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Responsabilidade civil do advogado

Paulo Luiz Netto Lôbo

Sumário
1. Normas de regência. 2. Elementos consti-
tutivos da responsabilidade civil. 3. O advogado
como fornecedor de serviços na relação de
consumo. 4. Presunção da culpa e imputação
de responsabilidade ao advogado. 5. Inversão
do ônus da prova e as hipóteses de exclusão da
culpa do profissional. 6. Responsabilidade
objetiva por vício do serviço advogado. 7.
Superação da distinção entre obrigação de meios
e obrigação de resultado.

1. Normas de regência
O advogado responde civilmente pelos
danos que causar ao cliente1. A responsa-
bilidade é a contrapartida da liberdade e
da independência do advogado. O advoga-
do tem obrigação de prudência (obligation
de prudence). Incorre em responsabilidade
civil o advogado que, imprudentemente,
não segue as recomendações do seu cliente
nem lhe pede instruções para as seguir. Na
hipótese de consulta jurídica, o conselho
insuficiente deve ser equiparado à au -
sência de conselho, sendo também impu-
tável ao advogado a responsabilidade
civil2. O parecer não é apenas uma opinião,
mas uma direção técnica a ser seguida, e
quando é visivelmente colidente com a
legislação, a doutrina ou a jurisprudência,
acarreta danos ao cliente que o acompanha.
Questão ainda não respondida, inteiramen-
Paulo Luiz Netto Lôbo é Doutor em Direito, te, diz respeito à natureza e ao alcance
Professor da UFAL e da UFPE. dessa responsabilidade.
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No direito positivo brasileiro, são as que dependente de requisitos, qualificações
seguintes as normas gerais de regência da e controles previstos em lei, inserindo-se no
responsabilidade civil do advogado: conceito amplo de relação de consumo, pois
a) art. 133 da Constituição Federal, queo advogado é prestador de serviço profis-
estabelece a inviolabilidade do advogado sional. A atividade obriga e qualifica como
por seus atos e manifestações no exercício culposa a responsabilidade pelo dano
da profissão. É norma de exoneração de decorrente de qualquer de seus atos de
responsabilidade, não podendo os danos exercício.
daí decorrentes serem indenizados, salvo A culpa perdeu progressivamente o
no caso de calúnia ou desacato. Essa lugar privilegiado que ostentava, com o
peculiar imunidade é imprescindível ao crescimento das hipóteses de responsabili-
exercício da profissão, que lida com a dade objetiva. Contudo, no que respeita ao
contradição e os conflitos humanos; profissional liberal, ela ainda é elemento
fundamental, conquanto sempre presu-
b) art. 159 do Código Civil, regra básica
da responsabilidade civil subjetiva, que mida, como demonstraremos a seguir.
permanece aplicável aos profissionais O dolo, entendido como intenção mali-
liberais; ciosa de causar prejuízo a outrem, é espécie
do gênero culpa, no campo da responsabi-
c) art. 32 da Lei nº 8.906, de 4 de julho
de 1994 (Estatuto da Advocacia), que lidade civil. Aproxima-se da culpa grave,
responsabiliza o advogado pelos atos que, que o direito sempre repeliu. O dolo é
no exercício profissional, praticar com doloqualificado em caso de lide temerária,
ou culpa; quando o advogado estiver coligado com o
d) art. 14, § 4º, do Código do Consu- cliente para lesar a parte contrária. É
midor, que abre importante exceção ao gravíssima infração à ética profissional e,
sistema de responsabilidade objetiva, na também, acarretará responsabilidade
relação de consumo dos fornecedores de solidária, assim por dano material (emer-
serviço, ao determinar a verificação da gente e lucros cessantes) como por dano
culpa, no caso dos profissionais liberais. moral. Ao contrário da culpa, em que o
dano terá de ser indenizado na dimensão
exata do prejuízo causado pelo advogado,
2. Elementos constitutivos da
o dolo em lide temerária acarreta um plus
responsabilidade civil ao advogado, porque é obrigado solidário
Tendo em vista o desenvolvimento da juntamente com a parte contrária, inclusive
teoria da responsabilidade civil, nos últi- naquilo que apenas a este aproveitou
mos anos, a responsabilidade civil do ad- indevidamente.
