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XXV Preso na torre

Mercês era o nome da mãe de Maggie, e isso Felipe descobriu alguns dias depois.
Ignorava o genro, quase como se ele fosse invisível - a não ser quando criticava para
Margarete suas idas ao parque, bem como sua profissão… “isso não é trabalho”. Mas era
ainda mais implicante com Maggie, a quem só chamava de Margar-ete - como se, no
momento de dizer o nome da filha houvesse um “afrancesamento”. Para Felipe, esse jeito
de pronunciar passou a soar cada vez mais como uma espécie de “código de produto”.
Estranhamente, quando se referia a mãe para Felipe, Maggie também a tratava pelo nome
com esse mesmo “sotaque” “Mer-cês”. É verdade, Mercês não gostava dos hábitos de
Margarete, especialmente que ficasse lendo até tarde - e para falar a verdade ela parecia
detestar computadores e dispositivos de tela, em geral, nem que saísse para o Pilates ou
para a Yoga, “muito exposta, ainda mais indo só, não fica bem”. Maggie às vezes não
aguentava, e devolvia com violência: eu posso criar o meu destino, “ma-mãe”, você devia
ter criado o seu, mas sua geração é atrasada demais para isso”.

A convivência difícil parecia colocar à prova a intenção de mudança de Felipe em


relação às pessoas. Mas lembrava do povo de Palo Alto e de sua sabedoria, e diariamente
decidia ir em frente, inclusive homenageando aquele povo colocando uma colombiana como
protagonista em seu romance, que se passava em meio ao período da “unificación de los
pueblos”, coisa que até sua viagem, nunca tinha ouvido falar. Era a primeira vez que se
orgulhava de algo que escrevia, desde a reconfiguração que permitia uma escrita sem
grandes intervenções - mas agora a aceitava de vez em quando, tendo chegado a uma
relação amistosa com a IA. À medida em que escrevia os capítulos, lia a opinião da IA,
enviava o conteúdo para a editora, e o retorno aproximava a publicadora, a própria IA e
Mascarenhas de um acordo melhor do que desde o episódio do flagrante de “aliciamento
pela concorrência”. Além disso, havia as caminhadas no PDA.

Pela proximidade com o nascimento, contudo, Felipe foi compelido a não ir mais
para o parque adulto. O problema é que, sem suas caminhadas, a entrega para Ivan
começou a ficar comprometida, e patrulhado quase 24H por revezamento entre Maggie e
Mercês, precisava se comunicar com o amigo e com a segunda IA, urgentemente. Sentia-se
como que preso no alto de uma torre medieval. A pressão era tamanha, que já começava a
se esquecer da sabedoria transformadora, e a querer voltar a ser o escritor sem nome,
querendo seu sossego solitário e de poucas obrigações com pessoas ou com o mundo. De
fato, tornou-se de novo caladão e a olhar para a janela durante a tarde.

Como os compromissos não lhe esperariam, em algum momento o interfone tocou e


o porteiro informava a Mercês que Ivan se encontrava na portaria. Apesar da longa
amizade, o escritor jamais o havia convidado, sequer lembrado que Ivan sabia exatamente
de seu novo endereço. Evitava ostentações. Pediu que subisse, recebendo a reprovação de
Mercês, e uma nota “neutra” de Maggie.

- Então o Ivan existe mesmo! Vou tomar um banho e falo com ele. Quero mesmo
conhece-lo!

O escritor nervoso com o que Ivan poderia dizer ou revelar logo na entrada. Dava
voltas em torno de si e ia novamente ao hall dos elevadores observar onde estava o amigo.
Mercês foi passar café para o visitante, como pretexto para permanecer no ambiente e
estudar o que estava acontecendo. Definiu o escritor a estratégia de falar muito alto no hall,
onde não podiam ser vistos diretamente, enquanto faria sinais com as mãos.

A porta do elevador se abriu e “IVAN, QUE SURPRESA HÁ QUANTO TEMPO,


MAGGIE VAI GOSTAR DE VER VOCÊ, MINHA SOGRA TAMBÉM ESTÁ AÍ, VAMOS
ENTRAR E DIZER A-ME-NI-DA-DES!”. Ivan parecia já estar pronto para tudo o que o
escritor tentava comunicar, e ainda mais. Com os olhos e o rosto fez uma expressão de que
sabia, de que não se preocupasse com o trabalho. Lhe abraçou e disse ao ouvido
“encontrei Violeta”, e enfiou alguma coisa no bolso da calça, antes de lhe dar um tapa nas
costas e retomar posição para entrar no apartamento.

- Então esse é o seu novo cafofo hein? Um castelo, rapaz, um castelo!

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