de criar
artefatos para nossa subsistência, etc. Trata-se de um apeque-
namento ativista da vontade. “Dá-se uma forma do querer que
não tende a fazer algo ainda à espera de ser consumado numa
configuração futura que muda a situação atual das coisas [...].
Além do querer fazer, há o puro assentimento afirmativo ao
que já está aí. E este assentir ao que é tampouco tem caráter de
tensão futurista. ‘O consentimento não é um futuro’ (Ricoeur).
Aprovar e afirmar o que já é realidade, isso é amar.”307
Os atos volitivos referidos ao fim e aos meios correspon-
dem respectivamente aos atos intelectuais de contemplar
(intellectus) os princípios e de discorrer (ratio) sobre as con-
clusões. “Na rica tradição do pensamento europeu, afirmou-se
sempre que, assim como a certeza imediata da contemplação
é o fundamento e suposto prévio de toda atividade pensante,
assim também o amor é o original e mais autêntico conteúdo
de todo querer, o que penetra as criações da vontade da flor à
raiz. Toda decisão da potência volitiva tem nessa atuação fun-

bons e desejados por si mesmos, mas por ordem ao fim, e a vontade não
tende a eles senão pelo amor do fim (I-I, 8, 2-3). Como o fim é querido por
si mesmo e os meios só pelo fim, a vontade pode dirigir-se ao fim — pode
amar — sem se mover ao mesmo tempo aos meios; ainda que para querer
os meios se tenha de apetecer antes o fim. O ato pelo qual se move ao fim
em absoluto (por exemplo, desejar a saúde) às vezes precede no tempo à
volição dos meios (por exemplo, chamar ao médico para curar-se).
306 - S. Th., I-I, 11, 3-4.
307 - J. Pieper, 40-42.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 193


Juan Cruz Cruz

damental sua origem e seu começo, tanto no sentido temporal


como no qualitativo. Por sua mesma natureza, o amor não só
é a primeira coisa que a vontade produz quando atua, e não só
ela extrai dele todos os demais momentos característicos de
seu impulso, mas também alenta, como princípio, quer dizer,
como inesgotável fonte criadora, toda decisão concreta, e a
sustenta dando-lhe vida.”308 A vontade se refere ao fim de três
modos: absolutamente, e então seu ato se chama amor espiri-
tual, pelo qual, por exemplo, absolutamente queremos algo; o
segundo, pelo qual se considera o fim como objeto de quietu-
de, e desse modo o gozo espiritual se orienta ao fim; o terceiro
considera o fim como termo dos meios que a ele se ordenam,
e assim o desejo espiritual se orienta ao fim.309 Este desejo se
refere ao fim como termo do movimento voluntário. Se o gozo
espiritual implica repouso no fim, o desejo espiritual é ainda
movimento para o fim, não descanso. O amor, como primeiro
e fundamental ato do querer, só afirma, aprova o existir e o
viver do outro: Primo vult suum amicum esse et vivere.310 O
amor não é criador da existência do outro — não é um poder
de tirar da nada o ser —, mas implica, sim, no amante, a in-
tenção de eliminar qualquer obstáculo que impeça a existên-
cia total do amado, pondo para isso as condições adequadas
que assegurem um âmbito de encontro e promoção pessoal.
Se amar não é criar o ser do amado, ao menos é re-criar sua
existência na complacência, na aprovação volitiva que não
só se lança inicialmente à afirmação do outro, mas persiste e
segue colaborando, único modo de reproduzir o amado em sua
duração existencial. Porque o existir humano não é um ato
de subsistência pontual, mas um estar presente numa corrente
que não se esgota.

308 - J. Pieper, 43-44.


309 - S. Th., I-I, 12, 2.
310 - S. Th., II-I, 25, 7.

194 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VII - O Amor Espiritual

4. Retroversão volitiva como ato para a objetividade

Cabe destacar um traço importante no amor espiritual:


sua índole retroversiva. O amor espiritual é ato da vonta-
de e, pela natureza dessa faculdade, pode tornar a si mes-
mo. “Sendo o objeto da vontade o bem universal, todo o
conteúdo no aspecto de bem pode cair sob o ato da vonta-
de. Mas o mesmo querer é um bem e, portanto, pode que-
rer querer-se. Isto acontece até com o entendimento, cujo
objeto é a verdade: entende que entende, porque também
ele é algo verdadeiro. O amor espiritual, em virtude de sua
própria índole, pode tornar a si, porque é tendência espon-
tânea do amante para o amado; daí que, pelo fato de alguém
amar, ele ama amar-se.”311 De modo que até nesta dimen-
são retroversiva do amor se patenteia que o próprio amor é
amado como bem em si, não como bem para mim. “Amar
nosso amor não rompe o movimento fundamental de nosso
ser para o bem. Não põe na raiz de nossa vida afetiva uma
concupiscência, um movimento centrípeto que seria preciso
depois neutralizar. O movimento inteiro de nossa vontade
gravita naturalmente ao redor do bem, e giramos na mesma
órbita quando queremos, natural ou conscientemente, que
esse movimento seja. Porque o movimento para o bem é a
bondade própria dessa forma de ser que é o apetite sob to-
das as suas formas. O movimento consciente e livre para o
bem conhecido em sua verdade é a bondade própria deste
apetite que é a vontade. Amar que o amor seja é, pois, amar
o bem, a saber, esse bem que é o amor do bem. É até amá-lo
duplamente, porque é não somente querer que o bem seja,
mas também que irradie segundo sua natureza própria ao
encontrar o amor do bem. O fato de que aqui se trate de
nosso amor, e portanto de nosso bem, não impede que o
amor de nosso amor seja objetivo, porque justamente por
nosso poder espiritual de amar podemos amar nosso pró-
prio ato como bem, graças ao poder de reflexão que possui

311 - S. Th., II-I, 25, 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 195


o ato espiritual. Podemos saber que nosso amor é um bem,
e podemos amá-lo objetivamente sob a razão de bem. Ao
amarmos nosso próprio amor, não deixamos de fazer uma
homenagem ao bem mesmo, ainda que este seja o bem que
está em nós, porque sabemos que somos esse modo de bem
que é o amor do bem segundo a verdade .“312

312 - Louis-B. Geiger, 115-116.


Capítulo VIII
A Causa Do Amor
VIII - A Causa do Amor

1. A distância do outro

1. Já é um lugar-comum afirmar que o homem moderno


tende a fazer da realidade que o cerca um objeto de domínio:
o mundo não seria algo consistente em si mesmo, aceitável
em atitude contemplativa, mas uma resistência que deve ser
vencida por um ilimitado trabalho de conquista. Sua atitude
pensante — como a cartesiana ou a kantiana — desconfia das
certezas oriundas do mundo extramental, impelida por uma
atenção ao eu à certeza da percepção interna.313 Essa atitude
teórica se completa com uma atitude prática, estimulada pelo
lucro e pelo controle racional. O amor ao mundo se transforma
em amor de si mesmo, movido não por uma atitude psicológi-
ca efêmera, mas por uma atitude radical e ontológica. Com o
lucro do mundo, ganha o homem seu próprio ser. Mas, como o
que ganha desse mundo não é a essência de suas coisas, mas as
determinações quantitativas ordenáveis, seu próprio ser ganho
se converte também numa relação precariamente assegurada.
O próprio olhar que um homem lança a outro homem torna-se
fria relação mecânica de domínio, desconfiança e competição.
O originário não é aqui o amor, mas o receio e o cálculo.
É verdade que na idade contemporânea não faltaram vo-
zes, como a de Scheler, para alertar para esse fenômeno mo-
derno, exigindo um contato imediato com as coisas mesmas,
feito pela inteligência e pela vontade,314 e reclamando, acima
da hostilidade generalizada nas relações com o mundo e com
os demais homens, as autênticas atitudes de assombro e de res-
peito, de entrega amorosa.
Mas a reação anti-solipsista de alguns contemporâneos sal-
tou justamente para o polo oposto, afirmando que a posição de
um eu exige a posição de outro eu, e isso tão radicalmente que
o outro eu vem a ser como que um “constitutivo formal” do

313 - “Um Eu solitário pugna por conseguir a companhia de um mundo e


de outros Eu; mas não encontra outro meio de consegui-lo senão criando-
os dentro de si” (J. Ortega y Gasset, “Kant. Reflexiones de centenario”,
Obras Completas, IV, 35).
314 - Max Scheler, Vom Ewigen im Menschen, I, 180.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 199


Juan Cruz Cruz

próprio eu. Não é que não exista um eu sem um tu: é que o tu


mesmo passa a fazer parte essencial do próprio eu. Não bastava
que o outro eu fosse um ser real: havia que fazê-lo, ademais,
fator essencial de meu eu.
Não seria suficiente então afirmar que, anteriormente às
certezas conscientes do eu sobre si mesmo e sobre as demais
coisas, se dão as certezas primigênias do contato com o tu,
prévias à atividade consciente e lógica. Um passo mais e se
afirmaria que tanto o eu como o tu são atualizações de um
nós originário ou pré-consciente. Por exemplo, algumas ex-
pressões de personalistas contemporâneos se aproximam dessa
valoração não só co-existencial mas co-essencial da realidade
do outro.
A filosofia clássica, representada entre outros por Santo
Tomás, manifesta uma decidida atitude de realismo, o qual ba-
seia na essência do outro eu real a resposta afetiva de aceitação
ou rejeição. E o filósofo deve reconhecer essa anterioridade
ontológica de um homem com respeito a outro homem. Sem
esse realismo do outro eu, tornar-se-ia impossível uma ontolo-
gia completa do amor.
2. Sem a realidade do outro, causante do amor, dilui-se
também a realidade do amor. Mas entre alguns modernos não
faltou a pergunta de se o outro homem se dá a mim imedia-
tamente. Sobressaltados pela suspeita de um dualismo antro-
pológico entre a alma e o corpo (ou, em termos mais carte-
sianos, entre a substância pensante e a substância extensa),
mantiveram a tese de que o mundo é inacessível à consciência
humana diretamente e optaram, para chegar ao outro homem,
pelo chamado “raciocínio analógico”, uma inferência causal
que começa advertindo a percepção que tenho de alguns mo-
vimentos que se dão num corpo exterior ao meu e a similitu-
de que mostram com os que eu faço para alcançar meus fins;
e termina concluindo que aqueles movimentos são levados a
efeito por um eu análogo ao meu. Recluído o eu na mente,
conceberá o corpo do outro como uma máquina semovente,
através da qual dificilmente se transluz o outro eu pensante, o
qual seria percebido mediante um raciocínio analógico, leva-

200 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

do a efeito sobre a soma puramente externa de movimentos e


gesticulações que do outro se deixam ver.
Com a antropologia contemporânea a questão mudou de
signo. O outro se dá a mim antes como “mensagem” que como
movimento corporal, antes como ser preocupado que como
ser que franze a testa. O outro se apresenta a nós de súbito; e
percebo em seu olhar o espírito amistoso ou hostil antes que
a cor de seus olhos. O outro nos manifesta sua realidade antes
que suas vivências. E, com sua realidade, os radicais dela.
Quando o outro “exibe” sua realidade para mim, a primeira
coisa que faz é lançar-se com ela em minha vida mais pró-
pria. O golpe inicial do outro em minha intimidade dispara
ou acende315 a afetividade, especialmente o primeiro elemento
desta: o amor.

2. O bem como causa especificativa do amor: fim e valor

Se no amor a tendência é “movida” pelo objeto, é preciso


esclarecer o tipo de moção que ela sofre, porque poderia pare-
cer que se trata da produzida por uma causalidade eficiente do
outro em mim; e, se assim fosse, uma tendência como a vonta-
de já não seria autora do movimento, ou seja, do amor mesmo:
a tendência não seria nada. Qual é a obra que o objeto realiza
sobre a tendência, subentendendo que o exercício do amor só
tem por causa eficiente essa tendência?
1. Seja qual fora o tipo de amor — amor de si ou amor
de outro, amor itinerante ou amor perfeito —, há duas séries
causais do amor.
a) Uma série provém do objeto, o qual exerce a causalidade
própria de objeto, como causa final e formal. Causa final é o as-

315 - Se quiséssemos usar neste contexto a nomenclatura clássica com res-


peito à “causa” do amor, teríamos de recordar o seguinte: sua causa formal
é o objeto, o bem; sua causa final interna é o próprio ato de amor; sua causa
final externa coincide com o objeto; sua causa material ou receptiva (onde
reside) é a faculdade apetitiva ou volitiva; e sua causa eficiente é o sujeito
mesmo, o amante.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 201


Juan Cruz Cruz

pecto objetivo do bem em si mesmo — e note-se que para que


o objeto bom exerça sua causalidade deve dar-se uma condição
necessária: ser conhecido pelo sujeito. Causa formal é a índole
amável do objeto, a qual é uma semelhança (similitudo): é o
bem em sentido formal e não só fundamental. O bem desdo-
bra, pois, sobre as tendências (apetite e vontade) uma dupla
suscitação objetiva: final e formal; porque, por um aspecto,
atrai para si a tendência, polarizando-a teleologicamente;316
por outro aspecto, informa o ato da tendência, conferindo-lhe
conveniência, conaturalidade: do ponto de vista ontológico,
tal causa informa o amante. Ambos os aspectos do bem ofe-
recem um ponto de encontro com a filosofia moderna, espe-
cialmente sob o lema dos “valores”. Pois, partindo de que o
motivo próprio da vontade é o bem, este apresenta um duplo
sentido, como fim e como valor: de um lado, como perfecti-
vidade317 referida a um sujeito que tende para ele ou pretende
possuí-lo; de outro lado, como perfeição ou acabamento, refe-
rido também a esse mesmo sujeito, mas expressando repouso
do ser em sua plenitude. “Sob o aspecto de valor, aparece à
maneira de uma qualidade, de uma ‘perfeição’ de que o objeto
bom está revestido e penetrado e que se comunica, por con-
tágio, ao querer que a propõe. É honesto querer o honesto; é
útil querer o útil. O próprio desta quase qualidade é tornar o
objeto digno de amor, de aprovação, de admiração, de desejo,
etc. Correspondem-lhe, pois, no sujeito, atos e estados de or-
dem afetiva. Como fim, o bem se refere ao impulso do sujeito
que tende para ele, esforçando-se por alcançá-lo ou realizá-
lo. O que lhe responde no sujeito é, com toda a precisão, o

316 - “O ato de amor tem a vontade por autora, mas com dependência pas-
siva do objeto que a seduz, a magnetiza ou a imanta enquanto é um bem.
Só este ato permite ao objeto fazer sentir ali seu influxo, que se requer
para a causalidade final. Enquanto esse ato é produzido pela vontade, é
causado também pelo fim. Uma fórmula parece reunir ao mesmo tempo
na simplicidade de um mesmo ato indivisível a ação da vontade e a do
objeto: a vontade respira o amor que o objeto lhe inspira ao aspirar a ele.
Esse objeto amado não dá à vontade o poder que ela tem por natureza de
pôr os atos. Deixa-lhe a iniciativa. Mas a impele a tê-lo: leva-a a exercê-lo”
(André Marc, Psicología reflexiva, II, 42).
317 - Para perfectividad, cf nota 68. [N. do T.]

202 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

que a psicologia inglesa chama conations. Apreender, projetar


o bem como fim é apreendê-lo, projetá-lo como ‘por fazer’,
‘por possuir’, como termo de uma busca e, em geral, de uma
atividade dirigida. O valor concerne, pois, à ordem da forma,
da especificação, entendida num sentido muito particular, di-
ferente em todo o caso da especificação que vem para o ato
do objeto mesmo, através da representação. O fim se situa, ao
menos principalmente, na ordem do exercício e da existência;
ele explica como a causa eficiente, mas no outro extremo, a
eclosão da ação. Brevemente, digamos com Maritain, no qual
nos inspiramos aqui, que o bem, sob o aspecto de valor, exerce
com respeito ao ato humano uma causalidade formal (extrín-
seca), enquanto sob o aspecto de fim exerce uma causalidade
que chamaremos simplesmente final ou, para tornar mais dis-
creta a tautologia, teleológica.”318
b) Outra série parte do sujeito e exerce causalidade como
agente ou eficiente e motor: nesta série encontram-se parcial-
mente todos os afetos da alma que, à sua maneira, podem pro-
vocar o amor.
2. Com respeito à série objetiva, que é a central e decisiva
— porque as tendências se especificam por seu objeto —, a
causa especificativa do amor é a final, em que devem levar-se
em conta dois aspectos: a própria causa em seu próprio ser de
causa (o ser real da coisa que é o fim, a bondade real do fim);
e sua condição absoluta e necessária, que é o conhecimento
do fim pelo agente. Uma coisa é a razão de causar, e outra a
condição de causar. Pois bem, a causa final do amor sensível
ou espiritual é o bem (sensível ou espiritual) tomado de modo
absoluto e simples, prescindindo-se — não positivamente, mas
de modo meramente negativo — de sua presença ou ausência,
de seu caráter presente ou futuro. O bem é o objeto próprio e
formal do amor e, portanto, causa especificativa sua. O peso
do objeto no amor é em forma de atração e sedução.319 O amor

318 - Joseph de Finance, Ensayo sobre el obrar humano, 58-59; Éthique Générale,
44. Ver também Jacques Maritain, La philosophie morale, 39-41.
319 - S. Th., I-I, 27, 1. Isso explica a precendência ontológica do amor sobre
o desejo. “O objeto”, diz Roland-Gosselin, “não se acha presente no seio da

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 203


Juan Cruz Cruz

pertence ao apetite e à vontade, que são potências passivas


ou receptivas porquanto seu objeto causa aspirativamente o
movimento nelas. Como o amor implica certa conaturalidade
ou complacência do amante com o amado, e como para cada
um é bom o que lhe é conatural e proporcionado, segue-se que
o bem é a causa própria do amor.320 Razão por que a linguagem
do amor não é a da efetividade ontológica, as palavras referidas
ao ser efetivo (“eu te amo porque tu existes”), mas a da ternura
ontológica, a linguagem referida ao bem (“eu te amo porque
tua existência é maravilhosa e me arrebata”).
Daí se depreende uma diferença fundamental entre vonta-
de e amor. Porque a vontade como faculdade pode ser do bem
e do mal; mas como ato de amar não pode ser senão do bem;
por sua vez, o que os medievais chamavam noluntas é vontade
do mal. Do mesmo modo, e no plano sensível, o apetite ime-
diato de aquisição pode ser do bem e do mal; mas o amor sen-
sível não pode ser senão do bem, porque só pelo amor sensível
o apetite imediato aquisitivo é do bem simplesmente como tal
(ut sic); pelo ódio é apetite do mal.
Mas o mal não pode ser causa positiva. Porque “o mal nun-
ca é amado senão sob o aspecto de bem: é bom só relativamen-
te, mas é captado como absolutamente bom. E, neste sentido,
um amor é mau enquanto tende ao que não é um bem abso-
lutamente. E assim o homem ama a iniquidade enquanto por
ela alcança algum bem, como o prazer, o dinheiro ou coisas
semelhantes”.321
Também por isso é impossível alguém odiar a si mesmo de
maneira substantiva (per se), “pois todo ser tende naturalmen-
te ao bem, e nada pode ser apetecido senão sob o aspecto de
bem, já que o mal é estranho à vontade. Amar a alguém é que-

vontade como um duplo dele, mas tal como o termo do movimento está
presente na partida do móvel pela atração que exerce e pela direção que
imprime. O amor, antes até de ser desejo, é transporte para um objeto real”
(M. D. Roland-Gosselin, “Le désir du bonheur et l’existence de Dieu”, Revue
des Sciences philosophiques et théologiques, 1924, 164).
320 - S. Th., I-I, 27, 1.
321 - S. Th., I-I, 27, 1 ad 1.

