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Ferreira da Silva e as coisas mágicas da terra

Caldas da Rainha é uma cidade de grande tradição ceramista, onde se vive com o peso
de Bordalo Pinheiro e o seu legado de cerâmica “bordalesca”.

Esta tradição serve de marco referencial na cultura da população ao mesmo tempo


que pode ser impeditiva de uma evolução que transforme o passado em presente. Quantas
vezes a tradição é erroneamente tido como um fenómeno estático.

Não é possível conceber a memória de um povo como uma coisa que vem de trás, que
não está permanentemente a ser construída. É natural e muito humano não perder a
capacidade de avaliar o progresso para dele tirar o melhor partido por forma a criar as
rupturas que permitam o equilíbrio entre as formas de expressão artística e o homem. Uma
espécie de ecologia da arte.

A cerâmica é geralmente tida como uma coisa de decoração ou quanto muito como
uma forma de arte menor. É este o hábito que a “tradição” nos ensinou (o qual, talvez por
comodismo, nunca foi questionado).

A cerâmica deve ser entendida como um meio e um fim em si, isto é, o trabalhar do
barro (“lama” como lhe chama Ferreira da Silva, reclamando para a terra um significado
primordial) não tem que ser só o fazer com terra uma coisa bonita. Uma peça em cerâmica
pode conter tanto valor em si como uma pintura ou uma escultura (para referir só duas formas
de expressão artística).

Transformação permanente

Para Ferreira da Silva nunca nada se esgota, do conhecimento que tem acumulado em
mais 40 anos de trabalho tira a conclusão de que cada vez mais tem para fazer, que nada está
feito. Da resolução de uns problemas nascem outros problemas, ao mesmo tempo que a
tecnologia amplia as possibilidades de trabalho (tornando quase impossível a uma ideia não se
tomar praticável), o homem torna-se livre, um “Cosmonauta”, nada o impede de alcançar a
consciência de si e de sentir a terra como “mãe natura”.

Ao lidar com a lama o artista adquire uma consciência ecológica, que se altera com
vista aos fins que serve. Tanto se pode tratar de uma poética de destruição, de um destruir no
caos (e a sua cerâmica tem sempre muita força, é uma expressividade na qual se sente pulsar
uma primeira energia vital), de uma luta pelo equilíbrio entre a arte e as demais criações
humanas (notável na incorporação simbólica dos metais, que se retorcem em busca de
harmonia) ou de um sentir a força da fecundidade da terra, uma cosmologia para a fertilidade.

A escultura em cerâmica é dotada de um carácter cósmico, toda a diversidade dos


materiais aplicados e das formas utilizadas remetem para uma pesquiza em torno da
identidade do homem e da sua relação com o universo. As peças surgem como um
amplificador do grito Humano.
Ao referir escultura em cerâmica pretendo nomear a dimensão física das obras, pois
apercebemo-nos da existência de uma infinidade de planos “pintados” que se torcem em si
numa busca de contaminação espacial. Este sentido espacial é o grande mutante formal das
esculturas; o movimento e a inconstância dos materiais e formas provocam constantes
deslocações de sentido – e esta efervescência liga-nos à água.

A obra recente

Ferreira da Silva sente um grande fascínio pela água (diz viver na “região das coisas da
água”) e a sua obra cada vez mais reflecte sobre este elemento.

As Caldas da Rainha têm uma luz muito particular, relacionada de estranha maneira à
mediterrânica (água e luz).

A costa mediterrânica e a sua luz apresentam-se na série de trabalhos “Ofélia”. Aí, o


artista apresenta uma reflexão ecológica baseada na Lagoa de Óbidos, o nome das peças indica
a presença da coisa (e a coisa neste caso é a destruição da natureza pelo homem, ou do
homem por si mesmo): “sinal”. A maneira de tratar a “lama” aponta para a destruição do
convívio natural. As peças são rasgadas, tornam-se por momentos numa inquietante cacofonia
em busca da ordem, ordem essa que permanece adormecida e nunca escondida, é pela
reflexão que se encontra a força que nos conduz até ela (a ordem é a do caos, a primitiva, que
vive e anseia pela liberdade).

A sua obra rompe co a tradição ao procurar uma nova maneira de utilizar o azulejo.
Ferreira da Silva opera uma reinvenção da tradição azulejar portuguesa (muro exterior do
CENCAL nas Caldas da Rainha) ao modificar a sua função de silêncio. Mais um grito pela
ecologia, desta vez Humana. Apresentam-se-nos uma série de painéis e figuras avulsas sob a
forma de documento artístico. Estamos perante um planeta retalhado, carregado de
movimento vão, caminhos que conduzem a nada, o esventramento da terra e as suas marcas.
Esta serie, o artista procedeu a uma análise do cubismo (de Braque e muito de Amadeo de
Sousa Cardoso) e através de deslocações críticas reinventou a paisagem cubista (notam-se
também pulsões futuristas, só a nível formal, pois os conceitos são diametralmente opostos).

A grande obra de Ferreira da Silva está neste momento parada por falta de verbas.
Trata-se de uma mãe de água que une o Hospital termal (fundado por D. Leonor) ao Hospital
das Caldas. É um projecto multimedia em que a água funciona como aglutinador.

A ideia segue o caminho iniciado pela obra “O ciclo mágico da água”, que se encontra
na câmara municipal das Caldas. Trata-se de uma homenagem a D. Leonor, objecto de grande
admiração por parte do artista, pois foi a senhora que criou a primeira cidade Renascentista
em Portugal, o primeiro Hospital termal do mundo e foi um ser humano extremamente
moderno numa época que se pretendia moderna.

A mãe de água homenageia D. Leonor e Gil Vicente (“mestre Gil” nas palavras de
Ferreiral), outro grande moderno que viveu nas Caldas; ao mesmo tempo é uma alegoria às
estações do ano e faz uma inventariação/reflexão em torno dos materiais ou despojos que a
cidade por descuido ou outra razão qualquer esqueceu. Aqui, Ferreira da Silva exercita todo o
seu conhecimento e articula os materiais em busca de um novo começo, do Homem.

Muita coisa fica por dizer, pois Ferreira da Silva não pára de trabalhar.

Um conselho: “Que sempre desenhem com fartura.”

João dos Santos

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