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BELLAS, João Pedro. Terror e Deleite
BELLAS, João Pedro. Terror e Deleite
RESUMO
Reconhecido principalmente como um poeta, Luís Nicolau Fagundes Varela
(1841-1875), também explorou a prosa de ficção, tendo publicado, em 1861, alguns
contos no Correio Paulistano. Essas narrativas são marcadas por aspectos similares
àqueles utilizados pela escola gótica inglesa dos séculos XVIII e XIX. Dentre as
semelhanças, pode-se destacar a presença de elementos comuns à estética do sublime,
sobretudo em relação à formulação de Edmund Burke em Uma investigação filosófica
sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. O modelo burkeano é
especialmente profícuo devido ao papel central conferido à emoção do terror para a
produção do sublime. Assim, o presente ensaio se propõe a analisar o conto “A guarida
de pedra” com vistas a estabelecer uma relação entre a narrativa de Varela e o sublime
tal qual definido por Burke.
Palavras-chave: Sublime; Romantismo; Fagundes Varela; Burke; Gótico.
Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo,
isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos
terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do
sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz [de
sentir] (BURKE, 1993, p. 48).
Vale ressaltar que uma ideia obscura não é caracterizada somente pela ausência
de luz, mas também por sua ininteligibilidade. Sendo responsável por conferir a
determinado objeto certo grau de incerteza para torná-lo terrível, a obscuridade é um
elemento fundamental para o sublime. A proposta do filósofo irlandês, segundo Nick
Groom (2012, p. 77), foi endossada pelo Gótico:
A partir dessa ideia, Groom (2012, pp. 77-78) lista ainda sete tipos de
obscuridade que frequentemente figuram em narrativas góticas: (i) meteorológico; (ii)
topográfico; (iii) arquitetônico; (iv) material; (v) textual; (vi) espiritual; e (vii)
psicológico. Esses tipos seriam identificáveis não apenas em obras góticas setecentistas,
mas também em narrativas do século XIX, já no período romântico. Bons exemplos
disso são o poema narrativo “A balada do velho marinheiro” (1798), de Samuel Taylor
Coleridge, e o romance O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë.
Seguindo a divisão proposta por Groom, em nossa abordagem do conto “A
guarida de pedra”, dar-se-á ênfase aos tipos meteorológico e psicológico na análise do
espaço narrativo e ao tipo textual para tratar da questão da moldura. No primeiro caso,
partimos da ideia de que, na narrativa de Varela, elementos climáticos – como
ventanias, tempestades, etc. – aliam-se a aparições fantasmagóricas com vistas a
fortalecer seu caráter sobrenatural. No segundo, entendemos que quebras narrativas em
diferentes níveis de moldura – uma característica recorrente em obras góticas –
constituem um artifício textual que colabora para a criação do sublime enquanto efeito
estético.
[…] eu vi uma figura sombria e medonha! Era um frade; [...] Atrás dele
vinham quatro vultos todos mais alvos do que a neve, e seguravam com uma
mão um chicote fumarento, enquanto a outra sustinha um caixão mortuário.
Eles caminhavam lentos que parecia gastar uma hora para mover um pé; e
cantavam com voz tumular e cavernosa a encomendação dos defuntos. Um
vento gelado e furioso corria por todos os lados, as aves da morte piavam
desoladamente, as ondas exalavam soluços frenéticos, batendo-se umas
contra as outras (VARELA, s.d., pp. 314-315. Grifos nossos).
Mais uma vez, temos uma descrição centrada em constituir uma natureza
aterrorizante. Mais uma vez, há o emprego de um campo semântico composto por
adjetivações que visam a ressaltar o perigo do lugar. Para tanto, há ainda diversas
referências a mitos de diferentes povos que evocam ideias sombrias. Os ventos se
assemelham aos demônios responsáveis pelo rapto da esposa do príncipe indiano Rama,
o mar é tão bravio que suas ondas parecem proteger o tesouro dos Nibelungos nórdicos,
e o trovão que ecoa lembra os titãs, grandes inimigos dos deuses gregos.
Na passagem acima, toda a caracterização torna a natureza em volta da guarida
bastante imponente e ameaçadora, mesmo sem a presença dos componentes
fantasmagóricos. Quando estes aparecem, apenas corroboram o efeito já provocado
pelos elementos naturais. Em verdade, a primeira reação da personagem, após ouvir
pela primeira vez a procissão de fantasmas, é interpretá-la como a própria natureza.
Apesar de estremecer um pouco, o soldado diz que “'é o vento, é a tempestade que
ruge'” (VARELA, s.d., p. 316). No entanto, no momento em que vê, de fato, os seres
sobrenaturais, ele não pode mais resistir, sentindo “os cabelos se arrepiarem e o frio do
terror correr-lhe pelo corpo” (VARELA, s.d., p. 316). Nessa cena, portanto, é o
elemento fantasmagórico que alia-se à descrição espacial potencializando, dessa forma,
o terror experimentado.
Nas passagens analisadas ao longo dessa seção, podemos observar uma fusão
dos aspectos naturais com os elementos sobrenaturais, de modo que, do ponto de vista
da atmosfera que propicia a realização do sublime terrível, ambos são dependentes um
do outro, isto é, os dois componentes trabalham juntos, potencializando o efeito criado
pela obra.
[...] a obra de horror artístico tem embutido dentro de si, por assim dizer, um
conjunto de instruções acerca da maneira adequada como o público deve
responder a ela. [...] Ou seja, as obras de horror ensinam-nos [...] a maneira
adequada de responder a elas. Descobrir essas sugestões ou instruções é uma
questão empírica, não um exercício de projeção subjetiva.
– Inda bem a gargalhada não tinha acabado de soar, que eu escutei o som
lúgubre e funerário de uma sineta, era toque lento e compassado como o que
anuncia um enterro. O suor corria-me em bagas pela testa, meus dentes
rangiam com força e minhas pernas tremiam como varas verdes. Voltei o
rosto para o lado… Oh, meu Deus! era horrível o que vi!…
– Então calas-te!… – gritou o comandante já um pouco impressionado
(VARELA, s.d., p. 314. Grifos nossos).
Conclusão
O conto analisado neste ensaio é um exemplo de como Fagundes Varela, em sua
obra em prosa, faz uso de muitos elementos e convenções do Gótico literário para
compor suas narrativas de modo a possibilitar a produção do sublime terrível. Neste
estudo, nosso foco foi o espaço ficcional e a moldura como estratégia de
distanciamento, mas, muito além desses dois aspectos, podemos identificar, nas
narrativas do escritor fluminense, personagens descritas como figuras animalescas e
cadavéricas, o retorno fantasmagórico do passado para assombrar o presente, dentre
outros arquétipos.
As narrativas em prosa de Varela, portanto, ilustram bem que, ao contrário do
que a crítica e a historiografia tradicionais nos fizeram crer, há no Brasil uma produção
ficcional influenciada pela poética do Gótico europeu.
Referências bibliográficas