204 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

rer o bem para ele. Por conseguinte, é necessário que alguém


ame a si mesmo, e é impossível que, em sentido absoluto, al-
guém odeie a si mesmo”.322 Ninguém quer e obra para si o mal,
senão considerando-o como um bem, “pois mesmo os que se
suicidam consideram bom o morrer como término de alguma
miséria ou dor”.323
No entanto, de maneira incidental (per accidens) eu
posso odiar a mim mesmo; e isto de dois modos. “Primeiro,
por relação ao bem que quero para mim; pois às vezes o
que é apetecido como bom relativamente (secundum quid)
é mau absolutamente (simpliciter); e, segundo isto, posso
querer para mim incidentalmente o mal, o que é odiar-
me. Segundo, por parte de mim mesmo, para quem desejo
o bem; porque cada coisa consiste antes de tudo no mais
principal dela — por exemplo, diz-se que uma cidade faz o
que o rei faz, como se o rei fosse a cidade inteira; e o ho-
mem é sobretudo seu espírito (mens). Alguns, no entanto,
se crêem constituídos principalmente pelo que são segundo
a natureza corporal e sensitiva; e por isso se amam segun-
do o que creem que são, e odeiam o que verdadeiramente
são, querendo coisas contrárias à razão. Desses dois mo-
dos, quem ama a iniqüidade odeia não somente sua alma,
mas também a si mesmo.”324 Os que amam a si mesmos em
conformidade com a natureza sensível, à qual obedecem,
“não amam verdadeiramente a si mesmos segundo a natu-
reza racional, que determina que amemos para nós os bens
tocantes à perfeição da razão”.325
Enfim, causa do amor pode ser tanto o que é motivo de
amor (ratio diligendi) como o que é via para o amor. “O
bem é causa de amor no primeiro sentido, porque é amado
o que tem índole de bem. No segundo sentido, pode ser
causa de amor, por exemplo, a vista; pois bem, uma coisa

322 - S. Th., I-I, 29, 4.


323 - S. Th., I-I, 29, 4, ad 2.
324 - S. Th., I-I, 29, 4.
325 - S. Th., II-I, 25, 4 ad 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 205


Juan Cruz Cruz

não é amável por ser visível, mas porque mediante a visão


chegamos ao amor.”326
3. No amor, o tema do “outro” não deve ser confundido
com o tema do “bem” que para ele se quer. Tão decisiva é esta
distinção, que Santo Tomás reconhece uma prioridade ontoló-
gica do amor perfeito: o que é amado com esta forma de amor
é amado subjetivamente de modo quiescente e objetivamente
de modo absoluto e por si mesmo (simpliciter et secundum
se); enquanto o amado com amor imperfeito não é amado ob-
jetivamente de modo absoluto e por si mesmo, senão que é
amado por outra coisa,327 e subjetivamente de modo itineran-
te. Aplicam-se aqui à pessoa duas teses da metafísica geral: 1ª
o ente absoluto é o que tem ser em si mesmo, enquanto o ente
relativo é o que tem ser em outro; 2ª o bem que se converte
com o ente é o que absolutamente tem bondade, mas o que é
bem de outro é bom apenas relativamente. “O amor se subdi-
vide e se ordena como o ser mesmo e seus graus. Ao amor de
amizade, que é o amor por excelência, responde o grau de ser
supremo, que é em si e para si, e portanto absoluto. Ao amor
interior de concupiscência corresponde um grau de ser menor,
que está em si, mas não para si, e, portanto, é para outro e
essencialmente relativo. Como o ser que não é para si se refe-
re ao ser para si, igualmente o amor de concupiscência busca
em sua raiz o amor de amizade. Tudo é amável na medida em
que é ser. E, se o ser em si e por si não é mais que outro nome
do espírito, o amor parte do espírito para alcançar o espírito
[...]. Quaisquer que possam ser as manifestações sensíveis, se-
ria rebaixá-lo, degradá-lo, não ver nele o principal, a saber, o
espiritual, que é o que dá um sentido a tudo o mais. Sendo de
benevolência, pretende por definição um bem; é uma consa-
gração reflexiva. Amar a alguém com amizade não é usá-lo,
servir-se dele; é, pelo contrário, querer que ele seja o que é,
quer dizer, espírito, pessoa, que conserve seu valor, sua digni-

326 - S. Th., II-I, 26, 2, ad 3.


327 - S. Th., I-I, 26, 4.

206 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

dade, e até que os aumente.”328 De modo que amar algo para


que seja bem de outro provém de um amor relativo, enquanto
amar algo para que seja bem de si mesmo procede de um amor
absoluto. Desta distinção surge uma hierarquia do amor: pois o
amor relativo ou acidental se alimenta de um amor mais pro-
fundo: “O amor de bens úteis supõe sempre um amor perfeito,
o amor de um bem amado por si mesmo; e o amor perfeito por
um bem finito se alimenta em definitivo do amor de um bem
como tal, cujo termo verdadeiro é o Bem absoluto, que busca-
mos em todo amor sem saber”.329
Resumamos o dito acerca da série objetiva do amor. O bem,
como objeto próprio e formal do amor, exerce sobre este uma
causalidade final, porque a forma é o fim do agente e do mo-
vido: o objeto próprio e formal se comporta como um termo
a que tende a potência ou o ato; o bem pode ser considerado
como causal final, porque é fim. O bem também desenvolve
uma causalidade formal, porque se refere ao apetite e à von-
tade como a um ato que os informa; o bem, entitativamente
considerado, é perfeito, e o perfeito é forma ou ato primeiro.
Com respeito ao apetite e à vontade, que são potências pas-
sivas, o bem atua como um agente ativo ou motivante; mas
obra só enquanto é forma e fim: não age como algo que emi-
te individualmente, ut quod, uma ação (causa eficiente), mas
como um motivo, ut quo, que guia (causa formal extrínseca) o
sujeito, verdadeira causa eficiente.

3. O conhecimento como condição necessária do amor

a) Anterioridade principial do conhecimento

1. A causa universal de todo amor é sempre um bem co-


nhecido (pelos sentidos ou pela razão). Alguns místicos afir-
mavam que o amor pode dar-se sem conhecimento algum,

328 - André Marc, Psicología reflexiva, II, 48-49.


329 - Louis-B. Geiger, 62.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 207


Juan Cruz Cruz

porque o amor não surgiria da vontade, mas da essência mes-


ma da alma, de seu espiritual fundo (fundus). Tese similar de-
fendia modernamente Max Scheler, quando afirmava: “Antes
que ens cogitans ou que ens volens, o homem é ens amans.
A riqueza, as gradações, a diferenciação, a força de seu amor
circunscrevem a riqueza, a especificação de funções, a força
de seu possível espírito e de seu possível horizonte ao contato
com o universo”.330 Considerada em sentido operativo, esta
afirmação não seria sustentável para Santo Tomás; poderia sê-
lo se por amor se entendesse o “amor natural” que é próprio,
em sentido entitativo, de toda faculdade, incluída a intelectu-
al, pois a inteligência seria um amor natural da verdade, assim
como a vontade é originariamente um amor natural do bem.
Porque, segundo o Aquinate, a essência da alma não é imedia-
tamente operativa; e, ademais, nenhuma tendência humana
se desdobra sem um prévio conhecimento, do qual depende
imediata e essencialmente em seu obrar.
Pois bem, o conhecimento não é propriamente causa cons-
titutiva do amor, mas apenas condição necessária dele. Que
algo seja visto ou entendido como amável não significa já que
seja amado: o amor não é a conclusão de uma premissa nem
uma dedução lógica. Mas é somente pelo conhecimento que
um ser real adquire o aspecto intencional de objeto apetecível,
condição necessária para que a tendência se oriente realmen-
te a ele. Não há amor sem prévio conhecimento, ainda que

330 - Ordo Amoris, 130. Apesar de mover-se intelectualmente na órbita de


Scheler, afasta-se Hildebrand da tese do mestre: “A primeira afirmação
referente à prioridade do amor sobre a apreensão do valor se encontra, de
certa maneira, na concepção que Scheler tem do amor. Mas, assim como é
verdade que o amor nos faz ver os valores quando vamos ao encontro de
alguém com amor, e captamos nele valores que não tínhamos visto antes
quando estávamos diante dele com uma atitude indiferente, é falso, em
contrapartida, negar que o amor mesmo já implica uma apreensão de va-
lores e que responde essencialmente a esses valores ou é aceso por eles.
Trata-se de um processo de ação recíproca. Pressupõe-se uma captação do
valor para o surgimento do amor. Mas o amor nos capacita para uma nova
e mais profunda captação de valor [...]. Quando Romeu vê Julieta no baile
e seu coração arde de amor, então lhe é mostrada sua beleza, sua graça,
sua pureza e sua excelência; e só então se segue a resposta do amor. Mais
ainda, Romeu amava outra moça antes de entrar no baile dos Capuletos”
(Hildebrand, La esencia del amor, 57).

208 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

mínimo. Porque o bem é a causa do amor ao modo de objeto;


mas o bem não é causa da apetição senão quando é capta-
do, e, por isso mesmo, o amor requer uma captação do bem
amado. A “ratio boni” é a própria causa final do amor; mas só
enquanto conhecida é “ratio boni”, condição necessária para
que a tendência se mova para o objeto. “O apetite sensível
não tende à razão de apetibilidade, porque o apetite inferior
não se orienta nem à bondade mesma, nem à utilidade ou o
prazer, mas para uma coisa útil ou deleitável. A vontade, pelo
contrário, orienta-se primária e principalmente à bondade ou
à utilidade ou a qualquer outro aspecto deste gênero. Só se-
cundariamente se orienta a tal ou qual coisa, mas na medida
em que esta participa da razão mencionada. Tende assim, por
meio da apreensão disso comum, à coisa apetecível, na qual re-
conhece a presença do aspecto ou razão que busca.”331 Por isso
a visão corporal é o princípio do amor sensitivo; e igualmente
a captação da bondade ou da beleza espiritual é o princípio do
amor espiritual. Assim, o conhecimento é causa do amor pelo
mesmo motivo por que o é o bem, que não pode ser amado se
não é conhecido.332 Pois, como diz Pieper, “se o que ao final
chamamos ‘bom’ não o for realmente, por mais que opinemos,
tratar-se-á de uma ilusão, de um erro, de um sonho ou de uma
mania. E, neste caso, todo o amor é reduzido a um ilusionis-
mo de cegos movimentos instintivos, um truque da natureza,
como o chama Schopenhauer”.333
Deve-se advertir que o conhecimento que de modo ade-
quado é princípio condicionativo do amor não é o teórico, mas
o prático. Da perfeição do conhecimento prático depende a
intensidade do amor. O amor não se desdobra necessariamente
movido pelo conhecimento especulativo, por silogismos per-
feitos, dado que não é causado imediata e adequadamente por
ele; mas se desdobra necessariamente pelo conhecimento prá-
tico tanto em intensidade como em perfeição, porque de ma-

331 - De Ver., 25, 1.


332 - S. Th., I-I, 27, 2.
333 - J. Pieper, 92.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 209


Juan Cruz Cruz

neira imediata e adequada este influi no amor como condição


necessária. No conhecimento prático, o objeto captado pelo
entendimento se ordena à ação; no conhecimento teórico, o
entendimento não ordena o que capta à ação, mas só à con-
templação da verdade.334 Por isso os medievais diziam que o
entendimento prático é motivus, motor ou motivador, “não
porque exerça o movimento, mas porque dirige para o mo-
vimento, o que lhe compete pelo modo de sua captação”.335
Não há aqui contradição entre verdade entendida e bem queri-
do, porque “a verdade e o bem se incluem mutuamente, já que
a verdade é certo bem, ou do contrário não seria apetecível, e o
bem é de algum modo verdade, sob pena de não ser inteligível.
Depois, assim como o verdadeiro pode ser objeto da vontade sob
o aspecto de bom, ao modo como sucede quando alguém quer
conhecer a verdade, assim também o bom aplicável à ação é,
sob o aspecto de verdadeiro, objeto do entendimento prático.
Pois o entendimento prático conhece a verdade como o especu-
lativo, mas ordenando à ação a verdade conhecida”.336
2. Não se deve esquecer que a distinção entre apetite sensí-
vel e apetite intelectual se fundamenta na distinção entre dois
conhecimentos, o sensível e o intelectual. “O bem não é bem
porque é desejado: é desejado porque é bom. Não é amado ver-
dadeiramente como bem, seja qual for seu modo, absoluto ou
relativo, se o amor não recai sobre ele no que é em si mesmo.
Isto supõe que pode fazer-se presente, em sua própria natureza
de bem, para aquele que deve poder amá-lo como bem. Mas
esta presença primeira do bem em sua natureza mesma, que fará
possível um amor do bem em si mesmo, é por definição o co-
nhecimento intelectual do bem. Graças a este último, podemos
estar presentes não só fisicamente para os efeitos úteis do bem,
ou psicologicamente para esses efeitos que são reações afetivas,
mas para o bem mesmo em sua própria natureza de bem.”337

334 - S. Th., I, 79, 11.


335 - S. Th., I, 79, 11, ad 1.
336 - S. Th., I, 79, 11, ad 2.
337 - Louis-B. Geiger, 65.

210 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

3. De certo modo, ou relativamente, o amor precede ao


conhecimento. Alguém só busca uma coisa porque a ama, diz-
se. Há coisas que mesmo sem ser conhecidas perfeitamente
são buscadas, como as ciências, já que se fossem bem conheci-
das seriam possuídas e não seriam buscadas. Quererá isso dizer
que o conhecimento não é princípio condicionativo do amor?
Não, falando absolutamente. Quem busca a ciência não a
ignora completamente, mas de algum modo e em algum grau a
conhece de antemão, seja em geral, seja em algum efeito dela,
ou porque ouve falar de sua excelência.338
4. Há coisas que podem ser mais amadas que conhecidas.
O que não quer dizer que o conhecimento não seja princípio
condicionativo do amor. Com efeito, “algo é requerido para a
perfeição do conhecimento que não é exigido para a perfeição
do amor; o conhecimento pertence à razão, da qual é próprio
distinguir o que se encontra unido na realidade e reunir de
certo modo o que se encontra separado, comparando algumas
coisas com outras. E, por isso, para a perfeição do conhecimen-
to requer-se que o homem conheça singularmente tudo o que
há na coisa, como suas partes, virtualidades e propriedades. O
amor, em contrapartida, reside na faculdade apetitiva, que vê
a coisa como é em si; motivo por que basta para a perfeição do
amor que se ame a coisa segundo seja apreendida em si mesma.
Daí provém que uma coisa seja mais amada que conhecida,
porque pode ser amada perfeitamente ainda que não seja bem
conhecida, como se observa principalmente nas ciências, que
alguns amam por certo conhecimento geral que têm delas; v.g.,
porque sabem que a retórica é uma ciência pela qual o homem
pode persuadir, e isto é o que amam nela”.339
5. Pode-se objetar que, se o conhecimento fosse causa
do amor, não se poderia encontrar amor onde não houvesse
conhecimento, enquanto é fato que em todos os seres se en-
contra amor e nem em todos há conhecimento. Mas isto só é
verdade no caso do chamado amor natural — movimento da

338 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 1.


339 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 211


Juan Cruz Cruz

inclinação — que se acha em todas as coisas, o qual tem por


causa uma motivação inconsciente para o próprio ser,340 ainda
que consciente para o autor da natureza (e neste sentido se usa
a palavra amor de modo metafórico e impróprio).
6. É mais nobre amar que entender? À simples vista parece
que, quanto mais elevada for uma faculdade, tanto mais altas
serão suas virtualidades e operações. Sendo o entendimento
o reitor da vontade, talvez se pudesse pensar que Santo To-
más considera mais nobre entender que amar. Não se falou
à saciedade do “intelectualismo” tomista? Mas Santo Tomás
não é deste parecer e, naturalmente, está muito acima de qual-
quer dicotomia fácil entre intelectualismo e voluntarismo. “A
operação intelectual’, diz o Aquinate, “completa-se quando o
entendido está em quem entende; a superioridade da opera-
ção intelectual só há de ser considerada conforme a medida
do entendimento. Em contrapartida, a operação da vontade e
o ato de qualquer outra potência apetitiva se aperfeiçoam na
tendência do sujeito à coisa real que é seu termo, e assim sua
superioridade é tomada da realidade que é objeto da operação.
Pois bem, as coisas inferiores ao espírito estão de modo mais
nobre nele que em si mesmas; porque o que está em outro se
adapta a seu modo de ser. Mas as coisas que estão acima do
espírito estão de modo mais nobre em si mesmas que nele.
Por conseguinte, o conhecimento das coisas que estão abaixo
de nós é mais nobre que seu amor. Mas nas coisas que nos
transcendem é preferível o amor ao conhecimento”.341 E entre
o que nos transcende como um absoluto real, ainda que não
último, está a pessoa humana.

b) A objetividade do amor

O amor ou é objetivo ou não é amor. Objetivo significa


que se dirige à realidade mesma, e não a uma aparência ou a

340 - S. Th., I-I, 27, 2, ad 3.


341 - S. Th., II-I, 23, 7, ad 1. I, 82, 3; De Veritate, 22, 11; Contra Gentes, 3, 26.

212 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

um traço superficial das coisas. O outro não é uma miragem.


A inteligência implica, por sua mesma natureza, uma ordem
ao verdadeiro; o amor espiritual, por sua própria essência, é
consonância com o bem verdadeiro e real.
Não se interpreta corretamente o Aquinate quando se diz
que a faculdade que alcança a realidade não é propriamente
o conhecimento, mas a vontade. Os que tal coisa afirmam
desconhecem que a imanência do conhecimento não equi-
vale ao subjetivismo ou ao idealismo. Também a inteligên-
cia alcança o real, ainda que sob a forma intencional que as
coisas mantêm na mente. A vontade alcança a realidade de
seu objeto pelo ato mesmo de amor, sem outro intermediário,
enquanto a inteligência alcança a essência da coisa por meio
de um produto imanente, o conceito, através do qual se co-
nhece a realidade mesma.
Pois bem, para que haja objetividade no amor espiritual,
é preciso que antes haja objetividade no conhecimento inte-
lectual, do qual depende. “O que é objeto do apetite, no plano
dos impulsos sensíveis, é julgado bom porque é desejado. Mas
o que é objeto para a vontade é desejado porque é bom em si
mesmo. Porque o princípio de tal vontade é a inteligência,
ou seja, o ato do intelecto que de algum modo é movido pelo
inteligível.”342 E o inteligível é a coisa mesma extramental. O
apetite sensível busca o bem porque este produz prazer para os
sentidos; a vontade o busca primariamente porque é bem e não
principalmente porque é desejável ou prazeroso.343 “O conhe-
cimento sensível não alcança a razão comum de bem; alcan-
ça somente um bem particular, que é o deleitável. Assim, no
plano do apetite sensível, tal como se encontra nos animais,
as operações são buscadas por causa do prazer. Ao contrário, a
inteligência capta a razão universal de bem, cuja obtenção é
seguida pelo gozo. Assim, ela busca o bem com anterioridade
de princípio [principalius] ao gozo.”344 E jamais se eclipsa com-

342 - In Met., 12, 7, 2522.


343 - C. G., 1, 44.
344 - S. Th., I-I, 4, 2 ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 213


Juan Cruz Cruz

pletamente quando nos deixamos guiar por nossas paixões ou


inclinações sensíveis e não pela objetividade do amor.
Essa objetividade do amor não é relação de semelhança
formal, como a do conceito e de seu objeto, nem conformi-
dade de um juízo com a realidade, mas presença real para o
bem que o amor tem; graças a esta presença real, o bem é vi-
sualizado e alcançado formalmente como bem, e não mate-
rialmente, tão-só pelos efeitos que dele emanam. Portanto,
no amor espiritual convergem duas presenças objetivas para
o bem, inseparavelmente unidas, e que se requerem a uma à
outra: presença no âmbito do conhecimento intelectual, ou
seja, conhecimento da natureza do bem; e presença objetiva
no domínio do amor, necessariamente fundada na precedente
e ininteligível sem ela.
A linguagem do amor ou é originariamente ontológica (e
teleológica), ou não é amor. “O amor se situa no nível do ser
e expressa uma complementaridade no ser mesmo entre o su-
jeito e o bem, diversa segundo os modos do ser. A objetividade
do amor não é, pois, outra coisa senão fruto desse poder de re-
flexão completa sobre seu ser que têm os seres espirituais; esse
poder não é uma introspecção trivial, mas a aplicação direta
ou indireta, feita nos atos do sujeito e em suas estruturas on-
tológicas, da faculdade de compreender e de captar a natureza
do que é. Ela é função deste recolhimento pelo qual podemos
estar presentes aos nossos atos, aos objetos que os especificam,
e compreender com a natureza de uns e de outros sua mútua
coordenação no plano de nosso próprio ser.”345
Poderia dar-se então um amor “objetivo” sem um prévio
conhecimento “objetivo”? Suponhamos que o conhecimen-
to intelectual seja negado — como fazem as teses nomi-
nalistas — ou reduzido à captação de conceitos imanentes
ao sujeito — como faz o subjetivismo idealista. Suponha-
mos ademais que, ao operar essa negação ou essa redução,
ficando sem a fonte do conhecimento intelectual, alguém
não queira renunciar ao realismo; então acabaria lançando

345 - Louis-B. Geiger, 79.

