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A FILOSOFIA ALEMÃ

DO SÉCULO XK AO SÉCULO XX

O positivismo não é a única corrente filosófica da segunda metade do


século XIX: na Alemanha, ele ocupa um lugar muito limitado. Exis-
te, de fato, uma reação aos grandes sistemas idealistas que predominaram
nas três primeiras décadas do século, em particular ao sistema hegeliano,
mas a reação ocorre em nome de um retorno a Kant ou até mesmo a um
tipo de filosofia, como a de Herbart, que se aproxima da de Leibniz e
de Wolff.

JOHANN FRIEDRICH HERBART ( 1 7 7 6 - 1 8 4 1 )

Pouco mais jovem que Hegel, J. F. Herbart', que também assistira em


ena às aulas de Fichte, reagiu decididamente ao idealismo e se afastou
ante também de Kant.
1. /. F. HERBART, Sãmtliclie Werke, org. por K. Kehrbach e O. FlUgel, 19 vols.,
ensalza, 1887-1912 (reimpressão Aalen, Scientia, 1964). A obra mais conhecida de Herbart,
c/l der EMeitung in die Philosophie, de 1812, foi editada também pela Meíner, Leipzig,
Jt2, org. por K. Hantsch, e reproduz a 4" ed. da obra, org. pelo próprio Herbart em 1837
zei esta edição); liad. ital. org. por G. Vidossich: Introduzione alia filosofia, Bari, Laterza,
(várias reimpressões).

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A filosofia é para ele uma elaboração de conceitos — termo bastante nos aparecem, deve-se duvidar até que algo existe, mas dirimimos essa dú-
genérico, mas pelo qual ele pretende destacar que a filosofia não é intuição, vida radical refletindo que, se nada existisse, nada apareceria, portanto, o
tampouco é, em particular, a intuição intelectual de que falavam Fichte e próprio aparecer remete a um ser. Além disso, explicar como surgem em nós
principalmente Schelling. as representações das coisas é tarefa da psicologia (§ 132).
Há diversos modos de elaborar os conceitos: um deles é o da lógica, Evidentemente, não conhecemos a essência das coisas; de fato, se as
que visa tomar os conceitos claros e distintos. "A distinção consiste na de- coisas fossem do modo como nos aparecem seriam contraditórias, e o con-
composição de um conceito em seus elementos, a clareza consiste na distin- traditório é impossível, o princípio de não-contradição tem valor absoluto.
ção de um conceito do outro" (Einleitung, § 5). A partir dos conceitos, for- Herbart cita alguns exemplos de conceitos que a experiência nos oferece e
mam-se os juízos e as argumentações. Mas esse tipo de elaboração não é que implicam contradição. Um deles é o conceito de matéria como extensão.
suficiente, porque os conceitos, embora claros e distintos, podem gerar opo- E aqui Herbart aplica a antinomia do contínuo: o extenso é infinitamente
sições; para eliminar as oposições, os conceitos precisam de integração divisível, mas a infinita divisão é impossível; seria preciso, pois, admitir que
(Ergànzung), e esta é a tarefa da metafísica (§ 6). A filosofia não pode os componentes últimos do extenso fossem inextensos; entretanto, uma soma
começar com o problema do conhecimento; a convicção de que se deva de inextensos não pode gerar um extenso. A matéria-extensão é pois uma
começar examinando a capacidade e os limites do conhecimento nasce da aparência; é o modo como nos aparece algo cuja natureza não conhecemos.
ilusão de que é mais fácil conhecer a faculdade cognitiva do que os objetos Outro conceito que se revela contraditório à reflexãofilosóficaé o da
da metafísica; mera ilusão, porque os conceitos com os quais indagamos a coisa como sujeito de diversas qualidades. De fato, só conhecemos as coisas
respeito da faculdade cognitiva são conceitos metafísicos (§ 149). É preciso mediante suas diferentes características, suas diferentes qualidades; todavia,
pois começar pela metafísica e, inicialmente, deixar de lado a questão da pos- nós as atribuímos a uma mesma coisa; ora, um idêntico (a coisa) que é ao
sibilidade de conhecermos as coisas em si ou apenas os fenómenos (§ 151). mesmo tempo diferente (vermelho, extenso, duro) é contraditório.
"A metafísica não tem outra função (literalmente: missão, Bestimmung) Mas o aspecto em cuja contraditoriedade Herbart mais insiste é a mu-
senão a de tornar inteligíveis os conceitos que a experiência lhe impõe" (§ dança. A mudança é, de fato, um não-ser daquilo que é, é um ser daquilo que
149). De fato, os conceitos que a experiência nos oferece são contraditórios, não é. Tampouco superaremos essa contradição se afirmarmos, com Kant,
e a metafísica é a tentativa de superar as contradições da experiência. que a mudança é fenomênica, ou seja, se a atribuirmos ao eu; de fato, situar
Existem ainda conceitos que nascem de avaliações imediatas, aprova- a mudança no eu não significa eliminar a contradição. Que o eu existe é uma
ção ou desaprovação (hoje diríamos da intuição de valores, mas Herbart não verdade evidente, aliás, o princípio de todas as evidências; mas, quando
usa esse termo), e a elaboração de tais conceitos é a estética. Note-se, porém, tentamos pensá-lo, ele também se revela contraditório: é o sujeito de muitas
representações e todavia é uno. Para eliminar a contradição da mudança
que Herbart dá ao termo "estética" um significado muito mais amplo do que Itaram tentados três caminhos, que, no entanto, não conseguem superá-la e
o usual: a estética no sentido herbartiano é a ciência das avaliações, portanto, geram um trilema. O primeiro caminho é o do mecanicismo: a mudança é
compreende a estética no sentido comum (avaliação daquilo que é belo ou devida a uma causa externa. Mas o fato de a causa externa produzir o efeito
bom), mas também a moral. Eu disse avaliações imediatas, porque, segundo é uma mudança, e isso exige outra causa, e assim por diante, ao infinito (é
Herbart, "todo juízo estético (...) é absoluto, portanto, cada um é independen- o problema da terceira antinomia kantiana). O segundo caminho é o que
te do outro" (§ 8). «íxplica a mudança por meio de uma causa interna, considerando a mudança
A filosofia deve começar com a dúvida, com a sképsis, mas não pode como resultado de uma autodeterminação, ou seja, de uma liberdade. Mas
deter-se nela. Pode-se, entretanto, duvidar que as coisas sejam do modo como esta solução, que Kant considerava possível no mundo numênico, e que
aceitava como postulado da razão prática, é recusada decididamente por
iíçrbart: a liberdade como autodeterminação é, segundo ele, contraditória,
Bibliografia sobre Herbart: J. N. SCHMITZ, Herbart-Bibliographie 1842-1963, Weinheim, tanto no plano teorético como no moral. No plano teorético porque seria um
1964. querer de querer, que implicaria um processo ao infinito: por que queremos
Sobre Herbart e sobre outros filósofos da segunda metade do século XIX ver o excelente- tima coisa? porque queremos. Mas por que queremos? e assim por diante, ao
volume de S. POGGI, / sktemi delVesperierm, Bolonha, II Mulino, 1977.
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infinito. No plano moral, porque a liberdade como autodeterminação, a liber- sentações, remete necessariamente à alma como substância (§ 153). É tarefa
dade transcendental como a entende Kant, implicaria um agir sem motivos, da psicologia explicar como a alma representa as coisas para si, como as
o que é o oposto daquilo que a experiência atesta (§ 128). coisas nos aparecem, pois o conhecimento não é uma cópia das coisas do
O terceiro caminho para explicar a mudança é aquele seguido por Hegel: modo como elas são em si (§ 154). As representações são o resultado da
afirmar que a realidade é devir, que o devir é originário, mas Hegel não tinha tendência que a alma tem a conservar-se e a reagir a outros reais. A psicologia
medo, assim como não tinha medo Heráclito, de afirmar que a realidade é deve valer-se também da filosofia da natureza. A finalidade da natureza leva
contraditória, ao passo que Herbart considera que o contraditório é impossível à hipótese de que o mundo procede de um espírito poderoso, de Deus, e é por
ele governado. A existência de Deus não é, pois, apenas um postulado da
e o conceito do devir absoluto é contraditório (§ 129). A tese segundo a qual razão prática, como é para Kant, mas também um complemento necessário
o devir é originário nasce da hipostatização do abstrato conceito de devir. do nosso saber teorético (§ 155).
Portanto, são erradas as três formas de explicar a mudança expostas A ética de Herbart não se fundamenta, como a de Kant, no conceito do
acima, mas a mudança deve ser explicada — isto é, a contradição que ela dever, mas em juízos de valor imediatamente evidentes. Já dissemos que
implica deve ser eliminada — e não pode ser explicada sem se recorrer ao Herbart não admite a liberdade da vontade como sendo poder originário de
conceito de causa: "Se recusarmos o conceito de causa, recusaremos todo o escolher; para ele, a liberdade é o acordo entre a vontade e a avaliação:
conhecimento sensível, que é considerado o efeito das coisas que modificam somos livres quando queremos aquilo que julgamos como bem; esta é a
os nossos sentidos" (§ 131). Entretanto, não cabe à metafísica, e sim à psi- liberdade interior, que é a relação moral fundamental. A segunda é a relação
cologia explicar como surgem nossas representações (§ 132). A metafísica entre vontade e o bem maior que dá origem à ideia de perfeição. A terceira
pode dizer-nos somente que a razão do devir é o puro ser, não sujeito a é a concordância ou a discordância com a vontade do outro; na concordância
propriedades, relações e negações (§ 133). É nisto que está a verdade do com a vontade de outrem consiste a benevolência, à qual se reduz a ideia
eleatismo: o ser é simples, é o puro positivo, imutável. Assim é necessário cristã do amor. A quarta é o direito, que nasce para evitar a discórdia entre
pensá-lo. E a quem objeta que não se pode pensar um ser em si, porque um os homens. A quinta é a sanção.
ser em si não poderia ser apreendido por nós, não poderia sujeitar-se ao nosso
modo de pensar, Herbart responde: "a validade e o significado real daquilo A sistematicidade, a importância dada à ciência, que na época realizava
que estabelecemos a respeito do ente em um pensamento necessário [ou seja, enormes avanços, as aplicações que Herbart empreendia de sua metafísica à
daquilo que pensamos necessariamente da realidade] não podem ser de forma psicologia e à pedagogia permitiram que sua filosofia exercesse uma notável
alguma postos em dúvida, porque a dúvida nada mais é senão a tentativa de influência na segunda metade do século XIX.
subtrair-se a um pensamento necessário. Estamos inteiramente fechados em
nossos conceitos; e por isso mesmo os conceitos decidem a respeito da na-
tureza das coisas. Quem acredita que isso é idealismo (quando na verdade é ADOLF TRENDELENBURG ( 1 8 0 2 - 1 8 7 2 ) *
outra coisa completamente diferente) saiba que não existe outro sistema além Na vertente de pensamento caracterizada na Alemanha pelo encontro da
do que ele chama de idealismo" (§ 136). escola de Herbart com os representantes da tendência neokantiana mais geral
O ser em si é imutável e uno, no sentido de que não é dividido: entre- configura-se a proposta especulativa de A. Trendelenburg\o aristotelismo
tanto, há uma pluralidade de reais, que são puras qualidades, como as ideias
platónicas. Seu conjunto constitui um espaço inteligível. Herbart adverte que * Este parágrafo é de autoria do dr. MAURIZIO MANGIAGALLI.
o conceito de espaço inteligível, assim como outros conceitos análogos, não 2. FRIEDRICH ADOLF TRENDELENBURG, Eutin 1802-Berlim 1872. Terminado o
exprime uma coisa, assim como não são coisas os logaritmos, os senos e co ;-in Isio em Eutin, onde teve os primeiros contatos com o pensamento aristotélico e kantiano, em
senos, as tangentes; mas, assim como aqueles, serve para exprimir a natureza 1822 iniciou os cursos universitários, que o levaitam ao doutorado, na Universidade de Kiel,
•Ilide lecionavam K. L. Reihnold e í. E. Berger O interesse original pela filologia clássica, e em
das coisas (§ 152). pailicular pela língua grega, induziu-o, entretanto, a se transferir para Leipzig, em cuja Univer-
Mdide frequentou as aulas de G. Hermann. Concluídos os estudos universitários em Beriim,
A metafísica é o pressuposto da psicologia e da filosofia da natureza. i>ndc assistiu com vivo interesse às aulas de Steffen e Schleiermacher, sob a orientação de
O conjunto das representações, o fato de que as consideramos nossas repre (11.11 ides talentos como Buttmann, Boeck e Immanuel Bekker, Trendelenburg coroou o aperfei-