vogado assenta-se nos seguintes elementos: A lide temerária, no entanto, não se
a) o ato (ou omissão) de atividade presume, nem pode ser decretada de ofício
profissional; pelo juiz, na mesma ação. Tampouco basta
b) o dano material ou moral; a prova da temeridade, que pode ser
c) o nexo de causalidade entre o ato e o resultado da inexperiência ou da simples
dano; culpa do advogado. Deverá ser apurada em
d) a culpa presumida do advogado; ação própria, contra ele proposta pelo
e) a imputação da responsabilidade próprio cliente, incumbindo a este o ônus
civil ao advogado. da prova da existência do dano, da temeri-
O advogado exerce atividade, entendida dade da lide, e da coligação com a parte
como complexo de atos teleologicamente contrária.
ordenados, com caráter de permanência. A A imputação da responsabilidade é
atividade de advocacia não é livre, posto direta ao advogado, que praticou o ato de
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sua atividade causador do dano, não do profissional liberal. Em suma, a ele
podendo ser estendida à sociedade de aplicam-se todas as regras e princípios
advogados de que participe. incidentes à relação de consumo, exceto
Considera-se nula a cláusula de irres- quanto a não ser responsabilizado sem
ponsabilidade no contrato de prestação de ficar caracterizada sua culpa, afastando-
serviços de advocacia. Não se pode excluir se a responsabilidade objetiva que preva-
responsabilidade por atos próprios, sobre- lece contra os demais prestadores de
tudo em face do que dispõe o artigo 51 do serviços.
Código de Defesa do Consumidor.
4. Presunção da culpa e imputação de
3. O advogado como fornecedor de responsabilidade ao advogado
serviços na relação de consumo Presume-se que o advogado autônomo
Nas relações de consumo, o advogado é culpado pelo defeito do serviço, salvo
autônomo, quando exerce sua profissão, é prova em contrário, por ser a presunção
um fornecedor de serviços, sujeito à juris tantum. Não se pode cogitar, em
legislação de tutela do consumidor. hipótese de culpa presumida, de se atribuir
Quando exerce a profissão, em relação de o ônus da prova ao cliente, porque tornaria
emprego, não é fornecedor e não está ineficaz a presunção.
sujeito imediatamente à responsabilidade Cabe ao cliente provar a existência do
por fato do serviço, mas sim seu empre- serviço, ou seja, a relação negocial entre
gador, em virtude da atividade perma- ambos, e a existência do defeito de execu-
nente que exerce. ção, que lhe causou danos, sendo sufi-
A responsabilidade culposa tout court ciente a verossimilhança da imputabili-
dos profissionais liberais é incompatível dade. Cabe ao advogado provar, além das
com o sistema de proteção do consumidor, hipóteses comuns de exclusão de respon-
porque significaria sua exclusão das sabilidade, que não agiu com culpa (em
regras e princípios do Código do Consu- sentido amplo, inclui o dolo). Se o profis-
midor, o que não ocorreu. Também não sional liberal provar que não se houve com
seria hipótese de responsabilidade obje- imprudência, negligência, imperícia ou
tiva, porque a lei impõe a “verificação dolo, a responsabilidade não lhe poderá
da culpa”. ser imputada.
Para o Código do Consumidor, haven- Essa é a inteligência possível do § 4º do
do dano em virtude do fato do serviço, art. 14 do Código do Consumidor, que
imputável (responsável) é o fornecedor, impõe a verificação da culpa para respon-
sem consideração à culpa. Sendo profis- sabilizar o profissional liberal pelos
sional liberal, é o responsável presumido. defeitos do serviço que prestou.