214 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

sobre o amor o peso da objetividade, responsabilizando-o


pela doação real das coisas, quando em verdade o amor é
então, sem inteligência prévia, uma energia cega, um apeti-
te análogo a uma força da natureza. “Esse indivíduo poderia
fazer duas coisas plenamente justificadas: ou entregar-se ao
capricho de seu humor sob pretexto de sinceridade e liber-
dade; ou esforçar-se por dominá-lo pelos preceitos da razão
ou por purificá-lo com uma luta sem trégua, com uma ascese
rigorosa e com o sacrifício de si.”346 Nem num caso nem no
outro, o amor seria objetivo, realista. Talvez a “teoria ex-
tática” do amor, indicada por Rousselot, careça de um guia
objetivo ou intelectual do amor.
Afirmar a objetividade do amor espiritual é afirmar a uni-
dade profunda que, em nós, liga o amor ao conhecimento.
Mediante o conhecimento podemos captar a natureza
do bem e a natureza de nosso amor; sua objetividade consis-
te na revelação do que é o bem e do que somos nós diante
do bem, do ser do bem mesmo e de nosso ser, que está orde-
nado ao bem.
Só por este conhecimento intelectual é que o amor es-
piritual é auto-explicativo — ou se explica por si mesmo.
Não são auto-explicativas as formas de amor sensível e de
apetite natural, as quais se explicam por sua vez pelo co-
nhecimento que podemos ter delas. Quando alguém não é
capaz de atravessar a zona das emoções, dos sentimentos ou
das simples sensações pelas quais psicologicamente o amor
pode manifestar-se para a consciência, tende a imaginar
que “amar é tão-somente a arte de variar ou de manter essas
emoções e sua expressão; quando em verdade é deter-se em
certas manifestações do amor, que não são todo o amor”.347

346 - Louis-B. Geiger, 77.


347 - Louis-B. Geiger, 78.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 215


Juan Cruz Cruz

4. A semelhança como raiz do amor

a) A semelhança do amado com o amante

O bem dá essencialmente conveniência, conaturalidade,


proporção, aptidão, consonância entre o amante e o amado: essa
conveniência equivale a certa unidade de forma ou perfeição. Por
isso, o bem não só é causa final do amor, mas também, e prio-
ritariamente, causa formal. A proporção ou aptidão entre o
amante e o amado se chama similitudo, semelhança, a qual não
é outra coisa que a conveniência ou comunicação na forma.348
A esta comunidade pôde referir-se Aristóteles quando definia
assim o amor de amizade: “   ”.349
Não talvez apenas uma convivência em comunidade de gos-
tos e ocupações, mas, ademais, uma semelhança na forma.350
Na medida em que o bem tem perfeição e semelhança com o
amante, é causa formal do amor. Pois a convivência é consecu-
tiva ao amor de amizade e não pode constituir seu fundamen-
to.351 Se no amor cabe distinguir um duplo elemento, a pessoa
amada (quod) e o bem querido para ela (cui), ambos supõem
em sua complexidade uma só razão de amar que explica a uni-
dade do movimento amoroso: essa razão de amar, motivo for-
mal do amor, é a semelhança na forma.
Alguns têm dificuldade para articular conceitualmente a
noção de “similitudo”, semelhança, na ontologia do amor.352

348 - III Sent., d. 27, q. 1, ad 3; De Hebdom., lect. 2; Ethic., 8, lect. 1.


349 - Ethic., Q, 14, 1161 b 11.
350 - H.-D. Simonin, “Autour de la solution thomiste du problème de
l’amour”, Archives d’histoire doutrinale et littéraire du Moyen Âge, 6, 1931, 174-
274; Bulletin Thomiste, 3, 1930, 75-79.
351 - R. Egenter, Gottesfreundschaft. Die Lehre von der Gottesfreundschaft in der
Scholastik und Mystik des 12 und 13 Jahrhunderts, 60.
352 - P. Simonin defendia (op. cit., 178, 197-198) que, nas primeiras obras
de Santo Tomás predomina uma terminologia alusiva à índole estática do
amor (v. g., nos Comentários às Sentenças encontram-se termos de aparente
estaticidade, como formatio, informatio, transformatio), enquanto nas obras
de maturidade ele propõe termos em consonância com um dinamismo do
amor (na Suma aparecem termos que denotam dinamicidade, como con-
venientia, inclinatio, proportio, coaptatio, aptitudo, connaturalitas, consonantia,
complacentia). Vários autores, como André Marc e V. Ferrari, aderiram a

216 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

Simonin e Marc afirmam que o Aquinate, no curso de suas


investigações sobre o amor, começa sublinhando que o amor é
posse da “similitudo”, para ulteriormente afirmar que é adapta-
ção, “adaptatio” ou “coaptatio”, do sujeito amante pelo objeto
amado. “No início”, diz Marc, “ele concebe o amor como a
recepção, a posse pelo espírito da forma do objeto amado, tal
como o ato intelectual supõe recepção e posse pelo espírito da
forma inteligível do objeto conhecido. A atividade intelectual
e a vida afetiva, ao menos em seu princípio, que é o amor, são
concebidas sob um mesmo tipo estático e formal. A mesma
coisa que expressa a informação do entendimento (informatio
intellectus) expressa a informação, a transformação do apetite
(informatio appetitus). Posteriormente, nas obras seguintes, o
amor, enquanto está na origem de todo movimento afetivo,
adquire todo o seu realce. Já não resta vestígio da posse de
uma forma do ser amado, imanente no ser amante. É o pri-
meiro desmoronamento afetivo da faculdade em face de seu
objeto. O que esta potência recebe já não é uma ‘semelhança’,
mas uma adaptação atual, uma proporção ativa com o objeto,
o exercício determinado de sua tendência nativa. O amor se
converte em empresa ativa do objeto e ao mesmo tempo em
reação original da vontade. Enquanto é diferente da inteligên-
cia, já não possui ‘inteligivelmente’ o objeto, mas se orienta e
se inclina para ele.”353
Embora efetivamente o Aquinate sublinhe em suas primei-
ras obras a idéia de semelhança, jamais abandona esta noção,

essa tese. Outros autores, como Tomás de la Cruz e José M. Sánchez Ruiz,
são da opinião, a meu ver acertada, de que não existem duas concepções
incompatíveis, dado que nos Comentários às Sentenças já se encontra subs-
tancialmente o material da Suma. O que acontece na terminologia da Suma
é que o Aquinate ganha em precisão, mas sem abandonar os pontos de
vista anteriores: poder-se-ia falar, isto sim, de uma progressiva clarificação
do conceito de amor. Por exemplo, já In Sent., II, d. 27, q. 1, a. 1 ad 2 e a. 3 ad
2 ele explica o amor de uma perspectiva dinâmica, como vis, virtus, ação
transformante. E na Suma reaparecem os mesmos termos (I-I, 25, 2 e 3) que
usara no Comentário às Sentenças. Ao longo de sua produção intelectual, o
Aquinate defendeu a tese de que o amor não é o movimento do apetite que
tende a seu objeto (isto seria o desejo), mas a imutação que sofre o apetite
pelo apetecível e pela complacência neste.
353 - André Marc, Psicología reflexiva, II, 38-39.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 217


Juan Cruz Cruz

considerando-a como raiz do amor. E tampouco é exato dizer


que a “informatio” do bem sobre o apetite seja “inteligível”, na
mesma linha do ato de conhecimento. Alguma semelhança,
naturalmente, há: a da objetivação. Porque o ato de querer é,
como o de conhecer, uma constituição ativa de seu objeto, já
que o sujeito volente dá a si mesmo a objetividade específica
de seu objeto: “É preciso ter presente: 1º, que ao querido não
é possível dar-me seu ser-querido-por-mim, porque ele não o
tem (seu ser-querido-por-mim não é nada nele); 2º, que ao
dar-me eu seu querê-lo não ponho sua apetibilidade (em todo
o caso, pô-la-ia ao julgá-la; e, ainda assim, é necessário que
haja alguma apetibilidade no julgado), de forma que o que
ponho é, simplesmente, seu ser-querido-por-mim, que é coisa
minha; 3ª, que o puro fato de pôr essa objetividade formal do
querido é, de si, uma atividade objetivante, não uma atividade
objetivada à maneira como pode ser o querer (como algo por
sua vez querido), pois até os atos do querer-querer, que são os
atos da liberdade, não são estritamente objetivados”.354 Segue-
se então, do ponto de vista causal, que o querer supõe sempre
uma unidade entre o ser volente e o querido, “a saber, uma
conveniência entre eles, dada ao menos como uma conatu-
ralidade e de tal modo que, conquanto não seja formalmente
a volição, constitua, não obstante, uma imprescindível con-
dição dela e algo que se mantenha em seu sujeito enquanto
este realiza o próprio ato”.355 Pois bem, a intencionalidade do
querer não é, nem exige, uma posse do objeto — como a in-
tencionalidade cognoscitiva —, embora seja preciso que tal
objeto seja imaterialmente possuído, pois nada é querido se
não é conhecido. Mas o que se quer através do conhecimento
é querido “enquanto formalmente conveniente para o sujeito
de sua volição. Quando ambos os seres são em verdade um só
ser, a conveniência reside justamente numa identidade. Em
contrapartida, se realmente são diferentes, sua conveniência
só pode consistir em certa ‘conaturalidade’ entre os dois. Por-

354 - Antonio Millán-Puelles, La estructura de la subjetividad, 206.


355 - Antonio Millán-Puelles, La estructura de la subjetividad, 215.

218 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

tanto, quando o querer é um acontecimento em seu sujeito, é


preciso que neste se dê também como acontecimento essa co-
naturalidade com o querido; quer dizer, é preciso que ao sujeito
a quem sucede tal volição suceda também estar conaturalizado
com aquilo que está como objeto dela. Tal sujeito quer então o
que quer não por virtude de uma conaturalidade qualquer com
seu objeto, mas por virtude de ter um ato de conaturalizar-se
com ele, que é simultâneo à respectiva volição. Tais atos são
realmente diferentes. Por mais ligada que esteja a um ato de
querer, a conaturalização de um ser com outro não é a tendên-
cia ativa posta pela objetividade do querido enquanto tal, mas
tão-só um acontecimento formalmente passivo em seu sujeito
e que reside em este ficar “coaptado” ou “adaptado” à forma do
ser de um ser diferente”.356
O primeiro influxo que exerce o bem como objeto especifica-
tivo do amor consiste em informar o próprio ato do apetite (ou da
vontade), provocando uma conveniência e proporção essencial
entre o amante e o amado, um concerto ou unidade de forma —
semelhança — entre os dois. O bem informa — ou é causa formal
do amor — enquanto aparece como perfeito e semelhante com
respeito ao amante. A semelhança do amado com o amante é a
raiz do amor. Raiz não quer dizer causa final, mas formal.
1. Por um lado, esta raiz — convém notá-lo — não é a seme-
lhança do amante com o amado, mas a do amado com o amante:
o apetecível e amável é um bem para o amante, algo que lhe é
adequado e conveniente. A tendência do amante ao amado se
orienta ao que lhe é semelhante e conveniente. Só enquanto se-
melhante o bem é causa formal e especificativa do amor. O amor
é entre semelhantes. E, quanto maior a semelhança, mais alto o
amor. A semelhança do amado com o amante é de si causa formal
do amor na ordem da especificação: na medida em que o bem
ostenta um aspecto de semelhança com o amante, é causa formal
do amor. Ninguém ama senão aquilo que lhe é semelhante.357

356 - Antonio Millán-Puelles, La estructura de la subjetividad, 213.


357 - O relato do Gênesis sobre a criação da mulher é um exemplo eloqüente
da função da semelhança no amor: “Disse o Senhor Deus: não é bom que

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 219


Juan Cruz Cruz

2. Por outro lado, e no que diz respeito à constituição e


função de tal forma, Tomás de Aquino afirma que à forma res-
ponde a verdade, enquanto ao fim responde o bem. Portanto,
a forma tem seu mais alto grau de expressão no conhecimento;
de modo que a semelhança ou assimilação tem, enquanto é
causa do amor, uma correspondência necessária e íntima com
o conhecimento.

b) Semelhança perfeita e imperfeita. O amor perfeito ou


quiescente

A semelhança que é causa do amor pode ser entendida de


duas maneiras: “1ª quando os dois semelhantes possuem a mes-
ma coisa em ato, como, por exemplo, a brancura, e se dizem
semelhantes em razão dela; 2ª quando um tem em potência e
com certa inclinação a algo o que o outro possui em ato; por
exemplo, o corpo pesado que se encontra fora de seu lugar tem
semelhança com o corpo pesado situado em seu lugar próprio;
ou, também, a potência tem semelhança com o ato, dado que
na mesma potência está de certo modo o ato”.358 Isso quer di-
zer que há dois tipos de semelhança: a perfeita e a imperfei-
ta.359 A semelhança perfeita é uma conveniência que mostra
três caracteres: primeiro, é conveniência de dois seres numa
mesma forma; segundo, é conveniência num mesmo elemento
essencial ou categorial desta forma; terceiro, é conveniência
no mesmo grau entitativo dela; ou seja, está em ato por ambos
os lados, v. g., dois homens que possuem a sabedoria em ato

o homem esteja só: façamos-lhe um adjutório que lhe seja semelhante [...].
Mandou, pois, o Senhor um profundo sono a Adão; e, enquanto ele estava
dormindo, tirou uma de suas costelas, e a encheu de carne; e fez o Senhor
da costela que tirou de Adão uma mulher, e a levou a Adão. E disse Adão
cheio de entusiasmo: Eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne de
minha carne; ela se chamará virago, porque do varão foi tomada. Por isso
deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois
numa só carne” (Gen., 2, 18, 21-24).
358 - S. Th., I-I, 27, 3.
359 - Santiago Ramírez, De passionibus animae, 116-117.

220 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

são perfeitamente semelhantes, máxime se a têm no mesmo


grau ou perfeição de atualidade. A semelhança imperfeita é a
conveniência de dois seres numa mesma forma, conveniência
ademais no mesmo elemento essencial ou categorial desta for-
ma, mas não em seu mesmo modo ou grau entitativo, porque,
por exemplo, de um lado está em ato, mas de outro lado está
em potência ou, ao menos, em ato menos perfeito e completo:
v. g., são semelhantes em sabedoria o sábio em ato e o homem
engenhoso sem estudo.
1. O primeiro modo de semelhança produz o amor per-
feito, “dado que, pelo fato mesmo de serem semelhantes dois
seres, por terem de certo modo uma só forma, são como um só
naquela forma, à maneira como dois homens são um na espé-
cie de humanidade, e duas coisas brancas na brancura, e por
isso o afeto do amante se dirige ao amado como a si mesmo,
e para ele quer o bem como para si mesmo”.360 Nisso reside o
amor íntimo perfeito, o qual consiste em que, por exemplo,
o amigo seja amado como o próprio amante ama a si mesmo,
pois cada um — por sua identidade ontológica ou semelhan-
ça substancial consigo mesmo — ama a si mesmo com amor
natural perfeito, que é amor íntimo. Quando o amigo tem em
ato e no mesmo grau de perfeição a mesma forma que é causa
do amor — e tal forma não pode ser outra senão a intimidade
expressiva do ser pessoal —, então o amor dimana tanto de
um como de outro, porque ambos são idênticos nessa forma.
Assim, a semelhança perfeita do amante com o amado é causa
do amor perfeito e quiescente, que é o amor íntimo.
2. A semelhança imperfeita causa o amor itinerante ou
imperfeito, porque amar para si o ato de outro é amar mais
a si mesmo que ao outro, e nisso consiste o amor imperfei-
to. Quando o amante não tem em ato a forma ou perfeição
do amado, apetece naturalmente para si mesmo essa forma
e esse ato, e portanto ama mais a si mesmo que a esse ato
ou perfeição. O amor imperfeito só é amizade no útil ou no
deleitável, não no honesto, no concernente à perfeição da

360 - S. Th., I-I, 27, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 221


Juan Cruz Cruz

pessoa; porque cada ser existente em potência, enquanto tal,


tende naturalmente a seu ato e, se possui sensibilidade e co-
nhecimento, se deleita — impulsiva ou volitivamente — em
sua consecução. A semelhança imperfeita do amante com
o amado é causa do amor imperfeito ou itinerante, que foi
chamado de concupiscência. Neste amor, o amante propria-
mente ama a si mesmo ao querer aquele bem que responde à
sua aspiração. O fato é que todo homem ama a si mesmo mais
que a qualquer outro, porquanto tem consigo mesmo unidade
substancial, enquanto com os demais não tem unidade senão
na semelhança de determinada forma participada; “daí que,
quando por esta semelhança [que não é de intimidade para
intimidade] brota um impedimento para a consecução do bem
que ele ama, torna-se-lhe odioso seu semelhante, não como
semelhante, mas como obstáculo para seu bem próprio. Por
isso diziam os antigos que ‘os oleiros brigam entre si’, já que
naturalmente se obstaculizam no lucro; e por isso também se
suscitam pendências entre os soberbos, porque usurpam mu-
tuamente a superioridade respectiva que ambicionam”.361

c) A dessemelhança, causa incidental do amor

Embora o amor seja entre semelhantes, e embora quanto


maior for a semelhança mais alto será o amor, pode a desse-
melhança ser causa de amor, mas só incidentalmente (per ac-
cidens), não de modo direto e absoluto (per se). Esse amor, é
claro, só pode ser imperfeito. Por acaso o homem ama sempre
em outro o que ele mesmo tem ou quereria ter? Não é freqüen-
te alguém amar em outro o que ele mesmo não tem? Isso não
sucederia se a semelhança fosse, em todos os aspectos, cau-
sa própria do amor. A multiplicidade de virtualidades que há
em cada um é a origem de os homens poderem ser ao mesmo
tempo semelhantes e dessemelhantes, segundo os aspectos ou
perfeições que se olhem. Com freqüência um amor influi em

361 - S. Th., I-I, 27, 3.

222 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

outro, quer para potenciá-lo, quer para impedi-lo. Daí que in-
cidentalmente a dessemelhança possa ser causa de meu amor
(imperfeito), enquanto a semelhança (que não é de intimidade
para intimidade) pode provocar-me ódio. Precisamente por-
que o que eu estimo é aquilo que não possuo (a dessemelhan-
ça), mas que o outro tem, posso acabar invejando ou odiando
o próximo. Em verdade, o fato mesmo de amar em outro o que
não se tem mostra uma semelhança segundo certa proporciona-
lidade ou analogia; “pois existe proporção entre a perfeição que
é amada em outro sujeito e este sujeito que a possui, e entre um
sujeito e a perfeição que ele ama em si mesmo. Assim, que um
bom cantor ame um bom escritor acontece porque se estabelece
uma semelhança de proporção na medida em que um e outro têm
o que convém a cada um segundo sua arte”.362
Vale a pena transcrever um longo parágrafo em que o
Aquinate matiza esta mesma doutrina da dessemelhança
como causa do amor (imperfeito). “A raiz do amor, falando
propriamente (per se), é a semelhança do amado com o aman-
te, porque assim lhe é um bem que lhe convém. Mas sucede
incidentalmente (per accidens) que a dessemelhança é causa
de amor, e a semelhança causa de ódio, e isso de três maneiras.
Primeira, quando o afeto do amante não recai nele mesmo,
nem descansa em sua própria condição ou em outra proprie-
dade que tenha, como quando alguém odeia algo em si mes-
mo, e então ama aquilo mesmo que lhe é dessemelhante neste
ponto, já que, pelo fato mesmo de lhe ser dessemelhante em
condição, se faz semelhante em seu afeto; e, pelo contrário,
odeia o que se assemelha a ele mesmo e não se assemelha em
seu afeto. Segunda, quando alguém, pela mesma semelhança,
impede que o amante goze da coisa amada, e isto sucede com
todas as coisas que não podem ser possuídas juntamente por
muitos, como são as temporais; e, assim, o que ama ganhar
com uma coisa ou deleitar-se nela é impedido no gozo da coisa
amada por outro que quer igualmente apropriar-se dela; e daí
nasce a zelotipia, que não tolera o consórcio na coisa amada; e

362 - S. Th., I-I, 27, 3, ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 223


Juan Cruz Cruz

a inveja, enquanto o bem de outro é considerado impedimen-


to do bem próprio. Terceira, enquanto uma dessemelhança
prévia faz que seja experimentado (percipi) um amor subse-
guinte. Por exemplo, percebemos que o sentido se move e
que esse movimento cessa após a coisa sensível se ter feito
forma daquele que sente; por isso, aquelas coisas a que nos
acostumamos não as experimentamos, como claramente su-
cede aos carpinteiros com o barulho dos martelos, e por isso
o amor é mais experimentado quando o afeto se transforma
de novo pelo amor ao objeto. E por isso também, quando al-
guém não tem presente seu amado, mais arde e se consome
por causa do amado, enquanto experimenta mais o amor;
ainda que na presença do amado não seja o amor menor,
mas menos percebido.”363
Em verdade, cada homem ama aquilo de que necessita,
ainda que não o tenha; assim, o doente ama a saúde, e o pobre
as riquezas. Mas, enquanto delas necessita e carece, há nele
dessemelhança com respeito a elas. Em síntese: de modo ab-
soluto, só a semelhança é causa do amor. Pois quem ama aqui-
lo de que está necessitado tem semelhança com o objeto que
ama, assim como o que está em potência tem semelhança com
o ato respectivo.364

d) A índole absoluta do outro e o amor perfeito

Ficou dito que o outro há de ser amado por si mesmo, por


ser pessoa, e acima das coisas que o rodeiam e acima tam-
bém de nossa utilidade e prazer. Como a preposição “por”
indica causa, em que gênero de causa há de ser a pessoa
humana amada por si mesma? As coisas são amadas pelas
pessoas. Pois bem, a pessoa humana não é totalmente in-
causada, nem carece de causa alguma de que derive: ela não
é seu próprio ser nem sua própria bondade, nem a bondade

363 - Sent., 3, d. 27, q. I, 1, ad 3.