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é tecido sobre a urdidura da problemática lógico-psicológica e epistemológica identidade de lógica e metafísica, indicadas em seu conjunto como
expressa, no limiar do positivismo e da fenomenologia husserliana, pelos grundlegende Wissenschaft ou "philosophia prima" {Logische Untersuchungen,
maiores sistemas da experiência da segunda metade do século XIX, irmana- 3" ed., 1870, I, p. 14).
dos pela recusa da filosofia da natureza de matriz idealista e romântica, A tese da identidade de lógica e metafísica, fundada na identidade de
abertos às novas solicitações do dado científico e empenhados na busca de pensamento e ser e na não-contradição como critério universal de verdade, é
um novo modelo de filosofia da experiência. obtida na polémica com a escola de Herbart, ao qual Trendelenburg critica
O ideal de um saber unitário e rigorosamente fundamentado passa desse sobretudo a concepção formalista da lógica, expressa pelo chamado "método
modo a sustentar toda a investigação trendelenburguiana, e já se afirma na das relações", e que comporta a separação de forma e conteúdo do pensamen-
interpretação das categorias aristotélicas apresentada pela Geschichte der to, de método e objeto. Sobre este ponto, Trendelenburg parece muito mais
Kategorienlehre, obra na qual Trendelenburg, reconhecendo a perfeita corres- próximo de Hegel, ainda que seu pensamento venha a exprimir uma recusa
pondência das categorias individuais às partes elementares do discurso, pro- integral da dialética hegeliana: para Hegel, como sabemos, o método é dialético
põe um "fio condutor gramatical" na dedução da tábua aristotélica das catego- porque dialética é a realidade que ele reflete; para Trendelenburg, ao contrá-
rias, e desse modo tem a convicção de poder detectar nas obras lógicas de rio, o «lov/wíe/iro jamais poderá ser resolvido na "dialética do puro pensamen-
Aristóteles a presença de uma dedução dos "predicados supremos", realizada to", a qual entretanto permanece sempre distinta do movimento real, tampouco
mediante a análise da linguagem (Beitrãge I, pp. 23-24). Para a edificação de pode absorver em si este último. A exclusão do método dialético, que ocorre
um saber unitário, de uma filosofia entendida como organische Weltansdmuung, em virtude de uma crítica perfeita à lógica hegeliana, permanece um dos
estão orientadas as Investigações lógicas, a obra mais importante de aspectos mais interessantes e fecundos do pensamento de Trendelenburg, cuja
Trendelenburg, na qual a tese da unidade do saber penetra a afirmação da crítica terá um peso notável na formação da atitude anti-hegeliana de
Kierkegaard, Feuerbach e Marx, determinando ainda a "reforma" da dialética
por obra de K. Fischer, que será retomada na Itália por B. Spaventa e G.
çoamento da própria formação filológica, cujos frutos são representados pelas obras do primeiro Gentile. Embora não de todo original, a censura trendelenburguiana foi de
período, dedicadas na maior parte ao estudo do pensamento platónico e aristotélico: De locis in imediato apreciada por seu rigor, pois as duas objeções fundamentais feitas
quibus Aristóteles summain et universam Ptalonis philvsopitiam commemoravit (tese de douto-
rado), Platonis de ideis et numeris doctrina ex Aristotele illustrata (tese de concurso para o aofilósofode Stuttgart atingiam justamente os órgãos vitais da concepção
ensino universitário), e sobretudo o alentado comentário aos três livros de De anima de Aristóteles. dialética, invalidando sua pretensão de representar um saber absoluto e im-
TYendelenburg foi durante sete anos preceptor particular, depois dos quais foi nomeado inicial- pugnando a função construtiva da negação.
mente professor extraordinário de pedagogia, e sucessivamente titular da cadeira de pedagogia
e filosofia moral na Universidade de Berlim, onde lecionou "filosofia primeira", pedagogia, Quanto ao primeiro aspecto da dialética, Trendelenburg insiste em desta-
psicologia, ética e filosofia do direito. Este período de ensino berlinense será de grande impor- car que "do puro ser, de uma abstração confessa, e do nada, também abstração
tância para a formação de muitas das personalidades, por vezes de grande destaque, da segunda
metade do século XIX na Alemanha (lembramos entre os seus ouvintes Kierkegaaid, Feuerbach, confessa, não pode repentinamente nascer o devir, esta concreta intuição que
Marx e Brentano), e o prestígio académico dofilósofo,que posteriormente se tomou também domina a vida e a morte. Portanto, o movimento é pressuposto, sem discus-
secretário da Academia Prussiana das Ciências e membro de vários institutos científicos (entre sões, por aquela dialética que nada deseja pressupor" {LU., 3. ed., I, p. 39).
os quais a Academia de Munique), permaneceu indiscutido durante mais de três décadas, tanto
que TYendelenburg mereceu uma estima praticamente incondicionada por parte de alunos, dis- Quanto à função da negação, Trendelenburg recrimina a Hegel o fato
cípulos, colegas e adversários. de ter por vezes confundido negação lógica e negação real, e de ter em todo
Suas obras mais importantes são: Eleinenta logices aristotelicae, Berolini, Bethge, 1836 caso pressuposto a cada passo do sistema a atuação da intuição sensível:
(com oito edições sucessivas); Logisrlie Untersuchungen, Berlim, Bethge, 1840 (3* ed..Leipzig,
Hirzel, 1870), que é a obra principal; Die logische Frage in HegeVs System, Leipzig, Brockhaus, "Qual é a essência desta negação dialética? Ela pode ter uma dupla natureza.
1843; Historisclie Beitrãge zur Philosophie: I Bd. Geschichte der Kategorienlehre, Berlim, Ou é concebida como puramente lógica, de modo a negar definitivamente
Bethge, 1846; II Bd., ibid., 1855; III Bd., Weber, 1867; Das Naturrecht aufdem Grunde der iiquilo que o primeiro conceito afirma, sem pôr em seu lugar algo novo, ou
Ethik, Leipzig, Hirzel, 1860; Kleine Scitriften, ibid., 1871. então é concebida como real, de modo que o conceito que afirma é negado
Sobre o pensamento de Trendelenburg podem ser consultados: P, PETERSEN, Die por meio de um novo conceito afirmativo, uma vez que ambos devem ser
Philosophie F. A. Trendelenburgs. Ein Beitrag zur Geschichte des Aristóteles im 19. Jahrhundert,
Hamburgo, Boysen, 1913; i. WACH, Die Typenlehre Trendelenburgs und ilir Einfluss aufDilthey, referidos um ao outro. Chamamos ao primeiro caso de negação lógica, ao
TUbingen, J.C.B. Mohr, 1926. iCgundo de oposição real. Ora, ele se pergunta ainda, poderá a negação