Ressalte-se que o Código do Consu- A tendência mundial da legislação de
midor não excluiu o profissional liberal proteção do consumidor é da responsa-
das regras sobre responsabilidade do for- bilidade extranegocial do fornecedor,
necedor. Se assim fosse, tê-lo-ia retirado fazendo-se abstração do negócio jurídico
de seu campo de aplicação, no artigo 3º. que está subjacente a qualquer relação de
Também não o remeteu à responsabi- consumo. A mudança de rumo é aguda,
lidade negocial do direito comum das obri- com relação ao direito comum das obri-
gações; sua responsabilidade é extra- gações, pois neste seria enquadrada na
negocial, nas relações de consumo. Não responsabilidade negocial, originando-se
impôs ao consumidor o ônus de provar a indenização por perdas e danos do
a alegação do dano pelo fato do serviço inadimplemento culposo ou do adimple-
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mento incompleto ou defeituoso. O direito seguintes pontos: a) natureza da culpa;
do consumidor rompe o princípio da b) ônus da prova da culpa.
relatividade subjetiva das obrigações No estágio atual do direito, a culpa na
negociais, projetando uma transeficácia responsabilidade civil pode sofrer as
que alcança terceiros atingidos pelo dano seguintes gradações:
provocado pelo produto ou serviço, não a) é requisito, sem a qual não há ilícito
figurantes do negócio jurídico. nem se poderá imputar responsabilidade
Outra tendência do direito do consu- a alguém pelo dano: responsabilidade
midor, nessa área, é a franca adoção da culposa;
responsabilidade (extranegocial) objetiva. b) é requisito, mas presume-se exis-
A culpa esteve sempre no centro da tente, em determinadas situações: culpa
construção doutrinária liberal da respon- presumida;
sabilidade civil, tendendo à socialização c) nem sempre é requisito para quem
dos riscos, como preço a pagar por todos deu causa ao dano (por fato do homem,
para o desenvolvimento da livre inicia- porque evidentemente se exclui nas
tiva. O advento do direito do consumidor hipóteses de fato do animal ou de coisa),
revelou uma face do problema que se sendo dispensável para quem se imputa
desconsiderava: o consumidor não dispõe a responsabilidade: responsabilidade
das mesmas condições de defesa do for- transubjetiva;
necedor, no mercado de consumo. Uma d) não é requisito, sendo dispensável a
das características do consumidor (o verificação de sua existência, bastando o
cliente do advogado o é) diz respeito à dano para imputação da responsabi-
vulnerabilidade jurídica, que o direito lidade: responsabilidade objetiva.
presume, independente de ser o fornecedor A responsabilidade culposa tout court
de serviços uma macroempresa ou um dos profissionais liberais é incompatível
prestador isolado. De qualquer forma, a com o sistema de proteção do consumidor,
responsabilidade objetiva, na relação de porque significaria sua exclusão das
consumo, não é absoluta ou integral, uma regras e princípios do Código, o que, como
vez que admite exonerações, em benefício já acima demonstramos, não ocorreu.
do fornecedor de serviços, tais como a Também não seria hipótese de responsa-
culpa exclusiva da vítima, a prova de não bilidade objetiva, porque a lei impõe a
prestação do serviço, a prova da inexis- “verificação da culpa”. Não é hipótese de
tência do defeito do serviço que teria responsabilidade transubjetiva, pois a
causado o dano, o caso fortuito e a força imputação de responsabilidade recai dire-
maior e, conquanto muitos não admitam, tamente sobre o fornecedor de serviços e
o risco do desenvolvimento (o Código do não sobre outrem. Assim, a hipótese “b” é
Consumidor refere a “adoção de novas a mais razoável e adequada.
técnicas”). Assim, surpreende que o A culpa presumida constitui um avan-
Código do Consumidor brasileiro tenha ço na tendência evolutiva que aponta para
excepcionado os profissionais liberais a necessidade de não se deixar o dano sem
dessa linha de tendência, ao exigir a reparação, interessando menos a culpa de
verificação da culpa. quem o causou e mais a imputar a alguém
Todavia, a interpretação da regra legal a responsabilidade pela indenização. Por
deve ser feita de modo a dar cumprimento isso, cresceram as hipóteses em que a lei
ao princípio constitucional de proteção ao ou a jurisprudência consideram que a
consumidor (artigo 170, V, da Constituição culpa é presumida, cabendo ao imputável
Federal), ou seja, no sentido mais favorável contraditá-la. Para o Código do Consu-
ao consumidor, particularmente nos midor, havendo dano em virtude do fato
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do serviço, imputável (responsável) é o ções do consumidor. Porém, deixa de
fornecedor, sem consideração à culpa. depender do convencimento do juiz,
Sendo profissional liberal, é o responsável tornando-se obrigatório, quando resultar
presumido. de responsabilidade por culpa presumida
Pontes de Miranda3 ressalta a conexão ou de responsabilidade objetiva.