364 - S. Th., I-I, 27, 3, ad 3.

224 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

mesma por essência. No amor que se professa às pessoas hu-


manas por si mesmas, há de estar implicada, com respeito
a elas, uma causa ulterior ou anterior, na ordem eficiente,
final e formal. Na ordem eficiente, porque a bondade da
pessoa humana deriva de um princípio anterior: não é ela
mesma princípio primeiro e fontal de toda a sua bondade.
Na ordem final, porque sua bondade se ordena metafisica-
mente, como meio a fim, a uma bondade ulterior suprema,
pois a pessoa humana não é o primeiro princípio de todas
as coisas. E, na ordem formal, porque a bondade da pessoa
humana não lhe é substancial e congênita, mas metafisica-
mente acidental, informada e intrinsecamente aperfeiçoada
por outro para ser boa. A absolutidade da pessoa humana
deve ser entendida no contexto da criação, pela qual de-
pende exemplarmente de uma bondade superior e mais per-
feita, arquétipo de todas as demais.

5. Hierarquização das respostas afetivas

a) Precedência ontológica do amor

1. Há uma ordem de precedência entre as respostas afetivas,


tanto no que respeita à índole ontológica dos objetos — o bem
e o mal — como no que se refere à função do bem mesmo.
a) O bem e o mal são o objeto absoluto do apetite imediato
de aquisição, sendo o bem naturalmente anterior ao mal, por
ser este privação de bem. Portanto, as respostas afetivas cujo
objeto é o bem são naturalmente anteriores às respostas afeti-
vas cujo objeto é o mal e que lhe são respectivamente opostas,
pois o buscar o bem é causa do rejeitar o mal, que lhe é oposto.
O primeiro movimento da vontade ou do apetite, quer dizer, a
primeira resposta afetiva, é o amor. O ato da vontade, tal como
o de qualquer apetite, orienta-se ao bem e ao mal como a obje-
tos próprios. 1º Por um lado, o bem é o objeto principal e por
si, enquanto o mal é objeto secundário e por outro, enquanto
se opõe ao bem. Portanto, as respostas afetivas da vontade e

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 225


Juan Cruz Cruz

do apetite que se referem ao bem precedem naturalmente às


que têm por objeto o mal. Sempre o que é por si precede ao
que é por outro: o amor precede ao ódio e a alegria à tristeza.365
2º Por outro lado, o mais comum é naturalmente o primeiro, e
por isso o próprio entendimento se refere antes ao verdadeiro
em geral que às verdades particulares. E, conquanto haja cer-
tos atos tendenciais — ou respostas afetivas — da vontade e
do apetite que se referem ao bem sob alguma condição especial
—v. g., a alegria e o prazer ao bem presente, o desejo e a espe-
rança ao bem ausente —, o objeto do amor, no entanto, é o
bem em geral, possuído (presente) ou não possuído (ausente).
O amor é naturalmente o primeiro ato, a primeira resposta
afetiva, da vontade e do apetite.366
b) Também com respeito ao bem mesmo, tem o movimen-
to tendencial determinada ordem: o movimento começa pelo
amor, prossegue com o desejo e termina na esperança; e, com
respeito ao mal, começa no ódio, passa à aversão e termina
no temor.367 O amor é o pressuposto e a raiz de todas as outras
respostas afetivas. E por isso — quanto aos afetos imediatos
chamados ódio, desejo, gozo, alegria e tristeza — ninguém de-
seja senão o bem que ama, nem goza senão no bem amado,
nem odeia senão o oposto do amado, nem se entristece senão
com o mal que suplanta o bem: todas essas respostas afetivas,
enquanto assentadas na vontade ou no apetite, se referem ao
amor como a seu primeiro princípio.368

b) Causas subliminares do amor

1. No que se refere à série subjetiva dos demais afetos que,


como causas eficientes, podem provocar o amor, deve-se le-
var em conta que toda resposta afetiva do sujeito pressupõe

365 - S. Th., I, 20, 1.


366 - S. Th., I, 20, 1.
367 - S. Th., I-II, 25, 4.
368 - S. Th., I, 20, 1.

226 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

o amor, porquanto essa resposta implica ou movimento para


uma coisa ou descanso nela; “e todo movimento para uma coi-
sa ou o descanso em sua posse se baseia previamente em certa
conaturalidade ou proporção (coaptatione), a qual é própria
da essência do amor. Depois, é impossível que qualquer outro
afeto do sujeito seja causa em universal de todo amor”.369 Se
fosse causa, teria de operar sob o limite de outro amor abar-
cador: seria causa subliminar, não em sentido psicológico,
mas ontológico.
E, assim, determinado afeto pode ser causa de determinado
amor, assim como um bem é causa de outro:370 um afeto pode
causar o amor, já diretamente, como no caso de um amor que
se segue de uma série de afetos; já indiretamente, como no
caso da redundância de afetos produzida dentro de uma mesma
série ou por uma série em outra.
Um exemplo de influxo direto, temo-lo no caso do que
é amado em razão do prazer ou gozo que provoca: o gozo é
aqui a causa do amor. Porque, “quando se ama alguma coisa
por prazer, tal amor é efeito evidente deste prazer. Pois bem,
em qualquer caso o prazer, por sua vez, é produzido por outro
amor anterior, pois ninguém se compraz senão no que de al-
gum modo ama”.371
Um exemplo de influxo indireto, e como passagem de
uma série a outra, temo-lo numa modalidade do desejo: às
vezes amamos certas pessoas pelo desejo de algo que de-
las esperamos, como se percebe em toda amizade que tem
por motivo a utilidade. Claramente estamos diante de um
afeto, o desejo, que é causa do amor. Conquanto “o desejo
de uma coisa [pressuponha] sempre o amor dela, este dese-
jo, não obstante, pode ser causa de amar outra coisa, assim
como quem deseja dinheiro ama por isso aquele de quem
o recebe”.372 Enfim, o mesmo acontece com a esperança,

369 - S. Th., I-I, 27, 4.


370 - S. Th., I-I, 27, 4.
371 - S. Th., I-I, 27, 4 ad 1.
372 - S. Th., I-I, 27, 4, ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 227


Juan Cruz Cruz

que também pode ser causa do amor, pois, quando não há


esperança de obter uma coisa, ou esta é amada tibiamente,
ou não é amada de modo algum, ainda que se vejam suas
boas qualidades. Mas o que aqui a esperança faz é produzir
ou aumentar o amor “tanto por razão do gozo que causa,
como por razão do desejo que aumenta, pois não desejamos
tão vivamente o que não esperamos. No entanto, também a
esperança é de um bem que se ama”.373
Por redundância, por exemplo, a ira pode aumentar e
intensificar o amor: incrementa a audácia, que eleva a es-
perança, e esta, por sua vez, enerva o desejo; por último, o
desejo aguça o amor. Quando os afetos ficam concatenados,
influem-se mutuamente: assim, o desejo do amado ausente
aumenta e melhora a força do amor.
2. O amor pode ser produzido por outros afetos não só
na linha do exercício ou ato amoroso, mas também na li-
nha do objeto mesmo desse amor. Os afetos, em seu aspecto
orgânico ou material, são normalmente acompanhados de
uma comoção orgânica. Quando se acende o afeto e se pro-
voca um movimento fisiológico, este repercute nos órgãos
cognoscitivos da sensibilidade interna, especialmente na
imaginação; por sua vez, a mudança de representações ima-
ginativas traz consigo a transformação da força do apetite,
o qual sempre se segue a essas representações. Desse modo,
pelo caminho indireto do objeto ou do conhecimento, um
afeto qualquer pode influir no amor. O afeto amoroso pode
ser transformado pelas diversas disposições emocionais dos
que se amam: e os que antes se amavam ardentemente po-
dem depois deixar de fazê-lo e até odiar um ao outro; outros
podem crescer continuamente no amor, na medida em por
sua vontade dominam ou dirigem a série das emoções e de
suas repercussões orgânicas.
3. O amor como virtude ou hábito de amar dá seu nome
ao desejo e ao gozo. A virtude é um hábito operativo, e por
sua essência tem inclinação ao ato. Pois bem, um mesmo

373 - S. Th., I-I, 27, 4, ad 3.

228 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


VIII - A Causa do Amor

hábito pode ser origem de muitos atos ordenados da mesma


espécie e subordinados uns aos outros. O amor é o primeiro
afeto (do apetite e da vontade), do qual se segue o desejo e
o gozo. Dessa maneira, o mesmo hábito de amar inclina a
desejar o bem amado e a gozar-se dele. Mas, porque o amor
é o primeiro destes atos, o hábito de amar não se denomina
pelo gozo nem pelo desejo, mas pelo amor. Assim, o gozo não
é virtude diferente do amor como virtude, mas certo ato e
efeito dele.374

374 - S. Th., II-I, 28, 4.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 229


Capítulo IX
Efeitos Do Amor
IX - Efeitos do Amor

No amor, dois se fazem um; mas em nenhum caso deixam


de ser dois. Por isso, a união que é efeito do amor deve ser
considerada tanto do ângulo da unidade constituída quanto
do da alteridade dos amantes. Enfocado o amor do ângulo da
unidade constituída, esta pode ser simples (união) ou compos-
ta (interpenetração, união correspondida). Mas, se o amor é
visto do ângulo da alteridade, o amante é visto como saindo
de si para o amado por meio do êxtase e do zelo.

1. A união efetiva

a) A união no amor quiescente e no itinerante

Já se disse que havia uma tripla união entre o amante e o


amado, a saber, antecedente ou dispositiva, concomitante ou
constitutiva (o amor em sentido próprio e essencial) e conse-
guinte ou consecutiva.
Como efeito do amor, a união é o buscado realmente pelo
amante com o ser amado segundo a conveniência do amor; e,
ainda que “os dois amantes [desejem] fazer-se um só“, isto não
é possível, pois “ou um ou os dois se aniquilariam“: eles só as-
piram a uma união conveniente para conviver ou coabitar.375
Quando os amantes desejam fazer-se uma só coisa, são afetiva-
mente uma coisa pelo fato mesmo de o desejarem; mas isto é
impossível efetiva e realmente; e, por isso, a unidade afetiva se
consuma efetivamente à sua maneira, ou seja, pela união real,
salvando sempre a própria unidade real e efetiva de cada um.
Por exemplo, a união mais elevada intersexual entre pessoas,
a que tem lugar na resposta mútua do amor esponsalício pro-
fundo — aquela que quer ser uma mesma carne e identificar-se
num projeto de vida —, é união na alteridade e opõe-se radi-
calmente a que o amado se converta, mesmo afetivamente,
em prolongamento do próprio eu: “a expressão fundamental
desta identificação da própria vida, ‘tua vida é minha vida’, é a

375 - S. Th., I-II, 28, 1, ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 233


Juan Cruz Cruz

entrega, a doação de si mesmo, o ‘sou teu’. Neste caso, dar-se é


verdadeiramente encontrar-se; a doação, uma conservação. A
união não procede somente, como é óbvio, da força que entra-
nha o fato de doar-se: a unidade procede da entrega recíproca.
No entanto, sustenta-se na doação recíproca e representa o
contrário de qualquer ampliação do próprio eu ou de qualquer
forma de apropriar-se de alguém”.376
Assim, a união conseguinte, que também é dinâmica, se-
gue-se do amor: união real e efetiva do amante com o amado,
e esse, falando propriamente, é o efeito do amor, ainda que
de diverso modo no amor perfeito e no imperfeito. Pois no
amor perfeito é buscada a união não só como conexão en-
tre duas intimidades íntegras ou segundo todo o seu ser, mas
também de maneira contínua e perdurável; enquanto o amor
imperfeito não busca a totalidade, mas a parte, e não é contí-
nuo, duradouro e estável, mas móvel, temporário e referido a
outra coisa. E assim a união efetiva produzida pelo amor per-
feito é de si permanente, habitual, persistente, irrompível;
enquanto a união efetiva causada pelo amor imperfeito é pas-
sageira, passional, temporária, facilmente dissolúvel, como a
própria concupiscência.
A união amorosa íntima, a do amor perfeito ou quiescen-
te, não é reificante, não coagula o outro em estado de coisa:
a objetivação do outro não cria distâncias existenciais, muito
pelo contrário, pois comporta a participação na intimidade,
naquilo que como personalidade constitui o outro; uma inti-
midade só pode ser invocada por outra intimidade. E, como a
intimidade não é estática, mas dinâmica, livre e inventiva, o
trato amoroso com ela só pode desdobrar-se em atos práticos
que não a instrumentalizem nem a tenham como obstáculo
da própria realização. São aqueles atos de “con-vivência” que
realizam por apropriação a vida mais secreta e elevada do
outro — como se aquele tu fosse eu mesmo. Quando diante
do amigo aflito eu me con-tristo e me con-dôo, ou quando
diante de seu gozo eu me co-movo de alegria, não só estou

376 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 240.

234 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

pondo na mesma direção de seus atos os meus, mas também


promovo sua realização.
No mero amor itinerante, o outro é vivido ou como espe-
táculo ou como instrumento.
a) O amante pode comportar-se diante do amado, por
exemplo diante de seus belos traços, como se estes fossem um
objeto de espetáculo, uma vitrine diante da qual o passante
pára para admirar seus produtos; sua atitude vem a ser também
como a do médico que ausculta atentamente o corpo humano;
ou como a do psicólogo diante do sujeito analisado. Há em
todos estes casos uma distância objetivante que, sem espírito
de anular o outro — mas, muito pelo contrário, com intenção
de conservá-lo e preservá-lo —, certamente o converte em es-
petáculo. Daí os sentimentos de atordoamento e irritação que
invadem o sujeito que é amado com mero amor itinerante.
Se ajudasse a compreender esta relação a distinção que alguns
filósofos estabelecem entre “eu empírico” e “eu puro”, poder-
se-ia dizer que o amor itinerante se dirige ao “eu empírico”,
esse eu que pode ser avaliado em seus fatores sociais, estéticos,
intelectuais e caracteriais; um eu que não é o centro pessoal.
Aquele que só ama com amor itinerante mutila de certo modo
sua própria alma e a alma do outro, pois não dá satisfação à
tendência profunda de contato íntimo que ambos possuem. O
amor itinerante é um amor distanciador.
b) Que o amante se comporte diante do amado como se
este fosse um instrumento revela uma possibilidade constante
de nosso comportamento. Já Sócrates, a propósito dessa no-
bre relação com o outro que é a atividade educativa, propôs
duas metáforas que expressam a aproximação do educador ao
educando: a do escultor e a do parteiro. Por um lado, educar é
configurar, enformar, dirigir com mão firme as tendências plás-
ticas da criança: simplesmente porque esta não controla desde
o princípio suas próprias potencialidades. Mas, por outro lado,
a criança é pessoa e, por conseguinte, o trato mais originário
com ela há de ser o de “deixar nascer e florescer“, sem sufocar
a liberdade que significa a novidade ontológica da pessoa. O
mero amor itinerante fica travado na atitude instrumentali-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 235


Juan Cruz Cruz

zante. Ainda que sobre o ser humano, por sua corporalidade e


seus constitutivos potenciais, seja plausível certa forma de ins-
trumentação, nunca se deve anular a hierarquia de relações,
cuja principal dimensão é a do amor quiescente.
Baste o já dito para entender que o amor não é a relação
mesma de união efetiva, senão que esta é conseqüência do
amor. Não chegou Platão a dizer que o amor, eros, é um me-
dianeiro entre o divino e o humano e que tudo está unido por
ele?377 A união é obra do amor.378

b) Unidade e união amorosa. O amor de si mesmo

No amor perfeito que alguém professa a si mesmo, há “uni-


dade“ e não mera “união amorosa”. Mas a unidade é melhor
que a união.379 Cada um tem consigo mesmo algo mais que
amizade que expressa união; cada um tem em si unidade, a
qual supera a união.380
Para com a própria pessoa, o amor é força unitiva; para
com outros, é força congregante, segundo a terminologia de
Dionísio, aceita por Santo Tomás. O ato de amor tende a um
duplo objeto: ao bem que se quer e ao sujeito para quem se
quer tal bem, pois propriamente amar alguém consiste em que-
rer o bem para ele. O sujeito amado pode ser ou o próprio su-
jeito ou um diferente. Quando alguém ama a si mesmo, quer o
bem para si, e, por conseguinte, procura incorporá-lo até onde
puder; e por isso o amor é “força unitiva”. Mas, quando alguém
ama outro, quer o bem para esse outro, e, por conseguinte, tra-
ta-o como se fosse ele mesmo, referindo o bem ao outro como
a si mesmo; e por isso se chama ao amor “força congregante”,
porque faz alguém associar o outro a si mesmo, relacionando-
se com ele como consigo mesmo (quando quer bens para o

377 - Symposion, 202 c.


378 - S. Th., I-II, 26, 2, ad 2.
379 - S. Th., II-II, 26, 4.
380 - S. Th., II-II, 25, 4.

236 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

outro).381 Pode dizer-se assim que o amor auto-referente é uma


força unitiva, e o amor hetero-referente uma força congregan-
te. É força unitiva com respeito ao amor de si mesmo, no qual
se dá a identidade e a unidade real do amante e do amado; mas
é força congregante com respeito ao amor a outras pessoas, que
pelo amor se ligam ao amante.
Uma coisa é que o amante se torne afetivamente o amado,
e outra que se converta efetiva e realmente no próprio amado;
isto não pode dar-se nem querer-se, porque assim o amante
perderia até sua própria forma e, por conseguinte, deixaria de
ser amante. Portanto, a união com o amado é querida e causa-
da, mas não a unidade com ele. A união com o amado se con-
catena com a unidade e com o ser próprio; e por isso o amor
de si pode coexistir com o amor do amado; porque amar a con-
servação ou a unidade do próprio ser é algo natural ou inato,
enquanto o outro amor é elícito e posterior e até menos forte.
Por isso o homem pode querer ser como o outro; mas não pode
querer ser o outro mesmo. “Pois no fundo de cada ente existe
o desejo natural de conservar seu ser, e este não se conservaria
se se transformasse em outra natureza.”382

c) A união amorosa e o conhecimento

1. A união deve ser considerada também, como já se ex-


plicou, do ângulo do conhecimento que a precede, pois o mo-
vimento tendencial do apetite ou da vontade se segue a uma
apreensão. E dos dois tipos de amor espiritual que há, a saber,
o imperfeito e o perfeito, tanto um quanto outro procedem
de certo conhecimento da unidade do objeto amado com o
amante.383 Quando alguém ama outro com mero amor itine-
rante, apreende-o como pertencente a seu próprio bem-estar

381 - S. Th., I, 20, 1, ad 3.


382 - S. Th., I, 63, 3.
383 - S. Th., I-II, 28, 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 237


Juan Cruz Cruz

(ad suum bene esse).384 Do mesmo modo, quando alguém


ama outro com amor quiescente, quer o bem para aquele a
quem ama tal como o quer para si mesmo; e daí ele sentir o
amigo como outro eu: também neste sentido o amor é um
êxtase da intimidade.
2. Que é então mais unitivo, o amor ou o conhecimen-
to? O conhecimento se aperfeiçoa quando o conhecido se une
com o cognoscente, mas só através de uma semelhança sua;
em contrapartida, o amor faz a própria coisa amada unir-se de
algum modo ao amante.385
Uma última observação, surgida quando se compara o amor
com o conhecimento.
a) Se o amor ou união afetiva é considerado formalmen-
te, enquanto afeto, então proporcionalmente convém com
a união própria de cognoscente e cognoscível; porque, assim
como o cognoscente, tomado formalmente como cognoscen-
te, é um fazer-se cognoscitivamente o próprio conhecido, as-
sim também o amante, tomado formalmente como amante, é
um fazer-se ou transformar-se afetivamente no amado.
b) Se a união efetiva de duas pessoas é considerada dinami-
camente, enquanto efetiva e real, é um efeito próprio do amor
e não convém ao conhecimento. O amor tende naturalmente à
sua consumação, que consiste na união real e efetiva do aman-
te com o amado: é, pois, essencialmente apetição ou volição,
movimento da tendência. Mas o conhecimento não exige isto,
porque se aperfeiçoa na união intencional do cognoscível com
o cognoscente, a qual não requer aquela união efetiva e física,
pois o conhecimento acontece segundo o conhecido estar no
cognoscente. Isto acontece no conhecimento especulativo;
mas, no conhecimento prático ou afetivo e contemplativo, a
união do cognoscente e do conhecido é proporcionalmente
igual à união real do amor.

