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Recebido: 15/02/2021
Pedro Barreto de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Aprovado: 09/09/2021
- Av. Reitor Pedro Calmon, 550. Prédio da FAU/Reitoria - 4° andar - sala 405
| Cidade Universitária - Rio de Janeiro, RJ / Endereço postal: Av. Reitor Pedro
Calmon, 550. Prédio da FAU/Reitoria - 5° andar - sala 521 | Cidade Universitária
- Rio de Janeiro, RJ
https://orcid.org/0000-0001-7925-9215.
pedro.moraes@fau.ufrj.br
Resumo Abstract
Este artigo confronta teorias e projetos do urbanismo moderno à This paper confronts theories and projects of modern ur-
possibilidade de uma leitura relacional das infraestruturas viárias banism to the possibility of a relational reading of the road
que impulsionam e absorvem a produção e o crescimento das infrastructures that drive and absorb the production and
metrópoles brasileiras. Em primeiro lugar, propõe-se alguns pa- growth of Brazilian metropolises. First, some parameters
râmetros e noções a partir dos quais visa-se interpretar tipologias and notions are proposed from which the aim is to inter-
fundamentais de organização e expansão urbana. Em seguida, pret fundamental typologies of urban organization and ex-
realiza-se uma revisão sobre proposições seminais de autores pansion. Then, a review is made on seminal propositions of
modernos, marcadas por uma visão integrada entre arquitetura e modern authors, marked by an integrated vision between ar-
infraestrutura. Finalmente, articulam-se possibilidades ensejadas chitecture and infrastructure. Finally, articulations are made
pelos conceitos revisados a características gerais das metrópoles between the revised concepts and some general characte-
brasileiras, apontando-se questões projetuais dadas pela confron- ristics of Brazilian metropolises, pointing to design issues
tação entre o campo das ideias e a realidade concreta. given by the confrontation between the field of the ideas
and the concrete reality.
Palavras chave: Urbanismo. Morfologia urbana. Infraestrutura
urbana. Keywords: Urbanism. Urban morphology. Urban infras-
tructure.
http://dx.doi.org/10.11606/inss.2317-2762.posfau.2020.181845 HTTP://DX.DOI.ORG/10.11606/ISSN.2317-2762.POSFAUUSP.2021.181928
Pos FAUUSP, São Paulo, v. 28, n. 53, e181928 jul-dez 2021. Pos
FAUUSP
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Introdução
As principais metrópoles brasileiras têm, na infraestu- Cabe, portanto, o questionamento colocado por Wall
tura rodoviária, um elemento condicionante comum, (2014, p. 218): “se as rodovias são um instrumento tão
que funciona como base para a urbanização, para a eficaz na urbanização da cidade-região, quais são suas
acumulação de capitais e à diferenciação do espaço qualidades urbanas?” Secchi (2014, p. 207) propõe
necessária à comercialização da terra. O uso do auto- uma aproximação ao tema que, em lugar de repudiar
móvel como meio de locomoção pela população re- a cidade moderna, busque dialogar com suas “ordens
presenta uma disputa por condições de deslocamento morfológicas, princípios de assentamento e suas rela-
que Villaça (2001, p. 329) define como principal “força ções mútuas”, superando visões setoriais, buscando
determinante da estruturação do espaço intra-urbano novas sintaxes e entendimentos dinâmicos.
brasileiro”.
Este artigo busca, portanto, naquilo que Pope (2012)
Dados os altos preços do solo em regiões centrais e define como um Projeto Unificado entre arquitetura e
a baixa qualidade dos sistemas de transporte público, infraestrutura, a identificação de um repertório orien-
eixos viários minimamente estruturados atraem inten- tado a eixos de circulação viária e aos espaços a eles
sa ocupação urbana, somada a grandes volumes de relacionados, entendidos em chave de oportunidade
tráfego. Assim, vias inicialmente periféricas, voltadas para um tipo de urbanização marcante sobre as cida-
a conexões regionais, indústrias e enclaves institucio- des contemporâneas.