entre culpa presumida e inversão do ônus No caso do fornecedor de serviços, em
da prova, ao comentar o inciso III: geral, cabe-lhe o ônus da contraprova, em
“Os que são apontados como hipóteses que a lei delimita em numerus
devedores de reparação, no artigo clausus:
1.521, III, têm o ônus da prova de a) não houve defeito no serviço, e,
não-culpa; os que o apontaram têm portanto, dano ao consumidor;
de dar prova de que havia o vínculo b) a culpa pelo defeito foi exclusi-
contratual entre o agente e o respon- vamente do consumidor;
sável e o dano derivasse de ato c) o dano foi pré-excluído, uma vez que
previsto no artigo 1.251, III”. o suposto defeito decorreu da adoção de
novas técnicas.
5. Inversão do ônus da prova e as hipóteses Além delas, devemos cogitar de outras
hipóteses de pré-exclusão de contrarie-
de exclusão da culpa do profissional
dade a direito, previstas no direito obri-
O princípio da inversão do ônus da gacional comum, também aplicáveis ao
prova é um dos esteios do sistema jurídico fornecedor de serviços, supletivamente,
de proteção do consumidor. Sem ele, a como o caso fortuito e a força maior, a
efetividade do sistema fica comprometida. legítima defesa e o estado de necessidade.
Não foi por acaso que se transformou em As hipóteses a) e c) são de natureza
um dos principais alvos dos adversários objetiva, não envolvendo culpa em sentido
do Código do Consumidor, quando o estrito. Poderiam ser enquadradas no
projeto de lei tramitava no Congresso âmbito da responsabilidade sem culpa. Na
Nacional. hipótese a), cuida-se de comprovar a
O princípio transfere ao responsável inexistência do defeito alegado pelo
pelo dano o ônus de provar que não foi consumidor; não se questiona se houve
culpado por ele, ou que não houve dano, culpa ou não do fornecedor pelo possível
ou que o culpado foi exclusivamente a defeito ou evento danoso. Na hipótese c),
vítima, ou que houve fato que pré-excluiu o defeito é desconsiderado (pré-excluído
a contrariedade a direito. Não é novidade pela lei) porque se comprova que corres-
no direito brasileiro, como já se demons- ponde, em exata dimensão, à utilização de
trou à outrance, tendo o próprio Código novas técnicas, segundo o estágio dos
Civil, ao início deste século, rendido-se a avanços tecnológicos na área específica de
sua evidência, em determinadas situações serviços, que não podem ser obstados por
de responsabilidade civil. argumentos desse jaez; a culpa não desem-
O Código do Consumidor, no artigo 6º, penha qualquer papel.
VIII, elevou a inversão do ônus da prova A culpa aparece apenas na hipótese b),
a direito básico do consumidor, positi- mas não em relação ao fornecedor. O
vando o princípio em regra geral e estru- defeito e o dano existem, não são objeto de
turante, a que se subordina qualquer controvérsia, mas o fornecedor inverte a
operação hermenêutica. De um modo imputação ao consumidor, comprovando
geral, o juiz poderá determiná-lo, mesmo que foi ele que os provocou, ou terceiro,
quando não seja exigível, sempre que se por negligência, imprudência ou impe-
convencer da verossimilhança das alega- rícia. A culpa exclusiva do consumidor, no
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caso dos serviços, é sempre mais difícil que liberal é culpado pelo defeito do serviço,
no caso de produtos, máxime em se salvo prova em contrário, por ser a
tratando de advocacia; todavia ocorre, presunção juris tantum. Não se pode
como nos seguintes exemplos: o depoi- cogitar, em culpa presumida, de se atribuir
mento pessoal do cliente, que contradiz a o ônus da prova ao consumidor, porque
linha de defesa do advogado; a falta de tornaria ineficaz a presunção.