384 - S. Th., I-II, 28, 1.


385 - S. Th. I-II, 28, 1, ad 3.

238 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

2. A interpenetração no amor

Se o efeito inicial ou incoativo do amor é a união, sua con-


sumação e perfeição é a interpenetração, a profundidade no
amor mútuo: a união do amante e do amado, tanto afetiva
como efetiva, não culmina num roçar meramente superficial
ou externo, mas num contato mútuo, numa conexão profunda
e íntima. Esta união — que não é unidade substancial porque
há dois sujeitos que se relacionam —, especialmente a do amor
quiescente, não é acidental e parcial (per accidens et secun-
dum quid), mas essencial e absoluta (simpliciter et per se), pois
um dos sujeitos está interior e intimamente no outro.386 Inti-
midade recíproca que se dá nos dois elementos que confluem
no amor: o conhecimento, como condição ou pressuposto, e o
afeto, como constitutivo.
1. O efeito que chamamos interpenetração (mutua inhe-
sio), a recíproca união íntima, pode ser entendido primeira-
mente quanto ao conhecimento. Com respeito a este, diz-se
estar o amado no amante na medida em que o amado mora no
pensamento do amante (este o traz em sua mente); e o aman-
te no amado, na medida em que o amante não se contenta
com uma apreensão superficial do amado, mas se esforça em
aprofundar-se em cada uma das coisas que a este pertençam, e
assim penetra até o seu interior.387
Como se relacionam cognoscitivamente o amante e o ama-
do no amor quiescente e no amor itinerante?
a) No tocante ao amor quiescente, o amado está no aman-
te de maneira contínua e profunda, não de modo passageiro e
superficial. O amado mora ou habita na intimidade do aman-
te; e o amante vai à intimidade do amado e ali permanece

386 - “A união é dupla. Uma que faz ser um parcialmente (secundum quid),
como é a união de coisas associadas que se tocam superficialmente, e esta
não é a união do amor, dado que o amante se transforma no interior do
amado (in interiora amati). Outra é a união que faz ser um totalmente (sim-
pliciter), como é a união dos contínuos, ou da forma e da matéria; e esta é a
união do amor, porque o amor faz que o amado seja forma do amante (In
III Sent., dist. 27, q. 1, art. 1 ad 5).
387 - S. Th., I-II, 28, 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 239


Juan Cruz Cruz

perscrutando tudo. Aqui o amante — que está no amado por


meio do conhecimento — “não se contenta com a apreensão
superficial do amado, mas olha inquisitivamente todas as par-
ticularidades que pertencem a este, e assim penetra em seus
recônditos”.388 Não simplesmente para torná-lo um espetácu-
lo ou um objeto de curiosidade distante, mas para render-lhe
na intimidade o obséquio de uma lúcida reflexão que ajude a
promovê-lo.389 O maior conhecimento do outro sempre trará
melhores oportunidades de ação prática que o alentem em to-
das as suas possibilidades. Depois o amor abre e aguça os olhos
do amante e penetra profundamente os segredos do amado. E,
por esta mútua e íntima união do amante e do amado no amor
quiescente, e em ordem ao conhecimento, segue-se que entre
os amigos não há segredos, pois se comunicam tudo, o grato e o
ingrato, o próspero e o adverso: há entre eles uma perfeita co-
municação e comunidade de idéias e sentimentos, até os mais
próprios e pessoais.
b) Também no amor itinerante o amado está cognosciti-
vamente no amante, mas não de modo permanente, embora,
sim, vívida e intensamente, porquanto de maneira passional
e veemente se orienta ao amado e pensa nele relativamente;
mas o amante não está propriamente na intimidade do amado,
porque não revela a este seus segredos mais íntimos, senão que
simula uma relação amigável para poder assim gozar dele mais
e melhor. A união é aqui imperfeita, regida mais pela sensibi-
lidade que pelo espírito.
2. No que se refere à interpenetração no afeto, assinalemos
uma tripla relação: a do amado ao amante; a do amante ao
amado; e a mútua ou recíproca de amante e amado.
a) O amado está no amante (dicitur esse in amante) “pelo
fato mesmo de estar dentro de seu afeto mediante certa com-

388 - S. Th., I-II, 28, 2.


389 - “Não se trata, no entanto, de um conhecimento abstrato e universal,
como se dá no conhecimento meramente especulativo, mas de um conhe-
cimento concreto, particular, pessoal; não confuso e obscuro, mas claro e
diferente; não superficial e extrínseco, mas profundo e íntimo; não parcial
nem mais ou menos conjectural e duvidoso, mas total e certo” (Santiago
Ramírez, La esencia de la caridad, 365.)

240 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

placência, 1º já porque se compraz nele ou em seus bens quan-


do os tem presentes; 2º já porque em sua ausência ou tende ao
amado mediante o desejo por amor itinerante, ou tende aos
bens que para ele quer por amor quiescente, e não por causa
alguma extrínseca, como quando se quer uma coisa para outro
ou, por qualquer motivo particular, se lhe deseja um bem, mas
pela só complacência interior no ser amado. Por isso este amor
se chama íntimo”.390
Em meu amor quiescente, o amado está em minha vontade
de amante de maneira profunda e contínua, tanto quanto eu
mesmo como amante. Sua alegria é minha alegria: com seus
conseguimentos eu vivo alegremente minha vida; e sua triste-
za é também a minha: com seus fracassos eu vivo penosamente
minha vida. Este amor é proporcional à união íntima do co-
nhecimento correspondente.
No amor itinerante, o amado também penetra no coração
do amante, mas não permanece tanto nem tão suavemente
como no amor quiescente. Costuma sentir muito vividamente
este contato e esta penetração, que é menos forte e duradoura,
porque responde mais ao apetite sensível que à vontade.
b) Igualmente, o amante está no amado tanto pelo amor
itinerante quanto pelo amor quiescente, ainda que de ma-
neira diferente.
Pois o amor itinerante “não se contenta com qualquer
extrínseca ou superficial posse ou gozo do amado, mas tenta
possuí-lo perfeitamente, penetrando, por assim dizer, até seu
interior. Quer como que extrair dele toda a sua substância.
Por sua veemência e impetuosidade, este amor penetra com
grande força no amado”.391 Mas não para permanecer nele, e
sim para tornar a si mesmo, e por isso “seu afeto se fecha final-
mente em si mesmo”.392

390 - S. Th., I-II, 28, 2.


391 - S. Th., I-II, 28, 2.
392 - S. Th., I-II, 28, 3. “A pessoa desejada não é o termo final do amor do
concupiscente; é-o o próprio concupiscente. Ao contrário, no amor de ami-
zade o amor termina absolutamente no amigo, sem retornar ao amante.
Por isso, no amor de concupiscência não há perfeita saída do amante para

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 241


Juan Cruz Cruz

E, no amor quiescente, “o amante está no amado na me-


dida em que considera como seus os bens ou males do amigo
e a vontade deste como sua; de modo que parece sofrer no
amigo os mesmos males e possuir os mesmos bens. Por isso,
segundo Aristóteles, é próprio dos amigos querer as mesmas
coisas e alegrar-se ou entristecer-se com o mesmo. De modo
que o amante, julgando como seu tudo o que pertence ao ama-
do, parece estar nele e formar com ele uma mesma coisa; e
ao contrário, enquanto quer e obra pelo amigo como por si
mesmo, considerando-o um consigo mesmo, o amado está no
amante”.393 É uma saída para o amado, o êxtase da própria in-
timidade.
c) Pode-se ainda reconhecer no amor quiescente um ter-
ceiro modo de união íntima, a mais alta e conseguida, por
via de reciprocidade de amor, “na medida em que os amigos
mutuamente se amam e se querem e se fazem o bem”.394 Há
entre os que se amam com amor quiescente uma comunicação
íntima de vida espiritual, ou seja, de inteligência e vontade,
mediante a qual reciprocamente se compenetram interiormen-
te. E, assim como na alma há uma refluência e redundância de
algumas faculdades em outras, assim também entre os amigos
há refluência e redundância mútua de vida espiritual. “O amor
recíproco inclui uma intenção unitiva também recíproca, o
que implica, por seu lado, que a união é gozosa por ambas as
partes. Se a união não é ansiada de igual modo por ambos, se
não é para os dois uma fonte de gozo, não existe amor recípro-
co nem pode ter lugar a união. A união, certamente, não in-
clui só o fato de que seja para ambas as partes fonte de felicida-
de, mas, igualmente, o de que cada um saiba que é uma fonte
de felicidade para o outro. Ninguém pode ansiar a união sem
estar orientado à felicidade do amado. É essencial que a união
seja gozosa para nós mesmos, mas isso não significa, de modo

o amado nem perfeito repouso no amado e, por conseguinte, tampouco


perfeita inesão ou permanência nele” (Santiago Ramírez, La esencia de la
caridad, 370).
393 - S. Th., I-II, 28, 2.
394 - S. Th., I-II, 28, 2.

242 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

algum, que ansiemos alcançá-la exclusivamente por causa da


felicidade própria. No momento em que nos interessássemos
tão-somente pela felicidade que nos proporciona, e não tam-
bém pela felicidade do outro, deixaríamos de buscar e ansiar
a verdadeira união. O anseio de união não se pode separar do
desejo de amor recíproco; e a felicidade que propicia a união
supõe essencialmente que esta também seja gozosa para o ou-
tro. A felicidade própria e a felicidade do amado estão indisso-
luvelmente entrelaçadas na união.”395
Observe-se que, por diferentes aspectos, amante e amado
intercambiam o papel de continente e conteúdo. “O amado se
contém no amante no sentido de que está impresso em seu afe-
to por certa complacência; e, vice-versa, o amante no amado,
na medida em que o amante busca de algum modo o que há de
íntimo no amado. Pois nada impede que uma mesma coisa seja
em diversos aspectos continente e conteúdo”.396
3. A perfeição do amor pode ser entendida de duas manei-
ras: do ângulo do objeto amado e do ângulo do sujeito amante.
Do ângulo do amado, o amor é perfeito se ele é amado tanto
quanto é amável; mas o amado não pode ser captado de repen-
te em toda a sua amabilidade, senão pouco a pouco: não há,
pois, amor quiescente instantâneo com respeito ao amado.
É perfeito o amor do ângulo do amante quando ele ama
quanto lhe é possível amar; o que sucede de triplo modo.
Primeiro, porque todo o coração do homem está continua-
mente transportado no amado; esta perfeição do amor não
se dá na circunstância temporal do homem, que torna im-
possível pensar continuamente no amado e mover-se a seu
amor. Segundo, se o homem põe seu cuidado em aplicar-se
ao amado e a suas coisas, enquanto lho permitam as neces-
sidades da vida presente, esta é a perfeição do amor possí-
vel na vida temporal, ainda que não se dê em todos os que
têm amor. Por fim, que de tal modo ponha habitualmen-
te todo o seu coração no amado, que nada pense que seja

395 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 175.


396 - S. Th., I-II, 28, 2, ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 243


Juan Cruz Cruz

contrário a seu amor. E esta é a perfeição corrente dos que


estão amando.397
A união a que tende o amor nem sempre é exigida por
ambos os amantes com a mesma intensidade e com idêntico
grau. De fato, pode-se alcançar uma união ainda que o grau
de amor nos dois seja diferente. Pode haver amores íntimos
em que o amor de cada um dos amantes pelo outro não tenha
a mesma altura nem profundidade e em que, no entanto, se
alcance uma união pessoal. “Quanto mais desigual é o amor
recíproco dos amantes, tanto menor é a unidade e tanto me-
nos se consuma a intenção unitiva daquele que mais ama.
No entanto, desde que exista algum tipo de amor recíproco,
alcança-se, de algum modo, a união. O mesmo se pode dizer
no caso do amor conjugal. Ainda que um homem possa amar
mais sua mulher, mais profunda e ardorosamente, do que é
amado por ela, ou o contrário, pode ter lugar certa união
[...]. Mas a comunidade matrimonial, por sua própria essên-
cia, converter-se-á numa exigência tremenda quando o amor
está completamente ausente.”398
Mas o amor não é necessariamente perfectivo399 em todos
os seus planos. Como se disse, o amor indica certa adequação
ou aptidão (coaptationem) do apetite ou da vontade com o
bem. “E nunca o que se adapta a uma coisa que lhe é con-
veniente se prejudica por isso, mas antes, quanto possível,
melhora e se aperfeiçoa, ao passo que o que se une a uma
coisa que não lhe é conveniente se prejudica e se dana. Por-
tanto, o amor de um bem conveniente aperfeiçoa e melhora
o amante, e o amor de um bem não conveniente o dana e
prejudica.”400 Isto no que se refere ao elemento formal do
amor, ao amor do ângulo do apetite e da vontade. Quanto
ao que há de material na resposta afetiva do amor, que é a
alteração corporal, o amor pode resultar danoso pelo excesso

397 - S. Th., II-II, 24, 8.


398 - D. von Hildebrand, La esencia del amor, 176.
399 - Cf. nota 68. [N. do T.]
400 - S. Th., I-II, 28, 5.

244 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

da alteração, como acontece no sentido e no ato de qualquer


potência anímica exercido mediante uma transformação do
órgão corporal.401

3. A alteridade no amor

a) Amor quiescente e êxtase perfeito

A condição de possibilidade de o amor ter como efeito


formal interno a união íntima e recíproca entre o amante e
o amado, a interpenetração, consiste em que haja uma saída
do amante de si mesmo para permanecer no amado: que haja
êxtase — como se explicou.
Como o objeto do amor é motivo ou motivante, assim que
o sujeito o conhece, o objeto realiza sua própria formalidade de
bem, imprimindo semelhança na vontade do amante ou, para
usar uma metáfora clássica, lança suas flechas no coração do
amante, que imediatamente se sente ferido por certa simpatia
pelo amado. As intensas palpitações do coração, segundo a sís-
tole e a diástole, seriam sintomas orgânicos dessa vulneração.
No que se refere ao amor erótico, convém indicar que se
acende principalmente diante da beleza, da formosura corpo-
ral, que encanta arrebatadoramente.
Essas setas ígneas — continuando com a metáfora do fogo
— provocam, além da vulneração do coração do amante, um
ardor no coração ferido, mas não só em sua superfície, senão
em seu ponto mais central, o qual começa a irromper vee-
mentemente como que em chamas. Esse ardor é mais meta-
fórico no amor espiritual que no sensível.
Como a metáfora do fogo e do incêndio amoroso é uni-
versal, tanto no tempo como no espaço, pode ampliar-se, sob
essa metáfora, o cariz do amor que surge pela inicial motiva-
ção que a tendência recebe do bem.402

401 - S. Th., I-II, 28, 5.


402 - S. Th., I-II, 28, 5, ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 245


Juan Cruz Cruz

a) Desse incêndio segue-se a fusão ou dissolução, o derreti-


mento e a ternura — que se opõe a congelação e solidificação
— para que o amado possa penetrar facilmente no coração
do amante. Esse calor funde o coração. Do amor do bem em
si mesmo, que prescinde da ausência ou presença deste bem,
segue-se a fusão ou derretimento, e abre-se o coração para que
o amado possa entrar nele.
b) Fundido o coração, segue-se o delíquio ou desfalecimen-
to: o que já não está duro nem rígido, mas derretido, não se tem
por si mesmo, mas se derrama ou desmaia. Esse desfalecimento
implica certa tristeza pela ausência do amado. Tender para o
amado ausente é justamente o desejo, causado pelo amor. Pois,
quando o bem está ausente, se seguem dois afetos: um, a tristeza
pela ausência do bem amado — é o desfalecimento ou desmaio;
e o outro, o desejo ardente de possuí-lo.
c) Quando o amado está presente, sente-se o gozo e a frui-
ção: o amor causa o gozo, que é como certa embriaguez de amor
consecutivo ao desmaio, e provoca um desfalecimento mais
doce. Portanto, se se acrescenta a condição de presença e posse
do bem amado, segue-se o gozo e a embriaguez.

b) Saída de si e amor de si

Quer isso dizer o que pelo efeito do êxtase o amante ama mais
ao outro que a si mesmo? Se o amor une o amado ao amante, e
se o amante sai de si para dirigir-se ao amado, por acaso o amante
não ama sempre mais o objeto amado que a si mesmo? Certamen-
te, quem ama “sai de si na medida em que quer e faz o bem do
amigo. No entanto, não quer o bem do amigo mais que quer o seu
próprio (non tamen vult bona amici magis quam sua), razão por
que não se segue que ame o outro mais que a si”.403 O amante sai
de si e se translada ao amado enquanto quer o bem do outro e se
esforça por lho proporcionar como se se tratasse de si mesmo.404

403 - I-II, 28, 3, ad 3.


404 - I, 20, 2, ad 1

246 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

Há para o Aquinate um enlace indissolúvel entre o amor


a nós mesmos e o amor a qualquer outro objeto. Isso significa,
no caso da vontade, que “o amor segundo a verdade é o ato
natural da nossa vontade e por conseguinte a nossa perfeição,
e que não podemos amar nada sem ao mesmo tempo e por
um grande crescimento encontrar naturalmente, não psico-
logicamente, a nossa própria perfeição”.405 Os que consideram
o amor desinteressado como algo solitário que pode realizar-
se por si mesmo caem numa ilusão, e não compreendem que
amar é querer a si mesmo e a todas as coisas para si, desde que
o amor seja objetivo, ou seja, reto e ordenado, e neste caso
“o amor desinteressado e o amor natural de nós mesmos são
somente um único e mesmo amor: enquanto ato, é a nossa
perfeição, sem que deva necessariamente tornar-se objeto de
outro ato que, psicologicamente, o tomasse por fim e o subor-
dinasse depois ao bem superior: enquanto ato de amor espiri-
tual, está orientado completamente ao bem absoluto, finito ou
infinito. A dificuldade do nosso problema consiste mormente
na impossibilidade aparente de que um só ato seja integral-
mente, por um lado, um amor desinteressado ao bem como tal
ou ao bem de outro e, por outro lado, a realização da tendência
natural à nossa própria perfeição. De um lado, parece haver
aí dois objetos, sendo preciso admitir também dois atos com
orientações diametralmente opostas: um que teria por objeto
o bem em si mesmo ou o bem de outro — estaria centrifuga-
mente voltado para o objeto — e outro que visaria à perfeição
própria do sujeito — e seria centrípeto. Eu necessitaria então
ou eliminar o amor de mim para permitir a realização do amor
desinteressado, ou buscar minha própria perfeição e reduzir o
amor desinteressado à categoria de meio em relação ao bem
meu, ou seja, sufocar realmente o amor desinteressado, o qual
não pode existir senão gratuitamente, sem referência aos in-
teresses do sujeito. De outro lado, é igualmente impossível
manter separadas e como que justapostas essas duas formas de
amor, porque o amor desinteressado a um bem qualquer, sem

405 - Louis-B. Geiger, 104.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 247


Juan Cruz Cruz

referência ao verdadeiro bem do sujeito, ou é impossível ou


é ilegítimo, porque não seria senão a explosão irreflexiva da
paixão, já não um amor propriamente humano. A dificuldade
seria insolúvel se o meu bem fosse uma coisa e o bem que é
objeto do amor desinteressado fosse outra coisa, diferente. Es-
taríamos então diante de dois bens absolutos e de dois atos de
amor absolutos, impossíveis de subordinar sem que se perverta
sua natureza. Em verdade, a nossa perfeição não é uma coi-
sa, mas um ato. O nosso bem não é um tesouro que se anseia
com amor itinerante, mas um objeto que há de ser amado por
esse ato que é o amor do bem segundo a verdade, quer dizer,
um amor desinteressado e absoluto que se encontra diante de
um bem absoluto. Um só e mesmo ato é, pois, objetivamen-
te falando, como ato imanente, de um lado o cumprimento
da nossa perfeição e, de outro lado, o amor desinteressado do
bem. Não se pode dar uma dimensão sem a outra. Ou estão
ligadas indissoluvelmente ou não se dão”.406 O amor puro do
bem, especialmente do bem absoluto, constitui nossa perfeição
natural. Quando cumprimos as exigências do bem segundo a
ordem de sua verdade, realiza-se nossa perfeição diretamente,
sem reflexão especial. O esquecimento de si não deve aconte-
cer no plano do apetite natural, mas no da atenção psicológi-
ca. “Tender à nossa perfeição não é, pois, preferir o nosso bem
a tudo o mais, à maneira como se põe uma coisa acima de todas
as outras. É pôr acima de tudo o amor ao bem e a fidelidade em
responder às exigências da verdade.“407

c) Intensificação da alteridade. Os zelos [ciúme(s)], o zelo

O efeito psíquico que de modo indireto se segue do amor,


enquanto o amante deve vencer os impedimentos que encon-
tra para conseguir o amado, é o zelo. “Zelo” provém do grego
, que significa arder, ebulir: é ardor, fervor, intensidade e

406 - Louis-B. Geiger, 106-108.