nais, são abarcadas pelo crescimento urbano, absor-
vendo, em primeiro lugar, um excedente populacional Não se ignoram, aqui, as condições sociais de reprodu-
que não arca com localizações centrais e, em segundo, ção do espaço urbano, sobre as quais incidem vetores
sistemas de transporte, que surgem como “subprodu- modernizantes, eficientemente conectados, acessíveis
to do sistema interurbano” (VILLAÇA, 2001, p. 82). entre si e excludentes de grandes contingentes popula-
cionais não inseridos sob os circuitos hegemônicos do
A partir desse processo, rodovias ou vias expressas aca- capital. Tampouco se subestima o fato de que a expan-
bam por incorporar funções, dinâmicas e ocupações são urbana indutora (MAGALHÃES et al., 2012) tem,
características de vias locais, configurando-se como o na articulação entre o Estado, o mercado imobiliário
que Domingues (2010) denomina A Rua da Estrada. e o setor de provisão de infraestruturas um catalisa-
Marcados por escalas e fluxos discrepantes, definidos dor, que impulsiona a distensão dos tecidos urbanos
pelo contraste entre uma ordem vertical, hierárquica e a formação de grandes vazios, dados pela retenção
e racional, e uma ordem horizontal, localmente tecida especulativa de terras, pela obsolescência industrial
(SANTOS, 2002), os espaços delimitados por essas in- e pelo fechamento ao exterior de grandes ocupações
fraestruturas resultam dificilmente legíveis e frequen- muradas.
temente identificados ao caos, à desordem ou ao erro.
Propõe-se, no entanto, um entendimento orientado à
Aureli (2014, p. xiv) afirma que, da incapacidade do conformação do espaço resultante dessas relações, en-
campo da arquitetura para produzir uma teoria capaz sejado por conceitos e projetos seminais, cujas bases
de lidar com tal complexidade, surge uma “enciclo- possam dialogar com a produção de cidades ordinárias
pédia hipertrofiada” interdisciplinar que, no entanto, (WALKER, 2010) e regiões periféricas metropolita-
não dá conta de apreender e descrever as dinâmicas nas, marcadas por grandes eixos viários e por infraes-
e relações que configuram esses espaços, inicialmente truturas não compatíveis com áreas centrais.
periféricos e posteriormente consolidados e distantes
de um vocabulário tradicional, seja em termos técnicos Realiza-se, portanto, uma revisão sobre diferentes
ou formais. padrões de assentamento e crescimento urbano con-
1 1
Ladder representa o que, em Português, se conhece por “escada de marinheiro”, e se assemelha, em termos de organização urbana, a um esquema em “espinha de peixe”.
2 Mereologia é a teoria das relações de parte para o todo e de parte para parte, dentro de um todo.
2
Ao longo de 36 km, Magnitogorsk se organizaria entre cas”, de comércio, “do pensamento”, da administra-
duas faixas paralelas de transportes, com residências ção e do governo, estariam conectados entre si por “ci-
e estruturas de pequenas escalas na porção interme- dades lineares industriais” (LE CORBUSIER, 1979, p.
diária, equipamentos públicos e de lazer de um lado, 85). O conjunto, em cujo centro haveria “unidades de
parques e escolas do outro, externamente aos eixos exploração agrícolas”, teria, ainda, eixos de mobilidade
principais. A infraestrutura reticulada conjugaria den- hidroviária, rodoviária e ferroviária, formando compo-
sidade e dispersão, paisagem e urbanização, em um sições triangulares de escala regional (BOYER, 1989,
sistema aberto de crescimento infinito, porém contido p. 89).
em uma espécie de raia.