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lógica condicionar tal progresso do pensamento de modo que dele nasça um decorrentes dessas duas direções fundamentais do espírito se referem, no
novo conceito que reúna positivamente em si a afirmação e a negação que fundo, a uma recíproca solidariedade.
puramente se excluem? Isso não pode ser pensado. Não existe um terceiro A tarefa do Naturrecht será então desenvolver o fundamento do direito
nem entre, nem acima dos dois membros da oposição (...). A negação natural com base nesta concepção orgânica do mundo, que confere à matéria
lógica está arraigada somente no pensamento, de forma tal que, pura e sem jurídica a universalidade sem a qual também a norma moral careceria de
uma sustentação, jamais pode ser encontrada na natureza" {LU., 3. ed., I, significado e valor.
pp. 43-44).
Admitindo, portanto, que a contradição de que trata a dialética hegeliana
seja aquela indicada pela "oposição real" e designada, embora impropriamen- ARTHUR SCHOPENHAUER ( 1 7 8 8 - 1 8 6 0 )
te, pelo termo aristotélico de contrariedade, está claro que neste segundo
caso, no qual a figura sucessiva exprime e afirma um conteúdo diferente e
autónomo em relação ao conteúdo da tese, o processo dialético é possível. J. Referências biográficas
Todavia, pergunta Trendelenburg, de onde o pensamento extrairá este novo
conteúdo? Evidentemente, da intuição, uma vez que somos novamente obri- Filho de um abastado comerciante, Arthur Schopenhauer^ nascido em
gados a "apelar para a realidade". Resta então verificar as modalidades desse Danzig em 1788, deveria ter-se dedicado à mesma atividade do pai. De fato,
"apelo", e somente a referência à intuição sensível poderá resultar decisiva exerceu-a por alguns anos, até pouco depois da morte do pai (1805); mas, em
quanto ao valor da contradição e da sucessiva reconciliação, ou seja, de todo 1807, seguiu sua vocação para o estudo dos clássicos e, em dois anos, pre-
o movimento dialético, que, em todo caso, deixará de exprimir uma "dialética parou-se para ingressar na Universidade de Gottingen, onde frequentou tam-
do puro pensamento". Este último aspecto da crítica a Hegel é admitido, nas bém cursos de física, química e asu-onomia. No de filosofia teve como pro-
Logische Untersuchungen, com a distinção de categorias reais e categorias fessor G. E. Schulze, o autor do Enesídemo. Após quatro semestres de estudo
modais, e o consequente reconhecimento de certa primazia do objeto da em Gottingen, transferiu-se, em 1811, para Berlim, onde assistiu sem entu-
metafísica em relação ao da lógica. siasmo, aliás com aversão, as aulas de Fichte. Doutorou-se em 1813 em Jena,
eom a dissertação Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente
Nas Investigações lógicas, Trendelenburg se propõe, portanto, explorar Viveu de 1814 a 1818 em Dresden, onde escreveu sua obra fundamental, O
a dimensão construtiva do "método genético", o qual, ao contrário da dialética mundo como vontade e representação, publicada em 1819. A obra teve pouco
hegeliana, mantendo a distinção entre movimento "real" e movimento "ideal" sucesso, assim como as aulas que Schopenhauer ministrou em Beriim como
(do pensamento), possibilita a fundamentação de um saber entendido como Hvre-docente. É bem verdade que escolhera para suas aulas as mesmas horas
conhecimento a priori verificável na experiência, e não simplesmente regu- nas quais lecionava Hegel: ele dava muito valor a si mesmo e desprezava a
lador desta. Do movimento, que é anterior à experiência e mediante o qual filosofia dominante nas Universidades, que já era a de Hegel. A obra de
é possível entender o espaço e o tempo, interpretados como formas a priori
da intuição dotadas de valor objetivo, deduzem-se, pois, as categorias reais, 3. A. SCHOPENHAUER, Sãmlliche Werke, org. por J. Frauensfâdt, 6 vols., Leipzig,
ou seja, justifícam-se os objetos a priori da experiência. 1873-1874 (revista por A. HUbscher, Wiesbaden, 1947-1950); ID., Sãinllicite Werke, org. por P.
Considerados objetivamente, os entes empíricos exprimem entretanto Deussen, 13 vols., Munique, Piper, 1911-1942; ID., Sãmlliche Werke, org. por R Lohneysen, 5
Wls., Frankfurt a.M., 1960-1965; ID,, Der liandschriftUclie Nacltloíis, org. por A. HUbscher, 5 vols.
uma categoria que é inteligível também do ponto de vista do sujeito, e esta Frankfurt a.M., 1966-1968.
é o fim: movimento e fim representam, pois, as duas supremas "categorias" Principais traduções: O mwido como vontade e representação. São Paulo, Abril Cultural,
a partir das quais é possível ampliar nosso conhecimento — referido tanto ao T ed., 1985; Ia quadruplice radice dei principio di ragion sufficiente, trad. ital. de E. Amendola
mundo da natureza quanto ao mundo do espírito —, cuja finalidade se realiza Kohn, reimpressão Turim, Boringhieri, 1959; Parerga und Paralipomena, trad. de E. Amendola
Ktthn, G. CoUi e M. Montinari, Turim, Boringhieri, 1963. Uma antologia de textos com intro-
no homem mediante a vontade. é i ç ã o foi organizada por P MARTINETTI, Schopeiúiauer, Milão, Garzanti, 1941 (da qual foram
extraídas as citações).
A ideia absoluta e criadora mostra-se, finalmente, como o fundamento Sobre Schopenhauer: I. VECCHIOTTI, Introduzione a Schopenliauer, Bari, Laterza (com
de uma possível síntese de idealismo e realismo, pois todas as perspectivas Wbliografia).

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Schopenhauer só havia sido apreciada, e por alguns inclusive entusiastica- seria, segundo Schopenhauer, a concepção realista, à qual contrapõe seu idea-
mente, depois da publicação dos Parergos e Paralipômenos, em 1851; a lismo. Todavia, algumas vezes ficamos desorientados ao ler que as represen-
partir de então, difundiu-se também o conhecimento de O mundo como von- tações são o resultado da atividade dos sentidos, do sistema nervoso, do
tade e representação, cuja terceira edição saiu em 1859. Na última década de cérebro, e ao encontrar citações de Cabanis para explicar as relações entre o
sua vida, Schopenhauer alcançou a fama que tão ardentemente desejara. Morreu corpo e o conhecimento. Schopenhauer, no entanto, resolve a oposição afir-
em 1860, em Frankfurt, para onde se transferira desde 1831. mando que o materialismo é uma explicação de ordemfísica,ao passo que
o idealismo é uma teoria metafísica. O que significa que, no mundo
fenomênico, as coisas ocorrem do modo como afirmam os materialistas, mas
2. O mundo como representação a matéria não é a realidade verdadeira, não é a coisa em si.
Desde A quádrupla raiz do princípio de razão suficiente Schopenhauer
afirma a tese com a qual iniciará sua obra maior: o mundo é minha represen- 3. O a priori
tação, isto é, conhecemos somente as nossas representações, objeto é aquilo
que é representado e fundamentado. Esta tese, já presente de modo mais ou Eu disse que objeto é aquilo que é representado e fundamentado. As
menos claro em muitas filosofias, é plenamente consciente e justificada em representações, de fato, não são um caos, não estão desligadas umas das
Kant, por quem Schopenhauer nutre a mais viva e profunda admiração. Não outras. O conhecimento começa com a intuição sensível, mas as sensações
o entenderam os idealistas, mas Schopenhauer se considera seu verdadeiro são puramente subjetivas: "Somente quando o intelecto entra em atividade e
continuador: seus mestres são por excelência "o surpreendente Kant" e "o aplica sua única forma, a lei de causalidade, é que ocorre uma importante
divino Platão". transformação, e a sensação subjetiva torna-se uma intuição objetiva. De fato,
em virtude da forma que lhe é própria, e, portanto, a priori (...), ele toma a
Platão e Kant, de fato, têm em comum a convicção de que o mundo do sensação orgânica dada como um efeito (...), o qual deve necessariamente,
qual temos experiência é aparência, não é a verdadeira realidade. Kant afir- como tal, ter uma causa" (ibid.).
ma, de fato, que nossa experiência é apenas conhecimento de fenómenos, não
de coisas em si; Platão afirma: "As coisas deste mundo, que os vossos sentidos O princípio de causa é uma das formas assumidas pelo princípio de
percebem, não possuem nenhum ser verdadeiro; elas estão sempre em devir, razão suficiente, de que Schopenhauer tratara na obra juvenil na qual distin-
jamais são, possuem apenas um ser relativo" {O mundo etc, livro III, § 31). guira razão lógica {ratio cognoscendi) e razão real {ratio essendi) e nesta
última distinguira ulteriormente razão matemática (espaço e tempo), razão
A tese "O mundo é minha representação" não precisa ser demonstrada, física (razão da mudança, causa em sentido próprio) e razão do agir humano
por ser evidente a quem reflete, embora esteja distante das convicções do (motivo). As causas ou razões do ser são, entretanto, sempre razões do ser
homem comum. O homem que reflete, ofilósofo,se dá conta de que tudo fenomênico, do ser das representações; portanto, o princípio de causa não
aquilo que apreende está em sua consciência; ele se dá conta de que "não permite inferir uma causa primeira, conhecer as coisas em si, como, de resto,
apreende nenhum sol e nenhuma terra, mas sempre apenas um olho que vê já demonstrara Kant.
o sol, uma mão que toca a terra; que o mundo que o cerca existe apenas como
representação, isto é, apenas em relação a um outro que o representa para si,
e este outro é ele próprio". E ainda mais firmemente: "É preciso ter sido "4. A vontade
abandonado por todos os deuses para imaginar que o mundo intuitivo, posto
fora de nós, do mesmo modo que preenche o espaço em suas três dimensões, O conhecimento começa com a intuição e prossegue com o intelecto. O
movendo-se no inexorável curso do tempo, regido a cada passo pela mtelecto, como dissemos, é necessário para relacionar os dados da sensação
indeclinável lei de causalidade (...), existe fora de nós com absoluta realidade na percepção de um objeto; é necessário para relacionar os objetos entre si,
objetiva, sem nenhum concurso de nossa parte; e que depois, por meio das para captar as leis do comportamento destes, mas não nos permite ir além do
sensações, penetra em nosso cérebro, onde passaria a existir uma segunda vez mundo sensível. De fato, Schopenhauer considera que o intelecto não é es-
assim como existe fora de nós" (trad. e citado por Martinetti, p. 90). Esta pecificamente diferente da sensibilidade e é comum a homens e animais.
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Caraterística do homem é a razão, que é a capacidade de refletir, de ter inextinguível de existir. E como a existência é o resultado de uma vontade
conceitos abstratos; de ter não apenas representações, mas a consciência das cega, ela não pode ser reconhecida pela razão como um bem. As volições
representações. Ter consciência das representações como representações sig- nascem sempre de uma carência, de uma insatisfação, em última análise, de
nifica ter consciência do eu que representa os objetos para si mesmo. uma dor; para libertar-se da dor é preciso, pois, libertar-se da vontade, da
própria vontade de existir. Nisto Schopenhauer reconhece concordar com a
O eu não é uma representação, mas uma vontade; o eu se percebe como filosofia indiana que estudara, principalmente nos anos passados em Dresden,
vontade. A coisa em si que constitui o fundamento das representações é pois e nunca deixara de admirar. Também para ele o mundo da experiência é pura
a vontade. Por vontade, Schopenhauer entende não apenas a volição consci- aparência; no mundo predomina a infelicidade, e a libertação da dor só é
ente de um objeto determinado, mas toda tendência, todo impulso, todo de- alcançada pela renúncia, em caso extremo, pela aniquilação.
sejo. "O que dá unidade e coesão à nossa consciência, uma vez que, por meio
de todas as suas representações, permanece como a base e sua sustentação O intelecto é apenas instrumento da vontade, elaborando as técnicas
permanente, não pode ser uma representação, mas deve ser antes o prius da para que a vontade se afirme, sem guiá-la. É o que acontece, pelo menos para
consciência e a raiz da árvore de que ela é o fruto. Isto, eu afirmo, é a a maior parte dos homens, os quais acreditam atuar para fins indicados pelo
vontade, a única imutável e absolutamente idêntica e que produziu, para seus conhecimento, enquanto não passam de instrumentos de uma vontade cega.
fins, a própria consciência... Sem ela, o intelecto não teria mais unidade de Mas o sábio pode romper esses grilhões, não vencendo a vontade, pois so-
consciência do que teria um espelho, no qual se reflete sucessivamente ora mente a vontade é força, mas afastando-se dela de certo modo, ou seja,
isto, ora aquilo..." (cit. por Martinetti, p. 111). adotando uma atitude contemplativa.
A vontade tem como órgão o corpo, realiza-se no corpo e como corpo.
Há, pois, duas formas de conhecer o corpo: uma é vivê-lo no ato de vontade 5. A estética
e outra representá-lo com o intelecto.
Mas a vontade não é somente do homem: tudo aquilo que existe só A arte testemunha esta possibilidade: de fato, o prazer estético é o
existe enquanto é vontade, no sentido mais amplo. "O núcleo e o ponto prazer suscitado pelo puro conhecimento do objeto, pelo interesse por aquilo
essencial de minha doutrina, sua verdadeira metafísica, é constituído pela que o objeto é em si, não por aquilo que, no objeto, pode beneficiar-nos ou
verdade primeira paradoxal, de que aquilo que Kant opunha como coisa em prejudicar-nos. A contemplação estéfica é a que nos mergulha no objeto, nos
Faz esquecer nossos interesses e deixa subsistir o eu somente como sujeito
si ao puro fenómeno (ou, como digo de modo mais preciso, à representação) puro, puro sujeito cognoscente. Na contemplação estética, o sujeito se afasta
e considerava absolutamente incognoscível nada mais é senão o elemento de todos os seus desejos, da vontade, e o objeto é desligado das relações que
para nós imediatamente conhecido, aliás intimamente familiar, que encontra- mantém com as outras coisas (na contemplação estética não intervém o prin-
mos no interior do nosso eu como vontade; que, portanto, esta vontade, longe cípio de razão suficiente). Objeto da contemplação estética não é a realidade
de ser, como todos osfilósofosaté aqui assumiam, inseparável do conheci- existente enquanto tem um interesse para mim, enquanto está relacionada
mento (...), é radicalmente distinta e absolutamente independente do conhe- com a vontade, e nem um conceito abstrato: é a Ideia. De fato, a teoria
cimento, que é algo secundário e posterior; que, portanto, ela pode subsistir platónica das ideias impressionou profundamente Schopenhauer, que chama
e manifestar-se até sem o conhecimento, como realmente acontece em toda Platão de "divino". A ideia é a essência, o modelo das coisas, e justamente
a natureza, a partir, descendo, do reino animal; que aliás esta vontade, como A arte, a intuição da beleza, atesta a realidade das ideias, pois aquilo que o
a única coisa em si, o único verdadeiro real, o único elemento originário e artista visa exprimir — e aquilo que o apreciador da obra de arte descobre
metafísico, em um mundo onde todo o resto é apenas aparência, ou seja, é por mérito do artista — não é nem a coisa em sua existência individual nem
representação, é aquilo que dá a força de resistir e de agir em cada coisa, seja »m conceito abstrato, mas é o significado da coisa, sua eterna essência;
ela qual for" (cit. por Martinetti, pp. 117-118). «quilo que Platão chamava de ideia.
A vontade, que é o fundamento do ser, por assim dizer, não é, portanto, A estética de Schopenhauer, que possuía uma grande sensibilidade ar-
racional: é uma força cega que tende a se afirmar. Sua expressão é a tendên- tística, é uma das partes mais vivas de sua filosofia e suscitou a admiração
cia dos seres vivos a se conservar e a se reproduzir, quase uma sede ik Wagner. Entre as artes, depois da arquitetura, das artes plásticas e da