407 - Louis-B. Geiger, 109.

248 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

veemência de amor. O zelo pode ser considerado em dois sen-


tidos: causalmente, e então implica o ardor e a veemência do
amor; e formalmente, e expressa assim o amor intenso que não
tolera nem o consórcio no amor ao amado (ter zelos de alguém
a quem se pretende excluir), nem o mal do amado (ter zelo por
alguém que não queremos que seja tocado ou rebaixado). Que
significa a intensidade do amor?
1. O amor pode aumentar? O amor pode aumentar: somos
sempre viadores que caminhamos para o que amamos. Tanto
mais avançamos neste caminho quanto mais nos aproxima-
mos do amado, a quem se chega não tanto por passos corporais
quanto pelos afetos da alma (affectibus mentis). O amor faz
esta aproximação, porque por ele se une a intimidade ao ama-
do. Razão por que poder crescer é condição do amor humano,
sempre a caminho.408
Crescer, é claro, em intensidade. Porque todo ato — e o
amor é um ato da vontade — guarda proporção com o objeto a
que tende e com o agente que o produz: pelo objeto se especifi-
ca; e pela potência do agente tem a medida de sua intensidade,
assim como o movimento se especifica pelo termo e alcança
intensidade de aproximação segundo as disposições do móvel
e a potência do motor. Assim também, o amor traz sua espécie
do objeto, mas a intensidade depende do próprio amante.409
Como amar é querer o bem para alguém, pode suceder,
pois, que uma coisa seja mais ou menos amada por parte do ato
da vontade, o qual pode ser mais ou menos intenso: a vontade
humana não ama tudo com um só ato invariável. Mas também
pelo lado do bem que se quer para o amado pode acontecer que
uma coisa seja mais ou menos amada, porque amamos mais
aquele para quem queremos maior bem, ainda que a intensida-
de do querer seja a mesma.410

408 - S. Th., II-II, 24, 4.


409 - S. Th., II-II, 26, 7.
410 - S. Th., I, 20, 4. Pode-se dizer também que de duas maneiras podemos
ter amor desigual por alguém. Uma, em razão de que uns sejam amados e
outros não; tal desigualdade se cumpre na beneficência, já que não pode-
mos socorrer a todos; mas não deve dar-se na benevolência do amor. Outra

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 249


Juan Cruz Cruz

Que o amor seja mais ou menos intenso não provém da


quantidade dimensiva (numérica), mas apenas da virtual, que
não responde somente ao número de objetos que são amados,
sejam poucos ou muitos, mas principalmente à intensidade
do ato, de maneira que uma coisa seja mais ou menos amada.
Neste sentido, cresce a quantidade virtual do amor.
Decisivo é que o amor não aumenta por soma de mais amor.
O amor não cresce quanto à quantidade do objeto, senão que
aumenta unicamente pela intensidade radicada no sujeito.
a) Em toda soma acrescenta-se uma coisa a outra; portan-
to, antes do ato de adição supõe-se que as duas coisas sejam
diferentes em suas formas. Mas a distinção nas formas é dupla:
uma específica e outra numérica. Nos atos e hábitos, a distin-
ção específica provém da diversidade dos objetos, e a numéri-
ca, da diversidade do sujeito.
Um hábito pode aumentar por adição, ao abarcar objetos
a que antes não se estendia; desse modo cresce a ciência da
geometria em quem descobre novos teoremas que antes des-
conhecia. Isto não pode suceder com o amor, porque até o
mínimo amor se estende a tudo aquilo que se deve amar com
ele; por isso não se dá tal soma no aumento do amor, que teria
de supor a distinção específica entre o amor acrescentado e
aquele a que se acrescenta.
Tampouco há adição de amor a amor na hipótese de uma
diversidade numérica dos sujeitos; quando se acrescenta bran-
co a branco, não se faz uma coisa mais branca. Dado que o su-
jeito do amor é a alma racional, não poderia haver aumento de
não somar-se uma alma racional a outra, o que é impossível. E,
ainda que fosse possível esse aumento, faria maior o ser aman-
te, mas não mais amador. Conclua-se, pois, que de nenhum
modo o amor pode aumentar por adição de amor a amor.
b) Por conseguinte, o amor só aumenta por participá-lo
cada vez mais o sujeito, ou seja, por ser cada vez mais forçado
a agir segundo o amor e por submeter-se a ele com mais doci-

é a desigualdade do amor em razão de uns serem mais amados que outros.


S. Th., II-II, 26, 6 ad 1.

250 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

lidade. Esta classe de aumento é própria de toda forma que se


intensifica, dado que seu ser consiste em aderir totalmente a
seu sujeito. E, assim como a magnitude de uma coisa responde
a seu ser, uma forma será maior por unir-se mais ao sujeito e
não porque advenha outra forma. Isto se daria se a forma tives-
se quantidade de si e não por comparação com o sujeito. Dessa
maneira, o amor aumenta por intensificar-se no sujeito; o que
é o mesmo que dizer que aumenta essencialmente, e não que o
amor se some ao amor.411
2. Poder-se-ia pensar que uma coisa é o amor crescer em sua
essência, e outra ele crescer em sua radicação no sujeito ou no
ardor que suscita. Tal distinção é falsa. Pois, ainda que o amor
não seja substância, mas ato ou virtualidade de atos (hábito),
seu próprio ser de acidente é estar num sujeito; razão por que di-
zer que o amor cresce em sua essência equivale a dizer que adere
mais ao sujeito ou que se enraíza mais no sujeito. Ao mesmo
tempo, como todo hábito está essencialmente ordenado ao ato,
é a mesma coisa aumentar sua essência e ser capaz de produzir
um ato de amor mais ardente. Aumenta, pois, essencialmente;
mas não de modo que comece a estar ou deixar de estar no sujei-
to, senão que começa a estar cada vez mais no sujeito.412
Nesse sentido, o amor (como hábito) também pode dimi-
nuir. A quantidade que o amor tem com respeito ao objeto pró-
prio não pode diminuir nem aumentar. Mas, como aumenta na
quantidade que possui relativamente ao sujeito, pode diminuir
por este lado. Se diminui, será por algum ato ou por abster-se
de um ato. Deste segundo modo diminuem as virtudes adqui-
ridas com atos, e às vezes desaparecem: podem cortar-se muitas
amizades simplesmente deixando de freqüentá-las, não recor-
rendo ao amigo ou não falando com ele. E isso é assim porque
a conservação de uma coisa depende de sua causa. A causa da
virtude adquirida é o ato humano; donde, cessando os atos, vai
minguando a virtude, até, finalmente, desaparecer de todo.413

411 - S. Th., II-II, 24, 5.


412 - S. Th., II-II, 24, 4 ad 1.
413 - S. Th., II-II, 24, 10.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 251


Juan Cruz Cruz

Pois bem, e voltando ao assunto, da intensidade do amor


provém o zelo, por qualquer aspecto que seja considerado. Por-
que, quanto mais intensamente a faculdade se dirige a uma
coisa, mais fortemente repele tudo o que a ela é contrário ou
que com ela é incompatível; e, como o amor é um movimento
para o objeto amado, o amor intenso tenta excluir tudo aquilo
que se lhe opõe. Isto, no entanto, acontece de modo diferente
no amor itinerante e no perfeito.414
a) No amor itinerante, quem deseja intensamente al-
guma coisa se move contra tudo aquilo que impede a con-
secução ou gozo pacífico do objeto que ele ama. O zelo
causado pelo amor itinerante se orienta a tudo o que se
opõe ao prazer e à utilidade do bem amado. O amado é
aqui para nossa utilidade e prazer; e o que se opõe assim à
nossa utilidade — à sua excelência, à sua singularidade ou
ao seu gozo tranqüilo — é combatido ardentemente. Por
isso, o homem zela por sua esposa, a fim de que a compa-
nhia de outros não altere a exclusividade que quer nela.
Igualmente, os que buscam destacar-se se voltam contra
os que parecem superá-los, como que impedindo sua pre-
eminência; sendo este o zelo da inveja. Os bens referidos,
por sua imperfeição e parcialidade, não podem simultane-
amente satisfazer a muitos, nem ser possuídos por muitos:
daí o egoísmo, a inveja e a ambição.
b) Mas o zelo causado pelo amor quiescente se orienta
contra as coisas que se opõem ao bem do amigo. O amor
quiescente busca o bem do amigo; razão por que, quando é
intenso, impele o homem contra tudo aquilo que é oposto
ao bem do amigo; e neste sentido se diz que alguém tem
zelo pelo amigo quando se esforça por rejeitar tudo o que se
faz ou diz contra o bem dele, contra sua honra ou vontade.415

414 - S. Th., I-II, 28, 4.


415 - S. Th., I-II, 28, 4.

252 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

4. O ódio sob o amor

a) O amor, causa universal

1. Se todo agente obra por algum fim — como se disse


— e o fim para cada ser é o bem desejado e amado, resulta
que todo agente, qualquer que seja, executa todas as suas
ações por algum amor — amor considerado em geral, que
compreende em si o amor espiritual, o sensitivo e o natu-
ral.416
Também o ódio é causado pelo amor. Pois, como se dis-
se, o amor consiste em certa conveniência do amante com
o amado, enquanto o ódio consiste em certa repugnância
ou dissonância; e em todo ser devemos considerar o que lhe
convém antes do que o contraria, pois o motivo de uma coi-
sa ser contrária a outra é que destrói ou impede o que lhe é
conveniente. Portanto, o amor é necessariamente anterior
ao ódio, e nenhuma coisa é odiada senão por ser contrária
ao objeto que se ama. Por conseguinte, todo ódio é causado
por um amor.417
Pode parecer que o amor não é causa do ódio porque
amor e ódio são, em certo aspecto, coexistentes e não con-
secutivos em linha causal. Mas deve-se notar que, nas coi-
sas opostas, algumas são naturalmente simultâneas tanto na
realidade como em seu conceito; assim, duas espécies de
animal ou de cor; outras são simultâneas em seu conceito,
mas sucessivas na realidade: uma é na realidade anterior à
outra e causa dela, como acontece nas espécies dos números,
figuras e movimentos; outras, por fim, não são simultâneas
nem na realidade nem em seu conceito, como a substância e
o acidente, pois a substância é realmente causa do acidente,
e antes atribuímos o ser à substância que ao acidente, dado
que não se atribui o ser ao acidente senão enquanto está
na substância. Pois bem, o amor e o ódio são naturalmente

416 - S. Th., I-II, 28, 6.


417 - S. Th., I-II, 29, 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 253


Juan Cruz Cruz

simultâneos no conceito, mas não realmente. Razão por que


nada impede que o amor seja causa do ódio.418
2. Sendo o amor causa universal, então é mais forte que o
ódio. É impossível que o efeito seja mais forte que sua causa. E,
como o ódio procede de algum amor como de sua causa, como
se disse, é impossível que o ódio seja absoluta e essencialmente
mais forte que o amor.419
Mas é necessário, ademais, que o amor, absolutamente fa-
lando, seja mais forte que o ódio, porquanto uma coisa é mo-
vida mais fortemente ao fim que para as coisas conducentes a
ele, e o afastamento do mal se ordena, como a seu fim, à con-
secução do bem. Por conseguinte, falando em absoluto, é mais
forte o movimento do sujeito para o bem que para o mal.
3. No entanto, algumas vezes o ódio parece mais forte que
o amor, por duas razões.
Primeira, porque o ódio é mais sensível que o amor. É
que a percepção do sentido se baseia em certa imutação;
quando esta alteração já está consumada, não é sentida tão
vivamente como quando está em processo de realização;
por isso o calor da febre na tuberculose, ainda que maior,
não é tão sentido, porém, quanto o calor da gripe, por-
que o da primeira já se tornou habitual e conatural. Por
esse motivo, também o amor é mais sentido na ausência
do amado, como diz Santo Agostinho: o amor não é tão
sentido enquanto não se apresenta a necessidade. E por
isso também a repugnância daquilo que se odeia é mais per-
cebida sensivelmente que a conveniência do que se ama.420
O homem age mais energicamente para rejeitar o odioso
porque o ódio é mais sensível.421
Segunda, porque não se compara o ódio ao amor corres-
pondente, pois é segundo a diversidade de bens a diversidade
em magnitude dos amores, aos quais se proporcionam os ódios

418 - S. Th., I-II, 29, 2, ad 1.


419 - S. Th., I-II, 29, 3.
420 - S. Th., I-II, 29, 3.
421 - S. Th., I-II, 29, 3, ad 3.

254 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

opostos; de modo que o ódio que corresponde ao maior amor


move com mais força que um amor menos intenso.422
Portanto, o ódio nunca vence o amor a não ser por causa
de um maior amor a que corresponde o ódio.423
4. Como causa universal, o amor também é causa do gozo e
da tristeza. Do amor procedem a alegria e a tristeza, ainda que
de maneira diferente. Pois o gozo é causado pelo amor porque
o bem amado está presente. Ao contrário, segue-se tristeza do
amor por ausência do amado ou porque o amado, para quem
queremos o bem, anda deprimido por um mal.424
O gozo deve ser considerado em sua essência e em sua
causa. No que concerne à sua essência, o gozo não é um mo-
vimento, mas um ato consumado. Sendo a causa do prazer
a presença do bem conatural, o gozo ou prazer mesmo não
é um fieri, uma geração como supôs Platão,425 mas consis-
te antes num factum esse,426 no fato consumado, como diz
Aristóteles:427 quando as coisas se constituem em sua pró-
pria operação conatural e não impedida, segue-se o prazer,
que consiste no estado perfeito alcançado (perfectum esse).
Mas, no que se refere à sua causa, o gozo é certo movimen-
to. Pois no ser animado podem considerar-se duas classes de
movimentos: uma, quanto à tendência ao fim, que é própria
da tendência interna; outra, quanto à execução, que é pró-
pria da operação exterior. Portanto, ainda que naquele que
já conseguiu o bem que ele goza cesse o movimento de exe-
cução pelo qual se dirige a seu fim, não cessa, porém, o mo-
vimento da tendência interior, a qual, como antes desejava
o que não tinha, assim depois se compraz no possuído. E,
ainda que o prazer seja certa quietude da tendência porque
está presente o bem que o satisfaz, não obstante permanece

422 - S. Th., I-II, 29, 3.


423 - “Homo magis diligit se quam amicum: et propter hoc quod diligit se,
habet odio etiam amicum, si sibi contrarietur” (S. Th., I-II, 29, 3, ad 2).
424 - S. Th., II-II, 28, 1.
425 - Filebo, c. 32, 33.
426 - S. Th., I-II, 31, 1.
427 - Ethic., 12, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 255


Juan Cruz Cruz

ainda na tendência a imutação produzida pelo apetecível —


a que o amor original provocou —, razão por que o gozo é um
movimento.428

b) A estrutura do ódio

À diferença de qualquer amor, o ódio é vontade de que


o outro não seja e de que não culmine para o bem suas
possibilidades.
O ódio tem vários graus, segundo a incidência negativa,
mais ou menos profunda, que tenha na pessoa.
a) O ódio radical pretende a anulação do outro, anulação
que pode apresentar duas modalidades: primeira, a eliminação
física da pessoa mediante uma ação transitiva que lhe cause a
morte; segunda, e mais refinada, supressão da intimidade pes-
soal mediante uma ação imanente. Para esta última, são neces-
sárias duas coisas: em primeiro lugar, que o sujeito conviva com
os atos com que o outro determina sua mesma intimidade ou o
interior de sua personalidade; segunda, que se comporte nessa
convivência como o verme que mata a semente deixando a
polpa ou a casca: permitindo ao outro viver superficialmente,
porque necessita dele para continuar a golpear sua intimidade,
mas impedindo que viva por dentro. O ódio mais refinado é o
que mantém uma vida pessoal física sem ser íntimo. Provavel-
mente este viver seja a ante-sala do inferno.
b) O ódio limitante se apresenta em muitas atividades hu-
manas, justamente aquelas em que o outro é visto algumas ve-
zes como obstáculo para a realização social própria (por exem-
plo, no cargo de uma empresa) e outras vezes como simples
instrumento (reduzido, por exemplo, ao silêncio social em be-
nefício da atividade própria).429

428 - S. Th., I-II, 31, 1, ad 2; I-II, 31, 4.


429 - Análises fenomenológicas interessantes sobre este tipo de conduta
podem encontrar-se no livro de Pedro Laín Entralgo, Teoría y realidad del
otro, 2 vols., Madri, Revista de Occidente, 1961; especialmente no vol. II,
197-225.

256 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

Paralelamente, há um ódio impessoal que se opõe ao amor


imperfeito; e um ódio pessoal, oposto ao amor perfeito, tanto
ao benevolente como ao íntimo (amistoso e esponsalício). O
ódio impessoal não dirige sua aversão à pessoa, mas somente
às coisas que são contrárias às queridas com amor itinerante.
O ódio pessoal, em contrapartida, dirige sua aversão à pessoa
para a qual desejávamos um bem, opondo-lhe ativa e positi-
vamente um mal contrário àquele bem, ou ao menos uma pri-
vação desse bem que lhe desejaríamos com amor perfeito. Em
suma: amor perfeito (às pessoas) e amor imperfeito (às coisas
que se querem para as pessoas) contrapõem-se respectivamen-
te a um duplo ódio, um às pessoas, outro às coisas da pessoa.
O ódio impessoal se dirige à coisa contrária; o ódio pessoal se
dirige à pessoa para quem desejamos o mal. “Esta diferença dos
termos”, comenta Caetano “deve ser entendida formalmente;
isto é, a pessoa como tal é objeto de ódio pessoal, e a coisa
como tal é objeto de ódio impessoal.”430 De modo que, tanto
no amor perfeito como no ódio pessoal, a pessoa é tomada en-
quanto tal (formalmente), não como uma coisa ou natureza.
Os dois tipos de ódio (o impessoal e o pessoal) implicam
duas notas: o movimento dirigido à coisa e o dirigido à pes-
soa, mas de modo inverso: porque o ódio impessoal é um mo-
vimento de dissonância com respeito às coisas que se opõem
às queridas com amor imperfeito, ainda que simultaneamente
seja um movimento de consonância com a própria pessoa. O
ódio pessoal — ou melhor, antipessoal — é um movimento
de dissonância com respeito à pessoa, mas simultaneamente é
um movimento de consonância com as coisas que se opõem às
queridas pelo amor pessoal.
Nos tipos de amor referidos — o imperfeito e o perfeito
— existe um só movimento de consonância com a coisa e a
pessoa, ainda que exista uma diferença fundamental: no amor
imperfeito a consonância se refere principalmente à coisa e
secundariamente à pessoa; enquanto no amor perfeito a con-
sonância se dirige principalmente à pessoa e secundariamente

430 - Tomás de Vio Caetano, In II-II, q. 34, art. 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 257


Juan Cruz Cruz

à coisa que a ela convém, coisa que lhe referimos por amor
da pessoa mesma.431 No que concerne paralelamente ao ódio,
assim o explica Caetano: “Como amar é querer o bem para al-
guém, inclui duas notas pelo lado do objeto: o bem e o alguém;
assim também no objeto do ódio confluem dois aspectos: o
mal e a pessoa. Pois bem, o amor perfeito e o imperfeito se
referem de maneira uniforme aos dois aspectos, e sempre ex-
pressando afirmação ou consonância. Mas o ódio pessoal e o
ódio impessoal se comportam de maneira não uniforme com
tais aspectos. O ódio pessoal (ou antipessoal) refere-se à pessoa
expressando negação e dissonância, embora se refira ao mal
expressando afirmação e consonância; enquanto o ódio impes-
soal se refere à pessoa expressando afirmação e consonância,
mas ao mal expressando negação e dissonância. Pois, quando
alguém odeia o castigo ou algo parecido, mostra dissonância
com respeito a ele, retirando-lhe seu afeto; mas aqueles que ele
não quer que sejam castigados, seja ele mesmo ou sejam outros,
são afirmados em seu afeto, e ele tem consonância com eles.
E, ao contrário, quando alguém odeia um homem, retira-o de
seu afeto e tem dissonância com ele; mas afirma em seu afeto e
mantém consonância com o mal que acontece ao outro: quer o
mal para ele [...]. O que se apresenta como objeto mau e causa
do ódio é rejeitado pelo afeto e não tem consonância com ele.
Pois no ódio pessoal [ou antipessoal] a pessoa vem a ser objeto
mau e causa má; e no ódio impessoal não é a pessoa, mas a coi-
sa má, o que vem a ser objeto mau e causa má; e, assim como
no amor pessoal ou perfeito o objeto amado é amigo, no amor
imperfeito só é amiga a coisa desejada”.432 Por último cabe assi-
nalar que são infinitas as formas individuais de ódio impessoal
(desde o provocado pelo incômodo barulho de uma serra até o
induzido por um gesto altaneiro ou uma voz estridente).