A ideia de triangulação é o sétimo dos dez “princí-
Diferentemente de Leonidov, o também russo e te- pios fundamentais” da Cidade Linear de Soria y Mata,
órico Milyutin projetou, para uma cidade que abri- para quem “a arquitetura racional das cidades” deveria
garia uma fábrica de tratores, o que seria um tipo de adaptar-se “ao meio-ambiente criado pela geografia e
cidade linear dividida em faixas paralelas. Concebida pela história” (TERÁN, 1964, p. 15), em uma cidade
como uma “metáfora da linha de produção”, essa ci- de tipo ideal, orientada à circulação e à descentraliza-
dade seria análoga a uma “planta industrial gigante” ção, de proporções ilimitadas. Apresentada muito mais
(COLLINS e FLORES, 1968, p. 63), com seis faixas como esquema, processo ou sistema, sem a pretensão
lineares, sem eixos transversais ou variações sequen- de consolidar-se enquanto forma arquitetônica resolvi-
ciais, classificadas por suas funções: ferrovia, zona da, a Cidade Linear se posicionou no debate urbanís-
industrial, um cinturão verde separando-a da área re- tico sob a conotação de uma proposta aberta e experi-
sidencial seguinte, uma rodovia e a área de parques, mental, radicalmente contraposta, por seus princípios
adjacente ao Rio Volga. básicos, à cidade nuclear, concêntrica (COLLINS e
FLORES, 1968).
O modelo de Milyutin foi aproveitado por Le Cor-
busier em sua criação para Os Três Estabelecimentos Nessa cidade-sistema, sem limites ao crescimento, to-
Humanos, em que “centros radioconcêntricos de tro- das as classes sociais teriam lugar, diferentemente do
produtos do desenvolvimento centrípeto, aquilo que veículos e pessoas e à emergência de espaços difusos,
sobra, entre eixos viários e enclaves fechados sobre si com limites imprecisos, vale citar o que Maki e Gold-
próprios, em permanente estado de desorganização, berg (1964) denominaram Linkage in Collective Form,
ou de entropia. apontando exatamente a instabilidade gerada por ar-
ranjos entre edifícios distribuídos em meio aos gran-
O projeto como estratégia des vazios produzidos por formas abertas e espraiadas,
às megaestruturas ou infraestruturas e às ocupações e
O intenso processo de crescimento metropolitano, assentamentos intersticiais condensados, de pequena
especialmente a partir da segunda metade do século gramatura e alta densidade construída.
XX, intimamente ligado à provisão de infraestrutura
viária, à manutenção de grandes vazios urbanos e à Nesse sentido, a ideia de ligação pretende ir além da
compartimentação funcional de atividades, produziu mera conexão linear, articulando camadas, promoven-
espaços intermediários, intersticiais, ora ocupados, ora do reorganizações ou catalisando espaços separados,
mantidos vazios, mas sempre alijados das lógicas pre- individualizados ou esquecidos em meio às vastas su-
dominantes de circulação do capital hegemônico glo- perfícies e manchas urbanas. De caráter diagramático
bal, de controle e vigilância internos e de acessibilidade e um tanto abstrato, as ações de “mediação”, “defini-
via transporte privado. Para além do que é desenhado, ção”, “repetição”, “seleção” e “criação de rotas” (Fi-
controlado e predefinido, surgiram, progressivamen- gura 7) buscam dialogar com formulações altamente
te, organizações e disposições plurais, cujas formas e idealizadas e especializadas de espaço, em uma socie-
identidades não obedecem a prescrições, evoluindo dade cada vez mais heterogênea e complexa.
para muito além do que pode ser antecipado.