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HISTÓWA DA nU)SOHA CONTEMrORÂNW A HLOÍiOKIA ALKMÁ

poesia, a música ocupa o ponto mais alto: ela não exprime as ideias, mas, mente desprovidas de razão. "Se alguém afirmasse que o sublime fundador
como disse Wagner, é a própria ideia do mundo, isto é, ela exprime na da religião cristã, cuja vida nos foi proposta como modelo de todas as virtu-
linguagem mais universal a essência do mundo, que é a vontade. E exatamen- des, foi o homem mais razoável de todos, consideraríamos esse modo de falar
te por exprimi-la, objetiva-a, ajuda a nos afastarmos dela. indigno, quase uma blasfémia" (cit. por Martinetti, p. 189).
O segundo problema da ética (o primeiro é o do fundamento da moral)
é o problema da liberdade. Schopenhauer nega a liberdade como livre-arbítrio;
6. A moral a lei de causalidade rege cada acontecimento, portanto, também as ações hu-
manas são rigorosamente determinadas. A lei de causalidade é, todavia, apenas
A arte é uma das formas para nos libertarmos da vontade; a outra é a uma lei do mundo fenomênico; as próprias ações humanas são determinadas,
ascese, a renúncia — renúncia à posse, ao prazer, ao eros, que é a insídia com uma vez que pertencem ao mundo fenomênico, e este é expressão da vontade,
a qual a vontade se afirma para perpetuar-se na espécie. No que se refere à que, ao contrário, é absolutamente livre. O mundo é uma simples máquina
ascese, Schopenhauer destaca profundas analogias entre aquilo que os sábios regida pela necessidade, mas a essência do mundo é uma vontade livre "que
budistas e os místicos cristãos recomendam: tanto uns quanto outros visam, se exterioriza não imediatamente na ação, mas, em primeiro lugar, na existên-
segundo Schopenhauer, à anulação da vontade. cia e na essência das coisas. Esta liberdade é, portanto, transcendental e coe-
Mas mesmo sem chegar ao cume da ascese, uma moral humana exige xiste com a necessidade empírica, como a idealidade transcendental dos fenó-
a renúncia ao egoísmo, a luta contra aquilo que Schopenhauer chama (com menos; coexiste com a realidade empírica destes" (cit. por Martinetti, p. 160).
um termo escolástico) de principium individuationis, ou seja, contra aquilo Está clara aqui a dependência de Schopenhauer da doutrina kantiana sobre o
que me distingue do outro, me contrapõe ao outro, me fecha em mim mesmo. caráter inteligível e o caráter empírico, doutrina que Kant aplica para resolver
A individualidade, marcada pelo hic et nunc, pelo espaço e pelo tempo, é de a terceira antinomia. Entretanto, em Schopenhauer acrescenta-se mais uma
fato uma característica do mundo fenomênico, aparente, enquanto na realida- dificuldade a essa doutrina: só seria livre a vontade universal, a vontade cega
de cada um de nós se comunica com os outros, é expressão da mesma von- te seria então uma liberdade identificada com a mera contingência, o mero
tade. Expressão dessa unidade profunda são a justiça, a mansidão, a caridade; .içaso), ou seria livre o homem que quer, que escolhe (então, o livre-arbítrio,
e como a vida é dor, a caridade para com o outro é antes de mais nada rechaçado à porta, retornaria pela janela)? Schopenhauer parece resolver a
participação de sua dor, piedade, compaixão. dificuldade introduzindo seu conceito da ideia no sentido platónico. O caráter
inteligível do homem é o homem como ideia, o homem em sua essência.
A compaixão é o fundamento da moral: não a lei, não o dever. Ter
concebido a lei, o imperativo, como base da moral é um dos erros de Kant; Como salientamos, a fama chegou tarde para Schopenhauer, mas se
erro que consiste em confundir o princípio da ética — isto é, sua proposição estendeu também além do mundo filosófico, aliás principalmente além deste,
mais geral — com o fundamento da própria ética; erro que deriva de uma entre os artistas, entre os quais Wagner deve ser lembrado em primeiro lugar.
concepção teológica da ética, ainda presente em Kant apesar de seus esforços O estilo belo e claro (ele dizia que a clareza é a honestidade dofilósofo),a
para fundar uma moral puramente racional. De fato, é a concepção teológica viva sensibilidade estética, a sensibilidade aos problemas morais, ao proble-
da ética a que concebe a moral como obediência a um comando divino, ao ma da dor, do significado da vida, tornaram a filosofia de Schopenhauer
decálogo. O caráter obrigatório é próprio somente de certas ações: somos acessível e apreciada também por não-filósofos de profissão.
obrigados a fazer uma coisa quando o ouuo tem um direito a obtê-la; ora,
nem todas as boas ações correspondem a um direito do outro. O RETORNO D E KANT^
Concordando com Kant em considerar a moral nitidamente distinta da
busca da felicidade, em considerar que a atividade moral deva ser plenamente o retorno a Kant, proclamado em meados do século XIX, foi um retor-
desinteressada, Schopenhauer nega, contra Kant, que o juízo moral se funde no principalmente ao Kant da Crítica da razão pura, em particular da Esté-
na razão: a razão prática não sugere ações morais, mas somente ações van-
tajosas. Uma conduta razoável não é necessariamente uma conduta moral: ao 4. Baseei-me para este parágrafo em: M. CAMPO, Schizzo síorico delia esegesi e crítica
contrário, as mais elevadas ações morais (generosas, corajosas) são freqUente- imiana, Varese, Edilrice Magenta, 1959, e em S. POGGI, / sistemi deWesperienza, cit.

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(jlSTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNtA A FILOSOFIA ALEMA

