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Mãe Stella: "O sagrado não tem

cor"
Quarta, 9 de janeiro de 2008, 08h55 
Claudio Leal
 
Claudio Leal/Terra Magazine
Terra Magazine
- Houve
invasões da
polícia no Opô
Afonjá?
Mãe Stella -
Felizmente, aqui
não. Porque era
muito longe. Mãe
Aninha foi
inteligente. Aqui
era um subúrbio,
quase. Ela
sempre procurou
ser correta, era
charmosa, ia
fazendo toda a
autoridade, todo
Mãe Stella: "Se o negro estuda, não tem quem
o mundo gostava discrimine. Porque se discriminar,
dela. tem a Justiça aí."

Ela foi ao
Palácio do
Catete.
Foi! Na década
de 30, por aí, ela
foi ao Catete. Ela
se dava com algumas pessoas e o Osvaldo Aranha
tinha conhecimento com ela. Através de um ogã aqui
da casa, foi até Getúlio e conversou com ele. Jorge
Amado, nesse tempo, também era deputado - sempre
tem que ter umas pessoas mais conhecidas - e
conseguiu a liberação de cultos. Conseguiu isso, e
ficamos. Mas, como sempre, até hoje - está melhor -
o povo de Candomblé não briga com ninguém, né?
Que nos ofenda, diga isso ou aquilo, nós não vamos
nos mexer. Quando eu cheguei aqui...
Leia também:
» Mãe Stella: "Candomblé não é brincadeira"
(primeira parte)
» Marlon Marcos: Ilê Axé Opô Afonjá, 97 anos a
serviço de Xangô

Em 1976.
Quando eu fui fazer o Candomblé, tinha aqui a
delegacia de Jogos e Costumes, como se fosse uma
boate ou casa de sei lá, pra tomar (a licença). Mas
sempre se achou aquilo um absurdo. Eu aí me dirigi a
uma entidade que seria aqui responsável pelo
Candomblé... Pra provar, tinha que me dirigir a uma
entidade que não estava fazendo nada. Mas chegou o
professor Roberto Santos (ex-governador da Bahia,
1975-79), que conseguiu essa liberação na realidade.
A gente nunca mais precisou de alvará pro culto.
Tanto que o povo de candomblé deu a ele um
opaxorô (instrumento que simboliza Oxalá) de prata.
Devemos essa liberação maior a ele. Nós vamos
levando direitinho.

Hoje, a relação com a Igreja Católica é boa?


É, respeito mútuo. Ela nos respeita, nós também a
respeitamos. Não há necessidade de se invadir a
Igreja pra fazer culto lá. O povo-de-santo ia pra lá,
não tinha informação, pensando que estava se
afirmando. Fazia uma obrigação e ia ao bispo pra ter
a bênção, pra aquilo ter valor. Isso é até bobagem.
Uma mistura. Sincretismo é um ato que se usa para
agradar a todos e não faz bem a ninguém. Ninguém
se completa com o sincretismo. É apenas uma
confusão mental. Estou esperando que essa turma
que não tomou consciência real do que é isso, tome e
separe. Porque devemos ter a nossa crença. Como é
que você vai fazer um axexê (cerimônia realizada
após o rito fúnebre) sem cantar, sacrificar... Será que
não vale nada, só vale a Igreja? Não tem necessidade
disso.

Algumas casas assinaram o documento de 1983,


mas acabaram não o seguindo. Por quê?
Por isso que eu digo que é bom você ser alfabetizado,
ser instruído, pra ler e conversar com pessoas de bom
caráter. Que vão esclarecendo. O pessoal tem a
mania, sabe que você está errado, mas pra não
desagradar, diz: "Você faz muito bem...". Não é por
aí. Se você gosta do outro, tem que chamar a
atenção do que não tá legal, pra ele acordar e você
ficar até orgulhoso dele. Então, esqueceram. Nós
temos que aprender a discernir as coisas pra depois
não assinarmos a nossa sentença. O doutor chega
aqui, todo bonitinho, aqui Stella, assine isso aqui pra
gente... Nada, eu tô assinando minha sentença.
Amanhã vou ser presa, pagar pelo que assinei. Dizer
amém ao que os outros falarem? Não...