entrega de documento, imprescindível Não somente por essas razões do
para o caso; a falta de adiantamento para regime jurídico, mas de inteligência dos
pagamento do preparo do recurso; o pre- termos empregados pelo § 4º do artigo 14
juízo decorrente de negociação direta- do Código do Consumidor, chega-se a essa
mente feita pelo cliente com a parte adver- conclusão. Quando se diz “verificação de
sária, sem conhecimento do advogado. culpa” não se diz que deve ser provada
A correta inteligência do § 4º do art. 14 por quem alega o defeito do serviço. Diz-
do Código do Consumidor, como parte de se que não poderá ser responsabilizado se
todo um regime legal e jurídico específico, a culpa não for “verificada” em juízo,
não pode conduzir a outro resultado, porque o profissional conseguiu contra-
porque senão teria dito que o profissional prová-la. Repita-se: é inquestionável a
liberal dele estaria inteiramente excluído, compatibilidade desse preceito com o ar-
permanecendo sob a égide do regime tigo 6º, VIII, que impõe o direito básico do
comum do Código Civil, e da responsabi- consumidor à inversão do ônus da prova.
lidade subjetiva ou culposa. Não contemplaria o mandamento legal
Diz o § 4º que o profissional liberal de “facilitação da defesa de seus direitos”
sujeita-se ao regime do Código do Consu- se ao consumidor se impusesse o ônus de
midor e ao princípio constitucional de provar a culpa do profissional pelo defeito
proteção, mas que sua responsabilidade
do serviço, que existe e não é objeto de
pessoal será apurada mediante verifica-
discussão, máxime em questões de ele-
ção de culpa. Em outras palavras, acres-
vada especialização e complexidade
centa-se, para ele, mais uma hipótese de
técnica, em desprezo ao princípio da
exclusão de responsabilidade: quando
presunção de culpa. O STJ 5 já firmou
provar que não lhe cabe culpa pelo defeito
jurisprudência, no mesmo sentido de faci-
ou dano, na prestação do serviço.
litação da defesa, que a ação de responsa-
Nessa hipótese, o dano irressarcido
significa exceção ao princípio da repara- bilidade por dano decorrente da prestação
ção integral ou de reposição da vítima à de serviços médicos pode ser proposta no
situação anterior4 . Não está abrangida foro do domicílio do autor, apesar dos
pela hipótese b), porque nesta o fornecedor termos do art. 14, § 4º, do Código do
não procura liberar-se de culpa, mas sim Consumidor.
imputá-la ao consumidor ou a terceiro. Cabe ao consumidor de serviço, do
Demonstramos acima que a situação profissional liberal, provar a existência do
específica do profissional liberal corres- serviço, ou seja, a relação de consumo
pondia à responsabilidade por culpa entre ambos, e a existência do defeito de
presumida. A culpa presumida tem por execução, que lhe causou danos, sendo
efeito prático justamente a inversão do suficiente a verossimilhança da imputa-
ônus da prova. É assim em todas as bilidade. Cabe ao profissional liberal
hipóteses consagradas no direito comum, provar, além das hipóteses comuns de
desde quando a legislação brasileira exclusão de responsabilidade dos demais
passou a presumir a culpa do transpor- fornecedores de serviços, que não agiu
tador. Presume-se que o profissional com culpa.