É interessante também ter em conta o trabalho do co-
Diante da heterogeneidade das formas urbanas e mo- letivo Team X, como representativo de uma atitude
dos de vida percebidos e para além de uma teoria que de aproximação “ao mundo da ciência, da tecnologia
propusesse um léxico quanto à estrutura de cidades e da produção” que prescinde, no entanto, de grandes
consolidadas, alguns autores buscaram revisar o pen- teorias ou protótipos, ao adotar um “método experi-
samento urbanístico moderno baseado em modelos mental e empírico” que se ajusta e aplica caso a caso
e totalizações. Ampliando a percepção da forma ur- (MONTANER, 2006, p. 31). Ainda que heterogêneo
bana à interferência constante do fluxo contínuo de em sua formação , o grupo – parte do que se entende
por uma terceira geração moderna – manifesta clara e Projetos como Berlin Hauptstadt, Bilbao Val d’Asua
intensa atenção à pluralidade social e cultural, em um (Figura 8) e Tolouse Le Mirail sobrepõem, à lógica
momento de incremento das populações urbanas em linear e hierárquica da infraestrutura rodoviária, cama-
todo o mundo. das diversas de vias, edifícios e circulações verticais,
articulando altas e baixas velocidades, usos coletivos
Sua abordagem ao projeto arquitetônico e urbanístico e privados, grandes e pequenas escalas, em momentos
busca contemplar e condensar as atividades cotidia- de transição e conexão modal ou espacial. O projeto
nas, evitando compartimentações ou determinações adota, portanto, em oposição a aproximações tipológi-
utilitárias e tendo em conta a impossibilidade de se im- cas ou formalistas, um caráter topológico e infraestru-
por modos de vida a grupos voláteis e heterogêneos. tural, no qual a arquitetura atua como sistema suporte
Conceitos como os de mat-buildings, clusters, webs (RAMÍREZ, 2015) a eventos e interações contingen-
e stems podem ser entendidos como estratégias não tes, agenciando os contrastes entre planos distintos e
formais de ocupação e crescimento (WOODS, 1975), lógicas conflitantes, transcendendo a rigidez de zonea-
cujos sistemas estruturais – adaptativos, abertos e se- mentos administrativos e classificações funcionais.
riais – absorvem mudanças e reorganizações internas,
dialogando, ademais, com os terrenos, entornos ou Relações espaciais como forma urbana
preexistências onde se inserem, sejam essas consoli-
dadas ou não. Nesse sentido, a noção de limite torna- A metrópole contemporânea, que segue se expandin-
se flexível e ajustável, abrindo-se à incorporação e à do e transformando constantemente, não corresponde
redistribuição de espaços, fluxos e usos ao longo do a modelos nem se compõe por um sistema unívoco
tempo. de organização. No Brasil, via de regra, o padrão de
Autores modernos são uma fonte profícua de teorias e DOMINGUES, Á. A Rua da Estrada. Cidades - Comunida-
estratégias projetuais que, alimentadas por utopias so- des e Territórios, Porto, p. 59 - 67, Dezembro 2010. ISSN
ciais, levaram a gênese da forma urbana às últimas con- 20/21.
sequências. Diante de uma insistente recusa, do campo
HALL, P. Cidades do Amanhã: uma história intelectual do
da arquitetura, em confrontar as questões emergentes
planejamento e do projeto urbanos no século XX. Tradução
a partir de seus próprios termos ou conhecimentos, de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2009.
recorrer a esses personagens e sua produção é uma
possibilidade de revisão e reciclagem do entendimen- HALL, P.; WARD, C. Sociable Cities: the Legacy of Ebe-
to e das possibilidades de ação sobre o espaço. Mais nezer Howard. Chichester: John Wiley & Sons Ltd, 1998.
que transpor seus esquemas e proposições aplicados a
novos contextos e à geração de produtos conclusivos, IZAGA, F. Mobilidade e Centralidade no Rio de Janeiro.
é interessante extrair de seu legado uma cultura expe- Tese de doutorado - PROURB, UFRJ. Rio de Janeiro. 2009.
rimental responsável, engajada e implicada em incre-
KÖHLER, D. The Mereological City: a reading of the
mentar o vocabulário e o repertório de projeto para a
works of Ludwig Hilberseimer. Tradução de Verlag. Inns-
cidade futura e as próximas gerações. bruck: Bielefeld, 2016.
POPE, A. The Unified Project. Architectural Design, SOLÀ-MORALES, M. D. Cerdà / Ensanche. Barce-
New Jersey, n. 82, p. 80-87, 2012. lona: Edicions UPC, 2010.
POPE, A. Ladders. Houston: Architecture at Rice, TERÁN, F. D. Revisión de la Ciudad Lineal. Revista
2014. Arquitectura, Madrid, v. 72, p. 3-20, 1964.