Houve um pouco de reverência aos antecessores


entre os que praticam o sincretismo ou
simplesmente não entenderam que o tempo
mudou?
Não entenderam que o tempo mudou e muita gente
não tem condição de pensar bem, discernir tudo
direitinho. Trocar miúdos pra saber por que estou
aqui. Por que eu estou no Candomblé? Tem que
saber. Aqui eu tenho obrigação de fazer isso e aquilo.
Se você não pensa assim, aí vira folclore. Nossa
religião é uma coisa lúdica, com cantos e danças, mas
não é brincadeira. É uma religião alegre por si
mesma. Faz homenagem cantando e dançando. Mas
com cantos sagrados, danças sagradas.

E a imprensa mudou o tratamento dado ao


Candomblé? Há menos preconceito?
Não, falar da imprensa... Você é repórter, né? (risos)
Taí pra ganhar seu dinheiro. Quanto mais novidade,
melhor. Vou comprar o jornal dele... É quente. O
povo gosta disso. Então, um bom repórter tem que
ser fiel. Se ele é fiel, está escrevendo o que ele viu.

É o pacto primário com a fonte.


Fidelidade, né? Não é escrever o que ele pensa, nem
porque fulano pagou pra você escrever. Não é à toa
que o patrono do repórter, da comunicação, é Exu.
Exu quer fazer (risos). Eu acredito muito no repórter
porque o repórter tem que ter bom caráter.

Mas a cobertura do Candomblé melhorou, tem


bons jornalistas?
Jornalistas, sim. Porque o mundo mudou, até os
antropólogos. No passado, escreviam aquela
discriminação, como se fosse um animismo, uma
invenção. Eles começaram por aí. Mas depois a
humanidade foi evoluindo, as pessoas estudam.
Quanto mais você estuda, mais você quer aprender,
até que você chega a uma situação em que veja o
que é mesmo a essência. Se você sabe o que é a
essência, você sabe o que é a verdade.

Como a senhora vê o movimento de afirmação


do negro? Acha importante a implantação de
cotas nas universidades?
Nem tudo é. Porque às vezes até o negro - eu sou
negra -, no afã de querer se aparecer, ele mesmo
está discriminando. Precisa ter muito cuidado com
isso. Eu falo para as pessoas terem cuidado. "Ah,
branco não entra aqui!". Aí eu mesma tô me
discriminando. Cotas pra mim... O negro tem
obrigação, como todo o ser humano, de ser
inteligente, de ir pros livros, fazer pesquisas, dar
conta de seu recado direitinho. Estão sendo acessíveis
com eles, como se fosse um favor: coitadinhos,
deixem eles passar... Não é isso. Tem a obrigação de
estudar. Se ele estuda, não tem quem discrimine.
Porque se discriminar, tem a Justiça aí.

Mas se eu fiz minha prova boa, sei que tenho


consciência, fiz um trabalho legal, por que ele me
tirou? Vou ver quem está com a razão. Esse negócio
de passar a mão na cabeça... Não há mais
necessidade disso. Cada um de nós tem que ter a
condição de escrever a sua própria história. Ah, eu
vou ficar calada, ah, deixa o branco fazer... Não tem
nada de branco nem preto. Outra coisa que eu
desfaço nesse documento (de 1983) é a crença de
que todo negro tem que ser de Candomblé. Não é. O
sagrado não tem cor, não tem condição física, nem
instrução nem nada disso. O ser humano é livre para
acreditar no que quiser. Não tem necessidade de todo
negro ser de Candomblé. Muitos já vieram aqui:
"Mãe, estou aqui porque sou negro...". Não. Você
pode ser negro e ser padre. Pode ser negro e ser
ateu.

Há muitos e muitos negros evangélicos.


Pois é. Uma coisa não está acima da outra. Na
realidade o negro tomou conhecimento do Candomblé
por causa das suas raízes, a África. Mas na África há
pessoas que não são negras. Agora, cabe à gente
desmanchar isso, nem destratar os brancos, nem
puxar o saco porque é branco. Todos são seres
humanos, todos têm o direito de ser bem-tratados,
todos têm o dever de tratar bem os outros. Cada
religião tem a sua hierarquia. Cada religião tem sua
liturgia, tem seus dogmas, de acordo com a tradição
de cada país, de cada local. Essa criação do mundo se
dá de uma maneira: o grego viu de uma maneira, o
africano de outra, o americano de outra... Ninguém é
dono da verdade. Dono da verdade é quem estiver
certo pra si e fazer tudo pra não prejudicar o irmão.
(pausa) Pronto?

Tá bom?
Tá.

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