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6. Responsabilidade objetiva por vício do Como regra geral, a doutrina domi-
serviço advogado nante diz que o profissional liberal assume
obrigação de meios, sendo excepcionais as
A responsabilidade com culpa presu-
obrigações de resultado. Na obrigação de
mida, referida no Código do Consumidor,
meios, a contrariedade a direito reside na
é relacionada exclusivamente ao fato do
falta de diligência que se impõe ao profis-
serviço, ou seja, quando o serviço causar
sional, considerado o estado da arte da
dano à pessoa ou ao patrimônio do consu- técnica e da ciência, no momento da
midor. A responsabilidade por vício do prestação do serviço (exemplo: o advoga-
serviço (defeito de inadequação, oculto ou do que comete inépcia profissional, cau-
aparente) do advogado ou de qualquer sando prejuízo a seu cliente). O profis-
profissional liberal é idêntica à dos demais sional não prometeria resultado, mas a
fornecedores de serviços, sem qualquer utilização, com a máxima diligência
restrição. A regra de exceção, prevista no possível, dos meios técnicos e científicos
§ 4º do artigo 14 do Código do Consumidor, que são esperados de sua qualificação.
não alcança as hipóteses de vícios do A farta jurisprudência dos tribunais
serviço, previstas nos artigos 18 e se- brasileiros utiliza essa dicotomia como
guintes, em prejuízo do consumidor. pré-requisito para imputar a responsa-
Compreende-se que, em se tratando de bilidade ou não do profissional liberal.
dano, impõe-se a verificação da culpa. Em Se o profissional se houve com dili-
casos tais, o dano é conseqüência da má gência, pouco importa o resultado obtido,
execução ou da inexecução culposa do excluindo-se sua responsabilidade, limi-
serviço devido. Contudo, o vício (salvo narmente. Essa orientação dominante
quando também provocar dano) não é resultou em dificuldades quase intrans-
conseqüência, mas característica da poníveis para as vítimas de prejuízos
própria execução defeituosa. A responsa- causados pelos profissionais liberais,
bilidade por vício é objetiva, não envolve quando não conseguem provar que a
necessariamente indenização por dano obrigação por eles contraída é de resultado.
nem verificação de culpa. No caso dos advogados, a configuração de
O princípio de defesa do consumidor sua obrigação como de resultado era e é
estaria seriamente comprometido se, para quase impossível. Assim, restam os danos
exercer as alternativas em caso de vício do sem indenização, na contramão da evo-
serviço (reexecução do serviço, restituição lução da responsabilidade civil, no sentido
da quantia paga ou abatimento propor- da plena reparação. Já sustentamos essa
cional do preço), dependesse de verifica- tese, sem reflexão mais aprofundada .
7

ção de culpa do profissional . 6 Hoje, não pensamos mais assim.


A dicotomia, obrigação de meios ou
obrigação de resultado, não se sustenta.
7. Superação da distinção entre obrigação
Afinal, é da natureza de qualquer obriga-
de meios e obrigação de resultado ção negocial a finalidade, o fim a que se
Ao longo do século XX, na teoria da destina, que nada mais é que o resultado
responsabilidade civil em geral, nota- pretendido. Quem procura um advogado
damente com relação aos profissionais não quer a excelência dos meios por ele
liberais, predominou, no direito brasileiro, empregados, quer o resultado, no grau
uma distinção ou dicotomia que se trans- mais elevado de probabilidade. Quanto
formou quase em petição de princípio: a mais renomado o advogado, mais pro-
obrigação ou é de meios ou é obrigação de vável é o resultado pretendido, no senso
resultado. comum do cliente. Todavia, não se pode
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confundir o resultado provável com o culposa do profissional liberal, que o
resultado necessariamente favorável. próprio Código de Defesa do Consumidor
Assim, além da diligência normal com que consagrou, com o princípio constitucional
se houve na prestação de seu serviço, cabe de defesa do consumidor, se houver
ao advogado provar que se empenhou na aplicação de dois princípios de regência
obtenção do resultado provável, objeto do dessas situações, a saber, a presunção da
contrato que celebrou com o cliente. culpa e a conseqüente inversão do ônus da
O cliente que demanda o serviço do prova. Ao advogado e ao profissional
advogado para redação de algum ato liberal qualquer, e não ao cliente, impõe-
jurídico (parecer, contrato, estatuto de se o ônus de provar que não agiu com dolo
sociedade etc.) tem por finalidade evitar ou com culpa, na realização do serviço que
que algum problema futuro venha a lhe prestou, exonerando-se da responsabi-
causar prejuízo. Tem-se assim obrigação lidade pelo dano.