tjca e da Analítica transcendental, e indicou o predomínio dos problemas A ESCOLA DE MARBURGO: HERMANN COHEN ( 1 8 4 2 - 1 9 1 8 )
goosiológicos sobre os metafísicos. "Sobre o descrédito, sobretudo, da filo-
sofia idealista da natureza acendera-se a luz da ciência, com o fervor pela Nitidamente oposta à interpretação psicológica do a priori é a filosofia
investigação precisa e a satisfação pelos progressivos resultados positivos, da chamada escola de Marburgo, que tem como fundador H. COHEN'.
/vigo semelhante acontecia, de resto, no campK) da cultura, em que as cons- Na concepção positivista, o objetivo é o fato, a sensação, o a posteriori;
truções histórico-filosóficas pouco a pouco eram substituídas pela história o a priori é sinónimo de subjetivo e de arbitrário. Cohen, ao contrário, reto-
como investigação positiva, com seus métodosfilosóficose seu interesse pela mando o conceito kantiano de revolução copemicana, observa que o a priori
concreção... Aceitar a ciência, mas examinar seus fundamentos, métodos e é o fundamento da objetividade da ciência. A ciência moderna, de fato, não se
limitações; submeter ao tratamento científico os novos campos fisiológicos e constituiu como um amontoado de fatos observados, mas pela unificação de
psicológicos, mas dedicar-se ao problema do conhecimento, eram algumas fatos sob leis, hipóteses, teorias; ora, a hipótese, a teoria é o a priori, o "co-
das tarefas mais relevantes do momento, às quais podiam talvez devotar-se nhecimento puro". A tarefa da filosofia consiste na investigação desses elemen-
gs próprios homens de ciência mais bem preparados. Um Helmholtz, por tos "puros" do conhecimento científico; a crítica de Kant é antes de mais nada
çxemplo, podia assim voltar a falar de Kant" (CAMPO, Esegesi e critica "crítica do sistema, dos métodos, dos princípios de Newton" {Logik, p. 8).
jaintiana, p. 4).
A Crítica kantiana não é uma investigação da faculdade cognitiva, mas
Hermann HELMHOLTZ (1821-1894), fisiologista de profissão, via em uma metodologia da ciência. A lógica surge sempre para legitimar uma ciên-
ííant uma filosofia aberta à ciência e tendia a interpretar o a priori kantiano cia: "Os conceitos fundamentais de substância, grandeza, quantidade etc,
como nossa estruturafísico-psíquica.Também Friedrich Albert LANGE (1828- nasceram em íntima relação com os problemas da matemática e da especu-
l875), autor de uma apreciada História do materialismo, interpreta o a priori lação Ttepí (pwewç para os pitagóricos e os eleatas" (op. cit., p. 317). Os
como nossa organização psíquica e encontra na filosofia kantiana uma teoria princípios da ciência natural de Kant não são a aplicação das doze categorias
que permite superar o materialismo sem desembocar em concepções que ele teria descoberto ao estudar a faculdade cognitiva em geral, mas, ao
ijietafísicas c sem menosprezar as conclusões das ciências. contrário, as categorias nascem dos princípios que, em última análise, são
De um ponto de vista mais especificamentefilosófico,J. F. FRIES uma reelaboração dos princípios de Newton (op. cit., p. 318). Cohen repudia,
(1773-1843) deu uma interpretação psicológica ou antropológica ao a priori portanto, toda interpretação psicológica da lógica, interpretação difundida não
Kantiano na Neue oder anthropologische Krítik der Vernunft. "Fries eviden- apenas entre os psicólogos, como Wundt e Lipps, e entre os positivistas, mas
ciava, e m primeiro lugar, o valor fundamental do conhecimento que o sujeito aceita inclusive por algumas correntes kantianas, como vimos no caso de Fries.
tem de si mesmo como sujeito de sua atividade interior (...). Produto primário Conceber a filosofia como metodologia da ciência significa defender
dessa atividade são as representações, as quais constituem, desse modo, a seu caráter científico, contra o que Cohen considera como degenerescências
base do nosso conhecimento, sem entretanto serem absolutamente todas co- metafísicas dos grandes sistemas idealistas. O retorno a Kant é uma condição
nhecimento" (POGGI, / sistemi deWesperienza, p. 114). O conhecimento é para que a filosofia tenha um caráter científico.
3 "consciência da existência de um objeto, ou de uma lei que rege a existên- Mas o próprio Kant deve ser interpretado, pois existem problemas por
cia das coisas" (cit. por POGGI, p. 115). Para chegar ao conhecimento de- ete deixados em aberto e teorias nas quais deve ser continuado e superado.
senvolve-se um processo, no qual a imaginação desempenha uma função Uma delas é a distinção específica entre sensibilidade e intelecto admitida
particularniente importante, determinada pela estrutura do nosso espírito. Fries por ele, um resíduo pré-crítico que o próprio Kant tende a ultrapassar com a
(Jistingue "fundamentação objetiva" de "fundamentação subjetiva" dos nos-
sos conhecimentos: "a fundamentação objetiva do conhecimento pressupõe a 5. Suas obras principais são: Kants Theorie der Eifaliruiig, Beriim, DUmmler, 1871; Kaiiís
realidade (Realitãt) do objeto como fundamento da verdade do próprio co- Begriindung der Ethik, 1878; Kants Begrundmg der Aesthetik, 1889; além das obras sistemá-
nhecimento, ao passo que a outra, a fundamentação subjetiva, esgota-se em ticas; U)gik der reinen Erkenninis. 1902; Ethik des reinen Willen. 1904; Aestiietik des reinen
explicar, com base na 'história de minha razão', como a própria razão chegou Vejmú, 1912.
a este o u àquele conhecimento" (POGGI, op. cit., p. 174). Para o que se refere aos neokantianos de Marburgo, utilizo o que já escrevi na Gnoseologia
Brescia, Morcelliana, 1963, pp. 252ss.

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
A FILOSOFIA KhV.hlA
doutrina do esquematismo. No sistema de Cohen, espaço e tempo tornam-se PAUL NATORP ( 1 8 5 4 - 1 9 2 4 )
categorias; categorias pressupostas pelas outras, pois são categorias da mate-
mática, enquanto o que Kant chama de categorias são as categorias da física, P. Natorp também^ considera que deve haver estreitas relações entre
e a física pressupõe a matemática. filosofia e ciência, aliás, que a filosofia é filosofia da ciência, mas amplia, em
Outro ponto em que Cohen diverge de Kant é o conceito de coisa em relação a Cohen, o conceito de cientificidade — também solicitado pelas
si. Não existe uma coisa em si distinta do pensamento. Platão teve o grande correntes que ressaltam a diferença entre ciências da natureza e ciências do
mérito de conceber a realidade verdadeira como ideia, mas foi mal interpre- espírito, especialmente por Dilthey. De fato, Natorp afirma que a filosofia,
tado quando se concebeu a ideia platónica como ser: o ser é o ser do pensamen- embora sendo teoria da ciência, não deixa de lado nenhum aspecto da vida
to {Logik, p. 15). A atividade do pensamento não é intuitiva: pensar é julgar, humana. Por outro lado, somente enquanto teoria da ciência a filosofia pode
e julgar não equivale a ligar conceitos já dados, mas é um produzir. Portanto, ter um caráter próprio, uma autonomia própria; de fato, a filosofia nada pode
a lógica, que é a ciência do pensamento, é a ciência da origem, do nascer da dizer-nos a respeito das coisas, pois as coisas são inesgotáveis e constituem
coisa, e por isso se identifica com a metafísica {Logik, pp. 35-37). Como o o campo das diferentes ciências. Costuma-se dizer que a ciência é una e as
pensamento é a origem do ser, compreende-se que se encontre o ser passando filosofias são muitas. Natorp, ao contrário, observa que as ciências mudam,
pelo nada {auf dem Umweg des Nichts, Logik, p. 84). O vazio de Demócrito, pois progridem continuamente, ao passo que o conhecimento, em sua lei
o \x,y\v de Platão representam este prius do ser que não deve ser confundido
com a negação, mas exprime o surgimento do ser a partir de alguma outra fundamental, é uno e idêntico. Portanto, é impossível elaborar uma teoria do
coisa, e esta outra coisa é o pensamento. Cohen via no cálculo infinitesimal conhecimento que seja definitiva, pelo menos em suas linhas fundamentais.
a expressão do surgimento do ser a partir do pensamento, pois o cálculo Além disso, o conhecimento é algo nosso, interior a nós, e portanto plena-
infinitesimal mostra como surge uma grandeza a partir de um ponto, mostra mente cognoscível. Natorp retoma, em seguida, o clássico argumento idealis-
quase como se cria o ser. Não seria possível formular matematicamente as 1$: não podemos sair da consciência; não existe ser exceto por um pensamen-
leis da natureza sem passar pelo infinitamente pequeno: em virtude do cál- to. O ser nada mais é senão um conceito; talvez o conceito mais puro, mas
culo infinitesimal, até o dado é explicado como uma rede de conceitos ma- tsmbém o mais vazio. O ser não é senão o cognoscível em geral.
temáticos, e portanto como uma produção do pensamento.
O objeto da filosofia não é, entretanto, o conhecimento como atividade
Cohen concebeu a filosofia como metodologia da ciência, mas interes- ittbjetiva, como fato psíquico, mas o conhecido, ou seja, "o eterno processo
sou-se predominantemente pelas ciências matemáticas e naturais. A matemá- jptelo qual o ser que o pensamento se põe como objeto recebe sua concreta
tica também é importante para as ciências morais, afirma, porque a história tteterminação" {Philosophie, p. 13). De fato, não conhecemos o pensamento
se baseia na cronologia, a economia na estatística, o direito no conceito dc teolando-o do conhecido, não existe uma intuição do eu; até o sujeito, quando
condição, que é comum também à matemática {Logik, p. 43). estudado pela psicologia, é conhecido como fenómeno. E não podemos co-
A ética tem como objeto o dever ser, a tarefa infinita que é a ideia: é (Aecer o conhecer porque o conhecer consiste em ter presente um objeto, no
esta a coisa em si. O mundo inteligível não é uma realidade transcendente, têt correlato de um objeto. Podemos conhecer objetos: um som, uma cor, mas
mas é a direção, a orientação que nossa atividade deve assumir. nSo conhecemos a audição ou a visão: "minha consciência (por exemplo, a
A religião fundamenta-se no sentimento, na dupla forma de amor ao 4f«íição) existe na medida em que há para mim um conteúdo (por exemplo,
próximo e de sentimento da própria imperfeição moral. Quando, entretanto, som); a existência de um som para mim: eis minha consciência do som"
a religião se refina, ela se despe do elemento mítico e sentimental, funda-sc t^leitung, p. 18). E se alguém me dissesse que, além do som, ouve sua
•iiHliçáo, poderia invejar-lhe essa espécie de percepção, mas não poderia imitá-
na razão e identifica-se com a moral. Na religião entendida desse modo, DCUN h» {Einleitung, p. 17).
é apenas a ideia da verdade, "o fundamento lógico das relações que consti
tuem a moralidade entre os homens"*. A percepção não se encontra além cln
vida terrena, mas consiste em adequar-se aos ideais de justiça social. 7. Obras principais: Einleitung in die Psycitologie, Freiburg, Mohr, 1888, refundida pos-
IwttSiHente em Allgetneine Psychologie, TUbingen, Mohr, 1912; Platos Ideenlehre, Leipzig,
6. P. MARTINETTI, "La religione delia ragione di Hermann Cohen", in Rivúta di Filo •wil, liie logisclien Grundlagen der exakten Wissenschaften, Leipzig, 1912 (2* ed. 1921),
ekiloMiphie. Ihr Problem und ihre Probleme, Gottingen, 1911 (resume sinteticamente as doutri-
sofia XXIV (1933), n. 3. M> (III autor).