431 - Santiago Ramírez, “De odio”, em De passionibus animae, 155-157.


432 - Tomás de Vío Caetano, In II-II, q. 34, art. 1.

258 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

c) Há ódio de si absoluto?

A linguagem do ódio é sempre esta: não quero isso, mas por


amor daquilo. E “pelo fato mesmo de que se ama uma coisa [é
que] se aborrece sua contrária, e assim o amor de uma coisa é
causa de que se aborreça sua contrária”.433 De modo que o ódio
é causado pelo amor: o amor tem primazia tanto de um ponto
de vista subjetivo — o movimento mesmo da faculdade voliti-
va — como objetivo — o ser a que se dirige essa faculdade.
1. Primazia de um ponto de vista subjetivo, porque “o amor
consiste em certa conveniência do amante com o amado, en-
quanto o ódio consiste em certa contrariedade ou dissonância;
e em todo ser a consideração do que lhe convém é anterior à
consideração do que o contraria, pois uma coisa é contrária
a outra porque destrói ou impede o que lhe é conveniente.
Portanto, o amor é necessariamente anterior ao ódio, e nenhu-
ma coisa é aborrecida senão por ser contrária ao objeto que se
ama. E, por conseguinte, todo ódio é causado pelo amor”.434
Do que se disse depreende-se que, se para o amor podem
distinguir-se dois tipos, o itinerante e o quiescente, no caso do
ódio não cabe fazer uma distinção paralela ou tão categórica:
ao menos convém dizer que não há ódio plenamente quiescen-
te. Porque o movimento do amor se dirige ao fim; enquanto o
movimento do ódio se afasta do mal, de modo que “o afasta-
mento do mal se ordena à consecução do bem como ao fim”.435
O “tomara que morras!“ é manifestação de um sujeito que sen-
te em sua vontade repugnância ao que capta como contrário
no outro — ou seja, é manifestação de um ódio profundo à
pessoa —, mas brota na verdade de certa conformidade dessa
vontade com o que o sujeito capta como conveniente e bom
para ela, brota de um amor.
2. Primazia do amor de um ponto de vista objetivo, assim
como é antes o que é em si que o que é em outro ou em com-

433 - S. Th., I-II, 29, 2 ad 2.


434 - S. Th., I-II, 29, 2.
435 - S. Th., I-II, 29, 3.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 259


Juan Cruz Cruz

paração com outro: porque “o ser enquanto ser não implica


incompatibilidade ou repugnância, mas, pelo contrário, con-
veniência, dado que todas as coisas convêm no ser. Pois bem,
só quando o ser é um ser determinado e concreto (hoc ens
determinatum) é que se torna incompatível com outro deter-
minado ser singular. Por isso um ser é odioso a outro e mau,
ainda que não em si (in se), mas porque é comparado com o
outro”.436
Se distinguirmos o nível ontológico e o nível psicológico
do ódio, deve-se destacar um ponto importante sobre o mal,
tanto físico como pessoal, que pode ser o objeto do ódio: tal
mal não deve ser entendido somente como algo privativo com
respeito ao bem oposto (o mal, claro está, é ontologicamente
privação do bem), mas como algo contrário, pois ainda que,
falando em geral, seja ontologicamente um bem (e é um ente,
aliás), psicologicamente, no entanto, é um mal, porque repug-
na ao apetite, sensitivo ou racional, mostrando dissonância
com respeito a este ente determinado espaciotemporalmente
que é o sujeito que quer ou apetece.
3. O caráter duplamente relacional que o ódio tem (refere-
se a um bem em torno do qual gravita e afasta-se de um mal
contrário a esse bem) faz que o ódio seja, de um ponto de vista
entitativo, menos forte que o amor. O exemplo mais próximo
que se poderia aduzir para desmontar esta tese é o ódio que um
ser humano poderia ter a si mesmo. Mas deve-se recordar que,
como o ódio é contrário ao amor, ninguém pode odiar a si mes-
mo com um ódio inato ou natural, porque por natureza não
podem existir dois contrários simultaneamente, cujo proceder
seja idêntico e referido ao mesmo. A natureza dotou todos os
seres de um amor inato ou natural.
Só seria admissível que, embora do ponto de vista entitati-
vo não fosse possível esse ódio autonegador, se desse, do ponto
de vista operativo, um ódio radicado na vontade: pois bem,
nem sequer neste caso pode de si, per se, o homem odiar a si
mesmo, nem do ângulo do objeto nem do ângulo do sujeito.

436 - S. Th., I-II, 29, 1 ad 1.

260 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

a) Visto o ódio do ponto de vista do objeto ou da especi-


ficação pelo objeto, o amor de si é natural e necessário. De
modo que de si, per se, no ato de sua vontade o sujeito ama a
si mesmo naturalmente. Mas relativa ou acidentalmente, per
accidens, pode alguém odiar a si mesmo. Por exemplo, o ob-
jeto ou o bem que alguém quer para si com amor itinerante
não é para o próprio sujeito um bem de maneira absoluta, sim-
pliciter, mas um bem apenas de maneira aparente e relativa,
secundum quid, conquanto possa ser um mal de maneira abso-
luta: e pode o sujeito odiar a si mesmo de maneira absoluta na
medida em que se ama de maneira relativa, como aquele que
toma uma dose de heroína que de maneira absoluta lhe provo-
ca a morte. “Às vezes o que se apetece como bom é, se visto em
particular, mau em absoluto; e, segundo isto, alguém quer para
si incidentalmente (per accidens) o mal, o que é odiar-se.”
b) Considerado o ódio do ponto de vista do sujeito, cabe dizer
que alguém também pode odiar a si mesmo: pois, na medida em
que quer para si um bem com amor quiescente, pôde considerar
como falso e relativo, per accidens, que ele seja o que realmente
não é, a saber, homem pela vida animal ou pelos bens temporais,
quando em verdade é um ser humano por sua mente e seu espí-
rito. “Cada coisa consiste antes de tudo no mais principal dela, e
por isso se diz que uma cidade faz o que o rei faz, como se o rei fos-
se a cidade inteira; e o homem é sobretudo seu espírito. Alguns,
no entanto, se crêem constituídos principalmente pelo que são
segundo a natureza corporal e sensitiva; e por isso se amam se-
gundo o que crêem que são, e odeiam o que verdadeiramente são,
querendo coisas contrárias à razão. [...] quem ama a iniqüidade
odeia não somente sua alma, mas também a si mesmo.”437

d) A inveja como raiz do ódio

A inveja é considerada pelo Aquinate uma das raízes do


ódio. Ela é, do ponto de vista fenomenológico, um “olhar fas-

437 - S. Th., I-II, 29, 1 ad 1.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 261


Juan Cruz Cruz

cinante”. Que é a fascinação? É simplesmente, segundo o di-


cionário, a ação de “aojar” [ou seja, o aojo ou “mau-olhado”],
de emitir um mal através dos olhos.438 Há no ato comunicativo
pessoas que emitem maldade através dos olhos? Há pessoas que
com um olhar maléfico influem negativamente no próprio ato
comunicativo? Este é em síntese o problema da fascinação,
no qual ressalta, de um lado, o “aojador” [o que emite mau-
olhado] ou agente fascinador e, de outro lado, o que provo-
ca a fascinação.
1. É preciso referir-nos ao fato de que em nossas socieda-
des aparece com freqüência uma crença inconsciente numa
força dispersa que, concentrada em alguns homens, é emitida
pelos olhos e prejudica outras pessoas em sua saúde ou em
suas propriedades, impedindo-lhe a felicidade nesta vida. Es-
ses homens são os fascinadores ou “aojadores”, pois emitem
uma força que teria a propriedade de danar ou consumir as
coisas nas quais se fixa. Considera-se então, também incons-
cientemente, que a pupila desse fascinador descarrega sobre
o que olha uma substância invisível, semelhante ao veneno
da serpente. Conta Plutarco que Eutélidas tinha tanto po-
der negativo nas pupilas, que podia prejudicar a si mesmo
apenas olhando-se ao espelho. Esse poder foi chamado pelos
latinos fascinum (daí a palavra fascinación), que em caste-
lhano também se chama aojo ou mal de ojo [mau-olhado].
Quando o “aojador” encontra uma coisa viva e bela, boa,
elevada, lança contra ela a luz envenenada de suas pupilas
e a faz languescer paulatinamente, ou até a mata. O homem
sobre o qual recaiu o mau-olhado já não poderá sair-se bem
em nenhum trabalho, em nenhum projeto: o que quer que
empreenda ou realize explodirá em mil pedaços; até o futuro
que ele estima fica ameaçado. Os fascinadores costumam ter
aspecto disforme ou exibir uma feiúra física, especialmente a
aparência facial, a que se vê ou que entra pelos olhos.

438 - O verbo português “fascinar”, ao contrário de seu correlato espanhol


(fascinar), não tem entre suas acepções a de “lançar mau-olhado”. [N. do
T.]

262 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

O mal proveniente do fascinador é provocado ou induzido


pelas “qualidades” de outros homens, consideradas como ne-
gativas: por algo apreendido como um mal — teria dito Santo
Tomás — e, portanto, motivo de aversão ou ódio. Mas que
qualidades são consideradas aqui como “negativas” e provoca-
doras da reação maléfica da “fascinación”? As boas ou as más?
Ainda que pareça mentira, normalmente são as boas.
2. O negativo e provocador é a inteligência, a beleza, as
qualidades, o bem-estar que se vê, por exemplo, numa pessoa.
Este ser inteligente, capaz ou cheio de qualidades físicas, psí-
quicas e sociais é o provocador, o indutor: por seu caráter su-
postamente negativo, atrai o “mau-olhado” do “fascinador”.
Salta aos olhos que o fascinador está atormentado em seu
íntimo por um sentimento de ódio especial, provocado pela
inveja, a qual não é outra coisa senão a tristeza ou o pesar pelo
bem e pela felicidade do outro.439 Inveja, etimologicamente,
vem do verbo latino videre, que indica a ação de ver pelos
olhos, e da partícula in; de modo que invidere significa olhar
com maus olhos, projetar sobre o outro o mau-olhado. Em nos-
so caso, dizer invejoso quer dizer fascinador do outro. Desse
modo, erige-se a inveja em raiz ou mãe do ódio à pessoa: invi-
dia est mater odii, primo ad proximum, dizia Santo Tomás.440
O mundo antigo conhecia muitos caracteres da inveja
como paixão íntima. Entre os gregos, ela é representada como
uma mulher com a cabeça eriçada de serpentes e o olhar oblí-
quo e sombrio. Seu estranho olhar, com sua cor cetrina, tem
uma explicação fisiológica normal, pois, no ato de invejar, o
homem sofre uma ação cardiovascular constritiva, que produz
lesões viscerais microscópicas e dificulta a irrigação sanguínea
e a assimilação normal. A cabeça coroada de serpentes era sím-
bolo de suas perversas idéias; em cada mão levava um réptil: um
inoculava o veneno nas pessoas; o outro mordia a própria cauda,
simbolizando com isso o dano que o invejoso faz a si mesmo.

439 - Foi-me de grande utilidade para redigir estes pontos concernentes à


inveja o livro de Helmut Schoeck, La envidia y la sociedad.
440 - S. Th. II-II, 34, 6 ad 2.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 263


Juan Cruz Cruz

3. A filosofia clássica encontrou fenomenologicamente


pelo menos seis características no “invejoso”.441
Primeira, ao “invejoso” causa pesar ou descontentamento o
bem-estar e a fortuna dos demais: invidia est tristitia de bono al-
terius, inquantum aestimatur diminuere gloriam propriam.442 Por
exemplo, ele vê os bens do outro, mas não as dificuldades ineren-
tes a seu comportamento, nem as privações e desvantagens que
teve de superar para consegui-los.
Segunda, o invejoso é uma pessoa próxima do provocador:
próxima no espaço e na fortuna. Eu não posso invejar um Rocke-
feller, mas sim o Seu Próspero, o charcuteiro do meu bairro, que
está enriquecendo. E, se Seu Próspero quebrar uma perna, eu me
consolarei pensando que agora eu posso andar melhor pela vida.
A grande desigualdade provoca admiração, enquanto a desigual-
dade mínima provoca inveja e ojeriza: invidia non est inter mul-
tum inaequales, sed ad illos tantum, quibus potest quis se aequare
vel praeferre.443 O estudante que se dirige a pé de seu bairro à Uni-
versidade odeia só um pouquinho o colega que vai num modesto
automóvel; mas o dono desse automóvel morre de inveja ao ser
ultrapassado por um veículo deslumbrante e de marca famosa. Às
vezes o que é invejado é igual ou parecido ao que o invejoso tem;
mas a imaginação inconsciente o deforma e o aumenta. Por isso
diz o ditado que “o invejoso faz dos mosquitos elefantes”.
Quarta, quanto mais favores, atenções ou mimos faça o
provocador ao fascinador, mais forte será neste o desejo de eli-
minar aquele, pois a dádiva lhe recordará sempre que ele está
num grau inferior ou de carência. E, ainda que se alcançasse
uma perfeita justiça igualitária, sempre restaria a desigualdade
de inteligência e de caráter, a qual seria motivo de inveja.
Quinta, como na maioria das vezes o fascinador não pode
destruir o outro e, ademais, não pode suportar a idéia de que
sobrevivam a ele as pessoas afortunadas, dirige contra si mesmo
a outra parte desse ódio agressivo: não só quer destruir o outro,

441 - S. Th. II-II, 36.


442 - S. Th. II-II, 36, 4.
443 - S. Th. II-II, 36, 1 ad et ad 3.

264 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

mas quer destruir a si mesmo; é autodestrutivo, autodevorador,


sendo seu lema: “Prefiro morrer a ver-te feliz!” Ele também é
masoquista. Donde dizermos que alguém morre de inveja.
Sexta, o fascinador nunca descansa: nem sequer a expro-
priação forçada da fortuna do outro, em sentido igualitário,
consegue eliminar sua inveja. Por isso, “se a inveja fosse febre,
todo o mundo teria morrido”, diz o ditado.

5. O amor como causa exemplar. Amor e matrimônio

a) Etiologia do matrimônio

Esta parte do livro é suscitada por duas questões rela-


cionadas entre si. Primeira, a fenomenologia e ontologia
do amor esponsalício que foram estudadas no capítulo IV,
onde se expõe um conceito ou modelo do amor esponsa-
lício, um ideal — estrutura de notas essenciais do amor
— que já constitui um núcleo importante de qualquer an-
tropologia personalista. Segunda, a relação que certos cír-
culos de pensamento consideram que esse amor tem com
o matrimônio. Poder-se-ia interpretar essa conexão como
uma relação de causa a efeito? O amor esponsalício, em
sua fecunda dimensão pessoal de doação e promoção, seria
causa do matrimônio?
O problema filosófico que se pode suscitar reside em in-
terpretar a índole causal que o amor tem, como realidade
originária e profunda, na totalidade da pessoa, em seu ser e
agir; por conseguinte, na constituição do matrimônio.
Advirta-se de início que o amor esponsalício não é pro-
priamente o amor conjugal ou matrimonial, nem o amor de
enamorados, mas uma categoria de amor que plenifica e dá
sentido pessoal tanto à relação de enamoramento quanto à
relação conjugal. Pois poderia haver matrimônio — e até
enamoramento — sem autêntico amor esponsalício. Este
amor é, como se disse, pessoal, livre sexuado, total, incon-
dicional, fiel e criador.

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 265


Juan Cruz Cruz

Só do ângulo deste valor, desta estrutura categorial pessoal


do amor esponsalício, é que se pode compreender o grau de
“satisfação“ ontológica que cada matrimônio pode ter.
A tradição canônica, filosófica e teológica configurou a
etiologia do matrimônio sob as quatro causas seguintes:444
1ª Causa eficiente: é a concórdia de vontades, ou melhor,
o consentimento dos contraentes expresso num pacto, num
contrato feito de modo livre e legítimo entre homem e mulher;
ninguém pode adquirir domínio sobre o corpo, que é de livre
disposição do outro, senão pelo consentimento deste. Como ao
matrimônio ninguém está obrigado individualmente — ainda
que o homem se ordene naturalmente à sociedade conjugal,
pois o matrimônio é uma união a que inclina a natureza huma-
na —, o vínculo matrimonial só pode surgir por contrato livre
e legítimo; não há liberdade num contraente se ele é levado à
força a expressar a fórmula do contrato ou se ignora o sentido e
o conteúdo do que está pactuando. Pois bem, o pacto conjugal
não é o matrimônio, mas sua causa: o consentimento produz o
matrimônio; ativamente considerado, o matrimônio é o con-
trato legítimo entre homem e mulher. Mas a causa — uma das
causas — não é a essência mesma do matrimônio.
2ª Causa formal: união e vínculo consistente no direito
mútuo, perpétuo e exclusivo ao corpo do outro (viri et mulieris
coniunctio). É o matrimônio em sentido essencial.
3ª Causa final: a prole, pois o matrimônio é instituído
para gerar filhos e educá-los, o que é seu fim primário; e
da união se segue, também naturalmente, a comunhão de
leito, mesa e habitação para se ajudarem mutuamente (in-
dividuam vitae consuetudinem retinens) e exercerem a se-
xualidade, que são os dois fins secundários do matrimônio:
trata-se de um todo teleológico cujas vecções são hierar-
quicamente ordenadas, ainda que dentro de uma unidade
estrutural congruente.

444 - De todo intencionalmente vou dobrar-me não só à terminologia clás-


sica, mas também à explicação que comumente se encontra em textos de
fácil acesso.

266 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

4ª Causa material: engloba homem e mulher suficiente-


mente dotados sexualmente, na ordem biológica e na ordem
psíquica, para levar a efeito a união pactuada; de modo que
estão incapacitados para o matrimônio, por exemplo, os afe-
tados por impotência permanente ou os que carecem do uso
da razão.
Em suma, o matrimônio é a união legítima, estável e ex-
clusiva entre homem e mulher, surgida de seu mútuo consenti-
mento, e ordenada à procriação e à mútua ajuda dos esposos.
Como se pode ver, o matrimônio aparece aqui como um
contrato peculiar, pois à diferença dos contratos convencio-
nais, ele dá origem a direitos imutáveis — por exemplo, a in-
dissolubilidade —, sendo ademais seus efeitos essencialmente
independentes do arbítrio das partes. A vontade dos esposos
não é absolutamente autônoma e soberana, razão por que pro-
duz seu efeito em consonância com um desígnio natural prévio,
que é seu fundamento: a complementaridade entre virilidade e
feminidade. Ainda que o consentimento seja a causa eficiente
do matrimônio, não o é de sua conservação. A liberdade inter-
vém para sujeitar-se ao vínculo. Esta sujeição livre não é uma
limitação da liberdade, mas a condição de possibilidade para
que se desenvolva como humana e finita.

b) O amor esponsalício, causa ou efeito do matrimônio?