de meios como de resultado, o que torna No mesmo sentido, veja-se a lição de
inviável a dicotomia. Quando o cliente Jorge Mosset Iturraspe9, para quem essa
procura o advogado, para ajuizar ação, distinção não favorece a tutela do consu-
não pretende apenas o patrocínio mais midor de serviços e sempre foi utilizada
diligente, mas a maior probabilidade de na doutrina e na jurisprudência para
resultado favorável. Em qualquer dessas amparar os prestadores de serviços,
situações, cabe ao advogado provar que atenuando o rigor de suas obrigações,
não agiu com imprudência, imperícia, construindo um âmbito de inadimple-
negligência ou dolo, nos meios emprega- mento contratual admitido. Diz ainda o
dos e no resultado, quando de seu serviço
autor que a qualificação das obrigações
profissional redundar dano.
como de meios desvincula o dever do
Dessarte, é irrelevante que a obrigação
devedor do compromisso de alcançar um
do profissional liberal classifique-se como
resultado de interesse do credor, juridi-
de meios ou de resultado. Pretendeu-se
camente protegido, ou seja, o de lograr um
que, na obrigação de meios, a responsabi-
resultado benéfico.
lidade dependeria de demonstração ante-
“A tutela do consumidor se refor-
cipada de culpa; na obrigação de resul-
ça, na medida em que se considera
tado, a inversão do ônus da prova seria
cada serviço como um resultado e
obrigatória 8. Não há qualquer funda-
uma finalidade em si mesmo, que
mento para tal discriminação, além de
prejudicar o consumidor que estaria com responde ao interesse do credor, e na
ônus adicional de demonstrar ser de resul- medida em que a prova sobre a
impossibilidade ou aleatoriedade
tado a obrigação do profissional.
deve produzi-la o devedor do serviço,
A exigência à vítima de provar que a
pois do contrário será considerado
obrigação foi de resultado, em hipóteses
como inadimplente responsável”.
estreitas, constitui o que a doutrina
denomina prova diabólica. A sobrevivência
dessa dicotomia, por outro lado, é flagran-
temente incompatível com o princípio Notas
constitucional de defesa do consumidor 1
As Ordenações Filipinas, Livro 1, Título XLVIII,
(art. 170, V, da Constituição), alçado a 10, já determinavam que, “se as partes por negligência,
condicionante de qualquer atividade culpa, ou ignorância de seus procuradores receberem
econômica, em que se insere a prestação em seus feitos alguma perda, lhes seja satisfeito pelos
bens deles”.
de serviços dos profissionais liberais. 2
Cf. ALMEIDA, L. P. Moitinho de. Responsabilidade
Somente é possível harmonizar a civil dos advogados. Coimbra : Coimbra Editora, 1985.
natureza de responsabilidade subjetiva ou p. 18.
182 Revista de Informação Legislativa
3
Tratado de Direito Privado. Tomo 8. Rio de Janeiro da Advocacia. 2.ed. Brasília : Ed. Brasília Jurídica,
: Borsoi, 1972. p. 134. reimpressão de 1999. p. 139-41.
4
Cf. JOURDAIN, Patrice. Les principes de la 8
Cf. PRUX, Oscar Ivan. Um novo enfoque quanto à
responsabilité civile. Paris : Dalloz, 1992. p. 129. responsabilidade civil do profissional liberal. In: Revis-
5
R. Esp. 80.276/95-SP. 4 ª Turma, DJU de 25-3-96. ta de Direito do Consumidor. n. 19, jul/set. 1996. p. 205.
6
Cf. NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Responsabilidade 9
La vigencia del distingo entre obligationes de
por vício do produto ou do serviço. Brasília : Ed. Brasília medio y de resultado en los serviços, desde la
Jurídica, 1996. p. 60. perspectiva del consumidor. In: Revista Ajuris. Porto
7
NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Comentários ao Estatuto Alegre : [s.n.], março 1998. p. 250.

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