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA A FILOSOFIA ALEMA

Não percebemos a consciência como um fluir no tempo, como preten- determinando-0 cada vez melhor. O esquema do juízo não éAéA (tautologia)
deria Bergson, porque o tempo não passa de uma forma da consciência, não e nem A é B (de fato, como seria possível deduzir o outro se já não o
é seu objeto. Tampouco o sujeito nos é dado como atividade, como ação: não tivéssemos colocado lá?); mas x é A. A se tornará, por sua vez, um
temos tal consciência (von Actionen ereben wir nichts) (op. cit., p. 37); per- indeterminado, um x, em relação a uma ulterior determinação B, e assim por
cebemos apenas sucessões e mudanças de conteúdos. É possível uma psico- diante (Die log. Grundl., p. 41; Philosophie, p. 47).
logia experimental como uma das tantas ciências da natureza, embora esteja O objeto não é pois o ponto de partida, mas o ponto de chegada do
ainda distante do ideal de uma ciência exata. Quando a psicologia tiver che- conhecimento; mais que obiectum é proiectum, é aquilo que o pensamento
gado a esse ideal, seu objeto estará no mesmo plano que o das ciências projeta determinando sempre melhor o real. E não existe um limite para essa
naturais: será objeto, não mais sujeito. determinação: o objeto está sempre em fieri, tarefa infinita. O real não é pois
Todavia, há alguma verdade na distinção tradicional entre subjetivo e nem o indeterminado, que nada é sem suas determinações, nem as determi-
objetivo: o que chamamos de subjetivo nada mais é senão o objetivo imper- nações, que são sempre provisórias, mas o processo do determinar. Natorp
feito. Consideramos, por exemplo, subjetivas as sensações (cores, sons etc.) cita a frase com a qual Fausto traduz o primeiro versículo do Evangelho de
e objetivas as ondas luminosas, sonoras, porque o vermelho ou o som de ré São João no Fausto de Goethe: Im Anfang war die Tat [No princípio era a
correspondem a uma objetivação dos conteúdos de consciência ainda rudi- ação\, e insiste: "O processo, o método é tudo. Portanto, o fato da ciência
mentar, imperfeita; quando objetivamos melhor e nos perguntamos o que são deve ser entendido somente como fieri. O que importa é aquilo que vai se
o vermelho, o som etc, respondemos com os conceitos científicos de onda fazendo, não aquilo que é feito" (op. cit., p. 14).
luminosa e sonora. O objeto é o elemento necessário e universal, a lei à qual
é possível reconduzir os nossos fatos de consciência; sujeito é o conteúdo de Na ideia como tarefa infinita já está implícito o conceito de sollen, do
consciência ainda indeterminado. No limite do subjetivo encontra-se o puro dever ser. O dever ser não é determinado por um fim, pois fim significaria
dado vivido, o Erlebnis inefável, inexprimível; mal tentamos exprimi-lo, o limite, mas por sua imanente direção, direção sem fim, sem um Deus legis-
objetivamos. No limite do objetivo encontra-se a lei suprema, a unidade lador. "O deves não é pois algo extralógico ou superior à lógica: é apenas
perfeita, a meta à qual tende todo conhecimento científico, mas que jamais mais profundamente lógico do que aquele ser, em cujo conceito é abstraído
é alcançada; ela permanece a tarefa infinita, a ideia no sentido kantiano. do dever ser... Precisamente o ser do dever ser é mais radical do que o ser
da experiência" (Philosophie, pp. 67 e 68). Ora, a lógica do dever ser é a
A unidade de sujeito-objeto é um processo sintetizante que dá origem ética. A liberdade é justamente a superação de toda determinação. Não pode
ao objeto da função do pensamento (Philosophie, p. 13). Se, de fato, conce- haver determinismo, porque a realidade profunda é superior a todo fato que
bemos o objeto como um dado, como o concebia a antiga metafísica, deve- possa ser determinante: a atividade moral é regida somente pela pura forma
mos admitir que o conhecimento parte de conceitos indefiníveis e de propo- da lei, que é a pura forma do lógico; desta seguem-se características impor-
sições indemonstráveis; ora, de tais conceitos e princípios só poderemos deduzir tantes, como a coerência, a unidade. "Uma filosofia que é pura metodologia
tautologias. A herdeira legítima da concepção aristotélica do conhecimento é, só pode, em última análise, levar, também na ética, a uma metódica da pura
segundo Natorp, a concepção do pensamento segundo os lógicos matemáti- legalidade" (Philosophie, p. 70).
cos: os axiomas seriam proposições postas não se sabe por quê e cujo signi-
ficado é desconhecido, das quais, em virtude de certo mecanismo de regras,
extraem-se consequências cujo valor ignoramos (Die logischen Grundlagen, liRNST CASSIRER ( 1 8 7 4 - 1 9 4 5 )
cit, p. 8). Natorp não admite tal concepção: o conhecimento é originariamen-
te síntese; a análise serve apenas como controle das sínteses já realizadas. Se E. Cassirer também pertence à escola de Marburgo, mas apresenta uma
a concepção aristotélica fosse verdadeira, a ciência, como enriquecimento do iilwrtura muito mais ampla para as "ciências do espírito" do que seus prede-
conhecimento, não seria possível; ao contrário, ela será explicada se o conhe 4-eiisores. Sua primeira obra sistemática, Substanzbegriff und Funktionsbegriff,
cimento for síntese, progressiva determinação do objeto. Não nos baseamos ik. 1910', está ainda orientada para as ciências naturais, mas, mais adiante,
em um conceito determinado para estabelecer de que elementos ele se com
põe, mas nos baseamos em um x, em um indeterminado, e o enriquecemos 8. Cito a 2* ed, Berlim, 1923.

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HISTÓRIA DA HLOSOFIA CONTEMPORÂNEA A FILOSOFIA ALEMA

suas vastas e profundas pesquisas de história da filosofia — que culminaram possuem objetividade; portanto, objetividade não se identifica com realidade,
na ampla obra sobre o problema do conhecimento na filosofia e na ciência com realidade sensivelmente experimentavel. "A atividade funcional do pen-
da época moderna' — o levaram a considerar também outras formas de samento exige e encontra seu termo em uma estiutura ideal do pensado,
atividade espiritual; a Filosofia das formas simbólicas trata, de fato, da lin- estrutura que lhe pertence independentemente de todo ato particular de pen-
guagem, do pensamento mítico e do conhecimento. samento limitado no tempo" (Substanzbegriff und Funktionsbegriff, p. 418).
Também nas obras sistemáticas de Cassirer o desenvolvimento teorético O estudo das formas irracionais ou pré-racionais do conhecimento amplia
tem sempre como pano de fundo a história da filosofia: no prefácio do último a esfera de interesses de Cassirer, mas não modifica sua teoria do conheci-
volume da Filosofia das formas simbólicas ele afirma: "(...) o costume, que mento. De fato, na linguagem, assim como na arte e no mito, encontramo-nos
voltou a se afirmar hoje em dia sob formas variadas, de situar, por assim diante de conteúdos sensíveis, singulares, que, no entanto, são portadores de
dizer, no vazio os próprios pensamentos, sem buscar sua relação e sua cone- um significado espiritual universal. Ora, é nisso que consiste precisamente a
xão com o trabalho conjunto das ciênciasfilosóficas,jamais me pareceu natureza do símbolo, do signo. Daí o título da última obra de Cassirer. Mas
oportuno e fecundo". como é possível que um conteúdo sensível seja portador de um significado
universal? É possível, responde Cassirer, uma vez que "a função fundamental
Uma convicção permanece constante em Cassirer, desde as primeiras do próprio significar já está presente e atuante antes que seja posto o símbolo
obras até as mais recentes: estudar a estrutura do pensamento — seja o individual, de modo que tal função não é criada pela primeira vez neste pôr,
pensamento científico,filosófico,espontâneo ou fantástico — significa estu- mas somente fixada, somente aplicada a um caso particular" {Forme simboliclie
dar a própria estrutura do real, porque o real se identifica com sua manifes- I, p. 48). A universalidade do significado consiste no fato de estar ligado,
tação. E isso resulta da própria análise do pensamento. De fato, não existe um posto em relação com outros conteúdos presentes na consciência.
pensamento-forma que esteja aquém dos acontecimentos de que pode neces-
sitar o pensamento-conteúdo. Kant acreditava ainda na distinção entre forma Cassirer chama de símbolo o singular universalizado para indicar que o
e conteúdo do pensamento e considerava a lógica formal de Aristóteles uma conhecimento não é intuição de uma realidade em si, mas é sempre e unica-
doutrina definitiva; mas não é assim, também a lógica progride. A lógica mente conhecimento mediato, através de signos, símbolos. Polemizando com
aristotélica reflete a metafísica de Aristóteles: a concepção de um mundo de outras correntes de pensamento (a metafísica pré-crítica, as filosofias de Mach,
coisas, de substâncias, das quais é preciso abstrair os caracteres comuns para de Bergson), Cassirer afirma que não é possível ir além do símbolo. Quando
captar sua essência, que é dada pela forma. Mas a infecundidade dos pretensos julgamos ter ultrapassado o símbolo, ter rasgado o véu, encontramo-nos em
conceitos obtidos por abstração levou a uma reforma da lógica e consequen- um momento inferior ao símbolo, em um puro sentir, em algo que, para ser
temente da doutrina da realidade. As ciências progrediram matematizando-se, expresso (e como poderíamos falar dele se não o exprimíssemos?), deve
e na matemática o conceito fundamental não é o de substância, mas o de lei, ainda ser simbolizado. A realidade em si, a realidade transcendente não exis-
de função, de relação. Os conceitos matemáticos não são obtidos por abstra- te, porque a realidade consiste em seu manifestar-se, e tanto mais elevada é
ção das coisas, mas são construídos pelo próprio pensamento; o que não a realidade quanto mais perfeita a manifestação. "Não conhecemos os obje-
significa que sejam subjetivos. Os entes matemáticos são irreais, no entanto tos, quase como se fossem, antes e independentemente de nosso conhecimen-
to, dados e determinados como objetos — mas conhecemos objetivamente,
9. Traduzida para o italiano com o título Storia delia filosofia moderna, 4 vols., TUrim, porquanto, no fluir uniforme dos conteúdos da experiência, criamos determi-
Einaudi, 1952-1958. Além de outras obras de hisuSria da filosofia, foi traduzida sua maior obra nadas delimitações e fixamos entre eles determinados elementos duráveis e
sistemática: Philosophie der syinbolischen Fonnen, de 1923 {.Filosofia delle fiinne simboUdie, 4 determinados nexos" {Substanzbegriff, p. 403).
vols., Florença, La Nuova Itália, 1%1-I966); o quarto volume contém também uma bibliografia
completa das obras de Cassirer); e Saggio suWuomo, trad. de L. Lugarini, Roma, Armando, 1968. Na tese segundo a qual a realidade consiste em seu manifestar-se, e a
De Cassirer, há em português: Antropologiafilosófica:ensaio sobre o homem. Introdução manifestação, começando pelas formas de conhecimento intuitivas e irracio-
a uma filosofia da cultura humana. São Paulo, Mestre Jou, 1972; En.saio sobre o homem: nais, ascende para formas de saber cada vez mais elevadas, ressoa um eco
introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo, martins Fontes, 1994; A filosofia do hegeliano; e, de fato, Cassirer nos adverte de que o título Fenomenologia do
iluminismo. Campinas, Ed. Unicamp, 1992; O mito do estado, Rio de Janeiro, Zahar, 1976; conhecimento, dado ao terceiro volume da Filosofia das formas simbólicas,
Linguagem e mito. São Paulo, Editora Perspectiva, 2' ed., 1985.
Sobre Cassirer: M. LANCELLOTTI, Funzione, simbolo e struttura. Saggio .VM Ernst não possui um significado husserliano, e sim o significado hegeliano. A
Cassirer, Roma, Editrice Studium, 1974; The Philosophy ofE. Cassirer, org. por P. Schilpp, La Fenomenologia hegeliana trata dos diversos modos nos quais a consciência
Salle (III.), The Open Court Publ., 1973. aparece, desde os mais imperfeitos até o saber absoluto.