Visto o objeto de que se fala, o matrimônio, passo a expor


as posições suscitadas pela questão da referência etiológica do
amor ao matrimônio.
a) Boa parte dos intelectuais com formação clássica nega
rotundamente a conexão causal entre amor e matrimônio: não
haveria relação direta entre pacto conjugal e amor conjugal.
Dizem eles: mesmo um matrimônio sem amor é válido; a sim-
ples conveniência de costumes, o mero interesse econômico,
o puro desejo erótico podem ser os minúsculos acompanhantes
do pacto matrimonial; e em nenhum caso devem ser chamados
causas dele. Portanto, a essência do matrimônio é o vínculo

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 267


Juan Cruz Cruz

jurídico nascido do consentimento — consentimento que dá


lugar a direitos e deveres conjugais —, mas o amor conjugal é,
no máximo, um mero requisito para a felicidade matrimonial.
As leis que regem a vida matrimonial são de índole natural,
inscritas na natureza do homem, e nada devem ao amor. O
matrimônio é o dever, não o amor. O vínculo mútuo (a forma)
funda-se na livre decisão (o eficiente). Não pode originar ma-
trimônio um ato ou circunstância das pessoas que não esteja
em relação com essa livre decisão. Nem o amor por si mesmo,
nem a convivência marital, nem o ato conjugal unem em ma-
trimônio, mas apenas a livre decisão como ato de vontade.
Até aqui a argumentação de uma etiologia matrimonial extra-
amorosa, para dizê-lo de alguma forma.
b) Há uma argumentação que desenvolve uma etiologia
matrimonial intra-amorosa. Não nega o núcleo interno que
estrutura o matrimônio — segundo a ordem da causa eficien-
te, final, formal e material —, mas pretende enriquecê-lo.
Reconhece que homem e mulher, através de suas estruturas
complementares de virilidade e feminidade, tendem a unir-se
numa unidade primária, a fazer-se dois em um. Mas a união
é mais ampla que a concernente a este aspecto natural: no
matrimônio dá-se também união de duas pessoas, pelo amor
mútuo que se professam. Como não é possível que entre elas
exista a unidade substancial, porque então deixariam de ser
dois, é preciso que a dualidade se expresse numa relação maxi-
mamente próxima da identidade ontológica: e essa relação tem
a nota essencial de indissolubilidade e perpetuidade. Os dois
formam uma como pessoa. Trata-se de que o amor faz a união,
ainda que não em forma de fusão. Mas este amor, que tem as
características de ser pessoal, inteiro e promotor dos valores
do outro — de corpo e alma —, é algo prévio ao matrimônio:
o amor conjugal tende ao matrimônio, mas não é um de seus
fins. Nem o matrimônio é um álveo do amor, nem o amor é fim
do matrimônio. O matrimônio não é álveo para que homem
e mulher se amem licitamente, mas efeito de um amor que
tende à união; tampouco é uma estrutura acrescentada para
regular o amor, mas fruto deste. Por sua vez, o amor não é fim

268 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

do matrimônio, nem a união matrimonial é uma instituição


surgida para que os cônjuges se amem. Essa união é sempre um
efeito ou fruto do amor, e não é possível que este seja fim do
matrimônio. O amor é, assim, causa de causas: causa o pacto
conjugal (move à causa eficiente), o qual vem a ser um efeito do
amor conjugal. E causa também a união (a causa formal). Portan-
to, se o amor é fator unitivo, não pode ser fim do matrimônio. É
o amor o que inclina os cônjuges à união, a qual é o matrimônio
mesmo. O amor mantém unidos os cônjuges, evitando a infideli-
dade, e propicia a felicidade gozosa pela união real entre o amante
e o amado. Em conclusão, não tem sentido dizer que um fim do
matrimônio é fomentar o amor: a causa da vida matrimonial não
pode ser um fim que seja fomentado de dentro desta mesma vida,
porque a causa não é o fim do causado.
c) A tese que proponho respeita as duas posições anterio-
res, no que têm de afirmativo, integrando-as na dimensão etio-
lógica da causa exemplar. As duas últimas frases do parágrafo
imediatamente anterior encerram, em negativo, a chave do
que quero dizer. Porque aí se diz, segundo a etiologia intra-
amorosa, que o amor existencialmente vivido é causa da vida
matrimonial; em contrapartida, não o é, segundo os defensores
da etiologia extra-amorosa.
Pois bem, o amor pode e deve ser causa do matrimônio como
ideal ou exemplar. Este exemplar vem a coincidir com a “estru-
tura ideal de amor” que tão finamente foi elaborada pelos de-
fensores da etiologia intra-amorosa, e que expressa a substância
de um amor pessoal, inteiro e promotor dos valores espirituais
e corporais de dois seres humanos sexualmente diferenciados.
Neste caso, a causa exemplar é fim do causado, dado que sua
causalidade se identifica em parte com a da causa final.
Mas, antes de prosseguir, convém determinar os traços es-
senciais da causa exemplar, do ângulo da qual cabe dizer que só
através do matrimônio o amor esponsalício é capaz de realizar-
se plenamente.445

445 - Na doutrina clássica da Igreja, adverte-se que o motivo — fim sub-


jetivo ou intenção — dos agentes para contrair matrimônio deve ser “lí-

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 269


Juan Cruz Cruz

A anterior síntese da fenomenologia desse amor só pre-


tendia estabelecer o complexo de notas essenciais que devem
entrar na objetivação do amor como causa exemplar do ma-
trimônio, de modo que o amor seja vivido plenamente em sua
riqueza de totalidade, unicidade, fidelidade e fecundidade.

c) A mais antropológica das causas

Etimologicamente, “exemplar” (exemplar em latim) deriva


de eximo ou exemo, que significa tomar uma coisa entre mui-
tas para pô-la separada e à vista de todos; de exemo provém
também ex-imius (exímio, conspícuo) e ex-emptus (isento).
Os clássicos distinguiam entre exemplo e exemplar. O
exemplo pertence preferentemente ao âmbito do moral: é pro-
posto para ser seguido ou evitado. O exemplar é principalmen-
te do âmbito da arte: tomando-o como ponto de referência,
imita-se ou faz-se algo semelhante.
O exemplar é assim “causa exemplar”, e só cabe aplicá-lo
propriamente à ordem antropológica, não à dos seres irracio-
nais: é aquilo à imitação do qual se faz algo que é focalizado es-
sencialmente pela intenção de um agente que determina para
si mesmo o fim.446
Esta determinação da “causa exemplar”, cujas notas irei
desenvolvendo, é de importância decisiva para descobrir as
implicações etiológicas mostradas pelo amor esponsalício.
1. Primeiro, “é aquilo à imitação do qual se faz algo”. O
“exemplar de união” — seja de conveniência interessada, seja

cito”, razão por que não necessariamente há de ser o amor. No entanto, o


amor conjugal é um dos compromissos que se adquire no contrato-aliança
matrimonial, o qual é repetido pelo Ritual do Matrimônio em quatro for-
mulacões: “Estais decididos a amar-vos e respeitar-vos mutuamente por
toda a vida?” (n.º 93); “N., eu te recebo como esposa(o) e prometo amar-te
fielmente por toda a minha vida” (n.º 94); “N., queres receber a N. como
esposa(o), e prometes... assim, amá-la(o) e respeitá-la(o) todos os dias de tua
vida?”; “N., recebe esta aliança, em sinal de meu amor e fidelidade a ti”.
446 - “Haec ergo videtur esse ratio ideae [formae exemplaris], quod idea sit
forma quam aliquid imitatur per se ex intentione agentis qui determinat
sibi finem” (Santo Tomás de Aquino, Quodlib. 8, 2c).

270 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

de amor total e donal — é um ponto de referência, ao qual se


conforma o matrimônio, e à semelhança do qual se constitui
este: portanto, o matrimônio vivido o imita. Mas seu desdobra-
mento etiológico no matrimônio não acontece por inerência e
composição (como faz a forma intrínseca), mas por imitação,
dado que olhando-o realizam os cônjuges, como o artista, sua
obra, de modo que esta se assemelhe àquele. Portanto:
a) O “exemplar de união” não é um princípio de conheci-
mento teórico, um meio ou veículo intelectual através do qual
se conhece algo, mas um autêntico conceito objetivo, algo ter-
minal que é conhecido e que é visto pelo cônjuge como artista
quando põe em obra seu matrimônio.
b) Nem todo conceito objetivo é um exemplar, mas só
aquele que encerra um aspecto de imitabilidade,447 segundo o
qual o artista pretende formar algo. Deste ponto de vista, o
“exemplar de união” pertence à ordem do intelecto prático, e
só assim é um princípio de mediação: não de conhecimento,
mas de ação,448 pois mediante ele o cônjuge obra como artista
de seu próprio matrimônio.
c) O exemplar não pertence diretamente à ordem do aper-
feiçoamento ético do homem, próprio da inteligência prá-
tica que desenvolve uma atividade prudencial: não é forma
agibilium, diziam os clássicos, entendendo-se por agibilia as

447 - A causa exemplar reside na mente como idéia prática. É a idéia ou o


ideal que necessariamente acompanha um ser inteligente antes de ele agir,
pois contém o plano e o objeto de sua ação: se não estivesse no princípio
e no curso de qualquer realização inteligente, seria impossível toda ação
subseqüente. Sua causalidade é de tipo intencional, de ordem intelectual,
mas não física. O ideal representa o objeto como bom, em qualquer dos
aspectos que a bondade expressa. O que atrai a vontade é a força mesma da
bondade do objeto conseguível ou da ação realizável. Na medida em que a
idéia exerce uma atração sobre a vontade — atrair é a causalidade própria
do exemplar — faz-se um “ideal”. O resultado desta causalidade, desta
atração, é a inclinação que se produz na vontade. Resumindo, na origem
de toda atividade inteligente está o ideal, o exemplar, primeiro momento
da atividade, sendo origem e fonte desta, pois provoca a série inteira de
operações e de fatos nos quais se apresentam também as outras causas
intrínsecas e extrínsecas.
448 - Na expressão de Santo Tomás, segundo a qual a forma exemplar “non
est mere representativa rei, sed magis praesignativa, sicut exemplar factivum” (In
IV Sent., d. 8, 2, 1, qla. 4 ad 1, n.º 170).

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 271


Juan Cruz Cruz

ações humanas imanentes, as que se referem à vida e à moral,


reguladas pela prudência. Pertence, pois, à inteligência prática
chamada arte, à forma factibilium, entendendo-se por factibi-
lia as ações humanas que saem do sujeito e buscam seu termo
no outro, as transitivas. Estas ações, que saem de um cônjuge
para outro para realizar o matrimônio, são reguladas por uma
forma exemplar, por uma forma intelectual de coisas factibles.
Trata-se de um âmbito muito especial, onde as coisas agibilia
apresentam também o caráter de factibilia, enquanto estas, ao
contrário, se escondem na intimidade da união conjugal, onde
a vida e a moral se imbricam e se refletem em todas as suas
arestas. A realização do amor no matrimônio é ao mesmo tem-
po uma obra artística e uma obra prudencial.
2. Segundo, o exemplar “é focado essencialmente pela in-
tenção de um agente”. Em verdade, algo poderia ser feito aci-
dentalmente e fora da intenção do agente, ou seja, ao acaso, e
isto acontece, por exemplo, quando um pintor desenha a ima-
gem de um ser que ele não tinha intenção de pintar. Mas algo é
feito respondendo à intenção do agente quando, por exemplo,
o pintor faz bem o retrato de alguém que ele tem diante dos
olhos: diz-se então que o imitado ou exemplarizado é correto.
Que ao pintor saia casualmente uma imitação não é suficiente
para dizer que esta se conforma ao exemplar, pois, justamente
por ter surgido ao acaso, carece de ordem ao fim. Sendo, pois, o
“exemplar de união” aquilo a que se conforma o matrimônio, é
preciso que seja imitado essencialmente e não casualmente.
3. Terceiro, o exemplar requer “um agente que determine
para si mesmo o fim”. De duas maneiras algo pode ser feito
por um fim: uma, enquanto o agente determina para si mesmo
o fim, que é o que acontece nos seres que têm inteligência;
outra, enquanto ao agente se superpõe outro agente principal
que lhe determina o fim, que é o que acontece no movimen-
to da flecha que vai para um fim determinado. Quando um
agente que não determina para si mesmo o fim faz uma coisa
à imitação de algo, a forma imitável não é propriamente um
exemplar. Por isso, a forma é exemplar quando o agente obra
por um fim que ele mesmo determina para si. Por este requisito

272 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

de reflexividade ou auto-referência, própria do homem como


ser intelectual, é a causa exemplar a mais antropológica de
toda a etiologia clássica. No caso do amor conjugal, o fato de
o indivíduo determinar para si mesmo o fim — assumindo a
imitabilidade que dimana dessa estrutura eidético-prática que
se chama “amor pessoal e total” — não significa que a autode-
terminação deva ser arbitrária e absoluta: justamente a análise
fenomenológica, que se atém às coisas mesmas, já proporcio-
nou as notas essenciais que constituem a estrutura do amor
pessoal. Plasmar esse exemplar dia a dia no matrimônio será
uma invenção contínua, na qual a imaginação há de pôr à pro-
va sua própria fecundidade artística.
Assim, o “exemplar de união” é a forma que o cônjuge imita
em virtude da intenção essencial que tem quando o determina
para si mesmo como fim. O exemplar não é causa com respeito
a um agente natural irracional; nem sequer com respeito ao
homem que desenvolve atividades puramente naturais, como
as de metabolismo e crescimento; só se aplica ao homem que
obra por meio dessa função intelectual que se assimila à arte.
Deste ponto de vista, o cônjuge é um artista que produz de-
terminada forma no matrimônio guiado pelo exemplar para o
qual está olhando. Se as coisas naturais obram por sua forma
interna, o artista obra, mediante sua inteligência e vontade,
por uma forma externa escolhida e assumida por ele — ainda
que não inventada a esmo.

d) O influxo do amor como causa exemplar

Os clássicos chamaram à causa exemplar também formal,


por analogia com a causa formal estritamente dita. A causa
exemplar é mais afim à causa formal que à eficiente ou à final.
Se no exemplar que guia o matrimônio se integraram as no-
tas fundamentais do amor conjugal em perspectiva persona-
lista, pode-se compreender o grau de “satisfação” ontológica
que cada matrimônio pode ter de amor. Não é que não possa
haver casos de matrimônio em que as considerações relativas

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 273


Juan Cruz Cruz

ao interesse, à propriedade e à conveniência social entrem


em jogo; ou que o jugo da propriedade vincule permanente-
mente os cônjuges ainda que eles não se amem e ainda, até,
que cometam adultério. Mas o matrimônio é ontologicamente
satisfeito, na plenitude humana que lhe corresponde, quando
se introduz na corrente mesma do amor que exemplarmente
espera ser princípio de instituição. A instituição do matrimô-
nio e da família não se desenvolve por graus a partir do zero.
Ou existe de todo ou absolutamente não existe. Ela é a base
da sociedade política, anterior a esta com uma precedência
ontológica, não temporal. Assim como a origem mesma da
humanidade se identifica com a origem da família. Fundando
essa origem está o amor.
A palavra “origem” tem aqui o sentido da causa exem-
plar, pois a partir dela se podem articular idiomaticamente,
e num preciso sentido, o “original” e o “originado”. É verda-
de que “origem” pode coincidir também com “princípio” e
“causa”. Mas é de todo verdadeiro que a linguagem permite
estabelecer a relação de “original a originado” no âmbito da
causa exemplar.
A causa exemplar influi de modo parecido à eficiente e
à final: ainda que não imediatamente, como entidade indi-
vidual, mas mediatamente, quando a vontade a toma como
razão de seu causar; comporta-se de modo similar a como o
fim move o agente.
1º Move a modo de fim, porquanto o exemplar é mais per-
feito que o exemplarizado. O que o cônjuge pretende, como
artista de seu próprio matrimônio, é imitar o exemplar de amor
e expressá-lo da melhor maneira possível. Por isso, o exemplar
comporta propriamente uma causalidade com respeito às coi-
sas exemplarizadas, as quais são “feitas à imitação” do exem-
plar. Esta preposição “a” [de “à”] implica ordem ao fim: o ma-
trimônio se conforma ao exemplar; à semelhança do exemplar
constitui-se o matrimônio. O exemplar é, de certo modo, fim,
pois dele toma o artista a forma pela qual obra. Pode-se reduzir
a forma exemplar à causa final, porque incide na matéria como
um fim pretendido pelo agente. O exemplar é como o fim do

274 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

cônjuge como artista, já que o move a produzir o exemplari-


zado — o matrimônio — segundo o exemplar. O exemplar
efetivo ou efetuado é, assim, somente a realização matrimonial
mesma — através do pacto de amor conjugal —, dado que a
produz em seu ser.
2º Como a causa exemplar participa da final, conseqüen-
temente também participa da causa eficiente, a qual é movida
pelo fim, que é a razão mesma do ato de mover. A “causalidade”
do exemplar é a mesma ação do eficiente enquanto dirigida pelo
exemplar. A causa exemplar tem um “influxo” específico em seu
efeito, produz seu efeito, que não é outra coisa senão a formação
do exemplarizado, o matrimônio, mediante a ação do agente
no consentimento do pacto conjugal. Por isso, de certo modo
a causa exemplar se reduz à eficiente, pois dirige o eficiente e
constitui com ele um princípio de operação ou efetuação.
3º Mas, sobretudo, a causa exemplar influi primariamen-
te como forma: é aquilo a que algo se conforma. A forma é
de algum modo a causa do que é formado segundo o desenho
que ela tem. A causa exemplar se chama “formal” por analogia
com a causa formal estritamente dita. Esta, tal como a material
a que corresponde, está dentro da coisa causada: por sua pró-
pria essência, a forma está no interior daquilo de que é forma.
Pois bem, a forma exemplar está fora da coisa exemplarizada. E,
ainda que ambas as formas “formem” a coisa, o modo de formar é
essencialmente diferente: porque a intrínseca in-forma a coisa di-
retamente, enquanto a extrínseca ou exemplar con-forma a coisa
a algo que está fora desta. A forma desdobra sua causalidade por
modo de inerência; o exemplar, por modo de imitação. Pela forma
intrínseca forma-se a coisa; em contrapartida, à forma exemplar
se conforma a coisa: esta se forma por imitação ou semelhança.
Assim, a causa formal se compara de duas maneiras à coisa feita.
Uma, como forma intrínseca desta, e assim se diz espécie; outra,
como extrínseca, à semelhança da qual se faz a coisa, e deste pon-
to de vista a forma se chama exemplar dessa coisa.449

449 - É interessante observar as várias aplicações destas teses feitas pela


antropologia teológica clássica. No concernente ao tema desenvolvido,

O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino 275


Juan Cruz Cruz

Mas, considerado em si mesmo, o exemplar — a causa for-


mal extrínseca — de uma obra pode ser interno ou externo. O
interno encontra-se no interior do artista: é o ideal ou a forma
escolhida, preferida ou assumida por ele e que só existe em sua
mente. O externo pode ser, por exemplo, uma flor, um animal,
um campo, um comportamento humano, postos como mode-
los diante dos olhos do artista que faz o exemplarizado. Pois
bem, o único exemplar que verdadeiramente tem de modo es-
sencial razão de causa é o intrínseco — no nosso caso, a estru-
tura eidética do amor, a idéia exemplar de amor —, e por isso
é sempre exigido para realizar o exemplarizado, o matrimônio.
Em contrapartida, nem sempre nem necessariamente se requer
o exemplar externo (o comportamento matrimonial de duas
pessoas proposto como modelo): este só é exigido de maneira
contingente e ocasional, só quando dá ocasião a que o côn-
juge escolha uma idéia exemplar — interna, íntima — para
fazer, como um artista, sua obra matrimonial. Portanto, só por
meio do exemplar interno, da estrutura eidética que o cônjuge
como artista faz sua para realizar imediatamente a obra matri-
monial que o assimila, influi o exemplar externo, o modelo,
no cônjuge e no matrimônio. É, pois, este exemplar íntimo
o princípio formativo da obra artística matrimonial, a qual
se faz por imitação. Por isso, os bons amantes, tal como os
grandes artistas, hão de selecionar e assumir por si mesmos a
forma exemplar de amor, ainda que tenham necessidade do
estímulo de um modelo externo — também de uma educa-
ção para o amor e de uma doutrina sobre o amor. E por isso
também é fácil compreender que a estrutura eidética que,
como exemplar, guia a edificação do amor matrimonial não
é, por sua vez, um amor, porque antes do amor matrimonial
real não há outro amor, mas só a forma imaterial que existe
como exemplar na mente do cônjuge como artista de sua
própria vida matrimonial.

mediante o batismo o homem e a mulher se inserem na Aliança espon-


salícia de Cristo com a Igreja: o amor conjugal é assumido na caridade
esponsalícia de Cristo, exemplar ou ideal da entrega dos cônjuges (Summa
Theologiae, III, 24, 3c).

276 O Êxtase da Intimidade - Ontologia do amor humano em Tomás de Aquino


IX - Efeitos do Amor

O que não quer dizer, por outro lado, que nos cônjuges não
preexista existencialmente um amor vivido, uma união pes-
soal de vontades e de afetos, tal como se dá nos noivos. Esta
realidade existencial, porém, não é causa do matrimônio, mas
comportamento amoroso, e até exemplar externo que urge ser
elevado a exemplar interno, a ideal que concorra para causar
uma aliança, um pacto conjugal, livremente consentido e on-
tologicamente satisfeito.

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