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HISTORJA DA FILOSOFIA CONTEMPORÁNFA A FILOSOFL\A

HEINRICH RICKERT ( 1 8 6 3 - 1 9 3 5 ) ' ° vivamente com as filosofias da vida e as filosofias da existência. Não se faz
filosofia com estados d'alma imediatamente vivenciados (Erlebnisse), mas
H. Rickert é com W. Windelband, do qual foi discípulo, o maior repre- tentando pensar, ou seja, determinar conceitualmente aquilo que foi vivenciado.
sentame da corrente chamada pelos centros universitários das quais se difun- A filosofia deve ser não apenas conceito, mas sistema de conceitos. O objeto
diu (Freiburg e Heidelberg) de "escola do Baden", ou também "escola alemã da filosofia é o todo, o ser em sua totalidade, e o conceito mais amplo, capaz
sul-ocidental"; também é chamada de "filosofia dos valores (werttheorischer de abarcar o todo, é aquele de algo, de ente: "Só pensamos logicamente
Kritizismus)". quando encontramos algo que existe como objeto, independentemente do
No prefácio à Allgemeine Grundlegung der Philosophie {Fundamenta- nosso pensamento" {Allg. Grundl., p. 51). Mas não podemos permanecer
ção geral da filosofia), primeira e única parte do que deveria ser o Sistema eternamente neste conceito, caso contrário ele nada nos dirá; é preciso deter-
da filosofia, Rickert nos diz alguma coisa a respeito de sua formação filosó- minar: 1) em que condições existe esse algo e 2) até onde ele se estende.
fica. Antes de aprofundar o estudo da história da filosofia, ele chegara, "como Condições são a forma e o conteúdo.
frequentemente acontece com os principiantes e os diletantes", a um relativismo 1) A forma é a unidade, a identidade consigo mesmo. Mas uma coisa não
radical. "Por meio do estudo profundo do passado cheguei em seguida a um pode ser idêntica a si mesma senão distinguindo-se de qualquer outra;
firme terrenofilosófico.O que nada tem a ver com o historicismo. Ao con- portanto, só se pode pensar uma coisa relacionando-a a outras. Este é
trário: vi exatamente na razão supra-individual que se manifesta na história o princípio que Rickert chama de heterotese, para distingui-lo do prin-
aquilo que ultrapassa a história; ou seja, aprendi que a filosofia europeia em cípio hegeliano da antítese, e a diferença consiste no seguinte: na con-
sua totalidade é algo profunda e intimamente uno... Devo a meu mestre cepção rickertiana, o outro não se obtém por simples negação do um,
Windelband, o último grande historiador da filosofia juntamente com Dilthey, mas é algo positivo, dado além do um. Portanto, não se pode deduzir
o fato de ter encontrado o caminho para este conhecimento." E, depois de dialeticamente toda a riqueza da realidade a partir do ser indeterminado,
aludir a suas divergências em relação ao mestre ("Para ele, eu era demasiado mas é preciso que esta riqueza, esta multiplicidade, seja dada pela ex-
'positivista', por outro lado, seu pensamento (...) sempre me pareceu dema- periência. Cabe, pois, à ciência e à filosofia ordenar este múltiplo em
siado metafísico e demasiado psicológico"), prossegue: "Aquilo que eu apren- conceitos. "A filosofia deve pensar o mundo de modo tal que do caos
deria para sempre com Windelband era a convicção, por nenhum outro tão dos dados imediatos da experiência {Erlebnisse) surja um cosmo orde-
nitidamente formulada, do intransponível abismo {Kluft) que separa Kant de nado e subdividido de acordo com princípios" (op. cit., p. 50).
todos os seus predecessores, e com isso a clara visão do incomparável pro- 2) O todo deve abarcar objeto e sujeito. A redução do todo a objeto é a
gresso que o criticismo representa para a ciência depois de Platão..." {AU. posição do realismo ingénuo, das ciências particulares; a redução do
Grundl., p. XI). Ao contrário, entretanto, dos neokantianos de Marburgo, todo a sujeito, o subjetivismo, é também unilateral e equivocado, mas
Rickert não vê oposição, e sim continuidade de Kant a Hegel. nasce da legítima exigência de dar um significado ao mundo, de reco-
O próprio Rickert forneceu um esquema de seu pensamento filosófico nhecer a inteligibilidade do mundo. Para conciliar as exigências do
em um artigo de 1932 ("Thesen zum System der Philosophie", na Revista objetivismo e do subjetivismo é preciso renunciar a conceber a realida-
Logos) e aqui o seguiremos, integrando-o aos desdobramentos que se encon- de sob uma única forma, um único tipo, e, ao contrário, admitir um
tram na Allgemeine Grundlegung der Philosophie. pluralismo ontológico. De fato, encontramos coisas reais {wirklich),
A filosofia deve ser ciência: saber por saber, teoria pura. Neste ponto mas também encontramos objetos irreais. Por "real" Rickert entende
Rickert concorda com os neokantianos de Marburgo, com Husserl, e polemiza aquilo que ocupa espaço e se desenvolve no tempo, ou se desenvolve
somente no tempo, como uma sensação, um sentimento. Ora, os entes
matemáticos, os significados, a verdade de uma proposição possuem
10. Obras principais: Der Gegenstand der Erkeimtnis, 1892 (5' ed., TUbingen, Mohr. uma objetividade própria, e no entanto não são reais. Inreal é tudo
1921); Die Grenzen der naturwissetischaftliche Begriffsbildung, 1896 (4* ed., 1921); System der aquilo que tem valor, aquilo cujo ser consiste não em ocupar espaço e
Philosophie. I Teil: Allgemeine Grundlegung der Philosophie, TUbingen, Mohr, 1921.
Sobre Rickert: A. FAUST, H. Rickert, TUbingen, Mohr, 1927; F FEDERICI, La filosofia desenvolver-se no tempo, mas em valer. À objeção de que os valores
dei valori di H. Rickert, Florença, La Nuova Itália, 1933. vivem nas consciências, portanto são realidades psíquicas, Rickert respon-

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA A F 1 U ) S 0 F L \A

de que real é o ato pelo qual reconheço um valor, pelo qual (wordurch) que Rickert interpreta também o eu transcendental de Kant, pois o eu trans-
tenho consciência de um valor, não o valor de que (wovon) tenho cons- cendental é o princípio das categorias, ou seja, das regras, das normas, em
ciência. Quando conheço, quando julgo, é o valor (a verdade) o que se última análise, do valor.
impõe para mim e me obriga ao assentimento.
O valor se encarna em um real, em um bem (Gut) como são um belo WILHELM DILTHEY ( 1 8 3 3 - 1 9 1 1 ) "
quadro, um ato justo, um juízo verdadeiro; entretanto, uma coisa é o bem em
que o valor se encarna, outra coisa é o próprio valor {Wert); uma coisa o
quadro, outra coisa sua beleza; uma coisa a ação, outra coisa sua justiça; uma 1. Referências biográficas
coisa o ato de julgar, outra coisa sua verdade. Deve-se distinguir o valor não
apenas do objeto real no qual se encarna, mas também do ato pelo qual o Filho de um erudito pastor protestante, Dilthey foi orientado para o
reconhecemos, pela avaliação (Wertung). Valor é aquilo que nos interessa, estudo da teologia, ao qual se dedicou nas Universidades de Heidelberg e de
que suscita em nós uma reação. Berlim. Em Berlim, onde chegou em 1853, ainda era viva a herança de
Schleiermacher. A maior parte dos "teólogos que atuavam em Berlim nos
O valor se distingue do ente real pelo seguinte: enquanto a negação de anos cinquenta encontrava-se, de fato, ainda sob a influência preeminente de
um real resulta no nada (não-mesa não significa cadeira, não significa coisa Schleiermacher, cujos escritos inéditos acabavam de ser então publicados, es-
alguma), a negação de um valor significa um valor negativo (não-justo sig- critos que chamariam, durante muito tempo, a atenção de Dilthey" (F. BIANCO,
nifica injusto). Dilthey, p. 141). A biografia de Schleiermacher (Leben Schleiermachers)
Há valores que só valem para determinados sujeitos: por exemplo, o publicada, em sua primeira parte, em 1870, póstuma na segunda, Dilthey
prazer. De fato, dizemos me agrada, te agrada, lhe agrada, e não, "agrada" dedicou um estudo que, podemos dizer, durou quase toda uma vida. Mas na
absolutamente; e quando dizemos "agrada", sem um pronome, subentende- época, em Berlim, encontrava-Se em pleno fulgor a escola histórica, e a
mos: agrada a muitos, à maioria. Outros valores valem independentemente própria teologia interessava a Dilthey mais como história do cristianismo do
das avaliações de quem os aprecia, por exemplo, a verdade; estes são valores que como dogmática. Dilthey manifestara desde a juventude uma aguda sen-
objetivos e não podem ser negados; ou antes, poderão ser negados individual- sibilidade artística, voltada principalmente para a música e a poesia, e em
mente, poder-se-á não reconhecer essa verdade, mas não poderão ser negados Berlim decidiu escolher como profissão a filosofia. Foi professor inicialmen-
universalmente, pois para negá-los é preciso pressupô-los; de fato, não se pode te em Basileia, em seguida em várias Universidades alemãs e finalmente em
dizer que não existe verdade sem pressupor que essa negação é verdadeira. Berlim. Na Introdução ao quinto volume das obras de Dilthey — introdução
Há valores teoréticos e valores ateoréticos, que seria absurdo pretender que é quase uma monografia — O. Misch observa que os escritos reunidos
demonstrar ou justificar racionalmente; tal pretensão é intelectualismo ou naquele volume, e de certa forma todos os escritos de Dilthey, apresentam um
racionalismo no pior sentido. "Superamos verdadeiramente o racionalismo caráter aparentemente fragmentário: "materiais para...", "ideias para...", "con-
quando conseguimos compreender teoreticamente os valores ateoréticos não tribuições para..." e por vezes são incompletos, mas acrescenta que este não
obstante a impossibilidade de fundamentá-los teoreticamente... É preciso
distinguir compreensão teorética dos valores ateoréticos de avaliação ateorética II. Obras de Dilthey: W. DILTHEY, Genamielte Schríften, 15 vols., Leipzig, Teubner-
(...); é preciso mesmo compreender o valor ateorético em sua irredutibilidade ÍKMtingen, Vandcnkoeck u. Ruprecht, 1922-1970.
a ser fundamentado teoreticamente" (Allg. Grundl., p. 152). Em italiano: Uanalái deWuomo e l'inluíZÍone delia natura dal Rinascimento al moio
XVIll, Florença, La Nuova Itália, 1927; uma coletànea de ensaios com o título Critica delia
Depois de ter destacado o valor, poderemos solucionar o conflito entre mgione storica, otg. por Pie&o Rossi, Turim, Einaudi, 1954; Esperienza vissuta e poesia, org.
por N. Accolti Gil Vitale, Milão, 1947.
objetivismo e subjetivismo: o objetivismo é a atitude correta diante do real, Sobre D.: PIETRO ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporâneo, 2* ed., Turim, Einaud
o subjetivismo é a atitude correta diante do valor. Mas o sujeito que devemos 1071 (as primeiras 123 páginas são dedicadas a Dilthey). O Post-scriptum 1970 (pp. XXV-XL)
afirmar é um sujeito transcendental, que se identifica com a inteligibilidade; ( b segunda edição dessa obra constitui uma preciosa bibliografia comentada à qual remetemos,
o sujeito não é um real, mas é a pura forma de todo objeto que está presente tembro ainda F. BIANCO, Dilthey e la gene.ti delia critica storica delia ragione, MilSo, Marzorati,
do modo como é conhecido (e portanto verdadeiro), bom, belo etc. É assim

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA A FILOSOFIA ALEMÃ

é um defeito, pelo menos aos seus olhos, pois responde ao propósito de ciência natural erigida em filosofia), e tampouco a teologia, que — como
"querer compreender a vida partindo da própria vida" (Ges. Schríften V, p. saber sistemático dogmático — lhe era, segundo diz, insuportável e antipá-
XI). Parece-me que tal caráter atesta também um traço da personalidade de tica. Tentou compreender a história, captar sua alma, mergulhando na própria
Dilthey como pensador (talvez o único que ele possui em comum com história.
outro pensador tão diferente dele, embora por ele tão profundamente respei- Na filosofia alemã, era esta a época do retorno a Kant, e Dilthey é seu
tado, Husserl): sua insatisfação de pesquisador, seu senso da inesgotabilidade admirador. Mas Kant elaborara uma teoria do conhecimento científico, das
do objeto a ser explorado. Embora, de fato, tivesse uma ideia muito dife- ciências naturais, e Dilthey põe-se o problema de uma teoria do conhecimen-
rente da de Husserl a respeito da cientificidade da filosofia (Philosophie ais to histórico, conhecimento de realidades espirituais. Daí a necessidade de
strenge Wissenschaft de Husserl polemiza até com Dilthey), é também compreender o que sejam as ciências do espírito (Geisteswissenschaften), isto
verdade, como reconhece o próprio Misch na introdução, que "a cienti- é, as chamadas ciências morais. Sua maior obra teorética é, de fato, a Intro-
ficidade da filosofia foi sua mais urgente exigência, seu ethos iluminista- dução às ciências do espírito, de 1883.
kantiano" (op. cit., p. XIII).
Dilthey aceita a tese de Kant de que nosso conhecimento se limita ao
mundo da experiência, mas recusa a da subjetividade do tempo, a afirmação
2. Natureza e espírito de que o tempo é apenas forma dos fenómenos. O historiador recusa-se a
admitir essa tese, porque sem tempo não há história, aliás não há vida, e
O prefácio que Dilthey redigiu em 1911 para uma coletànea de seus reduzir o tempo à forma dos fenómenos significaria reduzir a vida a fenóme-
escritos delineia bem o caráter de sua filosofia: "Quando me aproximei da no. É uma contradictio in adiecto considerar a vida como aparência (observe-
filosofia, o monismo idealista de Hegel havia sido substituído pelo predomí- se como o fenómeno transforma-se aqui em aparência, Schein), "pois no
nio das ciências naturais. E quando o espírito que inspira as ciências naturais decorrer da vida, no crescimento do passado e no estender-se em direção ao
tomou-se filosofia — como aconteceu com os enciclopedistas, Comte e, na futuro desenvolvem-se as realidades que constituem o nexo efetivo e o valor
Alemanha, com alguns cientistas filosofantes — tentou conceber o espírito da nossa vida" (Ges. Schríften, V, p. 5). Se a vida dependesse de algo
como um produto da natureza, e o fez emudecer" (Ges. Schríften, V, p. 3). intemporal, deixaria de ter valor.
Ser idealmente discípulos dos grandes cientistas, dissera Dilthey nas Ideias Uma característica fundamental do espírito, que o distingue da nature-
para uina psicologia descritiva e analítica, não significa aplicar o método das za, é portanto a temporalidade. Outra característica fundamental do espírito
ciências naturais ao mundo do espírito, mas buscar um método adequado à é seu poder ser imediatamente dado, vivenciado (erlebt). Os fatos naturais
natureza do espírito. E, de fato, prossegue Dilthey no prefácio de 1911, os são conhecidos a partir do exterior, enquanto os fatos espirituais são perce-
grandes cientistas (em contraposição àqueles que acima havia chamado de bidos em si mesmos e vivenciados: vivendo uma percepção, um sentimento,
cientistas filosofantes), como Helmoltz, tentaram apreender mais profunda- um ato de vontade, e se alguém me dissesse que talvez não exista o sentimen-
mente o problema, e se voltaram para Kant. Helmoltz, como Lange, limitou- to que experimento, ele afirmaria um não-sentido, uma vez que posso sempre
-se, todavia, a reconhecer somente na arte a especificidade do espírito, sua duvidar da existência do livro e da flor que eu vejo.
irredutibilidade à natureza. Além disso, escapava-lhes a dimensão histórica,
e justamente esta era objeto da atenção de Dilthey: ele queria entender o
mundo da história, e o mundo da história não se deixa reduzir a natureza: é
o mundo do espírito, o que significa mundo de realidade, mas também de J. Explicar e compreender
valores e de fins. Foi assim que aprendeu a ver a realidade com os grandes
poetas: Shakespeare, Cervantes, Goethe; os historiadores — Tucídides, Nos escritos de Dilthey encontramos um termo recorrente que exprime
Maquiavel, Ranke — revelaram-lhe o mundo histórico como aquele "que se um conceito fundamental de sua filosofia: erleben, e o substantivo Erlebnis.
move ao redor de seu centro sem necessitar de outra coisa" (ibid., p. 4). "A Erlebnis constitui o centro gerador das ciências do espírito" (P.
Dilthey afirmou que somente a história pode dizer-nos o que é o homem. Ora, ROSSI, Lo storicismo tedesco, p. 25), mas a cientificidade da filosofia exige
para explicar o mundo da história não bastava a filosofia científica (isto é, a que se vá além da imediatez da Erlebnis, ou antes que se analise o que a
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HISTÓRIA DA HLOSOFIA CONTF.MPORÂNFA A FILOSOFIA ALEMA

Erlebnis implica. É necessária a psicologia para nos fazer conhecer o que é exterior à qual é dedicado um ensaio de Dilthey (Beitrãge zur Losung der
o homem como sujeito espiritual, o homem que é objeto e sujeito da história. Frage vom Ursprung unseres Glaubens an die Realitãt der Aussenwelt —
Mas para conhecer o homem assim considerado não basta a psicologia dos Contribuições para a solução da questão da origem de nossa crença na
psicólogos, por assim dizer, a psicologia científica, que explica a vida da realidade do mundo exterior) é uma crença, uma fé, fundada não em catego-
consciência com a categoria de causa, partindo dos fenómenos psíquicos rias teoréticas, como a causalidade, mas no sentimento de um impacto, de um
isolados (sensação, percepção, estados afetivos) para reconstituir o conjunto obstáculo à nossa ação. Também Dilthey, de fato, compartilha com a maior
da consciência. É preciso outro tipo de psicologia, e Dilthey traça suas carac- parte de seus contemporâneos o que chama de "princípio da fenomenalidade",
terísticas no ensaio Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, de isto é, a afirmação de que tudo aquilo que nos é dado é "fato de consciência"
1894. Aparece aqui a distinção entre explicar e compreender (erklãren e (Ges. Schríften, V, p. 90).
verstehen): "Explicamos a natureza, compreendemos a vida psíquica" (fies. Embora Dilthey tenha dedicado um ensaio a A essência da filosofia, seu
Schríften, V, p. 144). Explicar significa aplicar a categoria da causalidade, conceito de filosofia não é facilmente compreensível e foi interpretado de
compreender significa tentar reviver um fato de consciência. Ora, na experi- modos diferentes'^. A dificuldade nasce da antinomia existente entre o con-
ência interior é dado antes o todo, e somente depois é possível decompor esse ceito de filosofia como visão de mundo que aspira a uma validade universal
todo em seus elementos: "a vida é dada sempre somente como nexo, como e o de historicidade da filosofia. A filosofia possui em comum com a arte e
conjunto {Zusammenhangy-, o nexo não é inferido a partir dos estados de a religião a característica de ser uma "visão do mundo" (Weltanschauung),
consciência individuais: é dado. Mas uma psicologia é necessária: a própria isto é, uma concepção geral da realidade, mas, ao contrário da arte, que
crítica de Kant pressupunha a psicologia de sua época, a psicologia das constrói uma visão do mundo com a imaginação, e da religião, que a aufere
faculdades. Não existe um método transcendental mágico que possa não de um contato com o supra-sensível, a filosofia pretende a validade universal
pressupor uma psicologia'^: até a crítica do conhecimento precisa da psico- da própria visão do mundo. Por outro lado, a filosofia, aliás as filosofias
logia, mas não da psicologia moldada nas ciências naturais, de uma psicolo- vivem na história e mudam com a mudança do contexto histórico. Dilthey
gia descritiva e analítica. "Entendo por psicologia descritiva a exposição dos parece resolver a dificuldade negando a possibilidade da filosofia como
momentos constitutivos e dos nexos que se apresentam uniformemente em metafísica e diluindo a filosofia na reflexão sobre a filosofia, na "filosofia da
toda vida psíquica adulta; o modo como estão conectados em uma única to- filosofia" que procede "mediante uma análise comparativa das várias formas
talidade de relações, que não é acrescentada a cada elemento distinto e não é históricas de filosofia, para determinar o fundamento sobre o qual repousam,
inferida, mas é imediatamente vivenciada (erlebt)" (Ges. Schríften, V, pp. 152). remontando dos conceitos em que se exprimem às condições nas quais tais
Para elaborar tal psicologia, ou antes para tirar proveito dela no conhe- ctmceitos são formulados" (P. ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporâneo,
cimento do homem, que vive na história e faz a história, não basta a p, 113). Em essência: a filosofia é reconduzida à hi,stória da filosofia; e, de
introspecção; é preciso estudar as obras do homem, e o homem que atua na fato, Dilthey destaca-se particularmente em suas obras de história da filosofia.
história não é apenas o indivíduo (embora o indivíduo seja o núcleo, o
Grundkôrper da história), mas é o homem que vive em relação com os
outros, na sociedade. Ora, para poder perceber os traços comuns do homem,
que Dilthey indicou como momentos constitutivos presentes uniformemente
em toda vida espiritual adulta, é preciso ir além da Erlebnis; é preciso expri-
mir, objetivando-o, o dado vivenciado, e é preciso compreender o outro homem
com base naquilo que vivenciamos em nós. O dado vivenciado está absolu-
tamente certo, mas aquilo que inferimos a respeito dos outros não possui a
evidência infalível da Erlebnis, portanto, as ciências do espírito não chegam
a conclusões infalíveis. De resto, também a crença na existência de um mundo
13. Conforme resulta do que afirma PIETRO ROSSI nas páginas de Lo storicismo tedesco
12. Ao que me parece, há um tom polémico em relação à escola de Marburgo. . imlemporaneo dedicadas a este assunto (pp. 100-123), nas quais me baseio.

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